PENSAR O TEATRO NO
ESPAÇO DA ARTE
DINA MOSCOVICI
Abril,
2008-04-15
Dá o terceiro
sinal. O escuro se faz. O público silencia e dirige sua atenção para
o palco. Uma tênue luz começa a iluminar
a cena, delimitando o contorno onde a ação deverá se dar. Aparentemente, ainda nada acontece.
Há pura espera. Mas, nossas
projeções imaginárias começam a povoar o espaço. No vazio, as expectativas vão se acentuando. Talvez, quem sabe, a espera nos cause alguma
inquietação. Movemos-nos, tossimos. Certa
angústia, que tentamos dissimular, nos acomodando nas poltronas, é contagiante,
repercute na sala. O silêncio
perturba. É demasiado barulhento.
Felizmente, algo acontece. Um ator entra em cena.
Sai da sombra e caminha da lateral esquerda até o
centro do palco. Também ele parece
perdido, chegado a um lugar estranho que examina olhando em todas as direções.
Parece querer marcar território.
Subitamente, a sensação de algum ruído.
Ele escuta no silêncio porque depois de uma pequena hesitação vira-se
abruptamente para o fundo do cenário. É
de lá que vem o perigo. Somos nós e ele,
atentos, com a respiração em
suspenso. Foi apenas
um susto porque o ator vira-se para o público e nos faz respirar. Agora, frontalmente, dirige o olhar para
algum lugar distante, no vazio. Acena.
Seguramente vê algo. Daqui a
pouco saberemos o que, qualquer coisa que nos assegure na compreensão de alguma
realidade. É sempre assim, desde sempre,
esta inquietação na procura de alguma resposta tranquilizadora, apaziguadora de
nossas inquietações.
Sabemos
que a realidade nunca se apresenta como algo homogêneo e linear, nem dá
respostas certas e definitivas. Em cada
época, a cada momento, somos sempre atravessados por novos
desafios e desgarramentos que nos remetem à repetição das mesmas perguntas
fundamentais sobre nos mesmos, sobre a natureza, sobre a dicotomia com a
natureza e sobre o sentido da própria existência.
Novos planos de imanência se
desdobram com novos paradigmas que exigem novo esforço para encontrar novas
provisórias respostas. Mas, nenhuma vai conseguir
apaziguar a turbulência avassaladora que nos invade ao querer desvendar o nosso
inexplicável existir entre as coisas. Estaremos sempre no vazio do palco, na
espera do acontecimento.
Quem sabe, aparecerá um outro, um outro ator, ou
outros, que num jogo de espelhos nos decifrem os porquês de estarmos na espera
de respostas. Condenados a pensar o
mundo e a nós mesmos, dilacerados entre o ser mais um ente entre as coisas, estamos
permanentemente criando uma espacialidade, um habitat perambulante aonde gestus
irão deixando marcas, delimitando territórios.
No princípio, no mais arcaico, um plano mítico,
no qual o homem tratava de apropriar-se do mundo, antigas teogonias convivem
com os homens, interferindo em seus destinos.
Logo, do discurso mítico, pré-filosófico, um longo caminhar para uma
ordenação racional do mundo. A Filosofia
conceituando o intrincado relacionar do homem com a natureza.
Por outro lado, um universo sensível tratando
de possibilitar o desvendar de verdades oraculares, em regiões ontológicas onde só
o artista é capaz de tornar visível o invisível. Aquilo que ele experimenta como sensação toma
forma. É expressividade tornada matéria,
num visível que é pura expressividade. Porque a arte expressa, não representa.
O ator
estará no palco com todo seu corpo, mas também com algo mais que seu corpo. Ele
expressa aquilo que viu, mas sua visão inclui todos os sentidos e não apenas o
olhar. Assim como na vida: estamos sempre imersos numa visibilidade múltipla, numa
transversibilidade dos sentidos, não apenas táteis, visuais, etc., mas de todos
os sentidos ao mesmo tempo. Somos todo o
tempo, um corpo que se expressa, um corpo de sensações capaz de ultrapassar os
limites de seu próprio contorno. Um corpo que sente e não um corpo que funciona
sob uma prévia organização aonde apenas se chegaria a uma simples
representação. Um corpo de intensidades,
no embate entre o aprisionamento e a
liberação do organismo.
Talvez,
quem sabe, quando Artaud, em sua obra teórica, se referia ao ator, estivesse, justamente, apregoando um mais além
de uma simples presença corporal, onde ainda não existissem as intensidades, os impulsos
e os afetos. Porque um corpo em que cada órgão tivesse, nele mesmo, apenas, já
uma função previamente determinada, seria apenas um corpo empobrecido, sabotado,
afastado de suas possibilidades. Incapaz de doar ou de acolher o que a ele se
oferece como possibilidade de um porvir criativo.
Pensemos o teatro como captação dos conflitos
existentes na realidade. Conflitos
entre homens e deuses; entre homem e Deus ou entre homens com outros homens. Ou,
como no Teatro do Absurdo, a captação de conflitos internos, insolúveis, do homem
consigo mesmo. A cena teatral seria mais
uma das maneiras de eternizar o tempo vivido, de possibilitar os encontros e
desencontros. De eternizar o efêmero como duração. De fazer vir à luz alguma coisa que na vida
foi apenas pressentida.
A visão de um acontecer às cinco horas da
tarde, aparentemente, pertence apenas às cinco horas da tarde, mas, na cena
teatral ela pode se eternizar. Assim
como num poema – ‘eram las cinco en punto de la tarde’-, ou como num quadro. O poeta ou o pintor ao capturar um momento, o
retirando do tempo vivido e colocando-o no poema ou na tela, lhe dão eternidade
no tempo. Mas, não será esta afirmação apenas uma falácia?
Aparentemente,
o tempo do cotidiano aparece como se fosse sempre atravessado por clichês. O
artista teria o poder de transformar estes clichês, estes momentos efêmeros, em
singulares e eternos. Mais ainda, na obra de arte estes momentos são sempre os
mesmos e ao mesmo tempo diferentes deles mesmos. Há sempre, na obra de arte, um algo que é
sempre igual e ao mesmo tempo diferente de si mesmo. Uma transitorialidade, um nomadismo que abre
mundos para aquele que aprecia a obra lançando-o sempre para mais além da
resposta, para uma sempre nova interrogação, num “motus perpetuo”, sempre chegada e fim de caminho. Uma cartografia de espaços imaginários que
emana da geografia de corpos transgressores que desafiam e duelam com o mundo
da razão.
No palco, esta geografia corporal se
desenha em cartografias com linhas de fuga apontando para múltiplas direções
que vão mais além dos limites da cena, denunciando permanentemente que por traz
de uma realidade tácita, patente, existem outras latentes, inexpurgáveis. Há sempre uma abertura aberta para uma nova
abertura, um novo conflito que remete a outros conflitos.
No Teatro, tudo aquilo que acontece na
cena é sempre transitório. Os
personagens entram em conflito na luta pela realização de seus desejos. Desejar
é estar na falta, lançar-se na tarefa de possuir o objeto desejado. Mas, satisfazer o desejo, possuir o objeto
desejado, pressupõe, ao mesmo tempo “consumir”, fazer desaparecer o objeto
desejado. Mas, o objeto desejado vai reaparecer quando o novamente a sua falta
se fizer presente, na presença de sua ausência, como negação.
Assim, todo
desejo se anunciará sempre como desejo antecipado de outro desejo. E, é nesse
embate entre diferentes desejos dos diferentes personagens que a obra teatral
vai evoluindo no tecido dramático de sucessivos instantes presentes e
intensivos. O acontecer no acontecer vai determinar a evolução do drama cênico
definindo-o como uma comédia, um drama ou uma tragédia.
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