sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Guanabara Canibal"


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Pertinente alerta para os tempos atuais

Lionel Fischer



"Guanabara Canibal dá continuidade à investigação cênica e dramatúrgica da história da cidade do Rio de Janeiro, que teve início com o espetáculo Cara de Cavalo (2012), sobre a extinta favela do esqueleto, atual UERJ, nos anos 60; e seguiu com Caranguejo Overdrive (2105), sobre o antigo mangue que foi aterrado no final do século XIX, atual Praça XI. Agora o foco recai sobre a fundação da cidade, tendo como referência para a construção da dramaturgia a literatura quinhentista, que inclui relatos dos cronistas franceses Jean de Lery e André Thevet, que acompanharam a formação da colônia França-Antártica, no Rio de Janeiro, e o poema De GestisMendi de Saa (Feitos de Mem de Sá), do padre José de Anchieta, que narra a ofensiva portuguesa contra os tupinambás e a ocupação francesa da cidade".

Extraído (e levemente editado) do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto de "Guanabara Canibal", mais recente produção da Aquela Cia de Teatro. Em cartaz no Teatro III do CCBB, o espetáculo conta com direção de Marco André Nunes, estando a dramaturgia a cargo de Pedro Kosovski. No elenco, Carolina Virguez, Matheus Macena, Reinaldo Junior, João Lucas Romero e Zaion Salomão. 

Como todos sabemos, quando alguém pretende cometer um crime toma no mínimo duas precauções: a escolha do melhor momento para perpetrá-lo e um cuidado extremo para não deixar qualquer pista incriminatória. No presente caso, os colonizadores portugueses seguiram à risca esta breve e sinistra cartilha: escolheram o momento quem lhes pareceu ideal para combater os franceses e as mais de oitenta aldeias indígenas que viviam no entorno da Baía da Guanabara. 

Após breve resistência, os franceses fugiram. Mas os índios resolveram lutar contra o inimigo comum, deixando de lado suas rivalidades. E foram dizimados, praticamente inviabilizando qualquer pista incriminatória - se poucos dos milhares de índios sobreviveram, quem haveria de levar a sério sua versão sobre a brutal carnificina? Quem haveria de se interessar sobre sua cultura se praticamente nenhum vestígio da mesma foi preservado? Sim, há relatos dos cronistas franceses, assim como o poema de José de Anchieta, mencionados no parágrafo inicial. Mas a voz indígena jamais se fez ouvir e o que prevaleceu, como sempre acontece, é a versão oficial dos que detêm o poder. 

Tais questões estão presentes no texto de Pedro Kosovski, cuja estrutura narrativa mescla passagens ritualísticas, informações históricas e momentos em que o tempo, propositadamente estendido pela direção, coloca o espectador em um estado de permanente perplexidade, por um lado, e de total desconforto por outro, como se em alguma medida nos fosse imputada uma parcela de responsabilidade não pelo que ocorreu no passado, evidentemente, mas por tudo aquilo que nossa omissão permite que se perpetue no presente - quantos de nós se preocupam verdadeiramente com nossos índios e com sua real inserção no contexto político e social do nosso país?   

Estamos diante de um texto que nos remete ao que já aconteceu, sem dúvida, mas cujo principal mérito é o de nos alertar para os tempos atuais. Afinal, se nos recusamos a pensar sobre o que fomos, nós o seremos sempre. Se não refletirmos sobre nosso passado, estaremos condenados a repeti-lo. E me parece que todos nós estamos fartos de repetições e ansiamos todos por novos caminhos, por um Brasil que priorize o entendimento e a fraternidade, que respeite as diferenças e as minorias, e exclua para sempre os que nada têm a oferecer a não ser seus espúrios e inaceitáveis interesses.

Acredito que tanto o texto de Pedro Kosovski, quanto a expressiva e potente direção de Marco André Nunes - a mesma potência e expressividade presentes na atuação de todo o elenco - estão impregnados de um misto de furor e esperança. E sendo esta, segundo dizem, a última que morre, não permitamos que isso aconteça.

No tocante à equipe técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de Felipe Storino (direção musical), Renato Machado (iluminação), Marco André Nunes e Marcelo Marques (instalação cênica), Marcelo Marques (figurino) e JoseffCheslow (visagismo).

GUANABARA CANIBAL - Texto de Pedro Kosovski. Direção de Marco André Nunes. Com Carolina Virguez, Matheus Macena, Reinaldo Junior, João Lucas Romero e Zaion Salomão. Teatro III do CCBB. Quarta a domingo, 19h30.   








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