Max Reinhardt
fala do Ator
Creio na imortalidade do teatro. É o melhor refúgio para aqueles que guardaram
sua infância no bolso e fugiram com esse tesouro escondido para continuar "brincando"
até o fim de suas vidas.
* * *
Quando se fala do teatro e isto é, sem dúvida, o que esperais de um homem de teatro como eu, temos que colocar o ator na primeira e na última linha, já que só a ele e a mais ninguém pertence o teatro. Ao fazer esta afirmação somente tenho em vista os atores profissionais, como penso, antes de tudo, no ator como poeta e criador. Todos os grandes autores dramáticos são atores natos, hajam ou não exercido tal profissão com maior ou menor êxito. Penso no ator como diretor, como músico, arquiteto, pintor e, certamente, por último, no ator-espectador, pois o talento dramático do espectador é quase tão decisivo como o do ator.
Desejo
O espectador deve intervir também a fim de que nasça o verdadeiro teatro, que é a arte mais completa, mais poderosa, mais direta e que reúne todas as demais. Em cada ser humano existe, consciente ou inconscientemente, o "desejo de transformação". Todos trazemos em nós mesmos as possibilidades de todas as paixões, de todos os destinos, de todas as formas de vida. Nada do que é humano deixa de ter eco em nós. Não fosse assim, não poderíamos nem na vida nem na arte compreender aos demais. Porém, o que herdamos: a educação, as experiências individuais, que não fecundam e não desenvolvem senão uma pequena parte dos milhares de germes que em nós existem. Os demais debilitam-se pouco a pouco e terminam morrendo.
Pobreza
A vida burguesa é estrita, limitada e muuito pobre em matéria emotiva. Nesta pobreza encontram-se virtudes, entre as quais se penetra e se avança dificultosamente. O ser normal sente, em geral "uma vez" na vida o êxtase do amor; "uma vez" na vida a transbordante alegria da liberdade e do ódio; enterra "uma vez" com profunda dor um ser amado e, finalmente, morre, ele mesmo "uma vez". Porém, isto é pouquíssimo para as nossas potencialiddaes inatas de amor, de ódio, de felicidade, de dor. Todos os dias exercitamos nossos músculos e nossos membros para que se fortifiquem e para evitar que se atrofiem. Porém, nossos órgãos espirituais, criados sem dúvida para serem empregados na vida, ficam inativos, sem exercício e perdem com o tempo, sua faculdade de funcionamento. É do funcionamento completo desses órgãos que depende não só nossa saúde espíritual e moral, como também nosso corpo.
Explosões
Sentimos sem a menor dúvida como nos satisfaz uma gargalhada, como nos alivia um soluço, como nos apazigua um acesso de cólera. Buscamos até inconscientemente essas explosões. Diz-se que os ciumentos buscam ardentemente o sofrimento. É porque temos uma necessidade absoluta de sentir emoções e de manifestá-las. Nossa educação certamente trabalha em sentido contrário. Seu primeiro mandamento pode expressar-se assim: "Dissimula o que se passa contigo, não deves deixar perceber nada de tua agitação, de tua fome, de tua sede, procura ocultar toda alegria, toda a dor e toda a ira; é necessário afogar tudo que é primitivo e que tende a manifestar-se".
Freios
Eis como se formam os "freios" de que tanto se fala em nossos dias - a doença da moda - o histerismo e toda essa vã comédia que, em suma, enche a nossa vida. Paixões, sentimentos, emoções, nada disso existe hoje em dia. Dispusemo-nos a substituí-los por uma série de expressões formalistas de um valor geralmente reconhecido e aceito pela sociedade de que fazemos parte. Essa sociedade é tão rígida e nos aprisiona tão estreitamente, que todo movimento espontâneo fica excluído quase que completamente. Do mesmo modo que nossa roupa, que se fabrica em série para todos os tamanhos, temos duas ou três dezenas de fórmulas triviais que se aplicam em todas as ocasiões.
Convenções
Possuímos expressões faciais convencionais para expressar simpatia, prazer, dignidade, o sorriso estereotipado da figura. Perguntamos a nossos semelhantes: "Como está?, sem nos preocuparmos com a resposta ou mesmo sem verdadeiro interesse. E dizêmo-lo sempre com um tom regulado tão perfeitamente que se poderia fixar suas notas, invariavelmente repetidas ao infinito, para expressar a satisfação de nos encontrarmos com eles, enquanto que no fundo o fato nos é absolutamente indiferente, quando não desagradável. O código social corrompeu até o ator, o homem cuja missão é a de expressar sentimentos. Quando se educam gerações ensinando-as a conter suas emoções, já não resta nada, em suma, para reprimir ou liberar.
Enamorados
Como é possível que o comediante, profundamente preso às ficções da vida burguesa, possa à noite dar esse salto prodigioso a fim de converter-se num rei louco, cujas paixões tudo transtornam?. Como é possível que faça crer ao espectador que está se matando por ciúmes ou se suicidando por amor? Uma das características de nosso teatro atual é que nele quase não existem enamorados. Quando um ator diz em cena "amo-te", em muitos teatros se fará um fundo musical a fim de expressar um estado de espírito poético. Substitui-se, deste modo, a vibração da alma por uma vibração de violinos, sem a qual não se poderia distinguir um "amo-te" de um "como vai".
Mulheres
Em geral as mulheres são mais expressivas e mais impulsivas, por se encontrarem mais próximas da natureza que o homem. Em tempos passados, quando os atores estavam distanciados ainda da sociedade burguesa, e vagavam como boêmios pelo mundo, indubitavelmente, desenvolviam-se entre eles personalidades mais poderosas e mais originais. Suas paixões eram mais impetuosas, seus acessos mais violentos. Nenhum interesse entorpecia seu livre curso. Eram comediantes de corpo e alma. Hoje em dia "a carne" está sempre bem disposta, porém, a alma é débil e os interesses estão divididos. No entanto, todas essas considerações e todas essas regras desapareceram ante o milagre do gênio. Mas os gênios são poucos e muitos são os teatros.
Crianças
São as crianças que refletem mais claramente a essência do gênio, quase todas elas são gênios natos. Sua faculdade de assimilação é única e as tendências criadoras, que se manifestam em seus jogos, são geralmente geniais. Elas querem descobrir o mundo por si mesmas e criá-lo novamente (recriá-lo). Instintivamente, recusam assimilar a vida pela instrução, segundo a fórmula de "uma colherada por hora". Não querem absorver a experiência dos outros. Transformam-se com a rapidez do relâmpago e fazem tudo de acordo com os seus desejos. Seu poder de imaginação é avassalador. Isto é um simples sofá? Pois sim, é uma estrada de ferro e eis que, em seguida, a locomotiva ronca, silva e roda, elas se põem a contemplar, através dos vidros das janelas, de um lado e do outro dos vagões, enquanto vem o guarda, severo, que revisa os bilhetes. De repente, o trem se detém na estação...
Ideal
É o Teatro. Teatro ideal, modelo de arte dramática. Isso explica o fenômeno de que, tanto no teatro como no cinema, as crianças são sempre os melhores atores. Fossem elas favorecidas pelas circunstâncias, seriam todas crianças prodígios. Justamente nos jogos infantis é onde melhor se poderia estudar os principais fundamentos do teatro. As decorações e os acessórios que as crianças utilizam, mesmo sob a forma de coisas, são transformadas logo por sua imaginação soberana. Apesar disso, quanta realidade, que surpreendente naturalismo, que improvisações geniais, que pouco espaço reservado à objetividade do drama, e tudo acompanhado de uma clara consciência, que nunca as abandona, de que tudo que ocorre ali não é senão um jogo.
Erro
Sucede o meso com o ator. É um erro supor que o comediante possa esquecer o espectador, se é precisamente nos momentos de maior turbação, ao sentir milhares de pessoas suspensas, apaixonadas e trêmulas em seus próprios lábios, que essa consciência lhe dá força para libertar-se inteiramente e para despojar-se dos últimos véus que cobrem os recantos mais secretos de sua alma. Também para a criança aquilo é um jogo, porém, um jogo praticado com uma seriedade profunda e que exige a presença de "espectadores" submissos, mudos, atentos, que seguem o desenvolvimento desse jogo e que lhes emprestam concurso.
Nascimento
A arte dramática nasceu durante a primeira infância da humanidade. O homem, reduzido a viver uma existência breve entre uma multidão composta de seres inteiramente diferentes de si mesmos, tão próximos a eles e ao mesmo tempo tão distantes, sentiu uma imperiosa necessidade de passear por meio da imaginação, de uma forma a outra, de um destino a outro, de uma paixão a outra: foram esses seus primeiros ensaios de vôo para além da estreiteza de sua existência material. Se é certo que fomos criados à imagem de Deus, deve haver em nós algo do divino impulso criador.
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O presente artigo, aqui resumido, consta do nº 59/1973 da revista Cadernos de Teatro, edição já esgotada.
quinta-feira, 30 de abril de 2009
Teatro/CRÍTICA
"Mau humor"
..................................................................
Hilários destemperos de uma estressada
Lionel Fischer
Vinícius de Moraes julgava a beleza fundamental. Não concordo inteiramente com o poeta, mas em contrapartida ouso afirmar que a vida, levada sem humor, torna-se simplesmente intolerável. Ao mesmo tempo, tenho plena consciência de que eventuais estados de mau humor são inevitáveis.
No presente caso, porém, estamos diante de uma mulher completamente estressada e com um vastíssimo repertório de situações que a levam a ficar de mau humor. E é justamente sobre tal repertório que ela fala compulsivamente com a platéia, o que a impede de "começar o espetáculo" - trata-se, naturalmente, de um artifício teatral, pois o texto foi concebido visando que o espetáculo jamais comece.
Com texto e direção assinados por Lucília de Assis e interpretação a cargo de Carmen Frenzel, "Mau humor" está em cartaz no Teatro Municipal Café Pequeno.
Como já foi dito, a única personagem desfila um vastíssimo repertório de situações que a deixam fora de controle, a maioria comuns a todos nós - e aqui a autora Lucília de Assis revela um olhar agudo e pertinente sobre a ralidade, mas sempre extraindo delicioso humor dos ininterruptos enfurecimentos da personagem.
Mas esta não se torna sedutora - apesar de seus destemperos - apenas em função do que diz, mas também pela notável capacidade de Carmen Frenzel de se relacionar com a platéia, evidenciando extraordinária vocação para o improviso.
Na noite em que assistimos ao espetáculo, por exemplo, a atriz conseguiu "implicar" com toda a platéia e, não contente, inventou relações "constrangedoras" entre alguns dos espectadores, que a todas reagiram com extremo bom humor. E isso graças, como já foi dito, à fantástica capacidade da atriz de lidar com o inesperado, de aproveitar todas as brechas para criar piadas muito engraçadas sobre temas completamente díspares. Sem dúvida, Carmen Frenzel é uma excelente comediante, que ainda tem a seu favor ótimo domínio vocal e corporal, e um carisma que converte a platéia em cúmplice. Assim, recomendamos aos mau humorados de plantão uma ida urgente ao Café Pequeno.
Com relação à direção, Lucília de Assis cria marcas engraçadas e diversificadas, mas é óbvio que teve o bom senso de dar total liberdade à atriz para agir em função da receptividade do público. Alexandre Dacosta assina uma música correta, a mesma correção presente na iluminação de Tadeu Freire.
MAU HUMOR - Texto e direção de Lucília de Assis. Interpretação de Carmen Frenzel. Teatro Municipal Café Pequeno. Terças e quartas às 21h.
"Mau humor"
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Hilários destemperos de uma estressada
Lionel Fischer
Vinícius de Moraes julgava a beleza fundamental. Não concordo inteiramente com o poeta, mas em contrapartida ouso afirmar que a vida, levada sem humor, torna-se simplesmente intolerável. Ao mesmo tempo, tenho plena consciência de que eventuais estados de mau humor são inevitáveis.
No presente caso, porém, estamos diante de uma mulher completamente estressada e com um vastíssimo repertório de situações que a levam a ficar de mau humor. E é justamente sobre tal repertório que ela fala compulsivamente com a platéia, o que a impede de "começar o espetáculo" - trata-se, naturalmente, de um artifício teatral, pois o texto foi concebido visando que o espetáculo jamais comece.
Com texto e direção assinados por Lucília de Assis e interpretação a cargo de Carmen Frenzel, "Mau humor" está em cartaz no Teatro Municipal Café Pequeno.
Como já foi dito, a única personagem desfila um vastíssimo repertório de situações que a deixam fora de controle, a maioria comuns a todos nós - e aqui a autora Lucília de Assis revela um olhar agudo e pertinente sobre a ralidade, mas sempre extraindo delicioso humor dos ininterruptos enfurecimentos da personagem.
Mas esta não se torna sedutora - apesar de seus destemperos - apenas em função do que diz, mas também pela notável capacidade de Carmen Frenzel de se relacionar com a platéia, evidenciando extraordinária vocação para o improviso.
Na noite em que assistimos ao espetáculo, por exemplo, a atriz conseguiu "implicar" com toda a platéia e, não contente, inventou relações "constrangedoras" entre alguns dos espectadores, que a todas reagiram com extremo bom humor. E isso graças, como já foi dito, à fantástica capacidade da atriz de lidar com o inesperado, de aproveitar todas as brechas para criar piadas muito engraçadas sobre temas completamente díspares. Sem dúvida, Carmen Frenzel é uma excelente comediante, que ainda tem a seu favor ótimo domínio vocal e corporal, e um carisma que converte a platéia em cúmplice. Assim, recomendamos aos mau humorados de plantão uma ida urgente ao Café Pequeno.
Com relação à direção, Lucília de Assis cria marcas engraçadas e diversificadas, mas é óbvio que teve o bom senso de dar total liberdade à atriz para agir em função da receptividade do público. Alexandre Dacosta assina uma música correta, a mesma correção presente na iluminação de Tadeu Freire.
MAU HUMOR - Texto e direção de Lucília de Assis. Interpretação de Carmen Frenzel. Teatro Municipal Café Pequeno. Terças e quartas às 21h.
quarta-feira, 29 de abril de 2009
Estilo da obra e interpretação
Michel Saint-Denis
A noção de estilo é hoje impopular; ela é ao mesmo tempo confusa, particularmente nos países que, em sua língua nacional, não possuem obras antigas e daí não poderem confrontar ou referir suas produções contemporâneas ao conjunto de obras que possuem os países velhos pelas suas tradições. A palavra "tradição" está abandonada; ela é justamente suspeita; por não poderem se transmitir, as tradições esterilizam as obras e as embalsamam; a fidelidade às "tradições estabelecidas" em alguns planos elevados, só pode originar convenções e por isso elas corrompem as obras que desejam servir. Não é de admirar-se que seja justamente nos países de "tradição" que a noção de "estilo" seja impopular ao máximo - os "tradicionalistas" manipularam o "estilo" durante muito tempo, como uma defesa contra qualquer mudança, contra qualquer evolução natural. Eles agora estão completamente derrotados - as tradições estão condenadas e a noção de estilo, acusada de favorecer o artifício e a mentira está afastada por ser convencional e retrógrada.
Luta
Na verdade, de maneira geral, países novos e países antigos combinam hoje suas forças mais vivas e mais adiantadas para entrar em luta contra os valores profundos que estão na base de nossas civilizações desde a Renascença e disso resulta de um lado uma reação salutar de onde emanam novas obras de características múltiplas e contraditórias que testemunham os tormentos e a riqueza de nosso tempo e, de outro lado, suscita seja a rejeição rápida de obras relativamente recentes consideradas retóricas, formais ou preciosas, seja a adaptação de obras antigas interpretadas "à maneira moderna", desprezando-se o estilo original, em negação a qualquer valor "tradiconal". Mas aqui é necessário discriminar.
Concordância
Quando uma época é passada, o que vai constituir sua tradição são as obras que permanecem e que são dotadas de força necessária para sobreviver. É evidente que cada época subsequente não poderá interpretar essas obras passadas de maneira viva senão conforme o espírito que lhe é próprio. E ainda é necessário que haja uma concordância entre esse espírito e a própria natureza da obra, de modo que o texto a revele, apenas o texto, despojada de todas as "tradições de interpretações" de uma época anterior. As tradições de representação são muitas vezes frívolas e efêmeras. Mas parece-me importante afirmar diante de um auditório preocupado com a formação teatral, que na arte dramática de cada país se constitui pouco a pouco uma tradição autêntica, que lhe é transmitida pelos textos, em língua original (somente pelos textos e na língua original apenas) e que o sinal e o instrumento dessa tradição é o estilo. Eis que voltamos à noção de estilo.
Estilo
O estilo não é monolítico. Não me ocupo do estilo de um período. Não confundo aqui estilo com período histórico. O que me interessa, em vista de nosso estudo dos diferentes tipos de improvisação, é o estilo de uma obra. Ouvi Peter Brook dizer que, em determinada obra de Shakespeare, há todos os estilos - do naturalismo à poesia épica ou lírica. Para mim, o estilo das grandes obras de Shakespeare é feito dessa verdade; a unidade de estilo não se destrói mas se enriquece. O que chamo de estilo de uma obra é a sua forma.
Revelação
A figura revela o homem - a figura de um homem não é sempre fácil de decifrar, mas ela conta, ela é testemunha de uma vida quando chega a velhice. A forma de uma obra demonstra a natureza dessa obra, de sua idade entre as obras de um mesmo autor; o estilo expressa o conteúdo de uma obra, como a figura representa o homem - é inimaginável separar ou mesmo distinguir estilo e conteúdo. Quem dirá qual deles deu nascimento ao outro? Poderá haver conteúdo não havendo forma? Samuel Beckett me dizia que sua intenção, seu pensamento só existiam a partir da forma, que antes da forma ele não sabia exatamente o que iria fazer com seu pensamento. E essa forma é o estilo, ligado à obra, como a pele está ligada ao ser.
Coração
A figura é às vezes secreta; também o estilo. É preciso saber decifrá-lo para chegar ao coração da obra. É preciso saber reconhecer um estilo e isto não é fácil. É muito difícil ler uma obra de Shakespeare (no texto original) e deixar o estilo, em sua variedade, vir à tona (e estilo não é só linguagem, é também composição); para mim, é necessário, antes, uma atitude objetiva - o subjetivo terá sua oportunidade de revanche - mas creio que o essencial, no início, é manter a obra à distância, questioná-la sem cessar, antes de se apaixonar por ela e possuí-la.
Dificuldade
A mesma dificuldade existe para todas as obras verdadeiras; quem diz obra verdadeira, de qualquer época, dis estilo. Conheceis o famoso exemplo de Tchecov e da Gaivota. A peça foi primeiro representada por um teatro acadêmico, conforme a atitude, a "tradição da representação" habituais da época: os atores "diziam" o texto, preocupados, imagino, com a beleza formal, e a peça fracassou. Foi necessário vir Stanislavski, que estudou a escola de Tchecov, reconheceu sua figura própria, isto é, o estilo impressionista. Partindo da natureza do texto, ele percebeu que era necessário encontrar a continuidade de vida e de amor dos personagens por trás do texto para que ele finalmente tivesse um sentido dramático. Foi a invenção do que os americanos e ingleses chamavam de "subtexto", e o ponto de partida de todas as improvisações realistas destinadas a nutrir o jogo dos atores pela descoberta de uma continuidade psicológica por detrás do texto.
Perigo
Descoberta preciosa para o teatro realista, impresisonista e elíptico; descoberta perigosa quando é aplicada sem discriminação a todos os estilos: ela leva, se levada ao exagero, à criação na consciência dos atores, de um mundo essencialmente psicológico, emocional e subjetivo, que pode entrar em conflito com o estilo das obras em que a psicologia tem menos importância e que a união da forma e de conteúdo é indissolúvel.
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Este artigo, aqui resumido, foi extraído da revista Cadernos de Teatro nº 58/1973, edição já esgotada.
Michel Saint-Denis
A noção de estilo é hoje impopular; ela é ao mesmo tempo confusa, particularmente nos países que, em sua língua nacional, não possuem obras antigas e daí não poderem confrontar ou referir suas produções contemporâneas ao conjunto de obras que possuem os países velhos pelas suas tradições. A palavra "tradição" está abandonada; ela é justamente suspeita; por não poderem se transmitir, as tradições esterilizam as obras e as embalsamam; a fidelidade às "tradições estabelecidas" em alguns planos elevados, só pode originar convenções e por isso elas corrompem as obras que desejam servir. Não é de admirar-se que seja justamente nos países de "tradição" que a noção de "estilo" seja impopular ao máximo - os "tradicionalistas" manipularam o "estilo" durante muito tempo, como uma defesa contra qualquer mudança, contra qualquer evolução natural. Eles agora estão completamente derrotados - as tradições estão condenadas e a noção de estilo, acusada de favorecer o artifício e a mentira está afastada por ser convencional e retrógrada.
Luta
Na verdade, de maneira geral, países novos e países antigos combinam hoje suas forças mais vivas e mais adiantadas para entrar em luta contra os valores profundos que estão na base de nossas civilizações desde a Renascença e disso resulta de um lado uma reação salutar de onde emanam novas obras de características múltiplas e contraditórias que testemunham os tormentos e a riqueza de nosso tempo e, de outro lado, suscita seja a rejeição rápida de obras relativamente recentes consideradas retóricas, formais ou preciosas, seja a adaptação de obras antigas interpretadas "à maneira moderna", desprezando-se o estilo original, em negação a qualquer valor "tradiconal". Mas aqui é necessário discriminar.
Concordância
Quando uma época é passada, o que vai constituir sua tradição são as obras que permanecem e que são dotadas de força necessária para sobreviver. É evidente que cada época subsequente não poderá interpretar essas obras passadas de maneira viva senão conforme o espírito que lhe é próprio. E ainda é necessário que haja uma concordância entre esse espírito e a própria natureza da obra, de modo que o texto a revele, apenas o texto, despojada de todas as "tradições de interpretações" de uma época anterior. As tradições de representação são muitas vezes frívolas e efêmeras. Mas parece-me importante afirmar diante de um auditório preocupado com a formação teatral, que na arte dramática de cada país se constitui pouco a pouco uma tradição autêntica, que lhe é transmitida pelos textos, em língua original (somente pelos textos e na língua original apenas) e que o sinal e o instrumento dessa tradição é o estilo. Eis que voltamos à noção de estilo.
Estilo
O estilo não é monolítico. Não me ocupo do estilo de um período. Não confundo aqui estilo com período histórico. O que me interessa, em vista de nosso estudo dos diferentes tipos de improvisação, é o estilo de uma obra. Ouvi Peter Brook dizer que, em determinada obra de Shakespeare, há todos os estilos - do naturalismo à poesia épica ou lírica. Para mim, o estilo das grandes obras de Shakespeare é feito dessa verdade; a unidade de estilo não se destrói mas se enriquece. O que chamo de estilo de uma obra é a sua forma.
Revelação
A figura revela o homem - a figura de um homem não é sempre fácil de decifrar, mas ela conta, ela é testemunha de uma vida quando chega a velhice. A forma de uma obra demonstra a natureza dessa obra, de sua idade entre as obras de um mesmo autor; o estilo expressa o conteúdo de uma obra, como a figura representa o homem - é inimaginável separar ou mesmo distinguir estilo e conteúdo. Quem dirá qual deles deu nascimento ao outro? Poderá haver conteúdo não havendo forma? Samuel Beckett me dizia que sua intenção, seu pensamento só existiam a partir da forma, que antes da forma ele não sabia exatamente o que iria fazer com seu pensamento. E essa forma é o estilo, ligado à obra, como a pele está ligada ao ser.
Coração
A figura é às vezes secreta; também o estilo. É preciso saber decifrá-lo para chegar ao coração da obra. É preciso saber reconhecer um estilo e isto não é fácil. É muito difícil ler uma obra de Shakespeare (no texto original) e deixar o estilo, em sua variedade, vir à tona (e estilo não é só linguagem, é também composição); para mim, é necessário, antes, uma atitude objetiva - o subjetivo terá sua oportunidade de revanche - mas creio que o essencial, no início, é manter a obra à distância, questioná-la sem cessar, antes de se apaixonar por ela e possuí-la.
Dificuldade
A mesma dificuldade existe para todas as obras verdadeiras; quem diz obra verdadeira, de qualquer época, dis estilo. Conheceis o famoso exemplo de Tchecov e da Gaivota. A peça foi primeiro representada por um teatro acadêmico, conforme a atitude, a "tradição da representação" habituais da época: os atores "diziam" o texto, preocupados, imagino, com a beleza formal, e a peça fracassou. Foi necessário vir Stanislavski, que estudou a escola de Tchecov, reconheceu sua figura própria, isto é, o estilo impressionista. Partindo da natureza do texto, ele percebeu que era necessário encontrar a continuidade de vida e de amor dos personagens por trás do texto para que ele finalmente tivesse um sentido dramático. Foi a invenção do que os americanos e ingleses chamavam de "subtexto", e o ponto de partida de todas as improvisações realistas destinadas a nutrir o jogo dos atores pela descoberta de uma continuidade psicológica por detrás do texto.
Perigo
Descoberta preciosa para o teatro realista, impresisonista e elíptico; descoberta perigosa quando é aplicada sem discriminação a todos os estilos: ela leva, se levada ao exagero, à criação na consciência dos atores, de um mundo essencialmente psicológico, emocional e subjetivo, que pode entrar em conflito com o estilo das obras em que a psicologia tem menos importância e que a união da forma e de conteúdo é indissolúvel.
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Este artigo, aqui resumido, foi extraído da revista Cadernos de Teatro nº 58/1973, edição já esgotada.
Alfred Jarry
(1873-1907)
Martin Esslin
Alfred Jarry é uma das figuras mais extraordinárias e excêntricas entre os poètes maudits da literatura francesa; quando faleceu era conhecido como um pouco mais do que um daqueles bizarros espécimes da bohème parisiense, que mergulhavam sua vida em poesia transformando suas personalidades em personagens grotescos de sua própria criação que desapareciam quando morriam, como aconteceu com Jarry, de seu exagero no absinto e de dissipação. Jarry deixou uma obra cuja influência cresceu após sua morte.
Influências
Selvagem, extravagante e desinibido no uso da linguagem, AJ pertence à escola de Rabelais, mas sua imaginação tem também muito do sombrio, meditativo e fantástico mundo de sonho de outro perverso e infeliz poeta maldito, Isadore Ducasse, que se cognonimou a si próprio de Conde de Lautrémont (1846-1870) e foi o autor da obra-prima da agonia romântica (Les chants de Maldoror) que se tornou mais tarde a inspiração dos surrealistas. Jarry também deve muito a Verlaine e Rimbaud e acima de tudo a Mallarmé, em cujos escritos sobre teatro há um número de apelos dispersos em favor da revolta contra a peça racional e bem feita do fim do século. Em 1885, Mallarmé pedia um teatro de mito que fosse inteiramente não francês em sua irracionalidade, com a história "livre de tempo, de lugar e de personagens conhecidos", porque "o século ou nosso país que o exalta, dissolveu os mitos pelo pensamento. Refaçamo-lo!".
Criação
Ubu Roi ("Ubu Rei") criou de fato uma figura mítica e um mundo de imagens arquetípicas grotescas. Originariamente, a peçla era uma brincadeira escolar dirigida a um dos professores do liceu em Rennes onde Jarry era aluno. O professor era o alvo do ridículo e tinha sido apelidado de Pai Héb ou Pai Hébé e mais tarde, Ubu. Em 1888, quando Jarry tinha 15 anos, escreveu uma peça para bonecos narrando as aventuras de Pai Ubu e fê-la dedicada aos amigos.
Monstro
Ubu é a caricatura selvagem de um burguês estúpido e egoista visto através dos olhos cruéis do colegial, mas seu tipo rabelaisiano, sua ganância e covardia falstafiana é mais do que uma simples sátira social. É uma imagem terrível da natureza animal do homem, sua crueldade e desumanidade. Ubu faz-se a si próprio rei da Polônia, mata e tortura tudo e todos e é finalmente
banido do país. Ele é baixo, vulgar e incrivelmente brutal, um monstro que pareceu burlescamente exagerado em 1896, mas que foi amplamente ultrapassado pela realidade, em 1945. Mais uma vez uma visão intuitiva do lado obscuro da natureza humana que o poeta projetou no palco provou a sua verdade profética.
Confronto
Jarry conscientemente imaginou sua monstruosa peça de bonecos, que foi representada por um elenco vestido de maneira altamente estilizada, com roupas que pareciam de madeira, num cenário de ingenuidade infantil, a fim de confrontar a platéia burguesa com o horror de sua própria complacência e maldade. O público ficou estupefato. Assim que Gémier, que representava Ubu, disse a primeira palavra: "Merdre", aconteceu a tempestade. Levou 15 minutos para se restabelecer o silêncio e as manifestações a favor e contra continuaram toda a noite. Entre os presentes estavam Arthur Symons, Jules Rénard, W.B. Yeats e Mallarmé. Dessa maneira, a peça que tivera apenas duas apresentações em sua primeira temporada e provocou uma torrente de insultos, e à luz dos fatos subsequentes, tornou-se um marco e uma precursora.
Escravo
Jarry cada vez mais assumira a maneira de falar de Ubu, que aparece em muitas de suas obras subsequentes. Em 1889/1901/1902, AJ publicou "Os almanaques do Pai Ubu", enquanto uma sequência completa de "Ubu Rei", "Ubu Encantado", apareceu em 1900. Nesta peça, Ubu chega exilado na França, onde para ser diferente, num país de homens livres, ele se transforma em escravo.
Obras
Algumas das principais obras de Jarry apareceram somente depois de sua morte, destacando-se "Gestos e opiniões do doutor Faustroll" (1911), uma novela episódica modelada em Rabelais e na qual o herói, cuja natureza o próprio nome indica, é meio Fausto, meio troll e que é o principal porta-voz da ciência patafísica. Originariamente, era Ubu que se doutorava em patafísica, simplesmente porque Hébert fora um professor de física. Mas o que fora a princípio uma burla científica, tornou-se depois a própria estética de Jarry. Conforme se define em Faustroll, patafísica é "...a ciência das soluções imaginárias, que atribui simbolicamente as propriedades dos objetos, descritos pela sua virtualidade, aos seus lineamentos.
Tendência
E é justamente a definição de uma aproximação subjetivista e expressionista que antecipa a tendência do Teatro do Absurdo para exprimir estados psicológicos objetivando-os no palco. Assim, Jarry, cuja memória é cultuada pelo Colégio de Patafísica, de que Ionesco, René Clair, Raymond Queneau e Jacques Prévert são membros e no qual o último, Bóris Vian representou importante papel, deve ser considerado como um dos criadores dos conceitos em que grande parte da arte contemporânea, não só em literatura como em teatro, está baseada.
Escândalo
Um pouco da verve e da extravagância de Ubu pode ser encontrada em outra peça que causou quase o mesmo escândalo nos anos 20 - Mamelles de Tirésias, de Guillaume Apollinaire, representada no Théâtre Maubel em Montmartre (1917). Em seu prefácio à peça, GA diz que ela fora escrita muito antes, em 1903. Apollinaire, que conheceu bem Jarry, era amigo dos jovens pintores de gênio que fundaram a escola cubista e de que se tornou um dos mais influentes críticos e teóricos. Denominou sua peça de "drama surrealista" e pode ser considerado o primeiro que inventou o termo que mais tarde se tornou a marca de um dos mais importantes movimentos estéticos do século.
Mistura
A Paris de Jarry e de Appolinaire era um mundo em que a pintura, a poesia e o teatro se misturavam e em que os esforços para encontrar uma arte moderna se justapunham. O cenário para Ubu Roi fora pintado pelo próprio Jarry com a ajuda de Pierre Bonnard, Vuillard, Toulouse-Lautrec e Sérusier.
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Artigo extraído do livro "O Teatro do Absurdo" e publicado na revista Cadernos de Teatro nº58/1973, edição já esgotada.
(1873-1907)
Martin Esslin
Alfred Jarry é uma das figuras mais extraordinárias e excêntricas entre os poètes maudits da literatura francesa; quando faleceu era conhecido como um pouco mais do que um daqueles bizarros espécimes da bohème parisiense, que mergulhavam sua vida em poesia transformando suas personalidades em personagens grotescos de sua própria criação que desapareciam quando morriam, como aconteceu com Jarry, de seu exagero no absinto e de dissipação. Jarry deixou uma obra cuja influência cresceu após sua morte.
Influências
Selvagem, extravagante e desinibido no uso da linguagem, AJ pertence à escola de Rabelais, mas sua imaginação tem também muito do sombrio, meditativo e fantástico mundo de sonho de outro perverso e infeliz poeta maldito, Isadore Ducasse, que se cognonimou a si próprio de Conde de Lautrémont (1846-1870) e foi o autor da obra-prima da agonia romântica (Les chants de Maldoror) que se tornou mais tarde a inspiração dos surrealistas. Jarry também deve muito a Verlaine e Rimbaud e acima de tudo a Mallarmé, em cujos escritos sobre teatro há um número de apelos dispersos em favor da revolta contra a peça racional e bem feita do fim do século. Em 1885, Mallarmé pedia um teatro de mito que fosse inteiramente não francês em sua irracionalidade, com a história "livre de tempo, de lugar e de personagens conhecidos", porque "o século ou nosso país que o exalta, dissolveu os mitos pelo pensamento. Refaçamo-lo!".
Criação
Ubu Roi ("Ubu Rei") criou de fato uma figura mítica e um mundo de imagens arquetípicas grotescas. Originariamente, a peçla era uma brincadeira escolar dirigida a um dos professores do liceu em Rennes onde Jarry era aluno. O professor era o alvo do ridículo e tinha sido apelidado de Pai Héb ou Pai Hébé e mais tarde, Ubu. Em 1888, quando Jarry tinha 15 anos, escreveu uma peça para bonecos narrando as aventuras de Pai Ubu e fê-la dedicada aos amigos.
Monstro
Ubu é a caricatura selvagem de um burguês estúpido e egoista visto através dos olhos cruéis do colegial, mas seu tipo rabelaisiano, sua ganância e covardia falstafiana é mais do que uma simples sátira social. É uma imagem terrível da natureza animal do homem, sua crueldade e desumanidade. Ubu faz-se a si próprio rei da Polônia, mata e tortura tudo e todos e é finalmente
banido do país. Ele é baixo, vulgar e incrivelmente brutal, um monstro que pareceu burlescamente exagerado em 1896, mas que foi amplamente ultrapassado pela realidade, em 1945. Mais uma vez uma visão intuitiva do lado obscuro da natureza humana que o poeta projetou no palco provou a sua verdade profética.
Confronto
Jarry conscientemente imaginou sua monstruosa peça de bonecos, que foi representada por um elenco vestido de maneira altamente estilizada, com roupas que pareciam de madeira, num cenário de ingenuidade infantil, a fim de confrontar a platéia burguesa com o horror de sua própria complacência e maldade. O público ficou estupefato. Assim que Gémier, que representava Ubu, disse a primeira palavra: "Merdre", aconteceu a tempestade. Levou 15 minutos para se restabelecer o silêncio e as manifestações a favor e contra continuaram toda a noite. Entre os presentes estavam Arthur Symons, Jules Rénard, W.B. Yeats e Mallarmé. Dessa maneira, a peça que tivera apenas duas apresentações em sua primeira temporada e provocou uma torrente de insultos, e à luz dos fatos subsequentes, tornou-se um marco e uma precursora.
Escravo
Jarry cada vez mais assumira a maneira de falar de Ubu, que aparece em muitas de suas obras subsequentes. Em 1889/1901/1902, AJ publicou "Os almanaques do Pai Ubu", enquanto uma sequência completa de "Ubu Rei", "Ubu Encantado", apareceu em 1900. Nesta peça, Ubu chega exilado na França, onde para ser diferente, num país de homens livres, ele se transforma em escravo.
Obras
Algumas das principais obras de Jarry apareceram somente depois de sua morte, destacando-se "Gestos e opiniões do doutor Faustroll" (1911), uma novela episódica modelada em Rabelais e na qual o herói, cuja natureza o próprio nome indica, é meio Fausto, meio troll e que é o principal porta-voz da ciência patafísica. Originariamente, era Ubu que se doutorava em patafísica, simplesmente porque Hébert fora um professor de física. Mas o que fora a princípio uma burla científica, tornou-se depois a própria estética de Jarry. Conforme se define em Faustroll, patafísica é "...a ciência das soluções imaginárias, que atribui simbolicamente as propriedades dos objetos, descritos pela sua virtualidade, aos seus lineamentos.
Tendência
E é justamente a definição de uma aproximação subjetivista e expressionista que antecipa a tendência do Teatro do Absurdo para exprimir estados psicológicos objetivando-os no palco. Assim, Jarry, cuja memória é cultuada pelo Colégio de Patafísica, de que Ionesco, René Clair, Raymond Queneau e Jacques Prévert são membros e no qual o último, Bóris Vian representou importante papel, deve ser considerado como um dos criadores dos conceitos em que grande parte da arte contemporânea, não só em literatura como em teatro, está baseada.
Escândalo
Um pouco da verve e da extravagância de Ubu pode ser encontrada em outra peça que causou quase o mesmo escândalo nos anos 20 - Mamelles de Tirésias, de Guillaume Apollinaire, representada no Théâtre Maubel em Montmartre (1917). Em seu prefácio à peça, GA diz que ela fora escrita muito antes, em 1903. Apollinaire, que conheceu bem Jarry, era amigo dos jovens pintores de gênio que fundaram a escola cubista e de que se tornou um dos mais influentes críticos e teóricos. Denominou sua peça de "drama surrealista" e pode ser considerado o primeiro que inventou o termo que mais tarde se tornou a marca de um dos mais importantes movimentos estéticos do século.
Mistura
A Paris de Jarry e de Appolinaire era um mundo em que a pintura, a poesia e o teatro se misturavam e em que os esforços para encontrar uma arte moderna se justapunham. O cenário para Ubu Roi fora pintado pelo próprio Jarry com a ajuda de Pierre Bonnard, Vuillard, Toulouse-Lautrec e Sérusier.
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Artigo extraído do livro "O Teatro do Absurdo" e publicado na revista Cadernos de Teatro nº58/1973, edição já esgotada.
terça-feira, 28 de abril de 2009
Histórias de Teatro
PeterHay
Seguindo a direção
Uma vez, num ensaio sir Herbert Tree pediu a um jovem ator que "chegasse um pouco para trás". E assim o ator fez. Tree fitou-o com um olhar crítico e prosseguiu o ensaio. Depois de um tempo, repetiu o pedido: "Um pouquinho para trás". O jovem obedeceu. Observando-o com cuidado, o diretor continuou. Logo depois, mais uma vez, pediu ao ator que chegasse ainda um pouquinho mais para trás. "Mas se eu fizer isso", protestou o jovem, "eu vou ficar completamente fora do palco". E Tree acrescentou: "É isso aí".
Terror
Peter Brook é conhecido por passar semanas e semanas de ensaios com improvisações. Uma de suas histórias mais conhecidas envolve a produção de "Édipo", de Sêneca, no National Theatre. Foi em 1968, durante o auge da corrente do "Teatro da Crueldade". Brook fez com que o notável elenco passasse vários dias numa gritaria primitiva, imitando inúmeros animais - tudo, menos trabalhar o texto. Um dia, pediu aos atores que preparassem uma pequena iprovisação com base nas experiências mais terríveis que pudessem imaginar. Os atores obedeceram com um arsenal de reações criativas. Quando chegou a vez de sir John Gielgud, este não apresentou absolutamente nada. O grande ator permaneceu lá, de pé, com seu olhar melancólico e longínquo, até que Brook perguntasse se não havia nada aterrorizante em que ele pudesse pensar.
"Na verdade, Peter, há", respondeu sir John com calma, "estreamos em duas semanas".
PeterHay
Seguindo a direção
Uma vez, num ensaio sir Herbert Tree pediu a um jovem ator que "chegasse um pouco para trás". E assim o ator fez. Tree fitou-o com um olhar crítico e prosseguiu o ensaio. Depois de um tempo, repetiu o pedido: "Um pouquinho para trás". O jovem obedeceu. Observando-o com cuidado, o diretor continuou. Logo depois, mais uma vez, pediu ao ator que chegasse ainda um pouquinho mais para trás. "Mas se eu fizer isso", protestou o jovem, "eu vou ficar completamente fora do palco". E Tree acrescentou: "É isso aí".
Terror
Peter Brook é conhecido por passar semanas e semanas de ensaios com improvisações. Uma de suas histórias mais conhecidas envolve a produção de "Édipo", de Sêneca, no National Theatre. Foi em 1968, durante o auge da corrente do "Teatro da Crueldade". Brook fez com que o notável elenco passasse vários dias numa gritaria primitiva, imitando inúmeros animais - tudo, menos trabalhar o texto. Um dia, pediu aos atores que preparassem uma pequena iprovisação com base nas experiências mais terríveis que pudessem imaginar. Os atores obedeceram com um arsenal de reações criativas. Quando chegou a vez de sir John Gielgud, este não apresentou absolutamente nada. O grande ator permaneceu lá, de pé, com seu olhar melancólico e longínquo, até que Brook perguntasse se não havia nada aterrorizante em que ele pudesse pensar.
"Na verdade, Peter, há", respondeu sir John com calma, "estreamos em duas semanas".
segunda-feira, 27 de abril de 2009
Pobre comédia
Ronald Fucs
É paradoxal que a comédia seja frequentemente classificada de o mais difícil dos gêneros teatrais e, ao mesmo tempo, sistematicamente desprezada pelos críticos e mesmo por gente de teatro. O desprezo raramente é explícito, porque ninguém gosta de admitir que alimenta preconceitos de qualquer natureza (e este é um caso inequívoco de opinião preconcebida); mas é só perguntar a qualquer amante de Shakespeare qual é a maior peça do autor inglês, e a resposta jamais será o título de uma de suas comédias.
Do mesmo modo, a grandeza de Molière não é posta em dúvida, mas quando se trata de relacionar os mestres da arte dramática, ninguém põe o francês em primeiro lugar. Pode-se até enunciar a seguinte regra: por melhor que seja a comédia de algum autor, ela nunca será considerada a melhor de suas peças, a menos que ele só tenha escrito comédias; e nesse caso, nunca será considerado o melhor dos autores (a não ser, possivelmente, por si próprio). E o mesmo se pode dizer em relação a espetáculos e a interpretações. Mais que paradoxal, isto é com frequência injusto para com autores, diretores e atores de comédias.
Singularidade
Mas, em vez de criticar, tentemos compreender. O ponto de partida para o entendimento deste paradoxo está no fato de que a comédia tem uma singularidade: a reação da platéia é audível. Se todos gargalharam do começo ao fim do espetáculo, já se sabe que este foi um enorme sucesso; se o tempo todo persistiu o silêncio, não há dúvida do fracasso. Esse "feedback" parece constituir uma vantagem sobre os outros gêneros; mas, como veremos, pode ser também uma grande desvantagem.
Palavrão
Uma consequência direta dessa situação básica é um fenômeno comum e muito irritante: o enorme efeito que costuma ter sobre as platéias o apelo aos recursos mais pobres do humor - o palavrão, por exemplo. Quem já não foi testemunha das gargalhadas provocadas pela obscenidade mais rastaquera - se é que não gargalhou também?. Fenômeno muito semelhante é o sucesso dos "cacos", que quase sempre se caracterizam pela grosseria (sim, há "cacos" sutis; mas são muito infrequentes e não despertam mais que sorrisos).
Desânimo
Isto é particularmente desanimador para o dramaturgo que, depois de usar todo o seu poder de criação na busca do mais fino humor, acaba sendo obrigado a admitir que o ponto alto do espetáculo foi o palavrão improvisado. Pior ainda: no dia em que há o "caco", a peça, a partir daquele momento, parece ter perdido a graça: ninguém ri de mais nada. Surge então, por sinal, um problema incômodo, bem conhecido de todo diretor: o grande sucesso dos "cacos" costuma levar os atores, se não forem devidamente orientados em contrário, a repeti-los sistematicamente, incorporando-os ao texto.
Consolo
Há um consolo, sob a forma do seguinte argumento: a reação audível da platéia não é um termômetro adequado, pois não se mede em decibéis a qualidade do humor (quem chama a atenção para este aspecto logo acrescenta: igualmente, se as lágrimas constituíssem um diagnóstico justo do valor de um drama ou de uma tragédia, o crítico poderia ser substituído por um medidor de precipitação pluviométrica). Infelizmente, quem já escreveu uma comédia sabe que esse tipo de argumento não chega a ser convincente, porque a platéia só não riu satisfatoriamente no dia em que houve o "caco" - este parece ter agradado tanto que, em comparação, o resto perdeu a graça. Nos outros dias, foi boa a reação. O que torna razoável concluir que o "caco" é melhor do que a peça; e tentar salvá-la, impedindo o ator de improvisar, parece uma espécie de golpe baixo. Em prol do sucesso do espetáculo, mais lógico seria dizer: esqueça o texto, improvise o tempo todo.
Erro
Esta linha de raciocínio, evidentemente, está errada em algum lugar. Pois seu desfecho só pode ser: quanto mais palavrão, melhor. E por mais baixo que seja o gosto do público geral, ninguém vai querer assistir a uma peça anunciada assim: "Venha gargalhar com a comédia do ano! 782 palavrões em uma hora e meia de espetáculo!".
Premissa
Se a dedução é lógica e a conclusão é absurda, o erro está na premissa - nesse caso, a premissa implícita de que a comédia é um gênero, quando na realidade é um amplo conjunto de gêneros. Abrange a mais fina sátira e o mais grosseiro pastelão - coisas completamente diferentes. Nos gêneros "sérios" não se faz esta confusão: ninguém chamaria uma história policial de drama ou uma tragédia grega de espetáculo de "suspense". Mas paródia, besteirol, sátira, comédia de costumes, "nonsense", pastelão, pornochanchada - tudo isso é rotulado, de forma automática, de "comédia". E a definição é uma só: comédia é algo que faz rir (ou que tenta fazer rir).
Reflexos
Os reflexos dessa confusão verbal vão longe, e o pior deles é justamente o baixo conceito da comédia. Até dramaturos e diretores se deixam confundir, ao não perceber o essencial: os diferentes climas de comédia. A gradação vai do mais fino para o mais grosseiro (há aqui um julgamento de mérito do qual não há como escapar). E a intromissão do humor grosseiro tem sempre efeito destrutivo, ao provocar uma súbita queda do clima. Entra em ação uma espécie de lei da gravidade: para baixo, todo santo ajuda. Depois de rir do escorregão, não se ri mais do jogo de palavras sutil; depois da torta na cara ou do bêbado trocando as palavras, o diálogo espirituoso perde a graça.
Clima
O que leva à formulação de um princípio básico para autores e diretores de comédias: é fundamental determinar de saída o clima preciso que a peça deve assumir - e não se desviar dele. O humor fácil, mas de nível mais baixo, é uma tentação que é essencial evitar. E não porque a piada não vá fazer efeito - este, na realidade, seria o menor dos males - mas porque pode fazer muito efeito, e nesse caso o contraste será devastador para o restante da peça. A tentação é grande, e nela se cai com facilidade se não há a percepção do risco. Exemplo típico: num ensaio, o ator se atrapalha e troca os nomes de dois personagens; se a reação dos outros atores, e de quem mais estiver presente, é a gargalhada, por que não incorporar a confusão à peça? Se comédia é tudo que faz rir, parece não fazer sentido excluir do espetáculo o que faz rir muito. Mas o diretor que sabe que há climas distintos de comédia percebe que a fala espirituosa que veio logo a seguir mal foi notada - e corta a troca dos nomes, não a fala espirituosa, para que esta tenha condições de ser devidamente apreciada, graças à preservação do clima adequado.
Ditador
Agir assim costuma desagradar muito. O diretor passa a ser visto como um ditador arbitrário e um egocêntrico que não admite colaborações preciosas dos atores. É preciso tolerar essa má fama e ter paciência para aguardar a recompensa que virá no dia da estréia - e ainda suportar, depois, a teimosa convicção de alguns atores, de que a peça fez sucesso APESAR do corte injustificado de algumas valiosas contribuições.
Compreensão
Infelizmente, a compreensão desse estado de coisas está longe de ser generalizada. Ainda não se entende com clareza que o amante com uma peruca vermelha, falando em falsete para o marido, para fingir que é uma mulher, está completamente fora de lugar numa fina sátira - embora se perceba de imediato que é inadmissível um tiroteio com mortos e feridos numa peça intimista de Tchecov. Somente quando isso estiver perfeitamente claro é que a comédia poderá se subdividir em todos os seus gêneros, cada qual se tornando "puro" (ainda que sem ganhar um nome específico), com as fronteiras claramente delimitadas. A partir daí, pode-se esperar que a má reputação de hoje se limite às formas mais grosseiras de comédia, deixando de abranger os espécimes mais artísticos. E até, quem sabe?, que os concursos de textos teatrais acabem algum dia premiando uma comédia.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 131/1992, edição já esgotada. Ronald Fucs, mais conhecido como Roninho, é dramaturgo, jornalista, tabladiano e irmão da Silvinha.
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Ronald Fucs
É paradoxal que a comédia seja frequentemente classificada de o mais difícil dos gêneros teatrais e, ao mesmo tempo, sistematicamente desprezada pelos críticos e mesmo por gente de teatro. O desprezo raramente é explícito, porque ninguém gosta de admitir que alimenta preconceitos de qualquer natureza (e este é um caso inequívoco de opinião preconcebida); mas é só perguntar a qualquer amante de Shakespeare qual é a maior peça do autor inglês, e a resposta jamais será o título de uma de suas comédias.
Do mesmo modo, a grandeza de Molière não é posta em dúvida, mas quando se trata de relacionar os mestres da arte dramática, ninguém põe o francês em primeiro lugar. Pode-se até enunciar a seguinte regra: por melhor que seja a comédia de algum autor, ela nunca será considerada a melhor de suas peças, a menos que ele só tenha escrito comédias; e nesse caso, nunca será considerado o melhor dos autores (a não ser, possivelmente, por si próprio). E o mesmo se pode dizer em relação a espetáculos e a interpretações. Mais que paradoxal, isto é com frequência injusto para com autores, diretores e atores de comédias.
Singularidade
Mas, em vez de criticar, tentemos compreender. O ponto de partida para o entendimento deste paradoxo está no fato de que a comédia tem uma singularidade: a reação da platéia é audível. Se todos gargalharam do começo ao fim do espetáculo, já se sabe que este foi um enorme sucesso; se o tempo todo persistiu o silêncio, não há dúvida do fracasso. Esse "feedback" parece constituir uma vantagem sobre os outros gêneros; mas, como veremos, pode ser também uma grande desvantagem.
Palavrão
Uma consequência direta dessa situação básica é um fenômeno comum e muito irritante: o enorme efeito que costuma ter sobre as platéias o apelo aos recursos mais pobres do humor - o palavrão, por exemplo. Quem já não foi testemunha das gargalhadas provocadas pela obscenidade mais rastaquera - se é que não gargalhou também?. Fenômeno muito semelhante é o sucesso dos "cacos", que quase sempre se caracterizam pela grosseria (sim, há "cacos" sutis; mas são muito infrequentes e não despertam mais que sorrisos).
Desânimo
Isto é particularmente desanimador para o dramaturgo que, depois de usar todo o seu poder de criação na busca do mais fino humor, acaba sendo obrigado a admitir que o ponto alto do espetáculo foi o palavrão improvisado. Pior ainda: no dia em que há o "caco", a peça, a partir daquele momento, parece ter perdido a graça: ninguém ri de mais nada. Surge então, por sinal, um problema incômodo, bem conhecido de todo diretor: o grande sucesso dos "cacos" costuma levar os atores, se não forem devidamente orientados em contrário, a repeti-los sistematicamente, incorporando-os ao texto.
Consolo
Há um consolo, sob a forma do seguinte argumento: a reação audível da platéia não é um termômetro adequado, pois não se mede em decibéis a qualidade do humor (quem chama a atenção para este aspecto logo acrescenta: igualmente, se as lágrimas constituíssem um diagnóstico justo do valor de um drama ou de uma tragédia, o crítico poderia ser substituído por um medidor de precipitação pluviométrica). Infelizmente, quem já escreveu uma comédia sabe que esse tipo de argumento não chega a ser convincente, porque a platéia só não riu satisfatoriamente no dia em que houve o "caco" - este parece ter agradado tanto que, em comparação, o resto perdeu a graça. Nos outros dias, foi boa a reação. O que torna razoável concluir que o "caco" é melhor do que a peça; e tentar salvá-la, impedindo o ator de improvisar, parece uma espécie de golpe baixo. Em prol do sucesso do espetáculo, mais lógico seria dizer: esqueça o texto, improvise o tempo todo.
Erro
Esta linha de raciocínio, evidentemente, está errada em algum lugar. Pois seu desfecho só pode ser: quanto mais palavrão, melhor. E por mais baixo que seja o gosto do público geral, ninguém vai querer assistir a uma peça anunciada assim: "Venha gargalhar com a comédia do ano! 782 palavrões em uma hora e meia de espetáculo!".
Premissa
Se a dedução é lógica e a conclusão é absurda, o erro está na premissa - nesse caso, a premissa implícita de que a comédia é um gênero, quando na realidade é um amplo conjunto de gêneros. Abrange a mais fina sátira e o mais grosseiro pastelão - coisas completamente diferentes. Nos gêneros "sérios" não se faz esta confusão: ninguém chamaria uma história policial de drama ou uma tragédia grega de espetáculo de "suspense". Mas paródia, besteirol, sátira, comédia de costumes, "nonsense", pastelão, pornochanchada - tudo isso é rotulado, de forma automática, de "comédia". E a definição é uma só: comédia é algo que faz rir (ou que tenta fazer rir).
Reflexos
Os reflexos dessa confusão verbal vão longe, e o pior deles é justamente o baixo conceito da comédia. Até dramaturos e diretores se deixam confundir, ao não perceber o essencial: os diferentes climas de comédia. A gradação vai do mais fino para o mais grosseiro (há aqui um julgamento de mérito do qual não há como escapar). E a intromissão do humor grosseiro tem sempre efeito destrutivo, ao provocar uma súbita queda do clima. Entra em ação uma espécie de lei da gravidade: para baixo, todo santo ajuda. Depois de rir do escorregão, não se ri mais do jogo de palavras sutil; depois da torta na cara ou do bêbado trocando as palavras, o diálogo espirituoso perde a graça.
Clima
O que leva à formulação de um princípio básico para autores e diretores de comédias: é fundamental determinar de saída o clima preciso que a peça deve assumir - e não se desviar dele. O humor fácil, mas de nível mais baixo, é uma tentação que é essencial evitar. E não porque a piada não vá fazer efeito - este, na realidade, seria o menor dos males - mas porque pode fazer muito efeito, e nesse caso o contraste será devastador para o restante da peça. A tentação é grande, e nela se cai com facilidade se não há a percepção do risco. Exemplo típico: num ensaio, o ator se atrapalha e troca os nomes de dois personagens; se a reação dos outros atores, e de quem mais estiver presente, é a gargalhada, por que não incorporar a confusão à peça? Se comédia é tudo que faz rir, parece não fazer sentido excluir do espetáculo o que faz rir muito. Mas o diretor que sabe que há climas distintos de comédia percebe que a fala espirituosa que veio logo a seguir mal foi notada - e corta a troca dos nomes, não a fala espirituosa, para que esta tenha condições de ser devidamente apreciada, graças à preservação do clima adequado.
Ditador
Agir assim costuma desagradar muito. O diretor passa a ser visto como um ditador arbitrário e um egocêntrico que não admite colaborações preciosas dos atores. É preciso tolerar essa má fama e ter paciência para aguardar a recompensa que virá no dia da estréia - e ainda suportar, depois, a teimosa convicção de alguns atores, de que a peça fez sucesso APESAR do corte injustificado de algumas valiosas contribuições.
Compreensão
Infelizmente, a compreensão desse estado de coisas está longe de ser generalizada. Ainda não se entende com clareza que o amante com uma peruca vermelha, falando em falsete para o marido, para fingir que é uma mulher, está completamente fora de lugar numa fina sátira - embora se perceba de imediato que é inadmissível um tiroteio com mortos e feridos numa peça intimista de Tchecov. Somente quando isso estiver perfeitamente claro é que a comédia poderá se subdividir em todos os seus gêneros, cada qual se tornando "puro" (ainda que sem ganhar um nome específico), com as fronteiras claramente delimitadas. A partir daí, pode-se esperar que a má reputação de hoje se limite às formas mais grosseiras de comédia, deixando de abranger os espécimes mais artísticos. E até, quem sabe?, que os concursos de textos teatrais acabem algum dia premiando uma comédia.
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Artigo extraído da revista Cadernos de Teatro nº 131/1992, edição já esgotada. Ronald Fucs, mais conhecido como Roninho, é dramaturgo, jornalista, tabladiano e irmão da Silvinha.
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Konstantin S. Stanislavski
(1863-1938)
T. Cole e H.K Chinoy
(Muitos jovens, que estão iniciando seus estudos teatrais, costumam me perguntar quais seriam os primeiros livros que deveriam ler. Sem nenhuma hesitação, recomendo sempre os de Stanislavski. Mas a esmagadora maioria não tem a menor idéia de quem foi esse homem. Então, aí seguem algumas informações, extraídas deste artigo publicado na revista Cadernos de Teatro, nº 126/1991, edição já esgotada).
* * *
No mundo dos atores, poucos nomes são mais reverenciados do que o de Konstantin Sergeivitch Stanislavski (Alexeiev). Nascido em Moscou, em 17 de janeiro de 1863, numa família de comerciantes ricos, sua vida inteira foi devotada ao teatro. Quando criança aparecia em representações teatrais amadoras realizadas no teatro particular de sua casa de campo. Apaixonado pelo palco, estudou a fundo a arte de interpretar com grandes atores russos como Sadovski, Maria Savina e Iermolova.
Influência
Foi durante esse período que o ator italiano Ernesto Rossi teve grande influência na formação dos conceitos de interpretação de Stanislavski, descritos por ele em "Minha vida na arte". Escrevendo sobre o trabalho de Rossi no papel de Romeu, Stanislavski diz: "Ele representou sua imagem interior de forma perfeita". Essa idéia maravilhosa que requer do ator "retratar o que há de melhor e mais profundo em seu espírito criativo, armazenar em si um grande conteúdo interior e identificar esse conteúdo com a vida espiritual do personagem que está representando" tornou-se a pedra fundamental do sistema Stanislavski.
Busca
Em 1888, Stanislavski, junto com outros partidários do teatro de vanguarda formou a Sociedade Literária e Artística. Como ator e produtor, Stanislavski começou sua busca por um teatro que banisse do palco o artificialismo. A Sociedade fundou o Teatro de Arte de Moscou e preparou o caminho para a futura associação artística com Nemirovitch-Dantchenko.
Repertório
Como produtor e diretor artístico do Teatro de Arte de Moscou, Stanislávski encenou mais de 50 peças de autores como Ostrovski, Tchecov, Maeterlinck, Goldoni, Ibsen e Tolstoi. Em 25 anos representou um grande número de papéis memoráveis, tais como Uriel, em "Uriel Acosta"; Astrov, em "Tio Vânia"; Stockman, em "Um inimigo do povo"; Verchinin, em "As três irmãs";Gaiev, em "O jardim das cerejeiras".
Singularidade
Stanislavski não foi um teórico sistemático, mas um questionador pragmático cujos livros, ensinamentos e produções revelaram, por inteiro, toda a sua busca pela verdade na arte. A singularidade de sua abordagem é formulada de forma clara pelo norte-americano Lee Strasberg, diretor e professor de teatro: "O sistema de Stanislavski representa um corte abrupto com o ensino tradicional e um retorno às verdadeiras experiências teatrais. É uma tentativa de analisar o que realmente acontece quando um ator representa. Teatro e atores diversos realizaram trabalhos de extrema importância com base em princípios propostos por Stanislavski. Esses trabalhos nunca são cópias ou imitação uns dos outros, mas realidades criativas originais. Tal é o propósito do sistema de Stanislavski, que ensina não como interpretar este ou aquele papel, mas sim como criar organicamente".
Fragmentos
Stanislavski não vivei para concluir a extensa obra sobre a arte de representar que havia planejado. Ao morrer deixou anotações e fragmentos esparsos. O governo soviético designou uma comissão especial para organizar os 12 mil manuscritos deixados por ele. Sete volumes dos oito que constituem as "Obras completas" de Stanislavski foram agora lançados em russo; eles apresentam todas as mudanças por que passaram suas idéias. Em inglês a evolução do seu sistema é contada em três volumes: "A preparação do ator", "A construção do personagem" e "A criação de um papel", todos publicados e traduzidos por Elizabeth Reynolds Hapgood, todos já traduzidos em português. Em "A criação de um papel", a ênfase do autor sobre as ações físicas trouxe uma mudança na compreensão do método.
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(1863-1938)
T. Cole e H.K Chinoy
(Muitos jovens, que estão iniciando seus estudos teatrais, costumam me perguntar quais seriam os primeiros livros que deveriam ler. Sem nenhuma hesitação, recomendo sempre os de Stanislavski. Mas a esmagadora maioria não tem a menor idéia de quem foi esse homem. Então, aí seguem algumas informações, extraídas deste artigo publicado na revista Cadernos de Teatro, nº 126/1991, edição já esgotada).
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No mundo dos atores, poucos nomes são mais reverenciados do que o de Konstantin Sergeivitch Stanislavski (Alexeiev). Nascido em Moscou, em 17 de janeiro de 1863, numa família de comerciantes ricos, sua vida inteira foi devotada ao teatro. Quando criança aparecia em representações teatrais amadoras realizadas no teatro particular de sua casa de campo. Apaixonado pelo palco, estudou a fundo a arte de interpretar com grandes atores russos como Sadovski, Maria Savina e Iermolova.
Influência
Foi durante esse período que o ator italiano Ernesto Rossi teve grande influência na formação dos conceitos de interpretação de Stanislavski, descritos por ele em "Minha vida na arte". Escrevendo sobre o trabalho de Rossi no papel de Romeu, Stanislavski diz: "Ele representou sua imagem interior de forma perfeita". Essa idéia maravilhosa que requer do ator "retratar o que há de melhor e mais profundo em seu espírito criativo, armazenar em si um grande conteúdo interior e identificar esse conteúdo com a vida espiritual do personagem que está representando" tornou-se a pedra fundamental do sistema Stanislavski.
Busca
Em 1888, Stanislavski, junto com outros partidários do teatro de vanguarda formou a Sociedade Literária e Artística. Como ator e produtor, Stanislavski começou sua busca por um teatro que banisse do palco o artificialismo. A Sociedade fundou o Teatro de Arte de Moscou e preparou o caminho para a futura associação artística com Nemirovitch-Dantchenko.
Repertório
Como produtor e diretor artístico do Teatro de Arte de Moscou, Stanislávski encenou mais de 50 peças de autores como Ostrovski, Tchecov, Maeterlinck, Goldoni, Ibsen e Tolstoi. Em 25 anos representou um grande número de papéis memoráveis, tais como Uriel, em "Uriel Acosta"; Astrov, em "Tio Vânia"; Stockman, em "Um inimigo do povo"; Verchinin, em "As três irmãs";Gaiev, em "O jardim das cerejeiras".
Singularidade
Stanislavski não foi um teórico sistemático, mas um questionador pragmático cujos livros, ensinamentos e produções revelaram, por inteiro, toda a sua busca pela verdade na arte. A singularidade de sua abordagem é formulada de forma clara pelo norte-americano Lee Strasberg, diretor e professor de teatro: "O sistema de Stanislavski representa um corte abrupto com o ensino tradicional e um retorno às verdadeiras experiências teatrais. É uma tentativa de analisar o que realmente acontece quando um ator representa. Teatro e atores diversos realizaram trabalhos de extrema importância com base em princípios propostos por Stanislavski. Esses trabalhos nunca são cópias ou imitação uns dos outros, mas realidades criativas originais. Tal é o propósito do sistema de Stanislavski, que ensina não como interpretar este ou aquele papel, mas sim como criar organicamente".
Fragmentos
Stanislavski não vivei para concluir a extensa obra sobre a arte de representar que havia planejado. Ao morrer deixou anotações e fragmentos esparsos. O governo soviético designou uma comissão especial para organizar os 12 mil manuscritos deixados por ele. Sete volumes dos oito que constituem as "Obras completas" de Stanislavski foram agora lançados em russo; eles apresentam todas as mudanças por que passaram suas idéias. Em inglês a evolução do seu sistema é contada em três volumes: "A preparação do ator", "A construção do personagem" e "A criação de um papel", todos publicados e traduzidos por Elizabeth Reynolds Hapgood, todos já traduzidos em português. Em "A criação de um papel", a ênfase do autor sobre as ações físicas trouxe uma mudança na compreensão do método.
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sábado, 25 de abril de 2009
Teatro/CRÍTICA
"Friziléia"
...........................................................
Banalidades e contradições no Vanucci
Lionel Fischer
De acordo com o release que nos foi enviado, estamos diante de números impressionantes: "267 mil espectadores, sendo 152 mil provenientes de teatros de 33 cidades e 115 mil em praças de 21 cidades". É com este cacife que chega ao Rio de Janeiro a peça "Friziléia", em cartaz no Teatro Vanucci. Camilo Áttila assina o texto, Luís Arthur Nunes a direção e Elizabeth Savala defende a única personagem do monólogo, que ainda conta com as participações em vídeo de Marcelo Escorel (esposo de Friziléia) e Maria Esmeralda (sua sogra).
A abundância numérica acima apresentada não deixa margem a nenhuma dúvida: "Friziléia" vem cumprindo uma carreira de inegável sucesso. No entanto, uma dúvida nos acossa: a que atribuir tamanho êxito?
Senão, vejamos: a personagem é repleta de contradições, pois se por um lado somos informados de que quase se formou em psicologia, se apaixonou por um líder estudantil e chegou a ser torturada, mais adiante, para se vingar do marido que a está traindo, veste-se de forma supostamente sedutora, vai para a Avenida Atlântica e faz sinal para o motorista de uma Brasília, sob o pretexto de lhe pedir uma carona. É óbvio que o tal motorista só pode vê-la como uma prostituta, mas Friziléia fica assombrada, como também se assombra quando o tal homem lhe propõe pagar um boquete, que ela - ex-universitária, presa política etc. - não sabe o que significa!?
E quanto à descrição das mazelas de seu dia-a-dia, nada do que é dito evidencia um olhar minimamente original sobre um casamento fracassado, filhos rebeldes e uma sogra invasiva e insuportável. É certo que eventualmente a personagem faz uma observação engraçada ou empreende uma breve reflexão sobre um dos muitos temas que a atormentam. Mas é muito pouco para uma hora e meia de espetáculo, que dá a sensação de não ter para onde ir, porque o texto se limita a um falatório interminável e desprovido de um foco capaz de motivar qualquer tipo de ação que escape às confissões que a protagonista faz todo o tempo à platéia.
Luís Arthur Nunes é um excelente diretor, assim como Elizabeth Savalla uma atriz tatentosa e com muitos trabalhos relevantes, em especial na televisão - mas gostaríamos de destacar sua ótima participação no filme "Pra frente Brasil" (1983), de Roberto Farias. E ambos tentam de forma abnegada conferir algum interesse a "Friziléia", mas lamentavelmente o material dramatúrgico não o permite.
Na equipe técnica, Rosa Magalhães assina uma cenografia pobre em termos imaginativos, mas certamente muito prática no tocante a viagens. Os figurinos de Biza Vianna são inconvincentes - Friziléia, quando está em casa, parece vestida para uma festa, e quando vai para a "nigth" torna-se uma caricatura. Rogério Wiltgen ilumina a cena de forma burocrática.
FRIZILÉIA - Texto de Camilo Áttila. Direção de Luís Arthur Nunes. Com Elizabeth Savalla. Teatro Vanucci. Sextas e sábados, 21h30. Domingo, 20h.
"Friziléia"
...........................................................
Banalidades e contradições no Vanucci
Lionel Fischer
De acordo com o release que nos foi enviado, estamos diante de números impressionantes: "267 mil espectadores, sendo 152 mil provenientes de teatros de 33 cidades e 115 mil em praças de 21 cidades". É com este cacife que chega ao Rio de Janeiro a peça "Friziléia", em cartaz no Teatro Vanucci. Camilo Áttila assina o texto, Luís Arthur Nunes a direção e Elizabeth Savala defende a única personagem do monólogo, que ainda conta com as participações em vídeo de Marcelo Escorel (esposo de Friziléia) e Maria Esmeralda (sua sogra).
A abundância numérica acima apresentada não deixa margem a nenhuma dúvida: "Friziléia" vem cumprindo uma carreira de inegável sucesso. No entanto, uma dúvida nos acossa: a que atribuir tamanho êxito?
Senão, vejamos: a personagem é repleta de contradições, pois se por um lado somos informados de que quase se formou em psicologia, se apaixonou por um líder estudantil e chegou a ser torturada, mais adiante, para se vingar do marido que a está traindo, veste-se de forma supostamente sedutora, vai para a Avenida Atlântica e faz sinal para o motorista de uma Brasília, sob o pretexto de lhe pedir uma carona. É óbvio que o tal motorista só pode vê-la como uma prostituta, mas Friziléia fica assombrada, como também se assombra quando o tal homem lhe propõe pagar um boquete, que ela - ex-universitária, presa política etc. - não sabe o que significa!?
E quanto à descrição das mazelas de seu dia-a-dia, nada do que é dito evidencia um olhar minimamente original sobre um casamento fracassado, filhos rebeldes e uma sogra invasiva e insuportável. É certo que eventualmente a personagem faz uma observação engraçada ou empreende uma breve reflexão sobre um dos muitos temas que a atormentam. Mas é muito pouco para uma hora e meia de espetáculo, que dá a sensação de não ter para onde ir, porque o texto se limita a um falatório interminável e desprovido de um foco capaz de motivar qualquer tipo de ação que escape às confissões que a protagonista faz todo o tempo à platéia.
Luís Arthur Nunes é um excelente diretor, assim como Elizabeth Savalla uma atriz tatentosa e com muitos trabalhos relevantes, em especial na televisão - mas gostaríamos de destacar sua ótima participação no filme "Pra frente Brasil" (1983), de Roberto Farias. E ambos tentam de forma abnegada conferir algum interesse a "Friziléia", mas lamentavelmente o material dramatúrgico não o permite.
Na equipe técnica, Rosa Magalhães assina uma cenografia pobre em termos imaginativos, mas certamente muito prática no tocante a viagens. Os figurinos de Biza Vianna são inconvincentes - Friziléia, quando está em casa, parece vestida para uma festa, e quando vai para a "nigth" torna-se uma caricatura. Rogério Wiltgen ilumina a cena de forma burocrática.
FRIZILÉIA - Texto de Camilo Áttila. Direção de Luís Arthur Nunes. Com Elizabeth Savalla. Teatro Vanucci. Sextas e sábados, 21h30. Domingo, 20h.
sexta-feira, 24 de abril de 2009
Modos de definir o teatro
em que creio
Domingos Oliveira
1) O teatro é a sujeição do trágico (Nietsche). Toda arte é isso, significa o seguinte: que a vida é muitas vezes insuportavelmente dura. É preciso que este impacto seja sentido através do prisma da arte para que seja alcançada a própria compreensão da realidade. No teatro até tragédia é sublime. O homem necessita da arte para que a vida seja suportável. Assim sendo, o teatro é a sujeição do trágico, a festa, a propaganda da vida, ela mesma.
2) O teatro ensina ao homem o que é a filosofia. Explicamos: certas pessoas sentem ou pressentem, olhando o mundo, a existência de algo por trás das aparências. Diz-se que estas pessoas têm o espírito filosófico. Foram elas que criaram todas as filosofias, das quais se derivaram todas as ciências. Este sentimento filosófico básico encontra no teatro sua metáfora genial. Diante de uma peça, devemos acreditar nela, embora sabendo que se trata de uma aparência, tramada pelos artistas. Assim sendo, é o teatro que expõe ao homem, de modo vivo e direto, a experiência filosófica básica. Portanto, todo teatro é originalmente filosófico.
3) Ele é a mais eficiente forma da didática. O mais direto modo inventado até hoje de transmitir uma lição, ensinamento, mensagem. Humanizando a teoria, ele pode ser usado, sempre que preciso, como divulgador da idéia humanamente útil. Lembremos que sempre funcionou como tribuna, que não há movimento mais libertário da História que não passe pelo teatro, que nos intervalos os poetas liam seus versos e os políticos seus manifestos. Esta função de tribuna, perdida modernamente, nescessita resgate.
4) Atividade comunal, neste ponto levando enorme vantagem sobre o livro, o cinema e a TV, o teatro é o homem diante do homem. Nenhuma outra atividade (talvez, a guerra) demonstra de modo mais inequívoco os valores da colaboração. Nesta medida tem efeito moral, é indicador de caminho.
5) Ultimamente tem estado muito em voga a discussão do teatro dentro do espetáculo teatral. A pesquisa de linguagem. A linguagem como valor maior, além do discurso a que ela serve de veículo. Pela repetição e insistência, esses movimentos voltaram-se certamente em direção ao umbigo. Fazemos ao teatro atual uma acusação de máxima gravidade: acusâmo-lo de esquecer da platéia. Esquecida, ela vai embora. E cada vez mais representamos apenas pra nós mesmos, para aqueles poucos que fazem ou desejam fazer o mesmo. Basta de discutir o teatro: voltemos a fazê-lo.
6) Uma afirmativa insidiosa, de aparência inteligente, chega a mim das mais variadas fontes. "Não é preciso contar histórias no teatro. Porque não há mais histórias para contar. As histórias são todas iguais e todas já foram contadas". Este tipo de afirmativa, que encerra um tédio digno de piedade, é falso. Ou melhor, esperamos que seja falso. Posto que se não há mais histórias para contar, não há mais histórias para viver...
7) O único verdadeiro problema do teatro é a falta de público. Excluímos aqui os três tipos de espetáculo que, por vezes, ainda têm público: a) o sub-produto da TV; b) as produções que compram o público com grandes orçamentos; c) aqueles incensados pela mídia imbecil.
O único verdadeiro problema do teatro é a falta de público. Se público houvesse, como somos artistas, arte haveria. Por que foi embora o público? A TV? A ditadura? Sim, mas não apenas. Acuso o teatro de esquecimento da platéia. Objetivemos perigosamente: o bom teatro é feito para divertir e comover. De preferência divertir e comover.
8) Somente a boa diversão e a grande emoção fazem pensar. Caso contrário, permanecemos indiferentes. O pano cai e vamos embora, um tanto aborrecidos. Mas não pensamos. Procurar diretamente um teatro de reflexão é procurar onde não está. A reflexão no teatro é um sub-produto. Sub-produto da emoção e do divertimento. Nossa corrida é atrás do inesquecível.
9) O teatro é sobretudo sábio. Todas as sabedorias do mundo convergem para o ensinamento do aqui-agora. O teatro é o aqui-agora. A arte viva por excelência.
10) Obscuridade ou clareza? Certo jovem diretor de teatro um dia me confessa: exige que pelo menos 30% de seu espetáculo deve permanecer obscuro e incompreensível, caso contrário, no seu entender, perde-se a própria profundidade! Respondi que ele jamais teria seus 30% de obscuridade caso não alcançasse os 100% de clareza, posto que o mistério está além da luz. Somente quando o discurso é claro, esgotado o campo do possível, poderá o mistério ser tocado. A obscuridade, a falta de clareza, vem, por vários motivos, sendo cultuada nos tempos recentes. Isto, além de tolice, é talvez a principal causa do afastamento do público. Não se pode pedir de sã consciência a um espectador que pague seu ingresso, assista a peça, não entenda e saia satisfeito...É pedir demais. É preciso resgatar os valores apolíneos do teatro em sua origem. A clareza, a retidão do discurso. O teatro é uma representação apolínea de sentimentos dionisíacos.
11) Chegamos assim a uma afirmação radical: o teatro é o primado da narrativa. Teatro não é palavra, não é imagem, não é espetáculo nem ator. Mais que tudo isso, é narrativa. A narrativa usa a palavra, a imagem, o espetáculo, o ator em movimento. A narrativa pode ser lógica ou delirante, mágica ou objetiva, irada ou serena, mas sempre será o principal. Teatro é narrativa. Fluxo, como a vida, puro fluxo.
12) Quando a narrativa, ela mesma, contém o conteúdo, o clímax do teatro é alcançado. A narrativa é maior que a forma, maior que o conteúdo, contém ambas. A narrativa é o continente.
13) Para um bom diretor de teatro, o discurso paralelo é inevitável, justifica sua função. Mas sempre será secundário, mesmo quando é maior. Somente poderá atingir o espectador se o discurso principal, a narrativa, o fizer.
14) O moderno diretor de teatro não pode ser um autor frustrado e, sim, um leitor pleno, criativo e pensante.
15) Disse Engels que, mais do que supunha Marx, a dialética não é apenas uma lei dos homens e sim de toda a natureza. A dramaturgia nada mais é que uma emocionante exposição desta verdade geral. A dramaturgia é dialética, um exemplo vivo da própria dialética. Toda peça de teatro consiste numa síntese, à qual se antepõe uma antítese, gerando uma síntese, que fecha o pano.
16) Não sabemos ainda armar o caminho de volta do público ao teatro. Sabemos porém que nome ele tem: generosidade. Mozart, que era de palavras, deixou-nos a melhor definição de "gênio"". Disse que um gênio não é apenas uma grande inteligência, nem quando esta se alia a um grande talento. É preciso também um grande amor.
_________________
Artigo extraído da revista Cadernos de teatro nº 126/1991, edição já esgotada.
em que creio
Domingos Oliveira
1) O teatro é a sujeição do trágico (Nietsche). Toda arte é isso, significa o seguinte: que a vida é muitas vezes insuportavelmente dura. É preciso que este impacto seja sentido através do prisma da arte para que seja alcançada a própria compreensão da realidade. No teatro até tragédia é sublime. O homem necessita da arte para que a vida seja suportável. Assim sendo, o teatro é a sujeição do trágico, a festa, a propaganda da vida, ela mesma.
2) O teatro ensina ao homem o que é a filosofia. Explicamos: certas pessoas sentem ou pressentem, olhando o mundo, a existência de algo por trás das aparências. Diz-se que estas pessoas têm o espírito filosófico. Foram elas que criaram todas as filosofias, das quais se derivaram todas as ciências. Este sentimento filosófico básico encontra no teatro sua metáfora genial. Diante de uma peça, devemos acreditar nela, embora sabendo que se trata de uma aparência, tramada pelos artistas. Assim sendo, é o teatro que expõe ao homem, de modo vivo e direto, a experiência filosófica básica. Portanto, todo teatro é originalmente filosófico.
3) Ele é a mais eficiente forma da didática. O mais direto modo inventado até hoje de transmitir uma lição, ensinamento, mensagem. Humanizando a teoria, ele pode ser usado, sempre que preciso, como divulgador da idéia humanamente útil. Lembremos que sempre funcionou como tribuna, que não há movimento mais libertário da História que não passe pelo teatro, que nos intervalos os poetas liam seus versos e os políticos seus manifestos. Esta função de tribuna, perdida modernamente, nescessita resgate.
4) Atividade comunal, neste ponto levando enorme vantagem sobre o livro, o cinema e a TV, o teatro é o homem diante do homem. Nenhuma outra atividade (talvez, a guerra) demonstra de modo mais inequívoco os valores da colaboração. Nesta medida tem efeito moral, é indicador de caminho.
5) Ultimamente tem estado muito em voga a discussão do teatro dentro do espetáculo teatral. A pesquisa de linguagem. A linguagem como valor maior, além do discurso a que ela serve de veículo. Pela repetição e insistência, esses movimentos voltaram-se certamente em direção ao umbigo. Fazemos ao teatro atual uma acusação de máxima gravidade: acusâmo-lo de esquecer da platéia. Esquecida, ela vai embora. E cada vez mais representamos apenas pra nós mesmos, para aqueles poucos que fazem ou desejam fazer o mesmo. Basta de discutir o teatro: voltemos a fazê-lo.
6) Uma afirmativa insidiosa, de aparência inteligente, chega a mim das mais variadas fontes. "Não é preciso contar histórias no teatro. Porque não há mais histórias para contar. As histórias são todas iguais e todas já foram contadas". Este tipo de afirmativa, que encerra um tédio digno de piedade, é falso. Ou melhor, esperamos que seja falso. Posto que se não há mais histórias para contar, não há mais histórias para viver...
7) O único verdadeiro problema do teatro é a falta de público. Excluímos aqui os três tipos de espetáculo que, por vezes, ainda têm público: a) o sub-produto da TV; b) as produções que compram o público com grandes orçamentos; c) aqueles incensados pela mídia imbecil.
O único verdadeiro problema do teatro é a falta de público. Se público houvesse, como somos artistas, arte haveria. Por que foi embora o público? A TV? A ditadura? Sim, mas não apenas. Acuso o teatro de esquecimento da platéia. Objetivemos perigosamente: o bom teatro é feito para divertir e comover. De preferência divertir e comover.
8) Somente a boa diversão e a grande emoção fazem pensar. Caso contrário, permanecemos indiferentes. O pano cai e vamos embora, um tanto aborrecidos. Mas não pensamos. Procurar diretamente um teatro de reflexão é procurar onde não está. A reflexão no teatro é um sub-produto. Sub-produto da emoção e do divertimento. Nossa corrida é atrás do inesquecível.
9) O teatro é sobretudo sábio. Todas as sabedorias do mundo convergem para o ensinamento do aqui-agora. O teatro é o aqui-agora. A arte viva por excelência.
10) Obscuridade ou clareza? Certo jovem diretor de teatro um dia me confessa: exige que pelo menos 30% de seu espetáculo deve permanecer obscuro e incompreensível, caso contrário, no seu entender, perde-se a própria profundidade! Respondi que ele jamais teria seus 30% de obscuridade caso não alcançasse os 100% de clareza, posto que o mistério está além da luz. Somente quando o discurso é claro, esgotado o campo do possível, poderá o mistério ser tocado. A obscuridade, a falta de clareza, vem, por vários motivos, sendo cultuada nos tempos recentes. Isto, além de tolice, é talvez a principal causa do afastamento do público. Não se pode pedir de sã consciência a um espectador que pague seu ingresso, assista a peça, não entenda e saia satisfeito...É pedir demais. É preciso resgatar os valores apolíneos do teatro em sua origem. A clareza, a retidão do discurso. O teatro é uma representação apolínea de sentimentos dionisíacos.
11) Chegamos assim a uma afirmação radical: o teatro é o primado da narrativa. Teatro não é palavra, não é imagem, não é espetáculo nem ator. Mais que tudo isso, é narrativa. A narrativa usa a palavra, a imagem, o espetáculo, o ator em movimento. A narrativa pode ser lógica ou delirante, mágica ou objetiva, irada ou serena, mas sempre será o principal. Teatro é narrativa. Fluxo, como a vida, puro fluxo.
12) Quando a narrativa, ela mesma, contém o conteúdo, o clímax do teatro é alcançado. A narrativa é maior que a forma, maior que o conteúdo, contém ambas. A narrativa é o continente.
13) Para um bom diretor de teatro, o discurso paralelo é inevitável, justifica sua função. Mas sempre será secundário, mesmo quando é maior. Somente poderá atingir o espectador se o discurso principal, a narrativa, o fizer.
14) O moderno diretor de teatro não pode ser um autor frustrado e, sim, um leitor pleno, criativo e pensante.
15) Disse Engels que, mais do que supunha Marx, a dialética não é apenas uma lei dos homens e sim de toda a natureza. A dramaturgia nada mais é que uma emocionante exposição desta verdade geral. A dramaturgia é dialética, um exemplo vivo da própria dialética. Toda peça de teatro consiste numa síntese, à qual se antepõe uma antítese, gerando uma síntese, que fecha o pano.
16) Não sabemos ainda armar o caminho de volta do público ao teatro. Sabemos porém que nome ele tem: generosidade. Mozart, que era de palavras, deixou-nos a melhor definição de "gênio"". Disse que um gênio não é apenas uma grande inteligência, nem quando esta se alia a um grande talento. É preciso também um grande amor.
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Artigo extraído da revista Cadernos de teatro nº 126/1991, edição já esgotada.
quinta-feira, 23 de abril de 2009
Não acredito...
QUE PÉS!
A atriz Inês Gomes, dona de enormíssimos pés, encontrou uma noite no seu camarim do Teatro Variedades, no Rio de Janeiro, um cartão com esta divertida quadrinha, atribuída ao poeta Emílio de Meneses:
"Quanto ao teatro, diligente
Inês chega, eu penso assim:
Já os pés forçosamente
Estão dentro do camarim".
HORÁRIOS
Uma peça de Bernard Shaw estava para estrear em Nova Iorque. Foi então que o produtor verificou que ela era demasiadamente longa e não permitiria que os espectadores apanhassem os últimos transportes coletivos, depois de terminado o espetáculo. Telegrafou, então, ao autor:
"Favor autorizar cortes na peça. Horários transportes coletivos obriga-nos representar peças mais curtas".
Shaw respondeu sem demora:
"Nenhum corte será admitido. Faça mudar horários transportes".
RISCO
O mesmo Bernard Shaw teve um diálogo hilariante com a bailarina Isadora Duncan. Ela lhe propôs terem um filho, sob a argumentação de que o resultado haveria de ser fantástico: uma pessoa com o seu corpo e a inteligência de Shaw. Mas o dramaturgo declinou do convite por considerá-lo muito arriscado:
"Já pensou, minha senhora, se a tal criança nasce com o meu corpo e a sua inteligência?"
DORMIA
Na Comédie-Française, em Paris, representava-se uma das peças de maior sucesso de Musset: "Um capricho". Durante todo o espetáculo, em uma frisa, havia um senhor que dormia profundamente e, mais do que isso, roncava. Alguns espectadores irritaram-se com o fato e pediram providências contra o inoportuno. Mas foi impossível despertá-lo. O pobre dormia como um justo. Por fim, terminou o espetáculo e o público delirante pedia a presença do autor em cena. Com o ruído ensurdecedor dos aplausos, o dorminhoco despertou e, percebendo do que se tratava, levantou-se e foi agradecer ao público.
Era o próprio Musset...
PODE SER
Em Berlim, durante uma apresentação de "Ricardo III", de Shakespeare, o famoso ator Davison exlama na cena da batalha:
- Um cavalo! Todo o meu reino por um cavalo!
Um espectador, dado a fazer graça, grita para o palco:
- E um burro...não serve?
- Também pode ser. Faça o favor de vir...- replicou Davison.
ESTRÉIA
Tristan Bernard chegou a uma estréia teatral com alguns minutos de atraso. Tendo encontrado o autor da peça passeando, nervosamente, no hall do teatro, este pediu-lhe, com voz trêmula:
- Por favor, mestre, não faça barulho ao entrar na platéia. Entre bem devagarinho.
- Ah! -, disse o célebre humorista. - Então os espectadores já estão dormindo?
OBSCENAS
Excelente atriz de opereta e revista, Margarida Max pediu ao maestro Sílvio Piergille, diretor artístico do Teatro Municipal, que a deixasse cantar ali a "Tosca", de Puccini.
- Não, dona Margarida. Eu não posso permitir palavras obscenas neste teatro.
A artista olhou espantada para o maestro e comentou:
- Mas, maestro Piergille, eu não digo palavras obscenas!?
- Eu sei, minha cara senhora. Mas vai dizê-las o público quando a ouvir cantar...
PALAVRAS DIFÍCEIS
Marcel Achard havia dado a ler uma de suas peças a René Dupuy, diretor artístico do Teatro Gramont, em Paris.
- Realmente, meu caro Achard, sua peça não é nada má, embora haja muito o que corrigir. Seu texto é demasiado denso, carregado de palavras difíceis...É necessário que todos os espectadores, até os mais imbecis, possam compreender.
- Não há dúvida - respondeu Achard -, mas isto tem remédio, e para não perdermos tempo, diga-me quais são as palavras difíceis que você não compreendeu.
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QUE PÉS!
A atriz Inês Gomes, dona de enormíssimos pés, encontrou uma noite no seu camarim do Teatro Variedades, no Rio de Janeiro, um cartão com esta divertida quadrinha, atribuída ao poeta Emílio de Meneses:
"Quanto ao teatro, diligente
Inês chega, eu penso assim:
Já os pés forçosamente
Estão dentro do camarim".
HORÁRIOS
Uma peça de Bernard Shaw estava para estrear em Nova Iorque. Foi então que o produtor verificou que ela era demasiadamente longa e não permitiria que os espectadores apanhassem os últimos transportes coletivos, depois de terminado o espetáculo. Telegrafou, então, ao autor:
"Favor autorizar cortes na peça. Horários transportes coletivos obriga-nos representar peças mais curtas".
Shaw respondeu sem demora:
"Nenhum corte será admitido. Faça mudar horários transportes".
RISCO
O mesmo Bernard Shaw teve um diálogo hilariante com a bailarina Isadora Duncan. Ela lhe propôs terem um filho, sob a argumentação de que o resultado haveria de ser fantástico: uma pessoa com o seu corpo e a inteligência de Shaw. Mas o dramaturgo declinou do convite por considerá-lo muito arriscado:
"Já pensou, minha senhora, se a tal criança nasce com o meu corpo e a sua inteligência?"
DORMIA
Na Comédie-Française, em Paris, representava-se uma das peças de maior sucesso de Musset: "Um capricho". Durante todo o espetáculo, em uma frisa, havia um senhor que dormia profundamente e, mais do que isso, roncava. Alguns espectadores irritaram-se com o fato e pediram providências contra o inoportuno. Mas foi impossível despertá-lo. O pobre dormia como um justo. Por fim, terminou o espetáculo e o público delirante pedia a presença do autor em cena. Com o ruído ensurdecedor dos aplausos, o dorminhoco despertou e, percebendo do que se tratava, levantou-se e foi agradecer ao público.
Era o próprio Musset...
PODE SER
Em Berlim, durante uma apresentação de "Ricardo III", de Shakespeare, o famoso ator Davison exlama na cena da batalha:
- Um cavalo! Todo o meu reino por um cavalo!
Um espectador, dado a fazer graça, grita para o palco:
- E um burro...não serve?
- Também pode ser. Faça o favor de vir...- replicou Davison.
ESTRÉIA
Tristan Bernard chegou a uma estréia teatral com alguns minutos de atraso. Tendo encontrado o autor da peça passeando, nervosamente, no hall do teatro, este pediu-lhe, com voz trêmula:
- Por favor, mestre, não faça barulho ao entrar na platéia. Entre bem devagarinho.
- Ah! -, disse o célebre humorista. - Então os espectadores já estão dormindo?
OBSCENAS
Excelente atriz de opereta e revista, Margarida Max pediu ao maestro Sílvio Piergille, diretor artístico do Teatro Municipal, que a deixasse cantar ali a "Tosca", de Puccini.
- Não, dona Margarida. Eu não posso permitir palavras obscenas neste teatro.
A artista olhou espantada para o maestro e comentou:
- Mas, maestro Piergille, eu não digo palavras obscenas!?
- Eu sei, minha cara senhora. Mas vai dizê-las o público quando a ouvir cantar...
PALAVRAS DIFÍCEIS
Marcel Achard havia dado a ler uma de suas peças a René Dupuy, diretor artístico do Teatro Gramont, em Paris.
- Realmente, meu caro Achard, sua peça não é nada má, embora haja muito o que corrigir. Seu texto é demasiado denso, carregado de palavras difíceis...É necessário que todos os espectadores, até os mais imbecis, possam compreender.
- Não há dúvida - respondeu Achard -, mas isto tem remédio, e para não perdermos tempo, diga-me quais são as palavras difíceis que você não compreendeu.
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Cabaré:
origem e trajetória do gênero
Lawrence Senelik
A palavra Cabaré tem sua origem no espanhol (cabaretta ou casa de diversões). Posteriormente, foi incorporada pelo francês (cabaret ou taverna). O gênero Cabaré indica um espetáculo de entretenimento em pequena escala, por vezes improvisado, no qual são apresentadas canções, esquetes, sátiras e discursos, cujo teor costuma ser um comentário sobre as condições sociais, políticas ou artísticas. Um acontecimento estritamente urbano, o cabaré surgiu como uma forma de diversão pioneira para uma audiência seleta, passando a ser apresentada, posteriormente, para um público mais amplo.
Início
Em 1878, Emile Goudeau fundou um clube no Le Sherry Cobbler, em Paris, onde poetas liam suas próprias produções. Foi, porém, no Chat Noir (nome tirado do conto "O gato preto", de Edgar Allan Poe) que deu origem ao termo genérico "cabaré artístico" a programas apresentados em cafés e bares. Ele foi fundado em 1881 pelo pintor Rudolphe Salis, que lhe deu o nome de cabaré porque as canções e esquetes se sucediam como os pratos de um menu. O local que ocupavam em Montmartre - com 60 lugares e projetado em estilo Luís XIII - era palco não somente de leitura de poesia nas noites de sexta-feira, bom como de complexos jogos de sombra, para os quais renomados artistas escreviam os textos e elaboravam os projetos, além de fazerem o acompanhamento musical. Quando o Chat Noir mudou-se para um prédio novo e elegante em 1885, a sua sede antiga abrigou o Le Mirliton, de Aristide Bruant, um dos muitos cabarés de Montmartre por ele inspirados. A atmosfera acolhedora permitiu que muitos artistas, como Yvette Guilbert, desenvolvessem uma forma nova e sutil de atuação e tratassem de assuntos naturalistas.
Exibicionismo
Na Alemanha, o primeiro verdadeiro cabaré foi o Überbrett (Superpalquinho), criado pelo barão Ernst von Wolzogen e Otto Julius Bierbaum, em 1901, para oferecer uma forma mais elevada de espetáculos de variedades. O seu afetado exibicionismo artístico levou Alfred Kerr a criticá-lo por desprezo à arte. No mesmo ano, o jovem Max Reinhardt e atores do Deutsches Theater inauguravam o Schall und Rauch (Barulho e Fumaça) de Berlim, e Frank Wedeking cantava ao violão seus poemas macabros no Elf Scharfrichter (Onze Carrascos). Os escritores e artistas vinculados ao jornal satírico Simplicissimus apresentavam-se no cabaré homônimo de Kathi Kobus, em Munique. Esses cabarés artísticos misturavam baladas, canções, peças em um ato, dança, teatro de marionetes e música instrumental em um programa cuja coesão era mantida por um mestre de cerimônias. O objetivo primordial era divertir e difundir novas tendências literárias.
Semelhança
Propostas semelhantes eram apresentadas no Els Quatre Gats (Os Quatro Gatos), em Barcelona e no Zielony Balonik (O Balão Verde) na Cracóvia, nascidas de encontros de pintores. Na Rússia, as associações eram mais ligadas ao teatro. O Letuchaya Mysh (O Morcego) foi criado por Nikita Baliev e a partir das hilariantes Festas do Repolho promovidas pelo Teatro de Arte de Moscou, rapidamente transformou-se em um teatro em miniatura apresentando peças e cenas baseadas na literatura clássica russa e no folclore. Após a revolução, tornou-se mundialmente famoso como Le Chauve-Souris. O Krivoe Zerkalo (O Espelho Curvo), fundado em 1908, em São Petersburgo, era, sob a direção de Nicolai Evreinov, uma casa que se destacava pela paródia e formas experimentais, tais como o melodrama. O mais literário desses cabarés era o Brodyachaya Sobaka (O Cão Vadio, 1913-1915), refúgio de futuristas. Ele foi sucedido pelo Prival Komediantov (Repouso dos Comediantes, 1916-1919), um teatro aconchegante que tinha na presidência Vsevolod Meyerhold.
Dissidência
O mais radical desses parques de diversão artísticos foi o Cabaret Voltaire, em Zurique (1916-1917), onde Hans Arp e Tristan Tzara deram os primeiros passos do dadaísmo, que não demoraria a expandir-se como um movimento artístico independente. Após a Primeira Guerra-Mundial, os cabarés alemães, especialmente em Berlim, tornaram-se mais políticos, solo fértil para a dissidência. Podem ser citados: Wilde Bühne (Palco Selvagem, 1921), de Trude Hesterberg; Kabarett der Komiker (Cabaré do Comediante, 1924); o antifascista Katakombe (Catacumbas, 1929), de Werner Finck; e Tingel-Tangel (1930), de Firederich Hollaender. Antes de 1935, os nazistas baniram os cabarés e alguns artistas, como Finck, foram mandados para campos de concentração; outros emigraram e mantiveram cabarés itinerantes, como o Pfeffer-Mühle (Moinho de Pimenta), de Klaus e Erika Mann e Therese Giesche (1933).
Renovação
O cabaré pós-guerra na Alemanha, tanto oriental como ocidental, esforçou-se para renovar sua atividade política. Havia uma tendência que visava programas cuidadosamente estruturados e encenação precisa no Schaubude (Palco de Curiosidades), de Munique; Komödchem (A Pequena Comédia), de Düsseldorf; e Die Lach und Schiessgesellsweine (A Sociedade do Riso e do Tiro), de Munique. Eles, porém, bem como o Stachelschweine (Porco-espinho, fundado em 1949), de Berlim Ocidental, tiveram dificuldades em competir com a televisão. Já os cabarés de Berlim Oriental tiveram que direcionar sua sátira excluvivamente para alvos internacionais. Em tempos de agitação política, eles se revelaram menos mordazes do que o teatro de rua e os grupos agit-prop.
Improvisação
No mundo de língua inglesa, os cabarés foram equiparados a clubes noturnos até os anos 60, quando o Second City (Segunda Cidade), de Chicago, deu ênfase à iprovisação e elaborou esquetes diante do público. Ele deu origem a uma grande quantidade de imitações, como The Premise (O Local), de São Francisco, e The Propositiom (A Proposta), de Boston, ambos organizados por grupos estudantis. Após a temporada de grande sucesso da peça de teatro de revista "Beyond the fringe", "The Establisment" (O Estabelecimento, 1961), um clube noturno londrino, procurou manter o ar irreverente.
Tendências
Tendências recentes incluem os clubes de comédia, nos quais artistas inexperientes se apresentam perante um público pouco exigente por um cachê reduzido - este fenômeno já havia sido previsto no Cabaré dos Anônimos, em Berlim, em 1926, onde amadores faziam papel de bobos. A natureza casual do empreendimento contrasta com as intenções programáticas do cabaré artístico. Mais de acordo com a tradição de vanguarda foi o Vaudeville da Nova Onda, uma mistura musical maluca originária do rock punk.
______________________
Artigo extraído de The Cambridge Guide to World Theatre, 1988. Tradução de Patrícia B. Lehman. Este artigo foi publicado pela revista Cadernos de Teatro, 1998, edição já esgotada.
origem e trajetória do gênero
Lawrence Senelik
A palavra Cabaré tem sua origem no espanhol (cabaretta ou casa de diversões). Posteriormente, foi incorporada pelo francês (cabaret ou taverna). O gênero Cabaré indica um espetáculo de entretenimento em pequena escala, por vezes improvisado, no qual são apresentadas canções, esquetes, sátiras e discursos, cujo teor costuma ser um comentário sobre as condições sociais, políticas ou artísticas. Um acontecimento estritamente urbano, o cabaré surgiu como uma forma de diversão pioneira para uma audiência seleta, passando a ser apresentada, posteriormente, para um público mais amplo.
Início
Em 1878, Emile Goudeau fundou um clube no Le Sherry Cobbler, em Paris, onde poetas liam suas próprias produções. Foi, porém, no Chat Noir (nome tirado do conto "O gato preto", de Edgar Allan Poe) que deu origem ao termo genérico "cabaré artístico" a programas apresentados em cafés e bares. Ele foi fundado em 1881 pelo pintor Rudolphe Salis, que lhe deu o nome de cabaré porque as canções e esquetes se sucediam como os pratos de um menu. O local que ocupavam em Montmartre - com 60 lugares e projetado em estilo Luís XIII - era palco não somente de leitura de poesia nas noites de sexta-feira, bom como de complexos jogos de sombra, para os quais renomados artistas escreviam os textos e elaboravam os projetos, além de fazerem o acompanhamento musical. Quando o Chat Noir mudou-se para um prédio novo e elegante em 1885, a sua sede antiga abrigou o Le Mirliton, de Aristide Bruant, um dos muitos cabarés de Montmartre por ele inspirados. A atmosfera acolhedora permitiu que muitos artistas, como Yvette Guilbert, desenvolvessem uma forma nova e sutil de atuação e tratassem de assuntos naturalistas.
Exibicionismo
Na Alemanha, o primeiro verdadeiro cabaré foi o Überbrett (Superpalquinho), criado pelo barão Ernst von Wolzogen e Otto Julius Bierbaum, em 1901, para oferecer uma forma mais elevada de espetáculos de variedades. O seu afetado exibicionismo artístico levou Alfred Kerr a criticá-lo por desprezo à arte. No mesmo ano, o jovem Max Reinhardt e atores do Deutsches Theater inauguravam o Schall und Rauch (Barulho e Fumaça) de Berlim, e Frank Wedeking cantava ao violão seus poemas macabros no Elf Scharfrichter (Onze Carrascos). Os escritores e artistas vinculados ao jornal satírico Simplicissimus apresentavam-se no cabaré homônimo de Kathi Kobus, em Munique. Esses cabarés artísticos misturavam baladas, canções, peças em um ato, dança, teatro de marionetes e música instrumental em um programa cuja coesão era mantida por um mestre de cerimônias. O objetivo primordial era divertir e difundir novas tendências literárias.
Semelhança
Propostas semelhantes eram apresentadas no Els Quatre Gats (Os Quatro Gatos), em Barcelona e no Zielony Balonik (O Balão Verde) na Cracóvia, nascidas de encontros de pintores. Na Rússia, as associações eram mais ligadas ao teatro. O Letuchaya Mysh (O Morcego) foi criado por Nikita Baliev e a partir das hilariantes Festas do Repolho promovidas pelo Teatro de Arte de Moscou, rapidamente transformou-se em um teatro em miniatura apresentando peças e cenas baseadas na literatura clássica russa e no folclore. Após a revolução, tornou-se mundialmente famoso como Le Chauve-Souris. O Krivoe Zerkalo (O Espelho Curvo), fundado em 1908, em São Petersburgo, era, sob a direção de Nicolai Evreinov, uma casa que se destacava pela paródia e formas experimentais, tais como o melodrama. O mais literário desses cabarés era o Brodyachaya Sobaka (O Cão Vadio, 1913-1915), refúgio de futuristas. Ele foi sucedido pelo Prival Komediantov (Repouso dos Comediantes, 1916-1919), um teatro aconchegante que tinha na presidência Vsevolod Meyerhold.
Dissidência
O mais radical desses parques de diversão artísticos foi o Cabaret Voltaire, em Zurique (1916-1917), onde Hans Arp e Tristan Tzara deram os primeiros passos do dadaísmo, que não demoraria a expandir-se como um movimento artístico independente. Após a Primeira Guerra-Mundial, os cabarés alemães, especialmente em Berlim, tornaram-se mais políticos, solo fértil para a dissidência. Podem ser citados: Wilde Bühne (Palco Selvagem, 1921), de Trude Hesterberg; Kabarett der Komiker (Cabaré do Comediante, 1924); o antifascista Katakombe (Catacumbas, 1929), de Werner Finck; e Tingel-Tangel (1930), de Firederich Hollaender. Antes de 1935, os nazistas baniram os cabarés e alguns artistas, como Finck, foram mandados para campos de concentração; outros emigraram e mantiveram cabarés itinerantes, como o Pfeffer-Mühle (Moinho de Pimenta), de Klaus e Erika Mann e Therese Giesche (1933).
Renovação
O cabaré pós-guerra na Alemanha, tanto oriental como ocidental, esforçou-se para renovar sua atividade política. Havia uma tendência que visava programas cuidadosamente estruturados e encenação precisa no Schaubude (Palco de Curiosidades), de Munique; Komödchem (A Pequena Comédia), de Düsseldorf; e Die Lach und Schiessgesellsweine (A Sociedade do Riso e do Tiro), de Munique. Eles, porém, bem como o Stachelschweine (Porco-espinho, fundado em 1949), de Berlim Ocidental, tiveram dificuldades em competir com a televisão. Já os cabarés de Berlim Oriental tiveram que direcionar sua sátira excluvivamente para alvos internacionais. Em tempos de agitação política, eles se revelaram menos mordazes do que o teatro de rua e os grupos agit-prop.
Improvisação
No mundo de língua inglesa, os cabarés foram equiparados a clubes noturnos até os anos 60, quando o Second City (Segunda Cidade), de Chicago, deu ênfase à iprovisação e elaborou esquetes diante do público. Ele deu origem a uma grande quantidade de imitações, como The Premise (O Local), de São Francisco, e The Propositiom (A Proposta), de Boston, ambos organizados por grupos estudantis. Após a temporada de grande sucesso da peça de teatro de revista "Beyond the fringe", "The Establisment" (O Estabelecimento, 1961), um clube noturno londrino, procurou manter o ar irreverente.
Tendências
Tendências recentes incluem os clubes de comédia, nos quais artistas inexperientes se apresentam perante um público pouco exigente por um cachê reduzido - este fenômeno já havia sido previsto no Cabaré dos Anônimos, em Berlim, em 1926, onde amadores faziam papel de bobos. A natureza casual do empreendimento contrasta com as intenções programáticas do cabaré artístico. Mais de acordo com a tradição de vanguarda foi o Vaudeville da Nova Onda, uma mistura musical maluca originária do rock punk.
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Artigo extraído de The Cambridge Guide to World Theatre, 1988. Tradução de Patrícia B. Lehman. Este artigo foi publicado pela revista Cadernos de Teatro, 1998, edição já esgotada.
segunda-feira, 20 de abril de 2009
Teatro/CRÍTICA
"In On It"
....................................................
Montagem imperdível no Oi Futuro
Lionel Fischer
Como bem formula o ótimo release que nos foi enviado, uma sensação de mistério permeia o presente texto. E tal sensação se deve à estrutura narrativa criada pelo canadense Daniel Macivor, que mescla a todo momento o presente (dois atores estão ensaiando uma peça escrita por um deles, raramente se entendendo quanto ao rumo que deve tomar o espetáculo) e o passado dos personagens que tentam materializar.
E aqui as histórias se cruzam, se afastam, ganham prioridade ou são momentaneamente esquecidas, formando uma espécie de mosaico cujo sentido, em última instância, talvez nem esteja claro no texto, mas pode perfeitamente ser apreendido por cada espectador à sua maneira. Em cartaz no Oi Futuro, "In On It" chega à cena com tradução de Daniele Ávila, direção de Enrique Diaz e elenco formado por Emílio de Mello e Fernando Eiras.
Como se sabe, toda peça permite várias leituras. Mas algumas facultam tantas que acabam não tendo significado algum. Mas não é o que ocorre com o ótimo texto de Macivor, mesmo em face do que dissemos no parágrafo anterior. E por uma razão muito simples: os planos da ação são expostos com muita clareza, ou seja, sabemos sempre o tempo e o lugar onde se desenrola a trama. A questão reside na forma particular como lidamos com as alternâncias propostas pelo autor, com os cortes narrativos que faz, com as retomadas de determinadas passagens que poderíamos supor que teriam sido abandonadas, mas que, ao serem novamente abordadas, incluem sempre um dado novo que faz a ação progredir.
Quanto ao espetáculo, Enrique Diaz impõe à cena uma dinâmica precisa, moderna, diversificada e muito inventiva, em total sintonia com a estranheza aparente (ou verdadeira) do texto. Trata-se de uma direção que pode parecer muito simples, mas que na verdade é altamente sofisticada - como, aliás, o são todas as montagens deste encenador brilhante.
No que diz respeito ao elenco, dificilmente poderíamos imaginar uma dupla capaz de fazer melhor os muitos personagens criados por Macivor. Em primeiro lugar, porque Fernando Eiras e Emílio de Mello são dois atores maravilhosos, com muita experiência e já tendo apresentado trabalhos de primeiríssima qualidade. Mas o que mais imprssiona é, por um lado, a enorme capacidade de entrega de ambos, e por outro - e fundamentalmente - a fantástica contracena que exibem, a comovente e fascinante alegria de estar em cena "jogando", no sentido maisl amplo e lúdico que o o verbo possa ter. Sem dúvida, quem ama a dificílima arte de representar, tem a obrigação de assistir a este espetáculo, um poderoso marco na atual temporada.
Na equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo o trabalho de todos os profissionais envolvidos - Danielle Ávila (tradução), Maneco Quinderé (iluminação), Domingos de Alcântara (cenografia), Luciana Cardoso (figurinos) e Lucas Marcier (trilha sonora).
IN ON IT - Texto de Daniel Macivor. Direção de Enrique Diaz. Com Fernando Eiras e Emílio d Mello. Oi Futuro. Sexta a domingo, 19h30.
"In On It"
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Montagem imperdível no Oi Futuro
Lionel Fischer
Como bem formula o ótimo release que nos foi enviado, uma sensação de mistério permeia o presente texto. E tal sensação se deve à estrutura narrativa criada pelo canadense Daniel Macivor, que mescla a todo momento o presente (dois atores estão ensaiando uma peça escrita por um deles, raramente se entendendo quanto ao rumo que deve tomar o espetáculo) e o passado dos personagens que tentam materializar.
E aqui as histórias se cruzam, se afastam, ganham prioridade ou são momentaneamente esquecidas, formando uma espécie de mosaico cujo sentido, em última instância, talvez nem esteja claro no texto, mas pode perfeitamente ser apreendido por cada espectador à sua maneira. Em cartaz no Oi Futuro, "In On It" chega à cena com tradução de Daniele Ávila, direção de Enrique Diaz e elenco formado por Emílio de Mello e Fernando Eiras.
Como se sabe, toda peça permite várias leituras. Mas algumas facultam tantas que acabam não tendo significado algum. Mas não é o que ocorre com o ótimo texto de Macivor, mesmo em face do que dissemos no parágrafo anterior. E por uma razão muito simples: os planos da ação são expostos com muita clareza, ou seja, sabemos sempre o tempo e o lugar onde se desenrola a trama. A questão reside na forma particular como lidamos com as alternâncias propostas pelo autor, com os cortes narrativos que faz, com as retomadas de determinadas passagens que poderíamos supor que teriam sido abandonadas, mas que, ao serem novamente abordadas, incluem sempre um dado novo que faz a ação progredir.
Quanto ao espetáculo, Enrique Diaz impõe à cena uma dinâmica precisa, moderna, diversificada e muito inventiva, em total sintonia com a estranheza aparente (ou verdadeira) do texto. Trata-se de uma direção que pode parecer muito simples, mas que na verdade é altamente sofisticada - como, aliás, o são todas as montagens deste encenador brilhante.
No que diz respeito ao elenco, dificilmente poderíamos imaginar uma dupla capaz de fazer melhor os muitos personagens criados por Macivor. Em primeiro lugar, porque Fernando Eiras e Emílio de Mello são dois atores maravilhosos, com muita experiência e já tendo apresentado trabalhos de primeiríssima qualidade. Mas o que mais imprssiona é, por um lado, a enorme capacidade de entrega de ambos, e por outro - e fundamentalmente - a fantástica contracena que exibem, a comovente e fascinante alegria de estar em cena "jogando", no sentido maisl amplo e lúdico que o o verbo possa ter. Sem dúvida, quem ama a dificílima arte de representar, tem a obrigação de assistir a este espetáculo, um poderoso marco na atual temporada.
Na equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo o trabalho de todos os profissionais envolvidos - Danielle Ávila (tradução), Maneco Quinderé (iluminação), Domingos de Alcântara (cenografia), Luciana Cardoso (figurinos) e Lucas Marcier (trilha sonora).
IN ON IT - Texto de Daniel Macivor. Direção de Enrique Diaz. Com Fernando Eiras e Emílio d Mello. Oi Futuro. Sexta a domingo, 19h30.
sábado, 18 de abril de 2009
LIVRO/CRÍTICA
Vísceras expostas
Lionel Fischer
Em certa ocasião, Chico Buarque declarou que a velhice “é uma tragédia”. É provável que nosso maior compositor vivo estivesse se referindo à inexorável e progressiva diminuição da capacidade de nosso corpo de responder a estímulos a ele inerentes. Neste sentido, não há o que contestar. Em contrapartida, quando somos jovens e, portanto, nossos corpos respondem sem hesitação a tudo que lhes é solicitado, nem por isso nossa juventude seja imune a outras “tragédias”. Uma delas, por exemplo, reside no fato de que a maioria dos jovens recusa-se a pensar, o que levaria Descartes a vaticinar que não existem.
No entanto, estamos aqui diante de um jovem que, com 25 e 26 anos, dedicou grande parte de seu tempo não apenas ao ato de pensar, mas de converter seus pensamentos em poesia. E em poesia que foge por completo ao previsível, já que o autor fala de si mesmo através de sua relação com cineastas, poetas, escritores, músicos e filósofos, dentre outros. Mas não se trata, apenas, de múltiplos tributos – embora estes não deixem de existir – mas também de contestações apaixonadas e apaixonantes, e invariavelmente impregnadas de sons e fúrias, como diria o fabuloso bardo, com quem nos desculpamos por utilizar suas imortais palavras no plural.
“Pequenas Biografias Não-autorizadas” é o primeiro livro do gaúcho Leonardo Marona, que hoje terá 28 anos, ao que imaginamos. E a julgar por essa primeira amostra, estamos diante não de um jovem e promissor poeta, mas de alguém que domina a escrita com maestria, cria poderosas e surpreendentes imagens, e sobretudo tem muito a dizer. E o formato que escolheu para sua primeira obra, sem dúvida muito original, é o que menos importa, já que a originalidade, em si, não quer dizer nada. O que nos impressionou foi a capacidade de Marona de expor suas vísceras, de buscar as palavras em suas entranhas, de nos dar a sensação de que não poderia continuar vivendo sem colocar no papel todas as suas perplexidades perante o ato de viver. Salvo monumental engano de nossa parte, Leonardo Marona veio para ficar.
_____________________________
“Pequenas Biografias Não-autorizadas” (poesia, 86 páginas – Editora 7 Letras, Rio de Janeiro, 2009). Lançamento: Bar Bukowski, 09 de maio, a partir de 19h.
Vísceras expostas
Lionel Fischer
Em certa ocasião, Chico Buarque declarou que a velhice “é uma tragédia”. É provável que nosso maior compositor vivo estivesse se referindo à inexorável e progressiva diminuição da capacidade de nosso corpo de responder a estímulos a ele inerentes. Neste sentido, não há o que contestar. Em contrapartida, quando somos jovens e, portanto, nossos corpos respondem sem hesitação a tudo que lhes é solicitado, nem por isso nossa juventude seja imune a outras “tragédias”. Uma delas, por exemplo, reside no fato de que a maioria dos jovens recusa-se a pensar, o que levaria Descartes a vaticinar que não existem.
No entanto, estamos aqui diante de um jovem que, com 25 e 26 anos, dedicou grande parte de seu tempo não apenas ao ato de pensar, mas de converter seus pensamentos em poesia. E em poesia que foge por completo ao previsível, já que o autor fala de si mesmo através de sua relação com cineastas, poetas, escritores, músicos e filósofos, dentre outros. Mas não se trata, apenas, de múltiplos tributos – embora estes não deixem de existir – mas também de contestações apaixonadas e apaixonantes, e invariavelmente impregnadas de sons e fúrias, como diria o fabuloso bardo, com quem nos desculpamos por utilizar suas imortais palavras no plural.
“Pequenas Biografias Não-autorizadas” é o primeiro livro do gaúcho Leonardo Marona, que hoje terá 28 anos, ao que imaginamos. E a julgar por essa primeira amostra, estamos diante não de um jovem e promissor poeta, mas de alguém que domina a escrita com maestria, cria poderosas e surpreendentes imagens, e sobretudo tem muito a dizer. E o formato que escolheu para sua primeira obra, sem dúvida muito original, é o que menos importa, já que a originalidade, em si, não quer dizer nada. O que nos impressionou foi a capacidade de Marona de expor suas vísceras, de buscar as palavras em suas entranhas, de nos dar a sensação de que não poderia continuar vivendo sem colocar no papel todas as suas perplexidades perante o ato de viver. Salvo monumental engano de nossa parte, Leonardo Marona veio para ficar.
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“Pequenas Biografias Não-autorizadas” (poesia, 86 páginas – Editora 7 Letras, Rio de Janeiro, 2009). Lançamento: Bar Bukowski, 09 de maio, a partir de 19h.
sexta-feira, 17 de abril de 2009
Não há segredos
Peter Brook
Durante todos estes anos, quando me perguntavam: "Podemos ver um de seus ensaios?", eu respondia que não. Me via obrigado a reagir assim por causa de algumas experiências negativas. Entretanto, compreendo a vontade das pessoas de saber o que fazemos na realidade. Desta maneira, tenho vontade de dizer: "Não, não há segredos". Tentarei descrever nosso processo de trabalho e para fazê-lo utilizarei minha produção recente de "A tempestade", em Paris.
Em primeiro lugar, a escolha da peça. Somos uma companhia internacional que trabalha há muito tempo. Tínhamos concluído o grande ciclo de trabalhos com o "Mahabharata" em francês, em inglês e o filme. Recentemente, havíamos feito uma temporada de peças e músicas sul-africanas, em homenagem ao bicentenário da Revolução Francesa e ao Ano dos Direitos Humanos. Senti, então, a necessidade de tomar um rumo novo. Eu tinha começado a me interessar pela estranha e fugidia relação entre o cérebro e a mente, e ao ler o livro "O homem que confundiu sua mulher com um guarda-chuva", do médico Oliver Sacks, vislumbrei a possibilidade de adaptar para o teatro esse mistério, mediante as anotações de comportamento de certos casos neurológicos.
Modelo
Entretanto, quando trabalhamos com um tema que não tem forma nem estrutura aparentes, é essencial que se disponha de um tempo ilimitado. Assim, vendo que necessitaríamos de tempo para realizar nossas pesquisas, e admitindo ainda a responsabilidade prática de se manter um teatro e uma organização, procurei uma peça apropriada para nossa companhia internacional. Tal raciocínio tem sempre me levado a Shakespeare. Ele é o modelo insuperável e sua obra é sempre pertinente e contemporânea.
"A tempestade" é uma obra que conheço bem, já que a dirigi há uns 35 anos em Stratford. Quando realizei, em Paris (1968), o primeiro seminário com atores de diversas culturas, que conduziria à criação de nosso Centro Internacional, escolhi cenas de "A tempestade" para improvisações e estudos. Porém, naquele momento não me ocorreu que "A tempestade" poderia ser a resposta ao meu problema, até que um dia falei com um amigo da procura feita para encontrar a peça e ele me sugeriu "A tempestade". De imediato, compreendi que era o que necessitava para nossos atores. Como em outras ocasiões, entendi que os ingredientes necessários para que tomasse uma decisão já estavam no meu inconsciente, sem que a parte consciente participasse das deliberações.
Estupidez
Assim, no momento em que compreendi que "A tempestade" podia ser a solução, as vantagens foram evidentes. É estupidez um diretor dizer "quero montar Hamlet" e depois se perguntar quem vai interpretar o papel. No caso de "A tempestade", o ator africano que tínhamos conosco, Sotigui Kouyaté, podia trazer algo de novo e mais autêntico ao papel de Próspero. Portanto, o ponto de partida estava claro. Só nos faltava fixar uma data. Calculei que precisaríamos de 14 semanas de ensaios, mas umas semanas depois reorganizei nossos planos e adiei o início dos ensaios por dois meses.
Jean-Claude Carrière começou a trabalhar na tradução francesa e eu iniciei as conversas sobre os aspectos visuais com a cenógrafa Chloé Oboleski. Estávamos diante da parte mais delicada do processo, porque nele existe uma contradição. Tem de haver um palco e ajustá-lo de modo adequado, o que exige planejamento e organização. No entanto, a experiência demonstra que as decisões tomadas antes dos ensaios são menos acertadas do que as tomadas quando o processo está em curso, porque então o diretor e o cenógrafo não estão sozinhos, com sua visão e estética pessoais, mas recebem uma visão mais profunda tanto da peça como de suas possibilidades teatrais, que surge da exploração rica e entrelaçada de todo um grupo de indivíduos imaginativos e criativos.
Confusão
Antes dos ensaios, o trabalho do diretor e do cenógrafo é limitado e subjetivo, impõe formas rígidas e acaba reprimindo um desenvolvimento natural. Portanto, o método de trabalho que funciona implica num sutil equilíbrio entre o que deve ser preparado com antecedência e o que pode ser deixado em aberto. A princípio, estudei de novo minhas antigas produções e experimentos com esta peça e compreendi que não desejava conservar nada. Quando voltei a ler a peça, certas formam vacilantes começaram a dançar de maneira confusa na minha mente.
Minha primeira produção em Stratford tinha seguido a idéia generalizada de que "A tempestade" é um grande espetáculo e que por isso pressupõe complexos efeitos cênicos.
Disfarce
Mas nesta nova produção, percebi intuitivamente que um grande espetáculo não era a resposta, já que disfarçava as autênticas qualidades da obra e o que nós queríamos devia tomar a forma de uma série de jogos (do jogo em seu sentido mais literal), executados por um pequeno grupo de atores. A análise intelectual me levou à conclusão de que a peça não tem nenhuma base ralista, já que a ilha é uma mera imagem e um símbolo. Portanto, nenhuma forma de ilustração literal pode representá-la. Assim, rabisquei na última página um esboço de um jardin Zen, no qual se sugere uma ilha através de um rochedo e a água através de pedrinhas secas. Esse poderia ser o espaço onde os atores sugeririam todos os níveis do tema, contando apenas com a própria imaginação.
Desvantagens
Quando Chloé e eu tivemos nossa primeira conversa, só encontramos desvantagens nessa proposta. Seria difícil andar sobre as pedrinhas, já que isso faria um ruído contínuo - que distrairia a todos - e sentar-se nelas seria problemático. Assim, descartamos o jardim Zen, porém continuávamos convencidos de que era válido o princípio de sugestão com um mínimo de recursos cênicos. A questão que permanecia era se devíamos representar a natureza usando uma superfície natural ou de um modo imaginativo, usando uma superfície substitutiva, como madeira ou tapetes.
Dificuldade
Todo cenógrafo e todo diretor de "A tempestade" se defrontam forçosamente com uma dificuldade essencial. A peça tem uma unidade de lugar, a ilha, exceto na primeira cena, que se desenvolve num barco durante uma tempestade. Seria necessário violar esta unidade, realizando um cenário realista para a primeira cena? Quanto melhor se faz, mais se destrói a possibilidade de se representar a continuação, a ilha, de um modo que não seja mais naturalista. E mais difícil ainda é interpretar a segunda cena, na qual Próspero conta sua vida à filha. Se a solução escolhida for um cenário pictórico complexo, a solução é fácil: se representa um naufrágio espetacular e depois se desliza até a ilha deserta. Porém, se esse enfoque for descartado, deve-se encontrar o modo mais simples de se representar o mar e em seguida a terra. Decidimos deixar este problema sem solução, para ser esclarecido depois, quando os atores começassem a trabalhar em nosso palco.
Escolha
Nossa companhia é composta de atores que já tinham trabalhado no Centro Internacional. A escolha da distribuição dos papéis foi norteada pelo objetivo de uma reinterpretação da peça, sob a ótica de culturas tradicionais, de modo que escolhemos um Próspero e um Ariel africanos, e um jovem ator alemão, que trabalhava conosco pela primeira vez, para que desse uma nova ótica a Calibã - algo que sugerisse a rebelião feroz, perigosa e incontrolável de um adolescente de hoje. Miranda, tal como a concebeu Shakespeare, tem 14 anos e Fernando é apenas um pouco mais velho. Nos pareceu óbvio que estes papéis revelariam sua autêntica beleza se fossem interpretados por atores dessa idade. Descobrimos ua menina índia, cuja mãe a havia ensinado a dançar desde pequena e outra garota muito jovem, que era meio vietnamita.
Reclusão
No início do processo, nos afastamos de nosso ambiente habitual. Todo o elenco foi para Avignon, onde havíamos alugado alojamento e um lugar para ensaios, nos claustros de um antigo mosteiro. Ali, em reclusão absoluta, ficamos 10 dias. Todos chegaram com sua cópia de "A tempestade", mas os exemplares nunca foram abertos. Não tocamos na obra nenhuma vez. Primeiro exercitamos os corpos e depois as vozes. Fizemos exercícios em grupo para desenvolver uma rápida reação, um contato de mãos, olhos e ouvidos, uma consciência compartilhada, que se perde facilmente e deve ser constantemente renovada, para unir os indivíduos e formar com eles uma equipe sensível e vibrante. Para isso, é preciso fazer exercícios vocais e improvisações, tanto cômicas como dramáticas.
Ao fim de alguns dias, nossos estudos incluiram palavras soltas, depois em grupos e ao final frases em inglês e francês, para tentar fazer com que a obra shakespeariana adquirisse vida para todos. Acho um erro fazer com que os atores iniciem seus trabalhos com uma discussão intelectual, porque a mente racional não é um instrumento de percepção tão poderoso quanto a intuição. A possibilidade de uma compreensão intuitiva através do corpo pode ser estimulada e desenvolvida de diversas maneiras. E só depois vem a análise e discussão do texto.
Possibilidades
Depois deste período de concentração tranquila, regressamos ao nosso teatro em Paris, o Bouffes du Nord. Chloé, a cenógrafa, havia preparado apenas "possibilidades": cordas penduradas ao teto, tábuas, blocos de madeira e caixas de papelão. Também tapetes, montes de terra de cores diferentes, picaretas e pás. São elementos quenão estão relacionados com nenhuma concepção estética, são somente ferramentas que os atores podem usar. As cenas foram improvisadas, com os atores tendo a liberdade para usar o espaço e os objetos. Eu fazia sugestões e frequentemente as retirava, depois de experimentadas pelos atores. Era algo desconcertante, mas a tarefa do diretor consiste em seguir de perto o que se está explorando e com que finalidade. Aliás, esta primeira explosão de energia não é tão caótica como parece, porque produz uma quantidade incomum de preciosa matéria-prima.
Armadilha
O desafio da peça ajuda nesta tarefa. "A tempestade" é de uma qualidade tal que toda invenção parece desnecessária e até vulgar. Estávamos, então, numa armadilha aterradora: tudo que se fazia, depois de um primeiro momento de entusiasmo, tornava-se inadequado. Entretanto, o contrário seria ainda pior, porque não podemos fugir da questão apenas não fazendo nada: nenhum texto jamais "falará por si próprio". O modo mais simples é sempre o mais difícil de se encontrar, porque a mera falta de imaginação não é simplicidade, mas teatro enfadonho. Deve-se intervir, mas também manter um tom crítico diante das próprias tentativas de intervenção.
Desespero
Assim, inventamos, testamos, exploramos e discutimos. A primeira cena, a do naufrágio, foi abordada de 20 maneiras diferentes. Havia tábuas para sugerir o casco de um barco. Ariel e os espíritos tentaram jogos estéticos, como amarrar uma maquete de barco sobre a cabeça dos atores. Os marinheiros subiam nos balcões do teatro. Enfim, tudo parecia excitante quando idealizado, mas pouco convincente no dia seguinte. Desesperados, abandonamos toda forma de ilustração e colocamos os atores em formação, como em um oratório e utilizamos suas vozes para imitar os sons do vento e das ondas. Pareceu promissor, mas logo achamos tudo solene e desumano.
Um a um, descartamos todos os acessórios: tábuas, cordas, escadas e maquetes de barcos. Mas nada se perde por completo: depois de experimentarmos uma maquete de barco para a primeira cena, percebemos que, em sua primeira cena com Próspero, Ariel poderia atuar com uma vela vermelha de barco equilibrada na cabeça, justamente o elemento necessário para dar apoio colorido às suas ações. As cordas, que pareciam fora de lugar nas cenas do barco, acabaram sendo valiosas quando Calibã as utilizou. Da mesma maneira, se um dos músicos não tivesse achado, entre suas "possibilidades", um tubo oco e o enchido com pedras, que fazia um barulho sussurrante, como ondas, não teríamos jamais descoberto que o dispositivo podia substituir nossas toscas tentativas de imitar a tormenta e sugerir que era na ilha da imaginação onde se faria a representação.
Batalha
Dia após dia, lutamos muito com as palavras e seu significado. O significado emerge do texto lentamente, por força de tentativas. Um texto só ganha vida graças ao detalhe e o detalhe é fruto da compreensão. No início, um ator não pode dar mais que uma compreensão geral do que a frase contém, daí a utilidade de uma técnica que desenvolvemos com os cantores, em "Carmen". Quando o cantor não conseguia transformar sua interpretação em ação, um de meus colaboradores, excelente ator, interpretava a sua parte. Poderia parecer que seguíamos os métodos das piores produções da velha escola, que exigia que o ator imitasse servilmente o que lhe indicavam. Entretanto, uma vez conseguida uma imitação com êxito, se rompia a velha técnica e se dizia ao cantor que rejeitasse por completo o que tinha aprendido. E ele, após ter testado o que significa atuar com detalhe, era então capaz de descobrir seus próprios detalhes, à sua maneira. Este processo serviu também para os atores que não tinham ainda interpretado uma peça de Shakespeare.
Espíritos
As cenas da corte de nobres naufragados são particularmente desconcertantes. Shakespeare as escreveu de um modo que deixa os personagens incompletos e sua situação pouco teatralizada. É como se, nesta sua última peça, ele tivesse deixado de lado, deliberadamente, todas as técnicas que tinha desenvolvido para captar o interesse do público e facultar sua identificação com os personagens. Como resultado, essas cenas podem facilmente se tornar opacas e enfadonhas. Sendo uma fábula, "A tempestade" possui uma leveza de tom semelhante a dos contos orientais, e Shakespeare evitou os intensos momentos dramáticos de suas tragédias. Por isso tentamos desenvolver a incongruência da situação dos nobres em um mundo de ilusões através da presença constante dos espíritos, que enganavam os humanos com truques, induzindo-os a revelar suas intenções ocultas. Foram necessárias muitas improvisações, criadas eplos próprios espíritos. Com a ajuda deles, íamos descobrindo o modo de representar cada uma das diferentes imagens da ilha pelos métodos mais simples. Não suspeitávamos, então, que esta seria a origem de nossa maior crise.
Transformação
Durante as primeiras semanas, a cenógrafa e eu nos convencemos de que necessitávamos de um palco vazio para a imaginação fluir. Havíamos desprezado todos os acessórios dos primeiros dias, convencidos de que a estrutura da história exigia elementos naturais. Então, Chloé trouxe toneladas de terra vermelha ao teatro. Para dar vida e variedade aos movimentos dos atores, ela modelou cuidadosamente a terra, formando desníveis, montinhos e um lago. O resultado foi que o teatro se transformou em um vívido e impressionante lugar de proporções épicas. Entretanto, quando começávamos a ensaiar, descobríamos que a grandeza do palco fazia nossas ações parecerem inadequadas.
Na verdade, o novo cenário se negava a colaborar com este trabalho de sugestão. O palco não representava uma ilha na mente, mas se convertia em uma ilha real. Assim, voltamos a arrumar as cenas, para adaptá-las ao cenário, utilizando grandes objetos. Para representar o barco no mar, pensamos em cobrir o cenário de fumaça, já que aquela paisagem real não podia transformar-se em mar, apenas por intermédio da interpretação. Finalmente, Chloé e eu nos demos conta de que estávamos voltando a cair na armadilha clássica de ter de adaptar a interpretação ao cenário e de tentar justificar a tormenta mediante o acúmulo de imagens realistas. Não víamos saída alguma.
Revelação
Em certo momento, já transcorridos dois terços do período de ensaios, abandonamos tudo e fomos a um colégio onde, num sótão, rodeados por uma centena de colegiais, improvisamos uma versão da peça, utilizando as possibilidades do espaço e fazendo uso unicamente dos objetos existentes na sala. Agimos como os bons contistas. Em geral, as crianças não sabem nada sobre a peça que irão assistir. Assim, a nossa tarefa consiste em encontrar os meios mais imediatos para captar sua imaginação e não deixar que ela escape. Esta experiência sempre se torna muito reveladora e em duas horas conseguimos adiantar várias semanas de trabalho. Descobrimos verdades essenciais sobre o que a peça necessitava. Afinal, as crianças são mais precisas que a maioria dos amigos e críticos teatrais, já que não têm preconceitos, teorias ou idéias pré-determinadas.
"A tempestade" se fez viva de imediato, quando a representamos sobre um tapete e em um espaço muito pequeno. A imaginação do público era livre para reagir a todas as sugestões, porque não tínhamos tido a menor intenção de fixar elementos decorativos. Assim, os atores deram batidas na porta e agitaram uas cortinas grossas de plástico, para representar a tormenta; montes de sapatos se converteram em troncos; Ariel carregou uma rede metálica desde o jardim, para prender os nobres, etc. A representação não teve estilo estético, mas teve êxito, porque os meios convinham à finalidade e nessas condições o argumento da peça foi plenamente transmitido. A cenógrafa e eu tivemos que estabelecer muitas perguntas, que nos preocuparam um pouco.
Contradição
Ocorre muito frequentemente que certas companhias jovens tenham êxito atuando em espaços pequenos, porém seu trabalho parece insuficiente quando transportado para um cenário mais amplo. Por isso, compreendemos que as divertidas invenções, que tinham tanta expressividade em uma sala pequena, poderiam parecer infantis e falsas se reproduzidas em nosso teatro. Ao mesmo tempo, tínhamos sido testemunhas do sucesso de nossa teoria: deveríamos libertar a obra de todo o planejamento decorativo, que limitava a imaginação.
Solução
Para mim, a solução consistia em voltar à idéia de um tapete como área neutra, porém atrativa, sobre o qual qualquer coisa poderia acontecer. Chloé não estava de acordo, mas sabíamos que deveríamos testar esta proposta. Diante do assombro dos atores, quando voltaram ao teatro, no centro da terra vermelha encontraram um grande tapete persa, sobre o qual representamos há muito tempo "A linguagem dos pássaros". Fizemos, então, um ensaio rápido da peça, utilizando os elementos com os quais tínhamos ensaiado no teatro, porém confinando a ação ao tapete. Os resultados foram contraditórios. Por um lado, a peça ganhava muito, por ter se reduzido o espaço de atuação. Por outro, Chloé temia que os desenhos do tapete persa distraíssem a atenção do espectador. Onde queríamos que ele imaginasse o mar, areia e céu, os complexos desenhos orientais se negavam a cooperar, já que sua beleza própria fazia com que a ilusão fosse impossível.
Descoberta
Pensamos, então, num tapete simples, sem desenhos, mas compreendemos que seria como um carpete de um escritório ou hotel, que faria surgir associações irrelevantes à vida cotidiana. Tentamos fechar o palco com o tapete persa, mas o resultado foi lamentável. Por sorte, tínhamos planejado uns dias de férias e eu os passei olhando o chão, comparando tipos de superfícies em terrenos, parques e descampados. Quando regressei, Chloé havia pregado o tapete em varas de bambu. Logo tirou o tapete, a sua forma ficou impressa na terra, como uma cunha. Chloé encheu de areia este retângulo marcado pelo bambu. Continuava sendo um tapete, mas feito de areia. Os atores ensaiaram nele e então vimos que nosso problema central tinha sido resolvido. Logo, para dar espaço a um ponto de referência importante, Chloé colocou duas pedras no tapete de areia. No final, tiramos uma.
Jardim Zen
Mais tarde, alguns críticos chamaram este espaço de "campo de jogo", termo que na Inglaterra se utiliza exclusivamente para esportes, ou "pátio", como é chamado o lugar de recreio em um colégio. Ambos os termos explicam o que nós queríaos fazer desde o princípio: um lugar onde se joga atuando ou, em outras palavras, um lugar no qual o teatro não pretenderia ser mais que teatro. Alguém escreveu: "É um jardim Zen", e eu recordei do meu primeiro ponto de partida. Como sempre acontecsse, uma pessoa vai a um bosque procurar uma planta e ao voltar se dá conta de que ela cresce na porta de sua casa. Frequentemente descobrimos, muito depois de concluir uma produção, uma nota ou um esboço descartados com os quais se demonstrava que, em algum lugar do subconsciente, havia a resposta, que se levaria depois alguns meses de exploração para se descobrir. Ou seja: não há segredos.
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Este artigo é uma adaptação de uma conferência proferida por Peter Brook em Kioto, por ocasião da entrega de prêmios da Fundação Inamori, em novembro de 1991. Esta palestra está inserida no livro "A porta aberta - reflexões sobre a interpretação e o teatro" (Alba Editorial, Barcelona, 1994). Este artigo consta da edição nº 153/1998 da revista Cadernos de Teatro e foi traduzido por Angela Hampshire.
Peter Brook
Durante todos estes anos, quando me perguntavam: "Podemos ver um de seus ensaios?", eu respondia que não. Me via obrigado a reagir assim por causa de algumas experiências negativas. Entretanto, compreendo a vontade das pessoas de saber o que fazemos na realidade. Desta maneira, tenho vontade de dizer: "Não, não há segredos". Tentarei descrever nosso processo de trabalho e para fazê-lo utilizarei minha produção recente de "A tempestade", em Paris.
Em primeiro lugar, a escolha da peça. Somos uma companhia internacional que trabalha há muito tempo. Tínhamos concluído o grande ciclo de trabalhos com o "Mahabharata" em francês, em inglês e o filme. Recentemente, havíamos feito uma temporada de peças e músicas sul-africanas, em homenagem ao bicentenário da Revolução Francesa e ao Ano dos Direitos Humanos. Senti, então, a necessidade de tomar um rumo novo. Eu tinha começado a me interessar pela estranha e fugidia relação entre o cérebro e a mente, e ao ler o livro "O homem que confundiu sua mulher com um guarda-chuva", do médico Oliver Sacks, vislumbrei a possibilidade de adaptar para o teatro esse mistério, mediante as anotações de comportamento de certos casos neurológicos.
Modelo
Entretanto, quando trabalhamos com um tema que não tem forma nem estrutura aparentes, é essencial que se disponha de um tempo ilimitado. Assim, vendo que necessitaríamos de tempo para realizar nossas pesquisas, e admitindo ainda a responsabilidade prática de se manter um teatro e uma organização, procurei uma peça apropriada para nossa companhia internacional. Tal raciocínio tem sempre me levado a Shakespeare. Ele é o modelo insuperável e sua obra é sempre pertinente e contemporânea.
"A tempestade" é uma obra que conheço bem, já que a dirigi há uns 35 anos em Stratford. Quando realizei, em Paris (1968), o primeiro seminário com atores de diversas culturas, que conduziria à criação de nosso Centro Internacional, escolhi cenas de "A tempestade" para improvisações e estudos. Porém, naquele momento não me ocorreu que "A tempestade" poderia ser a resposta ao meu problema, até que um dia falei com um amigo da procura feita para encontrar a peça e ele me sugeriu "A tempestade". De imediato, compreendi que era o que necessitava para nossos atores. Como em outras ocasiões, entendi que os ingredientes necessários para que tomasse uma decisão já estavam no meu inconsciente, sem que a parte consciente participasse das deliberações.
Estupidez
Assim, no momento em que compreendi que "A tempestade" podia ser a solução, as vantagens foram evidentes. É estupidez um diretor dizer "quero montar Hamlet" e depois se perguntar quem vai interpretar o papel. No caso de "A tempestade", o ator africano que tínhamos conosco, Sotigui Kouyaté, podia trazer algo de novo e mais autêntico ao papel de Próspero. Portanto, o ponto de partida estava claro. Só nos faltava fixar uma data. Calculei que precisaríamos de 14 semanas de ensaios, mas umas semanas depois reorganizei nossos planos e adiei o início dos ensaios por dois meses.
Jean-Claude Carrière começou a trabalhar na tradução francesa e eu iniciei as conversas sobre os aspectos visuais com a cenógrafa Chloé Oboleski. Estávamos diante da parte mais delicada do processo, porque nele existe uma contradição. Tem de haver um palco e ajustá-lo de modo adequado, o que exige planejamento e organização. No entanto, a experiência demonstra que as decisões tomadas antes dos ensaios são menos acertadas do que as tomadas quando o processo está em curso, porque então o diretor e o cenógrafo não estão sozinhos, com sua visão e estética pessoais, mas recebem uma visão mais profunda tanto da peça como de suas possibilidades teatrais, que surge da exploração rica e entrelaçada de todo um grupo de indivíduos imaginativos e criativos.
Confusão
Antes dos ensaios, o trabalho do diretor e do cenógrafo é limitado e subjetivo, impõe formas rígidas e acaba reprimindo um desenvolvimento natural. Portanto, o método de trabalho que funciona implica num sutil equilíbrio entre o que deve ser preparado com antecedência e o que pode ser deixado em aberto. A princípio, estudei de novo minhas antigas produções e experimentos com esta peça e compreendi que não desejava conservar nada. Quando voltei a ler a peça, certas formam vacilantes começaram a dançar de maneira confusa na minha mente.
Minha primeira produção em Stratford tinha seguido a idéia generalizada de que "A tempestade" é um grande espetáculo e que por isso pressupõe complexos efeitos cênicos.
Disfarce
Mas nesta nova produção, percebi intuitivamente que um grande espetáculo não era a resposta, já que disfarçava as autênticas qualidades da obra e o que nós queríamos devia tomar a forma de uma série de jogos (do jogo em seu sentido mais literal), executados por um pequeno grupo de atores. A análise intelectual me levou à conclusão de que a peça não tem nenhuma base ralista, já que a ilha é uma mera imagem e um símbolo. Portanto, nenhuma forma de ilustração literal pode representá-la. Assim, rabisquei na última página um esboço de um jardin Zen, no qual se sugere uma ilha através de um rochedo e a água através de pedrinhas secas. Esse poderia ser o espaço onde os atores sugeririam todos os níveis do tema, contando apenas com a própria imaginação.
Desvantagens
Quando Chloé e eu tivemos nossa primeira conversa, só encontramos desvantagens nessa proposta. Seria difícil andar sobre as pedrinhas, já que isso faria um ruído contínuo - que distrairia a todos - e sentar-se nelas seria problemático. Assim, descartamos o jardim Zen, porém continuávamos convencidos de que era válido o princípio de sugestão com um mínimo de recursos cênicos. A questão que permanecia era se devíamos representar a natureza usando uma superfície natural ou de um modo imaginativo, usando uma superfície substitutiva, como madeira ou tapetes.
Dificuldade
Todo cenógrafo e todo diretor de "A tempestade" se defrontam forçosamente com uma dificuldade essencial. A peça tem uma unidade de lugar, a ilha, exceto na primeira cena, que se desenvolve num barco durante uma tempestade. Seria necessário violar esta unidade, realizando um cenário realista para a primeira cena? Quanto melhor se faz, mais se destrói a possibilidade de se representar a continuação, a ilha, de um modo que não seja mais naturalista. E mais difícil ainda é interpretar a segunda cena, na qual Próspero conta sua vida à filha. Se a solução escolhida for um cenário pictórico complexo, a solução é fácil: se representa um naufrágio espetacular e depois se desliza até a ilha deserta. Porém, se esse enfoque for descartado, deve-se encontrar o modo mais simples de se representar o mar e em seguida a terra. Decidimos deixar este problema sem solução, para ser esclarecido depois, quando os atores começassem a trabalhar em nosso palco.
Escolha
Nossa companhia é composta de atores que já tinham trabalhado no Centro Internacional. A escolha da distribuição dos papéis foi norteada pelo objetivo de uma reinterpretação da peça, sob a ótica de culturas tradicionais, de modo que escolhemos um Próspero e um Ariel africanos, e um jovem ator alemão, que trabalhava conosco pela primeira vez, para que desse uma nova ótica a Calibã - algo que sugerisse a rebelião feroz, perigosa e incontrolável de um adolescente de hoje. Miranda, tal como a concebeu Shakespeare, tem 14 anos e Fernando é apenas um pouco mais velho. Nos pareceu óbvio que estes papéis revelariam sua autêntica beleza se fossem interpretados por atores dessa idade. Descobrimos ua menina índia, cuja mãe a havia ensinado a dançar desde pequena e outra garota muito jovem, que era meio vietnamita.
Reclusão
No início do processo, nos afastamos de nosso ambiente habitual. Todo o elenco foi para Avignon, onde havíamos alugado alojamento e um lugar para ensaios, nos claustros de um antigo mosteiro. Ali, em reclusão absoluta, ficamos 10 dias. Todos chegaram com sua cópia de "A tempestade", mas os exemplares nunca foram abertos. Não tocamos na obra nenhuma vez. Primeiro exercitamos os corpos e depois as vozes. Fizemos exercícios em grupo para desenvolver uma rápida reação, um contato de mãos, olhos e ouvidos, uma consciência compartilhada, que se perde facilmente e deve ser constantemente renovada, para unir os indivíduos e formar com eles uma equipe sensível e vibrante. Para isso, é preciso fazer exercícios vocais e improvisações, tanto cômicas como dramáticas.
Ao fim de alguns dias, nossos estudos incluiram palavras soltas, depois em grupos e ao final frases em inglês e francês, para tentar fazer com que a obra shakespeariana adquirisse vida para todos. Acho um erro fazer com que os atores iniciem seus trabalhos com uma discussão intelectual, porque a mente racional não é um instrumento de percepção tão poderoso quanto a intuição. A possibilidade de uma compreensão intuitiva através do corpo pode ser estimulada e desenvolvida de diversas maneiras. E só depois vem a análise e discussão do texto.
Possibilidades
Depois deste período de concentração tranquila, regressamos ao nosso teatro em Paris, o Bouffes du Nord. Chloé, a cenógrafa, havia preparado apenas "possibilidades": cordas penduradas ao teto, tábuas, blocos de madeira e caixas de papelão. Também tapetes, montes de terra de cores diferentes, picaretas e pás. São elementos quenão estão relacionados com nenhuma concepção estética, são somente ferramentas que os atores podem usar. As cenas foram improvisadas, com os atores tendo a liberdade para usar o espaço e os objetos. Eu fazia sugestões e frequentemente as retirava, depois de experimentadas pelos atores. Era algo desconcertante, mas a tarefa do diretor consiste em seguir de perto o que se está explorando e com que finalidade. Aliás, esta primeira explosão de energia não é tão caótica como parece, porque produz uma quantidade incomum de preciosa matéria-prima.
Armadilha
O desafio da peça ajuda nesta tarefa. "A tempestade" é de uma qualidade tal que toda invenção parece desnecessária e até vulgar. Estávamos, então, numa armadilha aterradora: tudo que se fazia, depois de um primeiro momento de entusiasmo, tornava-se inadequado. Entretanto, o contrário seria ainda pior, porque não podemos fugir da questão apenas não fazendo nada: nenhum texto jamais "falará por si próprio". O modo mais simples é sempre o mais difícil de se encontrar, porque a mera falta de imaginação não é simplicidade, mas teatro enfadonho. Deve-se intervir, mas também manter um tom crítico diante das próprias tentativas de intervenção.
Desespero
Assim, inventamos, testamos, exploramos e discutimos. A primeira cena, a do naufrágio, foi abordada de 20 maneiras diferentes. Havia tábuas para sugerir o casco de um barco. Ariel e os espíritos tentaram jogos estéticos, como amarrar uma maquete de barco sobre a cabeça dos atores. Os marinheiros subiam nos balcões do teatro. Enfim, tudo parecia excitante quando idealizado, mas pouco convincente no dia seguinte. Desesperados, abandonamos toda forma de ilustração e colocamos os atores em formação, como em um oratório e utilizamos suas vozes para imitar os sons do vento e das ondas. Pareceu promissor, mas logo achamos tudo solene e desumano.
Um a um, descartamos todos os acessórios: tábuas, cordas, escadas e maquetes de barcos. Mas nada se perde por completo: depois de experimentarmos uma maquete de barco para a primeira cena, percebemos que, em sua primeira cena com Próspero, Ariel poderia atuar com uma vela vermelha de barco equilibrada na cabeça, justamente o elemento necessário para dar apoio colorido às suas ações. As cordas, que pareciam fora de lugar nas cenas do barco, acabaram sendo valiosas quando Calibã as utilizou. Da mesma maneira, se um dos músicos não tivesse achado, entre suas "possibilidades", um tubo oco e o enchido com pedras, que fazia um barulho sussurrante, como ondas, não teríamos jamais descoberto que o dispositivo podia substituir nossas toscas tentativas de imitar a tormenta e sugerir que era na ilha da imaginação onde se faria a representação.
Batalha
Dia após dia, lutamos muito com as palavras e seu significado. O significado emerge do texto lentamente, por força de tentativas. Um texto só ganha vida graças ao detalhe e o detalhe é fruto da compreensão. No início, um ator não pode dar mais que uma compreensão geral do que a frase contém, daí a utilidade de uma técnica que desenvolvemos com os cantores, em "Carmen". Quando o cantor não conseguia transformar sua interpretação em ação, um de meus colaboradores, excelente ator, interpretava a sua parte. Poderia parecer que seguíamos os métodos das piores produções da velha escola, que exigia que o ator imitasse servilmente o que lhe indicavam. Entretanto, uma vez conseguida uma imitação com êxito, se rompia a velha técnica e se dizia ao cantor que rejeitasse por completo o que tinha aprendido. E ele, após ter testado o que significa atuar com detalhe, era então capaz de descobrir seus próprios detalhes, à sua maneira. Este processo serviu também para os atores que não tinham ainda interpretado uma peça de Shakespeare.
Espíritos
As cenas da corte de nobres naufragados são particularmente desconcertantes. Shakespeare as escreveu de um modo que deixa os personagens incompletos e sua situação pouco teatralizada. É como se, nesta sua última peça, ele tivesse deixado de lado, deliberadamente, todas as técnicas que tinha desenvolvido para captar o interesse do público e facultar sua identificação com os personagens. Como resultado, essas cenas podem facilmente se tornar opacas e enfadonhas. Sendo uma fábula, "A tempestade" possui uma leveza de tom semelhante a dos contos orientais, e Shakespeare evitou os intensos momentos dramáticos de suas tragédias. Por isso tentamos desenvolver a incongruência da situação dos nobres em um mundo de ilusões através da presença constante dos espíritos, que enganavam os humanos com truques, induzindo-os a revelar suas intenções ocultas. Foram necessárias muitas improvisações, criadas eplos próprios espíritos. Com a ajuda deles, íamos descobrindo o modo de representar cada uma das diferentes imagens da ilha pelos métodos mais simples. Não suspeitávamos, então, que esta seria a origem de nossa maior crise.
Transformação
Durante as primeiras semanas, a cenógrafa e eu nos convencemos de que necessitávamos de um palco vazio para a imaginação fluir. Havíamos desprezado todos os acessórios dos primeiros dias, convencidos de que a estrutura da história exigia elementos naturais. Então, Chloé trouxe toneladas de terra vermelha ao teatro. Para dar vida e variedade aos movimentos dos atores, ela modelou cuidadosamente a terra, formando desníveis, montinhos e um lago. O resultado foi que o teatro se transformou em um vívido e impressionante lugar de proporções épicas. Entretanto, quando começávamos a ensaiar, descobríamos que a grandeza do palco fazia nossas ações parecerem inadequadas.
Na verdade, o novo cenário se negava a colaborar com este trabalho de sugestão. O palco não representava uma ilha na mente, mas se convertia em uma ilha real. Assim, voltamos a arrumar as cenas, para adaptá-las ao cenário, utilizando grandes objetos. Para representar o barco no mar, pensamos em cobrir o cenário de fumaça, já que aquela paisagem real não podia transformar-se em mar, apenas por intermédio da interpretação. Finalmente, Chloé e eu nos demos conta de que estávamos voltando a cair na armadilha clássica de ter de adaptar a interpretação ao cenário e de tentar justificar a tormenta mediante o acúmulo de imagens realistas. Não víamos saída alguma.
Revelação
Em certo momento, já transcorridos dois terços do período de ensaios, abandonamos tudo e fomos a um colégio onde, num sótão, rodeados por uma centena de colegiais, improvisamos uma versão da peça, utilizando as possibilidades do espaço e fazendo uso unicamente dos objetos existentes na sala. Agimos como os bons contistas. Em geral, as crianças não sabem nada sobre a peça que irão assistir. Assim, a nossa tarefa consiste em encontrar os meios mais imediatos para captar sua imaginação e não deixar que ela escape. Esta experiência sempre se torna muito reveladora e em duas horas conseguimos adiantar várias semanas de trabalho. Descobrimos verdades essenciais sobre o que a peça necessitava. Afinal, as crianças são mais precisas que a maioria dos amigos e críticos teatrais, já que não têm preconceitos, teorias ou idéias pré-determinadas.
"A tempestade" se fez viva de imediato, quando a representamos sobre um tapete e em um espaço muito pequeno. A imaginação do público era livre para reagir a todas as sugestões, porque não tínhamos tido a menor intenção de fixar elementos decorativos. Assim, os atores deram batidas na porta e agitaram uas cortinas grossas de plástico, para representar a tormenta; montes de sapatos se converteram em troncos; Ariel carregou uma rede metálica desde o jardim, para prender os nobres, etc. A representação não teve estilo estético, mas teve êxito, porque os meios convinham à finalidade e nessas condições o argumento da peça foi plenamente transmitido. A cenógrafa e eu tivemos que estabelecer muitas perguntas, que nos preocuparam um pouco.
Contradição
Ocorre muito frequentemente que certas companhias jovens tenham êxito atuando em espaços pequenos, porém seu trabalho parece insuficiente quando transportado para um cenário mais amplo. Por isso, compreendemos que as divertidas invenções, que tinham tanta expressividade em uma sala pequena, poderiam parecer infantis e falsas se reproduzidas em nosso teatro. Ao mesmo tempo, tínhamos sido testemunhas do sucesso de nossa teoria: deveríamos libertar a obra de todo o planejamento decorativo, que limitava a imaginação.
Solução
Para mim, a solução consistia em voltar à idéia de um tapete como área neutra, porém atrativa, sobre o qual qualquer coisa poderia acontecer. Chloé não estava de acordo, mas sabíamos que deveríamos testar esta proposta. Diante do assombro dos atores, quando voltaram ao teatro, no centro da terra vermelha encontraram um grande tapete persa, sobre o qual representamos há muito tempo "A linguagem dos pássaros". Fizemos, então, um ensaio rápido da peça, utilizando os elementos com os quais tínhamos ensaiado no teatro, porém confinando a ação ao tapete. Os resultados foram contraditórios. Por um lado, a peça ganhava muito, por ter se reduzido o espaço de atuação. Por outro, Chloé temia que os desenhos do tapete persa distraíssem a atenção do espectador. Onde queríamos que ele imaginasse o mar, areia e céu, os complexos desenhos orientais se negavam a cooperar, já que sua beleza própria fazia com que a ilusão fosse impossível.
Descoberta
Pensamos, então, num tapete simples, sem desenhos, mas compreendemos que seria como um carpete de um escritório ou hotel, que faria surgir associações irrelevantes à vida cotidiana. Tentamos fechar o palco com o tapete persa, mas o resultado foi lamentável. Por sorte, tínhamos planejado uns dias de férias e eu os passei olhando o chão, comparando tipos de superfícies em terrenos, parques e descampados. Quando regressei, Chloé havia pregado o tapete em varas de bambu. Logo tirou o tapete, a sua forma ficou impressa na terra, como uma cunha. Chloé encheu de areia este retângulo marcado pelo bambu. Continuava sendo um tapete, mas feito de areia. Os atores ensaiaram nele e então vimos que nosso problema central tinha sido resolvido. Logo, para dar espaço a um ponto de referência importante, Chloé colocou duas pedras no tapete de areia. No final, tiramos uma.
Jardim Zen
Mais tarde, alguns críticos chamaram este espaço de "campo de jogo", termo que na Inglaterra se utiliza exclusivamente para esportes, ou "pátio", como é chamado o lugar de recreio em um colégio. Ambos os termos explicam o que nós queríaos fazer desde o princípio: um lugar onde se joga atuando ou, em outras palavras, um lugar no qual o teatro não pretenderia ser mais que teatro. Alguém escreveu: "É um jardim Zen", e eu recordei do meu primeiro ponto de partida. Como sempre acontecsse, uma pessoa vai a um bosque procurar uma planta e ao voltar se dá conta de que ela cresce na porta de sua casa. Frequentemente descobrimos, muito depois de concluir uma produção, uma nota ou um esboço descartados com os quais se demonstrava que, em algum lugar do subconsciente, havia a resposta, que se levaria depois alguns meses de exploração para se descobrir. Ou seja: não há segredos.
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Este artigo é uma adaptação de uma conferência proferida por Peter Brook em Kioto, por ocasião da entrega de prêmios da Fundação Inamori, em novembro de 1991. Esta palestra está inserida no livro "A porta aberta - reflexões sobre a interpretação e o teatro" (Alba Editorial, Barcelona, 1994). Este artigo consta da edição nº 153/1998 da revista Cadernos de Teatro e foi traduzido por Angela Hampshire.
quarta-feira, 15 de abril de 2009
A educação do ator
Jacques Copeau
O ator em cena quase nunca interpreta o real. Está sempre imitando a realidade. Pressente o efeito que poderá produzir mais tarde. Nos ensaios, por razões múltiplas (às vezes até a falta incompreensível dos acessórios), nunca o vemos fazer o que fará na representação (um mínimo gesto, por mais elementar que seja, de forma autêntica). Acredita que daria tudo na representação, ou melhor, que na representação reencontrará por instinto o equivalente teatral. Mesmo os atores experientes, conscienciosos e ordeiros não vão nunca até o fim de uma indicação nova. Desfiguram-na ao traduzí-la. Dir-se-ia que não ousam ou simplesmente que não se "deixam tomar", como se seus corpos em cena se encontrassem fora das leis da gravidade ou do tempo. Não esquecemos de acrescentar que a comédia moderna, literária, intelectual, de conversação ou de discussão empobrece de maneira singular os meios físicos do ator.
Conhecimento
O que pretendemos dar aos nossos alunos é o conhecimento (na experiência do corpo humano). Mas não se trata de formar atletas, por métodos apropriados. Aliás, não poderíamos fazer isso nunca. Não se trata de desenvolver uma atitude ou uma afetação corporal qualquer, criando-se maneirismos estéticos em oposição a maneirismos antiéstéticos. Torna-se necessário que obtenhamos de corpos normalmente desenvolvidos, uma submissão a qualquer ação que se vá empreender. Ao mesmo tempo, todo movimento deve ser acompanhado de um estado de consciência íntima, particular ao movimento executado.
Imitação
O conhecimento e a posse dos movimentos do corpo, muito mais do que os movimentos de fisionomia, não devem proceder de mera imitação de si mesmo, ou de outrem, nem de imagens pintadas ou esculpidas. Sem que se ponha de lado a observação humana ou os conhecimentos estéticos da educação do ator, poderíamos acrescentar que não será procurando reproduzir sinais exteriores de paixão observados num rosto, nem observando a alteração de seu próprio rosto num espelho que o ator regulará a intensidade de sua expressão dramática. É preciso que conheça interiormente as paixões que expressa, seja por experiência pessoal, seja por espécie de adivinhação própria do artista.
Consciência
É preciso que adquira o conhecimento anatômico, o domínio muscular de seu instrumento e seu próprio rosto. E de mais a mais não será estudando as obras-primas da pintura e da estatuária que o ator realizará em seu próprio corpo a beleza plástica, se seu próprio corpo não procura a consciência dessa beleza, através do jogo natural de seus elementos musculares e articulares. Não basta ter observado de fora as atitudes e o movimento do artesão, do operário no exercício de suas respectivas profissões. É preciso ter experiência própria desses trabalhos. O artista dramático, em repouso ou em ação, possui um conhecimento interior do espetáculo que oferece. No momento em que expressa (paixão ou movimento dramático do qual é o intérprete) deixou de ser para ele objeto de estudo, mas não deixou contudo de ser objeto de consciência.
Afetações
Nada de afetações, nem de corpo, nem de espírito, nem de voz. O que iremos procurar doravante é uma harmonia perdida. Nada de atletismos rebuscados, arcaicos, por assim dizer, literários. Talvez o atleta completo tivesse o seu lugar na cena grega. Era produto de uma educação social, artística, religiosa, harmoniosa e completa. Hoje o atleta é um especialista.
Expressão
Falo do corpo e das faculdades corporais de expressão. Algumas observações sobre o assunto poderão muito bem se aplicar à expressão fisionômica. Ponto de partida da expressão; repouso, calma, descanso ou "relax", silêncio ou simplicidade. Essa lição atinge ao mesmo tempo todas as divisões da interpretação. Seja na leitura em voz alta, seja na interpretação falada, na representação ou ação, o intérprete parte sempre de uma atitude fictícia, de um trejeito corporal, mental, vocal. O "ataque" é ao mesmo tempo pensado e nem por isso suficientemente premeditado ou o que é ainda mais simples e mais grave: não faz bastante sentido. Não faz o que está fazendo de maneira simples e com fé.
Bastidores
Vemos muitas vezes, nos bastidores, certos atores exercitarem trejeitos para penetrarem na situação; outros ainda executarem saltos como preparação para uma cena pesada. Nos ensaios, quantas vezes retomam uma indicação que talvez tenham até compreendido, mas que absolutamente não os tocou. Ou então, quantas e quantas vezes retomam essa entonação, escutam-na, como quando se afina um instrumento. Isso é o mesmo que se olhar num espelho para ver se expressamos bem um sentimento.
Ataque
Sabemos, por experiência própria, que quando "atacamos" mal, quando começamos mal (personagem ou situação) é-nos impossível sair desse mal, seja qual for a vigilância exercida às nossas entonações e gestos, ou seja qual for nossa consciência ou vontade de escapulirmos. E quanto mais nos enervamos, pior. Nunca nos percebemos mais do que nesses momentos. Evidentemente os piores atores são os que mais "se olham" e "se escutam". Um ator, em estado de extremo cansaço, pelo contrário, poderá entrar naturalmente em seu papel e não mais sair dele durante toda a representação sem um mínimo de esforço, renovando mesmo todas as informações e mímica inconscientemente (pois tudo então lhe advém naturalmente). Dir-se-ia que entrou no personagem, na situação; é que em tais condições pensa muito pouco; não mais do que quando na vida real, para executar os movimentos costumeiros ou obedecer às reações naturais.
Sinceridade
A questão da sinceridade é muito complexa para abordá-la aqui. Mas sem analisá-la em seus elementos, sem precisar o que pode entrar na sinceridade artística de elementos não-sinceros, poder-se-ía dizer que em matéria de interpretação dramática nada poderia substituir a sinceridade, que sem dúvida não é apenas emoção ou alegria verdadeiras, no estado bruto, mas um sentimento de calma e poderio e domínio que permite ao artista (como já falamos antes) ser possuído pelo que expressa, tendo ao mesmo tempo poderes para dirigir tal expressão. Esse sentimento torna-se pelo menos alguma coisa de verdadeiro, de natural e seguro. Creio mesmo que tenha como ponto de partida uma espécie de pureza, integridade do indivíduo, um estado de calma e naturalidade, de "relax".
Leitura
Escrevi certa vez referindo-me à leitura em voz alta: "Ler em voz alta um texto que não foi anteriormente trabalhado é tentar uma expressão modesta e sincera, isenta de qualquer truque. É encontrar um pouco de ingenuidade. É, numa palavra, abordar o pensamento do autor com fé e humildade. E submeter-se ao verdadeiro sentido das palavras. E colhê-las em seu frescor o mais perto possível de seu significado, sem nenhum acréscimo, a não ser a involuntária emoção de tê-las descoberto. Uma boa leitura, despida de afetações, eis o terreno livre para se construir uma interpretação sadia".
Fé
Não sei como descrever, nem sobretudo como obter numa pessoa esse "estado de fé", de submissão, de humildade que represento (de um modo geral em todos os pontos tratados) como dependente da cultura física ou intelectual, numa palavra: da boa educação. Não difere em nada desse estado de serenidade, calma e segurança sem afetação que se vê nos seres bem constituídos. Atualmente só me posso servir de metáforas compreensíveis para meus alunos; direi, portanto: texto ao pé da letra, nada de entonações, desabafem etc.
Ronronar
Teremos sempre o que trabalha a voz de um ator, nesse ronronar, nessa melodia pré-estabelecida, enfim nesse hábito ou atitude que ele chama de "minha personalidade". O mesmo se passa em sua fisionomia, gesto e porte. Provarei facilmente que a maior parte dos atores, muitos excelentes, não dispõem de mais de dois ou três gestos, duas ou três expressões fisoionômicas (e evidentemente não me refiro a casos em que gestos e expressões não passam de "tiques").
Hábito
O ator tem por hábito não ouvir. Na representação não ouve o interlocutor; donde advém que sua réplica nunca é resposta. No ensaio não ouve o diretor. Não dá tempo para que uma pergunta ou indicação o atinja - ou então deixa-se atingir por ela apenas em seu espírito. Seria preciso que a indicação de um gesto o atingisse plenamente, não sendo pois obrigado (para poder atingí-lo satisfatoriamente) a fazer dele em primeiro lugar uma representação visual ou intelectual. Pode ser, entretanto, que a representaçãovisual de um gesto ou de um movimento tenha sua importância, ajudando o aluno a tomar consciência dele. Eis porque pedirei sempre aos alunos que observem os colegas para poderem assim criticarem-se mutuamente.
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O presente artigo, aqui reduzido, foi extraído dos arquivos da revista Cadernos de Teatro nº 135/1993, edição já esgotada.
Jacques Copeau
O ator em cena quase nunca interpreta o real. Está sempre imitando a realidade. Pressente o efeito que poderá produzir mais tarde. Nos ensaios, por razões múltiplas (às vezes até a falta incompreensível dos acessórios), nunca o vemos fazer o que fará na representação (um mínimo gesto, por mais elementar que seja, de forma autêntica). Acredita que daria tudo na representação, ou melhor, que na representação reencontrará por instinto o equivalente teatral. Mesmo os atores experientes, conscienciosos e ordeiros não vão nunca até o fim de uma indicação nova. Desfiguram-na ao traduzí-la. Dir-se-ia que não ousam ou simplesmente que não se "deixam tomar", como se seus corpos em cena se encontrassem fora das leis da gravidade ou do tempo. Não esquecemos de acrescentar que a comédia moderna, literária, intelectual, de conversação ou de discussão empobrece de maneira singular os meios físicos do ator.
Conhecimento
O que pretendemos dar aos nossos alunos é o conhecimento (na experiência do corpo humano). Mas não se trata de formar atletas, por métodos apropriados. Aliás, não poderíamos fazer isso nunca. Não se trata de desenvolver uma atitude ou uma afetação corporal qualquer, criando-se maneirismos estéticos em oposição a maneirismos antiéstéticos. Torna-se necessário que obtenhamos de corpos normalmente desenvolvidos, uma submissão a qualquer ação que se vá empreender. Ao mesmo tempo, todo movimento deve ser acompanhado de um estado de consciência íntima, particular ao movimento executado.
Imitação
O conhecimento e a posse dos movimentos do corpo, muito mais do que os movimentos de fisionomia, não devem proceder de mera imitação de si mesmo, ou de outrem, nem de imagens pintadas ou esculpidas. Sem que se ponha de lado a observação humana ou os conhecimentos estéticos da educação do ator, poderíamos acrescentar que não será procurando reproduzir sinais exteriores de paixão observados num rosto, nem observando a alteração de seu próprio rosto num espelho que o ator regulará a intensidade de sua expressão dramática. É preciso que conheça interiormente as paixões que expressa, seja por experiência pessoal, seja por espécie de adivinhação própria do artista.
Consciência
É preciso que adquira o conhecimento anatômico, o domínio muscular de seu instrumento e seu próprio rosto. E de mais a mais não será estudando as obras-primas da pintura e da estatuária que o ator realizará em seu próprio corpo a beleza plástica, se seu próprio corpo não procura a consciência dessa beleza, através do jogo natural de seus elementos musculares e articulares. Não basta ter observado de fora as atitudes e o movimento do artesão, do operário no exercício de suas respectivas profissões. É preciso ter experiência própria desses trabalhos. O artista dramático, em repouso ou em ação, possui um conhecimento interior do espetáculo que oferece. No momento em que expressa (paixão ou movimento dramático do qual é o intérprete) deixou de ser para ele objeto de estudo, mas não deixou contudo de ser objeto de consciência.
Afetações
Nada de afetações, nem de corpo, nem de espírito, nem de voz. O que iremos procurar doravante é uma harmonia perdida. Nada de atletismos rebuscados, arcaicos, por assim dizer, literários. Talvez o atleta completo tivesse o seu lugar na cena grega. Era produto de uma educação social, artística, religiosa, harmoniosa e completa. Hoje o atleta é um especialista.
Expressão
Falo do corpo e das faculdades corporais de expressão. Algumas observações sobre o assunto poderão muito bem se aplicar à expressão fisionômica. Ponto de partida da expressão; repouso, calma, descanso ou "relax", silêncio ou simplicidade. Essa lição atinge ao mesmo tempo todas as divisões da interpretação. Seja na leitura em voz alta, seja na interpretação falada, na representação ou ação, o intérprete parte sempre de uma atitude fictícia, de um trejeito corporal, mental, vocal. O "ataque" é ao mesmo tempo pensado e nem por isso suficientemente premeditado ou o que é ainda mais simples e mais grave: não faz bastante sentido. Não faz o que está fazendo de maneira simples e com fé.
Bastidores
Vemos muitas vezes, nos bastidores, certos atores exercitarem trejeitos para penetrarem na situação; outros ainda executarem saltos como preparação para uma cena pesada. Nos ensaios, quantas vezes retomam uma indicação que talvez tenham até compreendido, mas que absolutamente não os tocou. Ou então, quantas e quantas vezes retomam essa entonação, escutam-na, como quando se afina um instrumento. Isso é o mesmo que se olhar num espelho para ver se expressamos bem um sentimento.
Ataque
Sabemos, por experiência própria, que quando "atacamos" mal, quando começamos mal (personagem ou situação) é-nos impossível sair desse mal, seja qual for a vigilância exercida às nossas entonações e gestos, ou seja qual for nossa consciência ou vontade de escapulirmos. E quanto mais nos enervamos, pior. Nunca nos percebemos mais do que nesses momentos. Evidentemente os piores atores são os que mais "se olham" e "se escutam". Um ator, em estado de extremo cansaço, pelo contrário, poderá entrar naturalmente em seu papel e não mais sair dele durante toda a representação sem um mínimo de esforço, renovando mesmo todas as informações e mímica inconscientemente (pois tudo então lhe advém naturalmente). Dir-se-ia que entrou no personagem, na situação; é que em tais condições pensa muito pouco; não mais do que quando na vida real, para executar os movimentos costumeiros ou obedecer às reações naturais.
Sinceridade
A questão da sinceridade é muito complexa para abordá-la aqui. Mas sem analisá-la em seus elementos, sem precisar o que pode entrar na sinceridade artística de elementos não-sinceros, poder-se-ía dizer que em matéria de interpretação dramática nada poderia substituir a sinceridade, que sem dúvida não é apenas emoção ou alegria verdadeiras, no estado bruto, mas um sentimento de calma e poderio e domínio que permite ao artista (como já falamos antes) ser possuído pelo que expressa, tendo ao mesmo tempo poderes para dirigir tal expressão. Esse sentimento torna-se pelo menos alguma coisa de verdadeiro, de natural e seguro. Creio mesmo que tenha como ponto de partida uma espécie de pureza, integridade do indivíduo, um estado de calma e naturalidade, de "relax".
Leitura
Escrevi certa vez referindo-me à leitura em voz alta: "Ler em voz alta um texto que não foi anteriormente trabalhado é tentar uma expressão modesta e sincera, isenta de qualquer truque. É encontrar um pouco de ingenuidade. É, numa palavra, abordar o pensamento do autor com fé e humildade. E submeter-se ao verdadeiro sentido das palavras. E colhê-las em seu frescor o mais perto possível de seu significado, sem nenhum acréscimo, a não ser a involuntária emoção de tê-las descoberto. Uma boa leitura, despida de afetações, eis o terreno livre para se construir uma interpretação sadia".
Fé
Não sei como descrever, nem sobretudo como obter numa pessoa esse "estado de fé", de submissão, de humildade que represento (de um modo geral em todos os pontos tratados) como dependente da cultura física ou intelectual, numa palavra: da boa educação. Não difere em nada desse estado de serenidade, calma e segurança sem afetação que se vê nos seres bem constituídos. Atualmente só me posso servir de metáforas compreensíveis para meus alunos; direi, portanto: texto ao pé da letra, nada de entonações, desabafem etc.
Ronronar
Teremos sempre o que trabalha a voz de um ator, nesse ronronar, nessa melodia pré-estabelecida, enfim nesse hábito ou atitude que ele chama de "minha personalidade". O mesmo se passa em sua fisionomia, gesto e porte. Provarei facilmente que a maior parte dos atores, muitos excelentes, não dispõem de mais de dois ou três gestos, duas ou três expressões fisoionômicas (e evidentemente não me refiro a casos em que gestos e expressões não passam de "tiques").
Hábito
O ator tem por hábito não ouvir. Na representação não ouve o interlocutor; donde advém que sua réplica nunca é resposta. No ensaio não ouve o diretor. Não dá tempo para que uma pergunta ou indicação o atinja - ou então deixa-se atingir por ela apenas em seu espírito. Seria preciso que a indicação de um gesto o atingisse plenamente, não sendo pois obrigado (para poder atingí-lo satisfatoriamente) a fazer dele em primeiro lugar uma representação visual ou intelectual. Pode ser, entretanto, que a representaçãovisual de um gesto ou de um movimento tenha sua importância, ajudando o aluno a tomar consciência dele. Eis porque pedirei sempre aos alunos que observem os colegas para poderem assim criticarem-se mutuamente.
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O presente artigo, aqui reduzido, foi extraído dos arquivos da revista Cadernos de Teatro nº 135/1993, edição já esgotada.
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