quarta-feira, 15 de abril de 2009

A educação do ator

Jacques Copeau


O ator em cena quase nunca interpreta o real. Está sempre imitando a realidade. Pressente o efeito que poderá produzir mais tarde. Nos ensaios, por razões múltiplas (às vezes até a falta incompreensível dos acessórios), nunca o vemos fazer o que fará na representação (um mínimo gesto, por mais elementar que seja, de forma autêntica). Acredita que daria tudo na representação, ou melhor, que na representação reencontrará por instinto o equivalente teatral. Mesmo os atores experientes, conscienciosos e ordeiros não vão nunca até o fim de uma indicação nova. Desfiguram-na ao traduzí-la. Dir-se-ia que não ousam ou simplesmente que não se "deixam tomar", como se seus corpos em cena se encontrassem fora das leis da gravidade ou do tempo. Não esquecemos de acrescentar que a comédia moderna, literária, intelectual, de conversação ou de discussão empobrece de maneira singular os meios físicos do ator.

Conhecimento

O que pretendemos dar aos nossos alunos é o conhecimento (na experiência do corpo humano). Mas não se trata de formar atletas, por métodos apropriados. Aliás, não poderíamos fazer isso nunca. Não se trata de desenvolver uma atitude ou uma afetação corporal qualquer, criando-se maneirismos estéticos em oposição a maneirismos antiéstéticos. Torna-se necessário que obtenhamos de corpos normalmente desenvolvidos, uma submissão a qualquer ação que se vá empreender. Ao mesmo tempo, todo movimento deve ser acompanhado de um estado de consciência íntima, particular ao movimento executado.

Imitação

O conhecimento e a posse dos movimentos do corpo, muito mais do que os movimentos de fisionomia, não devem proceder de mera imitação de si mesmo, ou de outrem, nem de imagens pintadas ou esculpidas. Sem que se ponha de lado a observação humana ou os conhecimentos estéticos da educação do ator, poderíamos acrescentar que não será procurando reproduzir sinais exteriores de paixão observados num rosto, nem observando a alteração de seu próprio rosto num espelho que o ator regulará a intensidade de sua expressão dramática. É preciso que conheça interiormente as paixões que expressa, seja por experiência pessoal, seja por espécie de adivinhação própria do artista.

Consciência

É preciso que adquira o conhecimento anatômico, o domínio muscular de seu instrumento e seu próprio rosto. E de mais a mais não será estudando as obras-primas da pintura e da estatuária que o ator realizará em seu próprio corpo a beleza plástica, se seu próprio corpo não procura a consciência dessa beleza, através do jogo natural de seus elementos musculares e articulares. Não basta ter observado de fora as atitudes e o movimento do artesão, do operário no exercício de suas respectivas profissões. É preciso ter experiência própria desses trabalhos. O artista dramático, em repouso ou em ação, possui um conhecimento interior do espetáculo que oferece. No momento em que expressa (paixão ou movimento dramático do qual é o intérprete) deixou de ser para ele objeto de estudo, mas não deixou contudo de ser objeto de consciência.

Afetações

Nada de afetações, nem de corpo, nem de espírito, nem de voz. O que iremos procurar doravante é uma harmonia perdida. Nada de atletismos rebuscados, arcaicos, por assim dizer, literários. Talvez o atleta completo tivesse o seu lugar na cena grega. Era produto de uma educação social, artística, religiosa, harmoniosa e completa. Hoje o atleta é um especialista.

Expressão

Falo do corpo e das faculdades corporais de expressão. Algumas observações sobre o assunto poderão muito bem se aplicar à expressão fisionômica. Ponto de partida da expressão; repouso, calma, descanso ou "relax", silêncio ou simplicidade. Essa lição atinge ao mesmo tempo todas as divisões da interpretação. Seja na leitura em voz alta, seja na interpretação falada, na representação ou ação, o intérprete parte sempre de uma atitude fictícia, de um trejeito corporal, mental, vocal. O "ataque" é ao mesmo tempo pensado e nem por isso suficientemente premeditado ou o que é ainda mais simples e mais grave: não faz bastante sentido. Não faz o que está fazendo de maneira simples e com fé.

Bastidores

Vemos muitas vezes, nos bastidores, certos atores exercitarem trejeitos para penetrarem na situação; outros ainda executarem saltos como preparação para uma cena pesada. Nos ensaios, quantas vezes retomam uma indicação que talvez tenham até compreendido, mas que absolutamente não os tocou. Ou então, quantas e quantas vezes retomam essa entonação, escutam-na, como quando se afina um instrumento. Isso é o mesmo que se olhar num espelho para ver se expressamos bem um sentimento.

Ataque

Sabemos, por experiência própria, que quando "atacamos" mal, quando começamos mal (personagem ou situação) é-nos impossível sair desse mal, seja qual for a vigilância exercida às nossas entonações e gestos, ou seja qual for nossa consciência ou vontade de escapulirmos. E quanto mais nos enervamos, pior. Nunca nos percebemos mais do que nesses momentos. Evidentemente os piores atores são os que mais "se olham" e "se escutam". Um ator, em estado de extremo cansaço, pelo contrário, poderá entrar naturalmente em seu papel e não mais sair dele durante toda a representação sem um mínimo de esforço, renovando mesmo todas as informações e mímica inconscientemente (pois tudo então lhe advém naturalmente). Dir-se-ia que entrou no personagem, na situação; é que em tais condições pensa muito pouco; não mais do que quando na vida real, para executar os movimentos costumeiros ou obedecer às reações naturais.

Sinceridade

A questão da sinceridade é muito complexa para abordá-la aqui. Mas sem analisá-la em seus elementos, sem precisar o que pode entrar na sinceridade artística de elementos não-sinceros, poder-se-ía dizer que em matéria de interpretação dramática nada poderia substituir a sinceridade, que sem dúvida não é apenas emoção ou alegria verdadeiras, no estado bruto, mas um sentimento de calma e poderio e domínio que permite ao artista (como já falamos antes) ser possuído pelo que expressa, tendo ao mesmo tempo poderes para dirigir tal expressão. Esse sentimento torna-se pelo menos alguma coisa de verdadeiro, de natural e seguro. Creio mesmo que tenha como ponto de partida uma espécie de pureza, integridade do indivíduo, um estado de calma e naturalidade, de "relax".

Leitura

Escrevi certa vez referindo-me à leitura em voz alta: "Ler em voz alta um texto que não foi anteriormente trabalhado é tentar uma expressão modesta e sincera, isenta de qualquer truque. É encontrar um pouco de ingenuidade. É, numa palavra, abordar o pensamento do autor com fé e humildade. E submeter-se ao verdadeiro sentido das palavras. E colhê-las em seu frescor o mais perto possível de seu significado, sem nenhum acréscimo, a não ser a involuntária emoção de tê-las descoberto. Uma boa leitura, despida de afetações, eis o terreno livre para se construir uma interpretação sadia".



Não sei como descrever, nem sobretudo como obter numa pessoa esse "estado de fé", de submissão, de humildade que represento (de um modo geral em todos os pontos tratados) como dependente da cultura física ou intelectual, numa palavra: da boa educação. Não difere em nada desse estado de serenidade, calma e segurança sem afetação que se vê nos seres bem constituídos. Atualmente só me posso servir de metáforas compreensíveis para meus alunos; direi, portanto: texto ao pé da letra, nada de entonações, desabafem etc.

Ronronar

Teremos sempre o que trabalha a voz de um ator, nesse ronronar, nessa melodia pré-estabelecida, enfim nesse hábito ou atitude que ele chama de "minha personalidade". O mesmo se passa em sua fisionomia, gesto e porte. Provarei facilmente que a maior parte dos atores, muitos excelentes, não dispõem de mais de dois ou três gestos, duas ou três expressões fisoionômicas (e evidentemente não me refiro a casos em que gestos e expressões não passam de "tiques").

Hábito

O ator tem por hábito não ouvir. Na representação não ouve o interlocutor; donde advém que sua réplica nunca é resposta. No ensaio não ouve o diretor. Não dá tempo para que uma pergunta ou indicação o atinja - ou então deixa-se atingir por ela apenas em seu espírito. Seria preciso que a indicação de um gesto o atingisse plenamente, não sendo pois obrigado (para poder atingí-lo satisfatoriamente) a fazer dele em primeiro lugar uma representação visual ou intelectual. Pode ser, entretanto, que a representaçãovisual de um gesto ou de um movimento tenha sua importância, ajudando o aluno a tomar consciência dele. Eis porque pedirei sempre aos alunos que observem os colegas para poderem assim criticarem-se mutuamente.

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O presente artigo, aqui reduzido, foi extraído dos arquivos da revista Cadernos de Teatro nº 135/1993, edição já esgotada.





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