quarta-feira, 29 de junho de 2011

Nelson Rodrigues
(1912-1980)

BIOGRAFIA

Os trechos que se seguem foram selecionados pela professora Elza de Andrade, extraídos do livro "Anjo pornográfico", de Ruy Castro. 

1.  Nelson Rodrigues nasceu na cidade do Recife, Pernambuco, em 23 de agosto de 1912, quinto filho dos 14 que o casal Maria Esther Falcão e o jornalista Mário Rodrigues puseram no mundo. Seu pai, deputado e jornalista do Jornal do Recife, por problemas políticos resolve se mudar para o Rio de Janeiro, em 1916, onde vem trabalhar como redator parlamentar do jornal Correio da Manhã.

2. Mário Rodrigues permitia a ida dos filhos ao Correio da Manhã para visitá-lo. Dizem que jamais sonhou em ter seus filhos jornalistas: as meninas seriam médicas, os meninos advogados. Afinal, a vida que levava não era nada fácil: nomeado diretor do jornal, meteu-se numa batalha entre Epitácio Pessoa e Artur Bernardes, o que lhe custou um ano de cadeia, em 1924. Negando-se a fugir do país, ficou preso no quartel na Rua Evaristo da Veiga, no Rio de Janeiro. A partir da data de sua prisão o jornal que dirigia - Correio da Manhã - foi silenciado pelo governo por oito meses.

3. Ao ser libertado, Mário Rodrigues pede demissão e cria seu próprio jornal, A Manhã. Nelson inicia sua carreira jornalística em 29 de dezembro de 1925, como repórter de polícia. Tinha treze anos e meio, era alto, magro e seus cabelos eram indomáveis. Embora fosse filho do patrão, teve que comprar calças compridas para impor respeito aos colegas de redação. Nelson impressiona os colegas com sua capacidade de dramatizar pequenos acontecimentos. Especializou-se em descrever pactos de morte entre jovens namorados, tão constantes naquela época.

4. A irmã Dorinha morre em setembro de 1927, aos nove meses, de gastroenterite. Em 1928 a família se transfere para uma nova e luxuosa casa na Rua Joaquim Nabuco, 62, em Copacabana. Viviam um momento de muito dinheiro e muita fartura. Nessa época, o autor e seus irmãos mais velhos trabalhavam no jornal A Manhã. Nelson havia abandonado a terceira série do ginásio. Nunca mais voltou à escola, apesar do esforço feito por seu pai.

5. Mário Rodrigues perde o jornal que, mal administrado, está cheio de dívidas. Amigo de Melo Viana, vice-presidente da República, em 21 de novembro de 1928, e apenas 49 dias depois de perder A Manhã, Mário Rodrigues lançou seu novo jornal de grande sucesso: Crítica, que chegou a ter uma circulação de 130 mil exemplares.

6. Em 26 de dezembro de 1929, a Crítica estampa matéria, na primeira página, sobre o desquite de Sylvia e José Thibau Jr. Foi a fórmula encontrada para o diário não sair sem assunto, já que era o primeiro dia após o Natal. No dia 27, pela manhã, Sylvia entra na redação da Crítica procurando por Mário Rodrigues. Não o encontrando, pede para falar com seu filho Roberto e dá-lhe um tiro no estômago. Nelson viu e ouviu tudo. Com 17 anos, era a primeira cena de violência brutal que presenciava. Seu irmão faleceu dois dias depois. Ninguém conseguirá penetrar no teatro de Nelson Rodrigues sem entender a tragédia provocada pela morte de Roberto. Apenas 67 dias após a morte do filho, Mário Rodrigues sofre, aos 44 anos, uma trombose cerebral. Faleceu dias depois de encefalite aguda e hemorragia.

7. Em 24 de outubro Washington Luís é deposto, redações e oficinas de diversos jornais são invadidas e empasteladas. Dentre elas, a do jornal dos Rodrigues. De todos eles só um não voltaria a circular: Crítica. Isso sem contar que Milton e Mário Filho foram presos, porém logo libertados. Os irmãos começam a procurar emprego, coisa que para eles não estava nada fácil. Começaram a vender tudo o que tinham para poder sobreviver e, devido ao aluguel sempre atrasado, eram obrigados a mudar de casa a cada três meses. Até que um dia uma porta se abriu para Mário Filho. Irineu Marinho havia fundado o jornal O Globo, em 1925, mas apenas 21 dias após o jornal circular pela primeira vez, morreu de enfarte. Roberto Marinho, filho de Irineu, era o sucessor natural, mas achou-se muito inexperiente para comandar um jornal e convida Mário Filho para assumir a página de esportes de O Globo. Mário aceitou, desde que pudesse levar seus irmãos Nelson e Joffre. Roberto Marinho deu seu "de acordo" com a condição de só pagar o ordenado a Mário Filho. Nelson era chamado de "filósofo" pelos colegas de O Globo, tinha um aspecto desleixado, um só terno e não vestia meias por não tê-las. Mário Filho lança seu jornal, Mundo Esportivo, justo no fim do campeonato de futebol. Sem ter assunto, inventaram algo que seria uma mina de dinheiro anos depois: o concurso das escolas de samba.

8. Em 1934 Nelson contrai pela primeira vez uma tuberculose pulmonar. Por falta de um diagnóstico precoce, o autor já havia, com apenas 21 anos, arrancado todos os dentes e posto dentadura, numa tentativa de debelar a febre que insistia em não ir embora. Vai, então, para Campos do Jordão, em São Paulo, local recomendado para tratamento. Foi a primeira de uma série de seis internações. Roberto Marinho, sabendo das dificuldades da família, continuou pagando seu ordenado normalmente. Nelson passou 14 meses no Sanatorinho. Em abril de 1936, a terrível doença atacou seu irmão Joffre, com 21 anos, que foi levado para o Sanatório em Correias, no Rio de Janeiro. Nelson ficou ao seu lado durante sete meses. No dia 16 de dezembro de 1936 Joffre faleceu.

9. Em 1937 a redação do jornal só tinha homens. Após muita conversa Roberto Marinho resolveu contratar Elza Bretanha, apadrinhada do diretor administrativo, como secretária. Voltando de sua segunda estada em Campos do Jordão, Nelson foi informado da presença de Elza, "19 anos, moradora do Estácio e dura na queda". Ele, então, sentenciou: "Está no papo". Errou. Casaram-se no dia 29 de abril de 1940. Nelson alugou uma casinha no Engenho Novo. Era sua volta ao subúrbio. Após seis meses de casamento, certa manhã Nelson acorda e comunica a Elza que estava cego. Não enxergava nada. Descobriu, indo ao médico, que se tratava de uma seqüela da tuberculose. Tomou muito antiinflamatório, melhorou, mas 30% de sua visão estava perdida para sempre, nos dois olhos.

10. Nelson procurava uma saída para seu aperto financeiro. Elza estava grávida e seu salário estava estagnado nos 500 mil réis mensais. Um dia, ao passar em frente ao Teatro Rival, viu uma enorme fila que se formava para assistir "A família lero-lero", de Raimundo Magalhães Júnior. Alguém comentou: "Esta chanchada está rendendo os tubos!". Uma luz se acendeu na cabeça do autor: por que não escrever teatro? No meio do ano de 1941 escreveu sua primeira peça: "A mulher sem pecado". Nessa época as peças ficavam, no máximo, duas semanas em cartaz. Nelson oferece sua peça para dois grandes artistas de então: Dulcina de Moraes e Jaime Costa, mas eles a recusam. Depois de muita luta, em 9 de dezembro de 1942, "A mulher sem pecado" foi levada à cena pela Comédia Brasileira, com direção de Rodolfo Mayer, no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro. Lá ficou por duas semanas e não teve repercussão nenhuma perante o público.

11.  Em janeiro de 1943 Nelson escreve sua segunda peça teatral: "Vestido de noiva". Elza, sua mulher, fez mais de 20 cópias datilografadas para serem entregues a jornalistas, críticos e amigos. O primeiro a receber foi Manuel Bandeira. Ele gostou. Como outros, escreveu sobre ela e elogiou. Os jornais e suplementos falavam sobre "Vestido de noiva" mas o autor não conseguia encená-la. Todos diziam que era uma peça que exigia cenário complexo e teria custo muito alto. Só Thomaz Santa Rosa, um pernambucano ex-funcionário do Banco do Brasil, cantor lírico, desenhista, músico e poeta, achou que era possível. Falou então com um polonês recém chegado ao Brasil: Zibigniew Ziembisnki.

12. O grande ator e diretor leu a peça e disse: "Não conheço nada no teatro mundial que se compare com isso". Nelson conhece o diretor e tem iníciio a epopéia do grupo Os Comediantes: oito meses de ensaios, oito horas por dia. Às 20h30 do dia 28 de dezembro de 1943, os portões do Teatro Municipal foram abertos e 2.205 espectadores viram a peça. Duas horas depois, o silêncio foi total na platéia. Nos bastidores ninguém sabia o que fazer. Ziembinski, entre palavrões em polonês, manda subir o pano. Os artistas surgem e o aplauso é ensurdecedor. O diretor aparece e o teatro delira. Alguém grita na platéia: "O autor, o autor!". Nelson estava escondido em um camarote, lutando contra a dor de sua úlcera, e não foi visto por ninguém. Disse, depois, que sofreu naquele momento, sentindo-se "um marginal da própria glória".

13. Apesar da fama que lhe deu, ele continuava sendo mal pago pelo O Globo Juvenil. Em fevereiro de 1945 é convidado por David Nasser, de O Cruzeiro, para uma conversa com Freddy Chateaubriand. A oferta era inacreditável: cinco contos de réis. Nelson foi para seu novo emprego: diretor de redação das revistas Detetive e O Guri. Como a função lhe tomava pouco tempo, o autor ficava perambulando pela redação da revista O Cruzeiro, que era no mesmo andar. Sempre procurando fazer "bicos" que permitissem um ganho extra soube que Chateaubriand estava querendo comprar um folhetim francês ou americano para O Jornal, que estava com uma tiragem de apenas 3 mil exemplares por dia e sem anúncios. Nelson ofereceu-se para escrever o folhetim. Daí nasceu Suzana Flag e "Meu destino é pecar". Quando a história terminou, o sucesso foi tão grande que foi lançado um livro pelas Edições O Cruzeiro. Calcula-se que a venda tenha ultrapassado a 300 mil livros. Isso provocou o começo de outro folhetim, "Escravas do amor", cujo sucesso também foi retumbante.

14. Em março de 1945 é atacado, novamente, pela tuberculose. Começa a escrever, então, "Álbum de família". Em fevereiro de 1946 o texto é submetido à censura federal e os censores ficam de cabelos em pé. A peça foi proibida de ser encenada. As opiniões se dividiam entre os intelectuais, os críticos e os jornalistas da época, uns a favor da liberação, outros contra. Venceram os contra, pois a peça só foi liberada em 1965 e levada pela primeira vez em 1967. Outro sucesso de 1946 foi a publicação de "Minha vida", uma autobiografia de Suzana Flag. Como das vezes anteriores, além de publicada em O Jornal, virou livro e vendeu horrores. "Anjo negro" estréia em abril de 1948. Como sempre, gerou comentários polêmicos. "Senhora dos afogados" é proibida em janeiro de 1948. Com duas peças interditadas, o autor luta como um mouro para tentar liberá-las. Não conseguindo, escreve "Dorotéia", em 1949, que muitos consideram seu melhor trabalho teatral. Ainda em 1948 é publicado mais um folhetim, "Núpcias de fogo", ainda como Suzana Flag.

15. Em 1949 Chateaubriand vai comandar o jornal Diário da Noite e leva Nelson consigo. Para trás fica Suzana Flag, que o autor não aguentava mais. Em seu lugar surgiu Myrna, uma nova máscara feminina. A diferença é que Myrna respondia a cartas de leitoras. Em 1950 o autor dá adeus a Chateaubriand e aos Diários Associados e fica esperando convites de outros jornais. Ficou um ano esperando...Nesse período, salvam a família as economias de Elza e um "bico" no Jornal dos Sports, de seu irmão Mário Filho. No ano seguinte sai do buraco e vai para a Última Hora. Em junho Nelson estréia uma nova peça, "Valsa nº 6", um monólogo estrelado por sua irmã Dulce. Ficou quatro meses em cartaz e foi outra desilusão para seu autor. Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora, propõe ao autor que escreva, com pagamento extra, uma coluna diária sobre um fato real. Poderia se chamar "Atire a primeira pedra", mas Nelson sugeriu "A vida como ela é". O sucesso foi estrondoso. Em 1951 relançou Suzana Flag em "O homem proibido".

16. Em 8 de junho de 1953 estréia no Teatro Municipal a peça "A falecida". Nessa época Nelson mantinha um romance com Yolanda, secretária de um radialista da Rádio Mayrink Veiga. Esse caso durou cinco anos e rendeu três filhos: Maria Lúcia, Sônia e Paulo César, que ele não reconheceu como seus. Com tudo isso acontecendo, o autor produziu o último folhetim de Suzana Flag, "A mentira", publicado no semanrário Flan, lançado por Samuel Wainer.

17. "Senhora dos afogados" é encenada no Rio, em 1954, com direção de Bibi Ferreira. A platéia, ao final, dividiu-se e uma parte gritava "Gênio" e a outra "Tarado". O autor não aguentou e reagiu à platéia, gritando do palco: "Burros! Burros!".

18. "Perdoa-me por me traíres" teve, também, problemas de liberação com a censura, em 1957 - sofreu cortes. Outra surpresa ocorreu na estréia: Nelson interpretava o personagem Raul. Mais uma vez as vaias e os que aplaudiam pediam para o autor falar. Ele não se fez de rogado: "Burros! Zebus!". Ninguém esperava, mas aconteceu: um tiro! Na discussão entre prós e contras, o vereador Wilson Leite sacou seu revólver e deu um tiro para amedrontar alguém que o havia chamado de "palhaço". Tumulto geral. No dia seguinte a censura proibiria a peça.

19. "Viúva, porém honesta" estreou em 13 de dezembro do mesmo ano. Dizem que nela o autor procurava atingir aos críticos que atacaram "Perdoa-me por me traíres". Um dos atores era Jece Valadão, cunhado do autor. Dercy Gonçalves estréia "Dorotéia" em São Paulo. Ficou um mês em cartaz. Nelson não gostava dos "cacos" que a atriz introduzia no texto.

20. Em 1958 estréia "Os sete gatinhos", também com Jece Valadão no elenco. Apesar de malhar o presidente da República da época, Juscelino Kubitschek, Nelson vai até ele pedir um emprego. Consegue um cargo de tesoureiro em um instituto de aposentadoria e pensões (IAPETEC), mas é reprovado no exame de vista. Pede, então, a vaga para Elza. Juscelino queria agradar Mário filho e a nomeia.

21. O autor teve sério problema de vesícula, tendo de se submeter a uma operação de alto risco. De agosto de 1959 a fevereiro de 1960, centenas de milhares de leitores acompanharam a história de Engraçadinha e sua família em "Asfalto Selvagem". Foram publicados dois livros, intitulados: "Engraçadinha - seus amores e seus pecados dos doze aos dezoito" e "Engraçadinha - depois dos trinta".

22. O autor almoçava com sua mãe quase todo dia. Tomava o ônibus na Central do Brasil e ia até o Parque Guinle, em Laranjeiras. Um dos motoristas gostava de exibir-se: tinha 27 dentes na boca, mas eram todos de ouro. Nelson juntou esse fato ao bicheiro do submundo carioca, Arlindo Pimenta, e daí surgiu o "Boca de ouro".

23. A peça, como todas as demais, teve problemas com a censura. Foi levada para estrear em São Paulo e foi um retumbante fracasso. Ziembinski insistiu em viver o papel principal e não deu certo. Em janeiro de 1961, com Milton Morais como protagonista, "Boca de ouro" estréia no Rio com grande sucesso. Ainda no final de 1960 o autor entrega a Fernanda Montenegro e Fernando Torres a peça "Beijo no asfalto".

24. Nelson escreveu para Walter Clark a primeira novela brasileira de todos os tempos: "A morta sem espelho". Apesar do grande elenco - Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Sérgio Britto (que também respondia pela direção), Ítalo Rossi, Paulo Gracindo (que estreva na TV), música de Vinícius de Moraes - não foi autorizada a sua apresentação às oito e meia da noite. Foi empurrada para o horário das vinte e três e trinta. Walter Clark apelou, sem sucesso, até para Dom Helder Cãmara. Conseguiu, finalmente, autorização para o horário das dez horas, que não compensava financeiramente. Nelson foi convidado a encerrá-la rapidamente. Ficou claro nesse episódio que o problema era o nome do autor.

25. Na sua novela seguinte, "Sonho de amor", em 1964, seu nome apareceu, mas ela foi anunciada como uma adaptação de "O tronco do ipê", de José de Alencar. Sua última novela para a TV foi "O desconhecido", com direção de Fernando Torres e Jece Valadão, Nathalia Timberg, Carlos Alberto, Joana Fomm e outros, que só foi liberada graças ao poder de convencimento de Walter Clark.

26. Depois de ser renegada por muitas atrizes, "Toda nudez será castigada" entréia no dia 21 de junho de 1965 e é um sucesso. Os artistas são aplaudidos em cena aberta, os ingressos são avidamente disputados e fica em cartaz por seis meses no Teatro Serrador e em excursão pelo país. Após três anos de apresentações no Rio, São Paulo, Porto Alegre e Salvador, a peça é proibida em Natal.

27. Em 1966 o autor muda-se, a convite de Walter Clark, para a TV Globo. Em situação financeira apertada - como sempre - aceitou até aparecer como "tradutor" dos romances de Harold Hobins, publicados pela Editora Guanabara. Foi uma forma de receber mais dinheiro. A TV Globo era a "lanterna" na preferência dos telespectadores naquela época. No programa "Noite de gala" o autor apresentava o quadro "A cabra vadia", onde entrevistava pessoas. O primeiro foi João Avelange, presidente da CBD - Confederação Brasileira de Desportos.

28. Nessa época é chamado por Carlos Lacerda, ocasião em que é informado da criação da editora Nova Fronteira. Lacerda, que o malhou por tanto tempo, pediu-lhe um romance e deu-lhe um cheque de dois milhões de cruzeiros. Era algo em torno de 900 dólares, mas para quem estava pendurado, foi ótimo. Ele escreveu "O casamento". Quando Lacerda leu o livro, ficou assustadíssimo. Era um carnaval de incestos e perversões às vésperas de um casamento. Vendeu-o para Alfredo Machado, da Editora Eldorado. O livro vendeu 8 mil exemplares nas primeiras duas semanas de setembro de 1966, empatando com as vendas do novo romance de Jorge Amado, "Dona Flor e seus dois maridos". A morte de seu irmão, Mário Filho, impediu por algum tempo que ele fizesse a divulgação da obra. Quando reanimou, o livro teve sua venda proibida pelo ministro da Justiça, Carlos Medeiros Silva. Sua venda foi liberada nocamente em 1867.

29. No dia 21 de fevereiro de 1967, o prédio onde Paulo Rodrigues, irmão de Nelson, morava em Laranjeiras, desabou devido às chuvas. Morreram Paulinho, a esposa, filhos e mais alguns parentes que lá se encontravam para festejar o aniversário da cunhada do escritor. Em dezembro desse mesmo ano a viúva de seu irmão Mário se suicida.

30. Raphael de Almeida Magalhães, que já atuara como advogado de Nelson, é eleito governador do Estado da Guanabara. E consegue, finalmente, liberar "Álbum de família", que estava interditada desde 1946. Só em julho de 1967 foi levada à cena e, apesar do carrossel de incestos, foi aplaudida no final. Já não tinha o impacto de tempos atrás. No jornal O Globo passa a publicar "À sombra das chuteiras imortais" e "As confissões", cada uma patrocinada por um banco. Como recebia uma comissão por esses patrocínios (mais que o dobro de seu salário), estabilizou sua situação financeira. A primeira "Confissão" foi publicada em 4 de dezembro de 1967. Uma de suas manias era implicar com as pessoas conhecidas e com os amigos. Era do seu estilo alimentar-se periodicamente de certas obsessões. Como dizia Cláudio Mello e Souza, Nelson era a "flor de obsessão".

32. A partir de 1970 a ditadura militar endurece. Nelson, conhecido e admirado pelos militares, luta para tirar da prisão Hélio Pellegrino e Zuenir Ventura. Em 1972 começa nova luta: seu filho Nelsinho é um dos terroristas mais procurados pelas forças armadas. "Prancha" (seu codinome) foi apanhado em 30 de março de 1972. Dois anos antes, quando seu filho já vivia na clandestinidade, Nelson consegue com o presidente da República, General Medici, que ele saísse do país. Nelsinho não aceita o privilégio. Apesar disso, devido a seu prestígio e contatos com os militares, era muito procurado para ajudar pessoas em apuros com o regime militar. De 1969 a 1973 ele teve participação ativa na localização, libertação ou fuga de diversos suspeitos de crimes políticos. Após a prisão de Nelsinho, começa a luta para localizá-lo e procurar mantê-lo vivo, pois a tortura corria solta.

32. Nelson escreve "Anti-Nelson Rodrigues" no final de 1973. Em 1974, a peça fazia bela carreira no teatro do Serviço Nacional do Teatro. O autor faz alguns exames e é levado de imediato para São Paulo para ser operado de um aneurisma da aorta. Passou por duas operações, quase morreu, retornou ao Rio e, apesar de terminantemente proibido pelo médico, voltou a fumar. Em abril de 1977 é internado com uma arritmia ventricular grave e nova insuficiência respiratória.

33. O autor escreveu sua grande e última peça - "A serpente" - em meados de 1979, pouco antes de seu filho Nelsinho iniciar greve de fome com 13 companheiros, os últimos presos políticos cariocas, com a finalidade de transformar a anistia ampla em anistia total e irrestrita. Finalmente, no dia 23 de agosto, dia do aniversário do autor, Nelsinho é autorizado a deixar a prisão e assistir ao nascimento da filha Cristiane. No dia 16 de outubro, Nelsinho recebeu a liberdade condicional, mas não pôde ver seu pai: estava inconsciente no Hospital Pró-cardíaco. Nelson Rodrigues faleceu na manhã do dia 21 de dezembro de 1980, um domingo. No fim da tarde daquele dia ela faria 13 pontos na loteria esportiva, num "bolo" com seu irmão Augusto e alguns amigos do Globo. Dois meses depois, Elza cumpriu seu pedido - de, ainda em vida, gravar o seu nome ao lado do dele na lápide, sob a inscrição: "Unidos para além da vida e da morte. É só".
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segunda-feira, 27 de junho de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Novecentos"

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O ideal do humano


Lionel Fischer


"Novecentos não é um número, não é uma data; é um nome. No primeiro ano do novo século, o século XX, um bebê recém-nascido é encontrado dentro de uma caixa de papelão, em cima do piano de cauda do salão de baile da primeira classe do navio a vapor Virginian, que fazia a rota Europa/América. Não havia nada que indicasse quem era ou sua origem. Apenas uma inscrição no papelão da caixa: T. D. Lemon.

O marinheiro que o encontra, Danny Boodmann, toma-o nos braços, diz 'Hello Lemon!' e resolve adotá-lo e batizá-lo de Danny Boodmann T. D. Lemon Novecentos. Aos 8 anos, com a morte de Danny Boodmann, Novecentos fica órfão pela segunda vez e passa a ser filho do navio, onde cresce, torna-se um exímio pianista, passa sua vida sem jamais pisar em terra firme e, mesmo assim, ganha a fama de ser o melhor pianista de todos os tempos".

Os parágrafos acima, extraídos do programa oferecido ao público, sintetizam o enredo deste surpreendente e singular monólogo, em cartaz no Midrash Centro Cultural (Rua Gal. Venâncio Flores, 184, Leblon). De autoria do italiano Alessandro Baricco, o texto chega à cena com direção de Victor Garcia Peralta e atuação de Isio Ghelman - Peralta e Ghelman também respondem pela tradução.

Romancista de sucesso, Alessandro Baricco fez com "Novecentos" sua primeira incursão no teatro, e define o texto como "uma bela história que valia a pena ser contada". E tem toda a razão: estamos diante de uma bela história, uma espécie de conto que é "lido" e narrado pelo trompetista que tocou e conviveu muitos anos com Novecentos, e que permite múltiplas leituras.

Como seria altamente improvável, em termos reais, que alguém passasse 33 anos em um navio sem jamais deixá-lo, tudo me leva a crer que o autor pretendeu escrever uma espécie de fábula, cujo significado, como dito acima, faculta diversificadas interpretações.
Para mim, o protagonista, sem deixar de ser um personagem, é bem mais do que isto. Senão, vejamos.

Ninguém o ensinou a tocar piano, mas toca magistralmente. Jamais executa uma peça conhecida e tampouco repete as que inventa sucessivamente. Gera inenarrável prazer tanto aos passageiros da primeira classe quanto aos emigrantes da terceira, convertendo em sublimes melodias os diversificados sonhos dos que o escutam. É doce e educado, mas ao mesmo tempo inacessível. Além da música, sua única relação palpável é com o oceano, cuja vastidão e mistérios não parecem inquietá-lo; pelo contrário, sugerem conforto e paz. 

Assim, de que matéria seria feita esta singular personalidade? Quem seria, afinal, esse homem que, com os outros homens, só se relaciona através de sons? Obviamente que não se trata apenas de um pianista, pois todos os pianistas, ainda que célebres, estabalecem laços mais concretos com pessoas, ainda que em número reduzido. Em resumo: estamos diante de um personagem ou de um símbolo?

Na dúvida, opto pela segunda hipótese. Ao menos para mim, Novecentos materializa o que poderia nomear de ideal, ou seja, o humano em estado de total pureza, generosidade, infinita capacidade de gerar alegria sem jamais esperar qualquer tipo de retribuição. 

Caso fosse religioso, ousaria supor que Novecentos não é deste mundo, que a ele foi enviado por um poder superior para cumprir uma missão específica. Na condição de agnóstico, acho mais coerente me limitar ao que disse algumas linhas acima. Mas, também como já foi dito, certamente cada espectador criará sua versão para Novecentos. E, provavelmente, todas serão válidas.

No tocante ao espetáculo, Victor Garcia Peralta explora com sabedoria e sensibilidade a despojada cenografia e sutil iluminação assinadas por Maneco Quinderé e Miguel Pinto Guimarães, sendo impecável a atuação que extrai de Isio Ghelman.

Neste particular, gostaria de registrar o seguinte: ao longo desses 22 anos exercendo a crítica teatral, devo ter assistido a pelo menos 90% dos trabalhos feitos por este ator que, em nenhuma ocasião, exibiu uma performance inconvincente.

Ou seja: quando as condições foram mais favoráveis, esteve brilhante; em caso contrário, no mínimo digno e crível. Como aqui tudo conspira a favor, Isio Ghelman demonstra seu sólido talento,  sua inteligência cênica e a originalidade de suas escolhas. Sem dúvida, uma das performances mais marcantes da atual temporada.

No complemento da equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo a expressiva trilha sonora de Ary Coslov, a ótima direção de movimento de Cristiana Lara Resende e a fluente tradução de Victor Garcia Peralta e Isio Ghelman.

NOVECENTOS - Texto de Alessandro Baricco. Direção de Victor Garcia Peralta. Com Isio Ghelman. Midrash Centro Cultural. Sábado às 21h, domingo ás 20h.      
  

sábado, 25 de junho de 2011

Ney Mandarino

          Como imagino que grande parte dos queridos parceiros deste blog não saiba quem foi Ney Mandarino, falecido há poucos dias aos 80 anos, presto agora um emocionado tributo àquele que todos consideravam como o melhor camareiro que já existiu no teatro brasileiro - seu apelido era fiel camareiro, uma alusão ao  personagem da peça do inglês Ronald Harwood.

          Ney começou a trabalhar no teatro aos 16 anos, como camareiro da atriz Henriette Morineau - portanto, exerceu sua profissão por mais de 60 anos. E prestou seus inestimáveis serviços a nomes como Fernanda Montenegro, Tônia Carrero, Eva Todor, Cleyde Yáconis, Paulo Autran, Nicette Bruno e Aracy Balabanian. Mas suas relações mais longas foram com Ivan de Albuquerque e Rubens Corrêa, e Marília Pêra.

          Eu o conheci quando da inauguração do Teatro Ipanema, que iniciou suas atividades em 1968 com dois espetáculos: "O Jardim das Cerejeiras", de Tchecov, destinado ao público adulto, e a primeira versão de "Aprendiz de Feiticeiro", de Maria Clara Machado, dirigido ao público infantil, do qual participava como ator. Ficamos oito meses em cartaz com o "Aprendiz" e, no ano seguinte, sempre sob a batuta de Maria Clara, e ainda no Ipanema, participei do "Pluft, o fantasminha", também como ator.

           Pois bem: foram praticamente dois anos de intensa convivência com Ney Mandarino. E, nos meus 18 e 19 anos, fiquei absolutamente fascinado não apenas com sua competência, mas também com seu humor, humanidade e extrema capacidade de ser parceiro em todos os momentos.

          No quesito "profissionalismo", Ney era insuperável. Chegava ao teatro com horas de antecedência, verificava obsessivamente todos os detalhes dos bastidores - e não apenas os que lhe diziam respeito mais diretamente, como os figurinos -, mas também a contra-regra, os objetos de cena a serem usados etc. E sempre exibindo um bom humor que a todos contagiava. 

          Não contente, ainda procurava saber se os atores estavam bem, se haviam se alimentado corretamente, se estavam descansados para o espetáculo e, eventualmente, quando um de nós chegava exibindo alguma tensão, logo se aproximava para saber o que estava acontecendo e tentava, com humor e delicadeza, tornar o clima mais leve - Ney acreditava piamente que, se uma coxia está feliz, as chances de o espetáculo dar certo eram fatalmente maiores, no que estava absolutamente correto.

          E quando, também eventualmente, percebia que dois atores não estavam se "entendendo muito bem", tratava logo de conversar com ambos, sempre valendo-se, como já foi dito, de humor e delicadeza. E como, já naquela época, tinha vastíssima experiência, todos acabavam acatando suas "ordens".

          Ney Mandarino passava nossas roupas com uma competência que sempre julguei sobrenatural. E as colocava em nossos camarins de forma tão elegante que às vezes tinha a sensação de que estava me trocando numa loja chiquérrima. Aliás, Ney era chiquérrimo e seus sapatos, não necessariamente novos, luziam como se tivessem sido comprados meia-hora antes.

          Um dia lhe perguntei por que amava tanto ter seus sapatos reluzindo. E ele me respondeu: "Ora, Lionel: quando você conhece uma pessoa, a primeira coisa que ela olha é para seus pés. Sapatos impecáveis são o ponto de partida para o que a vida pode oferecer de melhor".

          Eu ri muito, ele também, e nossa convivência foi sempre assim: impregnada de risos e, no que concerne a mim, aproveitei ao máximo sua sabedoria, e sempre o atormentava para que me contasse - com detalhes - suas experiências por todos os camarins em que atuara. Ele me satisfazia sempre e de bom grado, e quando o assunto era, digamos assim, mais "picante", me levava para um canto, baixava o tom de voz e, como se estivéssemos num confessionário, me narrava passagens deliciosas que poucos conheciam.

          Era, enfim, um profissional brilhante e um parceiro infalível. E se, por um lado, não aparecia em cena, a cena certamente não apareceria  se nos bastidores não estivesse alguém como o inesquecível Ney Mandarino.

          Assim, amigo, aonde quer que você esteja, só posso acreditar que continua sendo querido, respeitado e insubstituível. E agradeço à vida o privilégio de ter convivido com uma pessoa tão especial como você. Espero um dia merecer revê-lo. (LF)
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sexta-feira, 24 de junho de 2011

Luiz Carlos Martins Pena
(1815-1848)

O texto que se segue foi extraído da Apostila 5 - História do Teatro Brasileiro I (Universidade Estácio de Sá/2001), de autoria da professora Elza de Andrade.


"Martins Pena fotografou o seu meio com uma espontaneidade de pasmar, e essa espontaneidade, essa facilidade, quase insconsciente e orgânica, é o melhor elogio do seu talento. Se se perdessem todas as leis, escritos, memórias das história brasileira dos primeiros cinquenta anos do século XIX, e nos ficassem somente as comédias de Pena, era possível reconstruir por elas a fisionomia moral de toda essa época." (Silvio Romero)

VIDA E OBRA

1. Nascido no Rio de Janeiro a 5 de novembro de 1815, Luiz Carlos Martins Pena teve uma vida curta, morrendo em Lisboa, de tuberculose, a 7 de dezembro de 1848. Esses 33 anos de vida, entretanto, foram suficientes para que se consagrasse como dramaturgo, tendo escrito 28 peças teatrais.

2. Em 1838, iniciou a sua vida de funcionário público. Durante um bom tempo trabalhou como censor teatral, escrevendo pareceres sobre peças de todos os gêneros. Tal trabalho foi proveitoso, pois permitiu-lhe familiarizar-se com a técnica teatral.

3. Considerado por muitos estudiosos o "pai do teatro de costumes" no Brasil, Martins Pena criou personagens que - apesar de não terem grande densidade psicológica - simbolizam diferentes tipos sociais de nosso país. Estão presentes em seus textos desde os nobres representantes da Corte, até os escravos, passando por funcionários públicos, sacristãos, soldados, artesãos etc.

4. Mostrando por meio do humor e da sátira as condutas e os costumes "censuráveis" da população, o autor traça um amplo retrato do Brasil da primeira metade do século XIX. Observador astuto de sua época e crítico mordaz, Martins Pena expõe a desorganização e a corrupção nos serviços púnlicos, o contrabando de escravos, a exploração do sentimento religioso, os comerciantes que enganam seus clientes, os casamentos por encomenda ou por interesse financeiro.

5. Cronologicamente Martins Pena pertence ao Romantismo. Suas peças escritas entre 1833 e 1846 trazem várias características do movimento romântico. Seus textos, porém, já antecipam algumas características do Realismo, movimento literário surgido no meio do século XIX. O Realismo opõe-se ao lirismo e à imaginação dos autores românticos. Nas peças de Martins Pena isso aparece em alguns personagens, como moças que não se envergonham quando se encontram diante dos amados, ou jovens que se rebelam contra as decisões autoritárias dos pais - situações que não se encaixam no perfil do Romantismo.

COMÉDIAS

O juiz de paz na roça
Um sertanejo na corte
A família e a festa da roça
Os dous ou o inglês maquinista
O Judas em sábado de aleluia
O irmão das almas
O diletante
Os três médicos
O namorador ou a noite de São João
O noviço
O cigano
O caixeiro da taverna
As casadas solteiras
Os meirinhos
Quem casa, quer casa
Os ciúmes de um pedestre ou O terrível capitão do mato
As desgraças de de uma criança
O usurário
Um segredo de Estado
O jogo de prendas
A barriga de meu tio
Comédia sem título

DRAMAS

Fernando ou o cinto acusador
Dom João de lira ou o repto
Dona Leonor Teles
Itaminda ou o guerreiro tupã
Vitiza ou o Nero de Espanha
Drama sem tótulo

CRIADOR DA COMÉDIA BRASILEIRA

6. O lançamento de Antônio José ou o Poeta e a Inquisição, de Gonçalves de Magalhães, parecia um manifesto para a posteridade - a tomada de consciência de uma missão artística e cultural a cumprir. Meio ano depois, a 4 de outubro de 1838, pela mesma companhia de João Caetano, estreava o Juiz de paz na roça, sem alarde publicitário e pretensão histórica. Era a primeira comédia escrita por Martins Pena, de efeito popular e pouco ambiciosa, mostrando através de um olhar satírico um aspecto da realidade brasileira.

Poucos, talvez, na ocasião, assinalassem o significado do acontecimento. Começava aí, porém, uma carreira curta e fecunda e o verdadeiro teatro nacional, naquilo que ele tem de mais específico e autêntico. Martins Pena é o fundador da nossa comédia de costumes, gênero responsável pela maioria das obras felizes da literatura teatral brasileira. Escreveu 22 comédias e 6 dramas, de 1833 até 1846. Morreu prematuramente em Lisboa aos 33 anos de idade, tuberculoso.

7. Silvio Romero considera a comédia de Martins Pena o painel histórico da vida do país, na primeira metade do século XIX. A sua espantosa atualidade permanece sempre revitalizada por alguma encenação bem realizada. Admirável observador, ele fixou costumes e características que têm resistido através do tempo, e que retratam as instituições nacionais. Retrato melancólico e primário, sem dúvida, mas exuberante de fidelidade. Em pleno surto do movimento romântico, idealizador de um nacionalismo róseo, Martins Pena antecipa, com noção precisa, alguns de nossos traços dominantes, ainda que menos positivos. Não aprofunda caracteres ou situações.

Vale, porém, a ampla vista panorâmica da realidade: o comediógrafo atinge a religião, a política; queixa-se do presente, em face de um passado melhor; define o estrangeiro no Brasil, e as reações do brasileiro, em face dele; mostra a província e a capital, o sertanejo e o metropolitano, em suas diferenças básicas; revela as profissões indignas e os tipos humanos inescrupulosos, denunciando inclusive o tráfico ilícito de negros, na sociedade escravocrata brasileira. Não lhe é estranha a galeria dos vícios individuais, como a avareza e a prevaricação, e tem um sabor especial ao satirizar as manias e as modas.

8. Apesar das limitações de toda a ordem, a comédia de Martins Pena representa de fato o marco inicial da fixação dos costumes brasileiros, que serão explorados por Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar, França Júnior e Artur Azevedo, numa continuidade de trabalhos que vem até o proncípio deste século. Numerosos traços das comédias de Martis Pena reaparecem nos sucessores, conservando o seu eco e as qualidades mais autênticas. Pode-se afirmar que os textos de reais méritos que se distinguem na segunda metade do século passado nascem de uma sugestão contida em suas farsas despretensiosas. Nelas está o exemplo das possibilidades dramáticas indicadas pelo cotidano, com a abundante parcela de ridículos e absurdos.

O sentimento nacional, que já se opõe à sede de lucro e à falta de assimilação estrangeira, sugerirá novas obras, que irão alicerçando a pesquisa, em nossos dias, de uma completa individualidade brasileira. Prosseguirá, em toda a dramaturgia subseqüente, a tendência à sátira política, à crítica da sociedade e da administração, com o elogio implícito ou explícito dos bons costumes e da sadia moral, tanto na vida privada como nos negócios públicos.

9. No repúdio aos erros, nas diversas esferas do país, a comédia de Martins Pena pode ser considerada uma escola de ética, antecipando esse papel que o teatro assumirá, conscientemente, mais tarde. Uma bondade e uma tolerância, feitas de profunda compreensão, adoçam o propósito moralizador, e lançam, no teatro, as raízes efetivas do nosso espírito democrático. Daí a platéia simpatizar com as múltiplas figuras dessa comédia espontânea, na qual reconhece o que tem em si de mais natural e aconchegante.

O sentimentalismo piegas, colocado nas boas ações e nas solidariedades francas, encontra na obra de Martins Pena um veículo ideal, livre de qualquer tendência erudita. Toda a filiação aos gêneros tradiconais do teatro e a referência a autores europeus não esmaga a pura seiva de brasilidade, que parece brotar na nossa rua, como a Commedia dell'arte nasceu do gênio popular italiano. Martins Pena leva para o palco a língua do povo, e por isso o brasileiro enxerga nele, com razão, a sua própria imagem. (MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1962. Coleção Ensaios nº 4.  pp.40-58)
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quarta-feira, 22 de junho de 2011

Fernando Pessoa

ISTO

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre oitra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!


CONSELHO

Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponha nada.

Faze canteiros como os que os outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim como lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.

Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és -
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês...


LIBERDADE

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.

O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

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terça-feira, 21 de junho de 2011

Precursores do Teatro Moderno Brasileiro (1915-1943)

 O texto que se segue foi extraído da Apostila 9 do curso de História e Dramaturgia do Teatro Brasileiro I , ministrado na CAL (Casa das Artes de Laranjeiras) pela professora Elza de Andrade, maio de 2001.

*     *     *

BRASIL / 1914 - 1ª Guerra Mundial. As temporadas das companhias estrangeiras são interrompidas por causa da guerra. Em cartaz no Rio de Janeiro apenas: revista, comédia ligeira, teatro popular. Urgente necessidade de conquistar a plateia burguesa, pois não existia, em atividade regular, um teatro profissional que satisfizesse à classe média ou à elite. Elite impossibilitada de viajar para a Europa devido à guerra.

TRIANON - A Comédia Nacional - 1915

Somente o povo frequentava as nossas salas de espetáculo, que se resumiam aos teatros de revista, na Praça Tiradentes, ou então, ao único teatro estável da comédia que era o TRIANON, situado na Avenida Rio Branco ao lado do atual Teatro Glauce Rocha. Seus espetáculos se dirigiam a uma plateia popular e numerosa (aproximadamente mil lugares), frequentadora assídua que ia ver seus atores favoritos, representando histórias que fantasiavam, apimentavam ou simplesmente copiavam o cotidiano. O que determinava a qualidade do espetáculo era a bilheteria - o critério artístico ou de qualquer outra espécie, se houvesse, não passaria de um item secundário. As companhias em geral partenciam ao primeiro ator. Alguns autores do Trianon:

Gastão Tojeiro (1880-1965) - O tenente era porteiro (quando aparecem os primeiros edifícios), Minha sogra é da polícia (quando as mulheres começam a trabalhar). Os dois maiores sucessos do Trianon são de autoria de Gastão Tojeiro: O simpático Geremias, que Leopoldo Fróes remontou várias vezes e Onde canta o sabiá, que a conta a história de um rapaz que vai morar fora do país e desdenha as coisas nacionais. Ao retornar se apaixona por uma suburbana, uma brasileirinha provinciana.

Oduvaldo Viana (1892-1972) - um dos primeiros autores a escrever "em brasileiro", abolindo a prosódia portuguesa. Estreou em 1917. Maior êxito: Amor.

Armando Gonzaga (1884-1953) - Ministro do Supremo (crítica à distribuição de favores políticos, a tentativas de ascensão social através do casamento), Cala boca Etelvina - fez tanto sucesso que o título acabou virando expressão popular.

Enredos - pequenos problemas sentimentais e domésticos das famílias modestas, moradoras no subúrbio.

Personagens - mocinha costureira, chefe de família, funcionário público, marido bilontra, chefe da estação da Central, chofer, português, dono do armazém, empregadinha mulata etc.

Atores - Procópio Ferreira, Leopoldo Fróes, Jaime Costa, Lucília Peres.

Esse teatro girava em torno de seus primeiros atores, os únicos que podiam ocupar o proscênio e o centro do palco - as áreas nobres. Os primeiros atores, em geral, não ensaiavam. Cada peça ficava em cartaz no máximo uma semana. Com duas sessões diárias, de segunda a segunda, e mais vesperais de domingo. Ia-se ao teatro depois do trabalho, com uma frequência que podia variar de uma a quatro vezes por semana.

O Teatro da Natureza - 1916

Algumas tentativas de se aproximar o teatro brasileiro do teatro que se fazia nas grandes capitais européias:

Itália Fausta (1887-1951) - paulista. Uma de nossas maiores atrizes trágicas. Como intérprete sempre apresentou um repertório que procurava fugir do banal e do popularesco de seu tempo. Mulher de rara inteligência, estava sempre bem informada sobre o que se fazia em teatro pelo mundo. A partir de 1916 torna-se a primeira atriz do Teatro da Natureza, companhia que fazia apresentações ao ar livre, como acontecia na Europa. O local escolhido é o Campo de Santana, na Praça da República. O espetáculo de estréia foi Orestes, de Ésquilo, em 23 de janeiro de 1916. 

O vasto anfiteatro comportava 70 camarotes, mil lugares distintos, mil cadeiras e mil populares, havendo espaço para dez mil pessoas de pé.

Outros espetáculos foram apresentados sem muito sucesso, devido às chuvas do mês de janeiro.

Gomes Cardim, diretor do Conservatório Dramático de São Paulo, comvida Itália Fausta para estrelar a Companhia Dramática de São Paulo, que estreia em 16 de março de 1917, com sucesso. Essa companhia se reorganiza com diferentes nomes: Cia. Dramática Nacional (1918-1922), Cia. Dramática Itália Fausta (1922-1932). Em 1932, Gomes Cardim morre e a companhia é desfeita. Em 1937, Pachoal Carlos Magno a chama para dirigir Romeu e Julieta, espetáculo inaugural do Teatro do Estudante, onde a figura do diretor constituía a grande inovação.

Renato Viana (1894-1953) - carioca, autor, diretor e professor. Organiza vários grupos teatrais. Foi o fundador da Escola de Arte Dramática de Porto Alegre (1942) e diretor da Escola de Teatro Martins Penna. Numa época em que o teatro funcionava à base da improvisação, Renato Viana batalhava pela importância da escola. Possuía um sólido conhecimento literário.

Admirador de Ibsen, Stanislavski e Copeau, é influenciado por eles. Estréia em 1918 como autor em Voragem - montada pela Cia. Dramática Nacional, dirigida por Gomes Cardim, com Itália Fausta.

Em 1922 funda a Batalha da Quimera, grupo que procurava mostrar pela primeira vez no Brasil "o teatro de síntese, de aplicação de luz e do som com valores dramáticos, da importância dos silêncios, dos planos cênicos e da direção".

Outros grupos dirigidos por Renato Viana: Colmeia (SP / 1927), Caverna Mágica (RJ / 1928), Teatro de Arte (Teatro João Caetano / 1932) e Teatro-Escola (1934), que pretendia organizar uma espécie de Conservatório para a formação de atores.

A Semana de Arte Moderna - São Paulo, 1922

Nomes expoentes da Semana de Arte Moderna:

Música - Villa-Lobos
Pintura - Tarsila do Amaral / Di Cavalcanti / Anita Malfati
Literatura - Mario e Oswald de Andrade.
Teatro - ...

Um crítico teatral importante, Alcântara Machado, profeta de uma nova era estética, escreve artigos doutrinários. Começa por atacar os três pilares básicos da cultura oficial brasileira em matéria de teatro: a ópera, as temporadas francesas, e as companhias vindas de Paris. Valoriza a revista e o circo:

Para descobrir uma imagem não enganosa, não 'bovarysta' do Brasil, a única saída seria recorrer aos gêneros menores, bastardos, despreocupados com o próprio brilho, inconscientes do que são e do que exprimem.

Afirma que a nossa dramaturgia tem de nascer de baixo para cima.. Chama a atenção para o palhaço Piolim - surrealista sem o saber, admirado por todo o grupo modernista.

Se a Semana de Arte Moderna tivesse acontecido no Rio de Janeiro, o teatro de revista teria sido incluído:

A salvação pelo popular é o que se pode tentar no teatro brasileiro. Que venham a farsa grosseira, a comédia de costumes, os galãs de pé no chão, as ingênuas de subúrbio, o folclore, o samba, o carnaval, a feitiçaria, o vernáculo estropiado, os dramas do sertão, flores de papel nos lustres, carapinhas, dentes de ouro, a fauna e o ambiente, graças e desgraças da descivilização brasileira. (Alcântara Machado)

Teatro de Brinquedo - 1927

Nomes principais: o casal Eugênia e Álvaro Moreyra. Sua casa é o centro de encontro de intelectuais e artistas.

O Teatro de Brinquedo não pode ser confundido com o teatro de profissionais, e não pode nem quer fazer concorrência a este. Primeiro porque a qualquer teatro que tenha cunho comercial seria impossível dar espetáculos como os nossos, que não prendem nem podem agradar ao público habitual dos outros. Depois, o nosso teatro só tem duzentos lugares. (...) Não temos nenhum profissional. São, não quero dizer amadores, mas amorosos do teatro. A mise-en-scène é de brinquedo, como tudo lá. (...) Chamo moderno a um velho autor do século XVII, ao qual lendo-o hoje daremos uma interpretação de hoje. De maneira que podemos interpretar algumas obras-primas - interpretar errado, naturalmente...(...). Quanto às marcações, estavam sendo feitas pelo Luiz Paixoto, que entende de teatro. Mas como estava saindo tudo muito "certinho", achamos melhor acabar com a marcação. Cada um fica e faz como entender, mesmo que atrapalhe a companhia. (Álvaro Moreyra).

Em 10 de novembro de 1927, estreia o texto de Álvaro Moreyra - Adão e Eva e outros membros da família - na Sala Renascença do Cassino Beira-Mar. Foi sucesso de público e de crítica. O seu segundo trabalho é constituído de alguns esquetes improvisados e foi um fracasso. Um terceiro trabalho não chega a estrear.

Teatro de Experiência - 1933

Um participante da Semana de Arte Moderna, o arquiteto Flávio de Carvalho, tentou levar as teorias do movimento de 22 para o palco, organizando o denominado "Teatro de Experiência". Uma peça de sua autoria - Bailado do deus morto - é apresentada em 1933, por três dias, num pequeno espaço onde se levantou um palco, no Clube dos Artistas Modernos, em São Paulo.

Os elementos participantes do espetáculo usavam máscaras de alumínio e vestiam camisolas brancas, movendo-se num palco destituído de qualquer recurso cenográfico e apenas iluminado por efeitos coloridos em flashes rápidos. Pelo relato dos que puderam assistir tais espetáculos, tem-se a impressão de que havia uma influência ainda remota do teatro surrealista, numa visão, entretanto, muito procurada do verdadeiro amarelismo.

Fazendo jus à aura pitoresca que durante muito tempo cercou a Semana, Bailado do deus morto acabou se transformando num caso de polícia. Alegando o acontecimento de tumultos, a polícia vetou as apresentações, fechou o teatro e ficou um bom tempo patrulhando a área.

Teatro do Estudante - 1938

O Teatro do Estudante foi o responsável pela formação da primeira geração de atores modernos. O seu principal nome foi Paschoal Carlos Magno. Em 1929 cria a Casa do Estudante do Brasil. Em 1933 viaja até a Inglaterra e volta com a idéia de criar no Rio de Janeiro o modelo teatral existente nas universidades inglesas e na Sorbonne. Estréia no Teatro João Caetano em 28 de outubro de 1938 - Romeu e Julieta, direção de Itália Fausta, com Paulo Porto e Sonia Oiticica. Viaja pelo Brasil e faz surgir o movimento do teatro amador estudantil por todo o país, através de festivais.

Tudo isso é possível porque a partir dos anos 30 viveremos o êxodo rural, o crescimento das cidades, a expansão da classe média, o fortalecimento da universidade brasileira, e a formação de uma elite estudantil.

Nomes surgidos no Teatro do Estudante:

Sonia Oiticica, Paulo Porto, Cacilda becker, Milton Carneiro, Maria Fernanda, Luiz Linhares, Sergio Britto, Fregolente, Pernambuco de Oliveira, Barbara Heliodora, Silvia Ortof, Adaury Dantas, Miriam Pires, Beatriz Veiga, Agildo Ribeiro, Paulo Francis etc.

Os Comediantes - 1940

A Associação de Artistas Brasileiros promovia exposições, concertos, palestras no Palace Hotel (onde hoje é o edifício Marquês do Herval). O diretor dessa Associação era Celso Kelly, que se interessava muito por teatro. Resolve promover um concurso de teatro amador para peças em um ato, cujo prêmio seria a montagem em temporada regular no Teatro Regina (hoje Dulcina). O espetáculo vencedor teve sucesso e Celso Kelly resolve criar um grupo teatral.

Surge Os Comediantes, cujo objetivo principal era fazer um teatro diferente de tudo o que existia e que não possuía nenhum conteúdo artístico.

Consultores: Eugênia e Álvaro Moreyra.

Repertório inicial:

A verdade de cada um (Assim é se lhe parece, de Pirandello)
Uma mulher e três palhaços (de Marcel Achard)
A escola de maridos (de Molière)
Um capricho (de Alfred de Musset)

Estréia em 10 de janeiro de 1940 no Teatro Ginástico, com boas críticas. Em 1941, Ziembinski, ator e diretor polonês, judeu, refugiado, de passagem pelo Rio de Janeiro, interessa-se pelo trabalho dos comendiantes, passando a ser uma espécie de consultor.

Ziembinski apaixona-se pelo texto do jornalista Nelson Rodrigues - Vestido de noiva - e resolve dirigi-lo com o grupo amador Os Comediantes. A estréia acontece em 28 de dezembro de 1943, no Teatro Municipal, espetáculo histórico, marco inicial do moderno teatro brasileiro.
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segunda-feira, 20 de junho de 2011

Da felicidade

Lúcio Anneo Sêneca


- I -

           Todos os homens querem viver felizes, mas, para descobrir o que torna a vida mais feliz, vai-se tentando, pois não é fácil alcançar a felicidade, uma vez que quanto mais a procuramos mais dela nos afastamos. Podemos no enganar no caminho, tomar a direção errada; quanto maior a pressa, maior a distância.

          Devemos determinar, por isso, em primeiro lugar, o que desejamos e, em seguida, por onde podemos avançar mais rapidamente nesse sentido. Dessa forma, veremos ao longo do percurso, sendo este o adequado, o quanto nos adiantamos cada dia e o quanto nos aproximamos de nosso objetivo. No entanto, se perambularmos daqui para lá sem seguir outro guia senão os rumores e os chamados discordantes que nos levam a vários lugares, nossa curta vida se consumirá em erros, ainda que trabalhemos dia e noite para melhorar nosso espírito.

          Devemos decidir, por conseguinte, para onde vamos nos dirigir e por onde, não sem a ajuda de algum homem sábio que haja explorado o caminho pelo qual avançamos, porque a situação aqui não é a mesma que em outras viagens; nestas há atalhos, e os habitantes a quem se pergunta o caminho não permitem que nos extraviemos. Quanto mais frequentado e mais conhecido que seja o trajeto, maior é o risco de ficar à deriva. Nada é mais importante, portanto, que não seguir como ovelhas o rebanho dos que nos precederam, indo assim não aonde querem que se vá, senão aonde se deseja ir.

          E, certamente, nada é pior do que nos acomodarmos ao clamor da maioria, convencidos de que o melhor é aquilo a que todos se submetem, considerar bons os exemplos numerosos e não viver racionalmente, mas sim por imitação.

          Daí, a grande quantidade de pessoas que se precipitam umas sobre as outras. Como acontece em uma grande catástrofe coletiva, quando as pessoas são esmagadas, ninguém cai sem arrastar a outro, e os primeiros são a perdição dos que os seguem. Isso tu podes ver acontecer ao longo da vida; ninguém erra por si só, apenas repete o erro dos outros.

          É prejudicial, portanto, apagar-se aos que estão à tua frente, ainda mais quando cada um prefere crer em lugar de julgar por si mesmo, deixando de emitir juízo próprio sobre a vida. Por isso, adota-se, quase sempre, a postura alheia. Assim, o equívoco, passando de mão em mão, acaba por nos prejudicar.

           Morremos seguindo o exemplo dos demais. A saída é nos separarmos da massa e ficarmos a salvo. Mas agora as pessoam entram em conflito com a razão em defesa de sua própria desgraça. A mesma coisa acontece nas eleições. Aqueles que foram eleitos para o cargo de pretores são admirados pelos que os elegeram. O beneplácito popular é volúvel. Aprovamos algo que logo depois é condenado. Este é o resultado de toda decisão com base no parecer da maioria.

- II -

          Quando se trata da felicidade, não é adequado que me respondas de acordo com o costume da separação dos votos: "A maioria está deste lado, então, do outro está a parte pior". Em se tratando de assuntos humanos, não é bom que as coisas melhores agradem à maioria. A multidão é argumento negativo. Busquemos o melhor, não o mais comum, aquilo que conceda uma felicidade eterna, não o que aprova o vulgo, péssimo intérprete da verdade.

          Chamo vulgo tanto àqueles que vestem clâmide quanto aos que carregam coroas. Não olho a cor das roupas que adornam os corpos, não confio nos olhos para conhecer o homem. Tenho um instrumento melhor e mais confiável para discernir o verdadeiro do falso; o bem do espírito, o espírito o há de encontrar.

          Se o homem tivesse a oportunidade de olhar para dentro de si próprio, como se torturaria, confessaria a verdade e diria:

           "Tudo que tenho feito até agora, preferia que não tivesse sido feito; quando penso em tudo o que disse, invejo os mudos; tudo o quanto desejei, a maldição de meus inimigos; tudo o que temi. Ó deuses justos! Melhor não tivesse desejado.

           Fiz muitas inimizades, e o ódio substitui a amizade (se é que há amizade entre os maus), e nem sou amigo de mim mesmo. Fiz os maiores esforços para sair da multidão e fazer-me notar por alguma qualidade: o que tenho feito senão oferecer-me como um alvo e mostrar à maldade onde poderia me machucar?

          Vê aqueles que elogiam a eloquência, escoltam a riqueza, adulam os benfeitores, louvam o poder? Todos são inimigos, ou podem sê-lo. Tantos são os admiradores quanto os invejosos. Por que não buscar algo realmente bom, para sentir, não para mostrar? Essas coisas que se contemplam, diante das quais as pessoas se detêm, que um mostra ao outro com assombro, por fora brilham, por dentro são deploráveis".

- III -

          Busquemos as coisas boas, não na aparência, mas sólidas e duradouras, mais belas no seu interior. Devemos descobri-las. Não estão longe, serão encontradas; apenas se precisa saber quando as encontramos. No entanto, passamos como cegos ao lado delas, tropeçando no que desejamos. Porém, para evitar delongas, passarei por alto as opiniões dos demais, pois é cansativo enumerá-las e rejeitá-las. Ouve a nossa.

           Quando digo a nossa, não me associo a nenhum dos mestres estoicos. Também tenho direito a opinar. Portanto, seguirei um, pedirei a outro para divulgar sua tese; talvez, depois de haver citado a todos, não rejeitarei qualquer coisa que decidiram os anteriores, e direi: "e ainda penso alguma coisa mais". Entretanto, de acordo com todos os estoicos, eu sigo a natureza. A sabedoria reside em não se afastar dela e adequar-se à sua lei e ao seu exemplo.

          A felicidade é, por isso, o que está coerente com a própria natureza, aquilo que não pode acontecer além de si. Em primeiro lugar, a mente deve estar sã e em plena posse de suas faculdades; em segundo lugar, ser forte e ardente, magnânimo e paciente, adaptável às circunstâncias, cuidar sem angústia do seu corpo e daquilo que lhe pertence, atenta às outras coisas que servem para a vida, sem admirar-se de nada; usar os dons da fortuna, sem ser escrava deles.

          Compreendes, ainda que não claramente, que disso advém uma constante tranquilidade e liberdade, uma vez afastadas as coisas que nos perturbam ou nos amedrontam. Em lugar de prazeres e gozos mesquinhos e frágeis, até mesmo prejudiciais em sua desordem, que venha uma grande, inabalável e constante alegria e, ao mesmo tempo, a paz e a harmonia da alma, a generosidade com doçura. Qualquer tipo de maldade é resultado de alguma deficiência.

- IV -

          O bem, como se concebe, também pode ser definido de outras maneiras, ou seja, pode ser entendido no mesmo sentido, mas não nas mesmas condições. Um exército pode se estender em uma ampla frente ou concentrar-se; dispor o centro em curvas, arqueando as alas, ou avançar em uma linha reta, continuando igual a sua força e a vontade de lutar pela mesma causa. Da mesma forma, a definição do bem supremo pode ser ampla e detalhada ou breve e concisa.

           Será o mesmo, portanto, se eu disser: "O bem supremo é uma alma que despreza as coisas fúteis e se satisfaz com a virtude", ou, ainda, "uma força de espírito invencível, alerta, cala no agir e atenta aos interesses da humanidade, tendo cuidado especial por aqueles que nos rodeiam".

           Pode-se ainda dizer que o homem feliz é aquele para quem não existe nem bem nem mal, apenas uma alma boa ou má; que pratica o bem, contenta-se com a virtude, não se deixa nem elevar nem abater-se pelo destino, não conhece bem maior do que o que pode dar a ele próprio, para quem o verdadeiro prazer será o desprezo dos prazeres.

          Podes, se gostas de digressões, apresentar a mesma ideia com outras imagens sem alterar o seu significado. Nada nos impede, na verdade, de dizer que a felicidade consiste em uma alma livre, sem medo e constante, inacessível ao temor e à ganância, para quem o único bem é a dignidade e o único mal é a desonestidade, sendo todo o restante um aglomerado de coisas que não retiram ou acrescentam nada à felicidade da vida. Em síntese, fatos que vão e vêm sem aumentar ou reduzir o bem supremo.

           Este princípio, fundado sob tal perspectiva, queiramos ou não, acarreta serenidade e uma profunda alegria que vem do interior, pois é para seu próprio prazer, não desejando bens maiores que os próprios. Por que é que tais coisas não hão de compensar os movimentos mesquinhos, frívolos e inconstantes de nosso fraco corpo? Pelo contrário, no dia em que ele dominar o prazer, também dominará a dor.

- V -

           Vê, então, quão ruim e funesta servidão terão que sofrer aqueles que têm alternadamente prazeres e dores, senhores mais caprichosos e despóticos. Tem-se que encontrar, portanto, uma saída para a liberdade. Essa liberdade dá-nos a indiferença ante a sorte. Assim esses inestimáveis bens surgirão, a calma do espírito posto em segurança e a elevação; e, rejeitados todos os erros, do conhecimento da verdade irá surgir uma grande alegria, a afabilidade e o contentamento do espírito. De todos esses bens, a alma desfruta não porque são excelentes em si, mas porque brotam de seu próprio bem.

           Uma vez que se começa a discutir a questão amplamente, pode-se chamar de feliz aquele que, graças à razão, não deseja nem teme. As pedras também não têm medo e tristeza, bem como os animais, mas nem por isso diz-se que são felizes aqueles que não têm consciência da felicidade.

          Ponha no mesmo nível os homens os quais a natureza obtusa e a ignorância de si mesmos os reduzem ao conjunto dos animais e das coisas inanimadas. Não há diferença entre estes e aqueles. De fato, os animais carecem totalmente de razão. Nesses homens, ela é pequena e nociva e serve apenas para corrompê-los, pois ninguém pode ser chamado de feliz estando distante da verdade.

          A vida feliz, por isso, tem o seu fundamento em uma ação simples e segura. Porque a alma é pura e livre de todo o mal quando evita os riscos, sempre disposta a permanecer onde está e a defender sua posição contra os sucessos e os golpes da sorte.

           No que se refere ao prazer, mesmo quando difundido à nossa volta, insinuando-se por todos os meios, lisonjeando o espírito com seus afagos e ganhando um após o outro, para seduzir-nos total ou parcialmente, cabe indagar: quem, dentre os mortais, dotado de um mínimo de racionalidade, ainda que atraído, ousaria, relegando a alma, dedicar-se apenas ao corpo?

- VI -

          Mas também a alma, dirão alguns, tem os seus prazeres. Concordo que os tem. Ela se torna centro e árbitro da sensualidade e dos prazeres. Então, enche-se de todas as coisas que tendem a deliciar os sentidos. Volta o pensamento ao passado e, lembrando prazeres, recompõe sua experiência e indaga aqueles ainda por vir.

          Assim, enquanto o corpo é abandonado aos festins presentes, a mente corre com o pensamento ao encontro de prazeres futuros. Tudo isso me parece mesquinho, já que preferir o mal ao bem é loucura. Ninguém pode ser feliz se não tiver a mente sadia, e, certamente, não a tem quem opta por aquilo que vai prejudicá-lo.

          É feliz, por isso, quem tem um julgamento correto. Feliz é aquele que, satisfeito com sua condição, desfruta dela. Feliz é quem entrega à razão a condução de toda a sua vida.

          Observa agora aqueles que conceituam o bem supremo junto aos prazeres. Insistentemente, negam que seja possível separar o prazer e a virtude. Assim, afirmam não ser possível viver honestamente sem prazer, nem ter vida com prazer sem honestidade. Não vejo como coisas tão diversas podem ser conciliadas.

          O que proíbe separar o prazer da virtude? Acreditas que todo o princípio de bem procede da virtude e de suas bases advém aquilo que amas e desfrutas? Ora, se prazer e virtude fossem inseparáveis, então não haveria coisas agradáveis, apenas desonrosas; nem coisas honestas, apenas onerosas, só alcançadas a duras penas.

- VII -

          Digo ainda que o prazer está ligado à vida mais infame, mas a virtude não aceita a desonestidade. Há indivíduos descontentes não por causa da falta de prazer, mas em decorrência do prazer em si, o que não aconteceria se o prazer estivesse ligado à virtude. A virtude frequentemente abre mão do prazer e dele não tem necessidade. Por que, então, juntar o que é contraditório e diverso?

          A virtude é algo de elevado, nobre, invencível e infatigável. O prazer é fraco, servil, frágil e efêmero, cuja sede e casa são bordéis e tabernas. Você encontrará a virtude no templo, no fórum, na cúria, vigiando nossas muralhas. Ainda coberta de poeira, queimada de sol e com as mãos cobertas de calos.

          O prazer, por sua vez, quase sempre anda escondido em busca de trevas, perto das casas de banho, lugares longe dos edis. Apresenta-se flácido, frouxo, cheirando a vinho e a perfume, pálido, quando não cheirando a formol  e parecendo embalsamado como um cadáver.

          O bem supremo é imortal, não desaparecerá e não está familiarizado com tédio ou arrependimento, pois uma alma correta não muda nunca, não se aborrece, não se altera, porque sempre seguiu o caminho certo. Ao contrário disso, o prazer quanto mais deleita, logo se extingue. Sendo limitado, fica logo satisfeito. Sujeito ao tédio, logo depois do primeiro ímpeto já se mostra fatigado. Não demonstra estabilidade porque é fugaz. Assim, não pode ter consistência aquilo que aparece e desaparece como um relâmpago, destinado a findar no mesmo instante em que se faz presente. Em verdade, o fim já está próximo quando começa.

- VIII -

          Importa que o prazer esteja presente tanto entre os bons quanto entre os maus e não deleite menos os malvados em suas torpezas do que os bons em suas ações honestas? É por isso que os antigos recomendavam seguir a vida melhor e não a mais agradável, de modo que o prazer se torne um aliado e não um guia da vontade digna e honesta.

         É a natureza quem deve nos guiar. A ela se dirige a razão em busca de conselho. Deixe que eu explique o que entendo. Se soubermos manter, com cuidado e serenidade, os dotes físicos e as nossas capacidades como bens fugazes e de apenas um dia; se não somos escravos deles nem dominados pelas coisas exteriores; se as ocasionais alegrias do corpo têm para nós o mesmo valor que as tropas auxiliares (devem servir e não comandar), então, por certo, tudo isso será últil para a alma.

          Que o homem não se deixe corromper nem dominar pelas coisas exteriores e somente olhe para si mesmo, que confie em seu espírito e esteja preparado para o que o destino lhe envie, isto é, que seja o próprio artífice de sua vida. Que sua confiança não seja desprovida de conhecimento, nem seu conhecimento, de constância; que suas decisões sejam para sempre e não sofram qualquer alteração.

          Compreende-se, sem necessidade de repetir, que tal homem será tranquilo e organizado, fazendo tudo com grandeza e amabilidade. A verdadeira razão estará incluída nos sentidos e fará, a partir deles, o seu ponto de partida, uma vez que não tem mais onde apoiar-se para que possa se lançar em direção à verdade e, depois, voltar para si mesma.

          Assim como o mundo que engloba todas as coisas, deus, governante do universo, dirige-se às coisas externas, mas novamente retorna a si próprio de onde estiver. Que nossa mente faça o mesmo; quando seguir seus sentidos e se estender por meio deles através de coisas exteriores, seja dona destas e de si própria.

          Desse modo, resultará uma unidade de força e de poder em conformidade com ela própria, e nascerá uma razão segura, sem hesitação ou divergência em seu ponto de vista e compreensão, nem em sua convicção. Assim, quando harmonizada em seu todo, atinge o supremo bem. Pois nada de errado ou inseguro subsiste; nada que possa escorregar ou tropeçar.

           Fará tudo através de seu controle, nada de inesperado irá acontecer, e tudo ficará bem, fácil e direito, sem desvios no agir, porque preguiça e hesitações demonstram luta e inconstância. Portanto, podes declarar resolutamente que o supremo bem é a harmonia da alma, porque as virtudes devem estar onde estão a harmonia e a unidade; os vícios são aqueles que discordam.

- IX -

          "Mas tu mesmo", dizes, "praticas a virtude porque esperas que te traga algum prazer". Em primeiro lugar, se a virtude há de proporcionar prazer, então por isso mesmo é desejada. Não é porque ela proporciona tal satisfação que deve ser buscada e, sim, porque, sobretudo, daí advém algum prazer. O empenho em busca da virtude não ocorre em razão do prazer, mas em vista de outro objetivo, embora possa decorrer algum prazer dessa busca.

          Embora em campo lavrado possam aparecer algumas flores, não foi por causa de tais plantas, ainda que proporcionem uma bela visão, que foi gasto tanto trabalho. A intenção do semeador era outra. O "a mais" é apenas um acréscimo eventual. Dessa forma, o prazer também não é o valor nem o motivo da virtude, mas, sim, um acessório dela. Não é porque deleita que agrada; mas, se agrada, então deleita.

           O bem supremo reside no próprio julgamento e na estruturação de um espírito perfeito que, respeitando os seus limites, realiza-se plenamente de maneira a mais nada desejar. Portanto, não há nada fora da plenitude a não ser seus limites.

           Enganas-te ao questionar acerca do motivo que me leva a desejar a virtude; procuras, então, buscar algo que consideras o máximo, dizes. Queres saber que vantagem tiro da virtude? Apenas ela mesma, ela é o maior prêmio.

          Isto te parece pouca coisa? Se digo: o bem supremo é a firmeza, a previsão, a agudeza, a liberdade, a harmonia e a dignidade de uma alma inquebrantável, poderias ainda imaginar algo de mais grandioso a que se referem todas essas coisas? Por que falar de prazer? Eu busco o bem do homem, não a barriga que em bestas e feras é maior.

- X -

          "Desvirtuas o que digo", poderias replicar. "Eu também não creio que alguém possa viver feliz sem que viva de modo virtuoso. Isso não vale para os animais nem para quem mede a felicidade apenas pela comida. Afirmo, claramente, que a vida que eu chamo de agradável não deve ser outra senão a que esteja ligada à virtude".

          Ninguém ignora que alguns homens pensam apenas nos prazeres, e que a alma sugere prazeres e gozos exuberantes. Em primeiro lugar, a insolência e a excessiva autoestima; o orgulho que despreza o outro; o amor cego pelas próprias coisas; a euforia por pequenos e fúteis pretextos; a maledicência com a soberba violenta; a inércia e a indolência que, causada pelo acúmulo de prazeres, acaba dormindo sobre si mesma.

          A virtude rejeita tudo isso. Para todas essas coisas, faz-se surda. Ela avalia o prazer antes de aceitá-lo. Não o acolhe para simples deleite, ao contrário, fica feliz em poder fazer uso dele com moderação.

          "O equilíbrio ao limitar o prazer é lesivo para o bem supremo". Ao falares assim, estás privilegiando o prazer. Eu o controlo. Tu o desfrutas, eu apenas me sirvo dele. Tu acreditas que ele seja o bem supremo; para mim sequer é bem. Tu fazes tudo por prazer; eu, nada.
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Composto de 27 tópicos, aqui estão reproduzidos dez, que imagino que possam servir de estímulo para que os queridos parceiros deste blog se disponham a ler os restantes desta obra admirável. O exposto foi extraído de recente edição da Editora L&PM POCKET (traduzido do latim por Lúcia Sá Rebello e Ellen Itanajara Neves Vranas) e o volume custa apenas R$ 11,00 - algo equivalente a um pedaço de pizza e um refrigerante, mas a "alimentação" que ora proponho é bem mais substancial e duradoura. Do livro constam também "Da tranquilidade da alma" e "Da vida retirada". Nascido em Roma, Lúcio Anneo Sêneca (4 a. C - 65 d. C) foi filósofo, dramaturgo, político e escritor, mestre na arte de escrever textos filosóficos.
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quinta-feira, 16 de junho de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Memórias inventadas"

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Delicadeza e lirismo


Lionel Fischer


Nascido em Cuiabá (1916), Manoel de Barros é considerado o maior poeta brasileiro vivo. E dentre as muitas singularidades de sua obra, talvez uma das principais seja a capacidade do autor de transformar em tátil aquilo que é abstrato. Para o filólogo Antonio Houaiss, sob a aparência surrealista, sua poesia é de uma enorme racionalidade: "suas visões, oníricas num primeiro instante, logo se revelam muito reais".

E muitas opiniões - invariavelmente elogiosas - poderiam aqui ser tanscritas. Mas prefiro me ater ao essencial: Manoel de Barros escreveu 32 livros, sendo três deles decominados "Memórias inventadas I" (A Infância, 2003), "Memórias inventadas II" (A Segunda Infância, 2005) e "Memórias inventadas III" (A Terceira Infância, 2007).

Ao que me parece, Alexandre Varella deve ter criado sua adaptação a partir das três obras citadas, já que as memórias evocadas remetem a diferentes gerações. Também responsável pela direção do espetáculo, sendo esta supervisionada por Cininha de Paula, "Memórias inventadas" mescla poemas de Barros com marcantes canções da MPB, de autores como Tom Jobim, Dolores Duran, Caetano e Chico Buarque, dentre outros.

Em cartaz no Teatro Café Pequeno, a montagem tem elenco formado por Alexandre Varella, Laura Castro, Marta Nóbrega e Thiago Magalhães, acompanhados ao piano por Filipe Bernardo, também responsável pela direção musical.

Simples e despretensiosa, a montagem permite ao espectador entrar em contato com a maravilhosa poesia de Manoel de Barros, com as canções funcionado como um elo de ligação entre elas. E essa mescla resulta em um evento que, sem ser propriamente um fato teatral, também não se resume a um recital de poesias. Trata-se de um saboroso encontro de quatro intérpretes com a plateia que usufrui, atenta e emocionada, a segurança e eficiência com que cantam belas músicas e dizem maravilhosas poesias. 

Na equipe técnica, Fernando Alexim responde por uma cenografia despojada, que atende a todas as necessidades do espetáculo. Rodrigo Cohen e Marcela Fauth assinam figurinos que, apropriadamente, nos remetem ao interior de Mato Grosso. Paulo César Medeiros ilumina a cena com delicadeza e lirismo, cabendo ainda ressaltar a sensível direção musical de Filipe Bernardo e a preparação vocal de Marcelo Sader.

MEMÓRIAS INVENTADAS - Direção e dramaturgia de Alexandre Varella. Com Alexandre Varella, Laura Castro, Marta Nóbrega e Thiago Magalhães. Teatro Café Pequeno. Quartas e quintas de junho, às 21h30.