Flores de Chumbo
Lionel Fischer
(1984)
CAPÍTULO XVI
- Primeiramente -, iniciou o prelado, com voz trêmula - gostaria de pedir perdão. A forma como o espreitei enquanto dormia e me conduzi tão logo entrei são sem dúvida condenáveis. Mas espero que o senhor saiba dar o devido desconto a um homem completamente desesperado!
Isto dizendo, contraiu os pequeninos olhos e as suarentas mãos. Transpirava abundantemente e exalava um cheiro de cachorro molhado. É claro que o perdoaria, mas antes que pudesse fazê-lo, ele prosseguiu:
- Mas isso não é tudo. Devo me desculpar ainda por outras atitudes bem mais graves, assim como por certos julgamentos apressados. Peço humildemente que me conceda a chance de me redimir.
Sendo um apaixonado pela redenção, autorizei-o a prosseguir com um grave movimento de cabeça.
- A história é um pouco longa, mas procurarei ser o mais sucinto possível. Ela começa no enterro de Ambrosina, ao qual compareci em trajes civis e usando uma peruca. Tomei essa decisão porque, enquanto monsenhor, não poderia participar do funeral de uma suicida que, ainda por cima, se encarregaria do próprio necrológio. Disse isso a ela na véspera daquele funeral fatídico, na esperança de demovê-la dessa extravagância. Mas como Ambrosina se manteve irredutível, afirmei que não compareceria ao enterro, ao que ela me respondeu que se não quisesse ir ao cemitério poderia ir à merda. Desculpe o termo, mas foi assim que ela se expressou. É óbvio que acabei indo, pois a amava profundamente. Foi lá que o vi pela primeira vez, trepado naquela árvore. E a minha antipatia foi imediata. Achei um desrespeito o senhor assistir ao funeral dependurado num galho, como um macaco, ao invés de assumir uma postura mais respeitosa. Estava mesmo decidido a lhe chamaar a atenção assim que o enterro terminasse, mas é claro que não pude fazê-lo.
- Mas agora pode...- atalhei, simpático, disposto a ouvir a tardia reprimenda.
- Agora isso não tem importância. Mesmo porque minha opinião já não é a mesma. O que interpretei como desrespeito talvez fosse um grande interesse, não é verdade?
Fiz que sim. Ele sorriu. Depois, permaneceu um tempo em silêncio, as sobrancelhas unidas, como se hesitasse. Estava tenso e não procurava ocultá-lo. Finalmente, prosseguiu:
- Quando começou a matança, senti a maior sensação de impotência de toda a minha vida. Ainda tentei serenar os ânimos, mas travestido como estava minhas palavras não conseguiam influenciar ninguém. Então, temendo levar uma facada ou um tiro, fugi dali. Só interrompi minha correria quando cheguei na igreja. Diante do altar e de joelhos, implorei a Deus que interrompesse a carnificina, que iluminasse os espíritos enlouquecidos e evitasse a autoimolação de toda uma comunidade. E também roguei para que Ele me perdoasse a abominável covardia. E teria ainda implorado um mundo de coisas se...
E neste ponto ele irrompeu em lágrimas, acompanhadas de pequenos espasmos corporais, em tudo semelhantes aos de um heroína de cinema mudo. Quando conseguiu recompor-se, continuou:
- Quando tornei a me erguer, não tive mais coragem de olhar o altar. Estava liquidado, como homem e religioso. Mas ainda nutria a esperança de haver sobreviventes e voltei ao cemitério. No entanto, ao me deparar com aquela cena dantesca, o desespero tomou conta de mim, definitivamente. Tendo me revelado incapoaz de evitar a morte de tantas pessoas, resolvi acabar com a vida. Contornei então o monte de cadáveres e me dirigi para a árvore de onde o senhor assistiu ao funeral, disposto a nela me enforcar. Entretanto, o senhor ainda estava lá!? Mas, fazendo o quê?, pensei, abismado. Ah, meu jovem amigo...nunca odiei alguém tão profundamente. Eu não queria que você testemunhasse meu derradeiro gesto, mas ao mesmo tempo não sabia como lhe dizer que sumisse dali. A solução foi aguardar. Mas o tempo passava e nada acontecia. Então...minha vontade de morrer foi se enfraquecendo. É vergonhoso, eu admito. Mas esteja certo de que procurei reagir com todas as minhas forças à idéia de preservar a própria vida!
- Não duvido...- atalhei, pensando em acalmá-lo. Mas ele prosseguiu como se nada tivesse escutado.
- Mas a cada minuto ela se solidificava, assim como o ódio pelo senhor, a quem injustamente atribuía o fracasso de minha "inabalável" decisão. À meia-noite, convencido de que não teria mesmo coragem de me suicidar, resolvi matá-lo. Mas nesse exato instante o senhor começou a se agitar nos galhos, como se tivesse adivinhado minhas intenções e pretendesse fazer o mesmo comigo. Apavorado, larguei o galho que já empunhava e como um verme obsceno rastejei por entre os cadáveres até deixar o cemitério. Quando cheguei na igreja, peguei um velho chicote, me ajoelhei diante do Altíssimo e me bati até cair desfalecido. Ainda conservo as marcas do suplício, tenha a bondade de constatar...
Monsenhor desabotoou a batina e expôs sua nudez magrela e toda lanhada. O homenzinho realmente não mentira, tampouco exagerara: seu peito e costas estavam repletas de manchas escuras, algumas levemente azuladas, que comprovavam a violência com que se autoflagelara. E embora me esforçasse para camuflar minhas emoções diante daquele festival de chagas, não pude conter uma expressão de nojo, pois muitas feridas pareciam ter infeccionado e tinham a recobrí-las uma substância purulenta, que lembrava uma escarrada. Ao perceber que a visão de seu martírio me incomodava, monsenhor Flávio teve a bondade de novamente ocultá-lo, tendo recusado meu oferecimentro de lhe passar Merthiolate nos ferimentos. Em seguida, prosseguiu:
- No dia seguinte resolvi procurá-lo, pensando em pedir desculpas por minhas intenções sinistras. Tomei de novo o caminho do cemitério, mas o vi adormecido num banco, tendo a espreitá-lo este mesmo bode que se refresca na cozinha. Postei-me então a uma certa distância e esperei. Quando o senhor despertou, ao invés de me aproximar, passei a seguí-lo pelas ruas, incapaz de entender por que o fazia. E acabei assistindo a tudo: ao seu desespero, ao assalto à confeitaria, aos seus vômitos, ao seu desmaio. Testemunhei também sua posterior euforia e sua ida para o convento. E então fui de novo acometido de incontrolável desespero. Sabia que o senhor tomava a única atitude que lhe cabia, ou seja, ir até o convento comunicar a tragédia. Mas por que não o fazia eu mesmo? Eu, que morara grande parte de minha vida na cidade, que amava seus habitantes!? Por que permitia que um forasteiro executasse com tanta abnegação uma tarefa que a mim cabia?
- É possível que a culpa suplantasse sua noção do dever - ...arrisquei, timidamente, visando acalmar a agitada criatura. Entretanto, minhas palavras provocaram o efeito inverso. Monsenhor começou a tremer. E como mantinha os braços abertos, a impressão que eu tinha era a de estar diante de uma roupa que o vento agitava no varal. Temendo pelo pior, levantei e caminhei em sua direção (esqueci de dizer que a esta altura monsenhor já estava de pé), sem saber ao certo por que o fazia, já que não pretendia segurá-lo e muito menos obrigá-lo a retornar para o sofá. Mas ele me deu as costas e saiu caminhando pela sala numa velocidade impressionante, se levarmos em conta o desnível de suas pernas. Ao mesmo tempo, murmurava a palavra "culpa" nas mais variadas inflexões. Às vezes parecia empenhado em decifrar-lhe o significado; às vezes a tratava como velha conhecida. Consciente de que nada poderia fazer de útil, voltei a me sentar, disposto a aguardar pacientemente que ele parasse de rodopiar pela sala com um peru bêbado.
Não sei se o amigo leitor me dará crédito, mas monsenhor Flávio girou em torno de mim 43 minutos, 20 segundos e alguns décimos, fazendo alarde de grande resistência e formidável capacidade de equilíbrio. Quando por fim tornou a se acomodar no sofá, cravou em mim seus ridículos olhinhos. Era visível que toda a sua exaltação cedera lugar a uma profunda tristeza, sentimento um tanto delicado porque tanto pode regredir, convertendo-se em melancolia, quanto evoluir, virando depressão. Incapaz de levantar-lhe o astral com palavras reconfortantes, achei que a única saída seria fazê-lo prosseguuir com sua história, pois enquanto estivesse despejando palavras não teria tempo de sofrer. Assumindo um ar de quem estava interessadíssimo na evolução da interrompida narrativa, lhe disse:
- E então, monsenhor? Desculpe, mas estou muito curioso para saber o que aconteceu depois que fui para o convento.
Minhas palavras, se não chegaram a agradá-lo, ao menos adiaram o processo catatônico em que ele ameaçava mergulhar. E monsenhor Flávio prosseguiu:
- Passei um mês atroz. Já outras vezes me sentira perdido em meio aos homens, mas minha fé em Deus e a certeza de que Ele me outorgara uma missão sempre me ajudaram a superar os momentos mais difíceis. Quando, porém, não me revelei capaz de impedir a consumação da tragéia, conclui que Deus havia depositado sua confiança no homem errado. E então, não O procurei mais, certo de haver ultrapassado os limites de sua infinita misericórdia e tolerância. Sem mais ninguém à minha volta, minha solidão se tornou absoluta. Vagava dia e noite pela cidade, murmurando frases desconexas, comandado muito mais pelas pernas do que pela razão. Voltei a vê-lo em duas ocasiões. A primeira quando o senhor, acompanhado das seis irmãs, foi até o cemitério e expulsou os abutres. A segunda, quando resgatou os escritos de Ambrosina. Ouvi, inclusive, o diálogo que travou com Ecúria e as professias dela. E aqui aproveito, mais uma vez, para pedir desculpas. Eu passara a nutrir pelo senhor um sentimento de inveja inimaginável, porque o senhor conseguia agir, enquanto eu me afundava cada vez mais na inércia. Assim, quando escutei os vaticínios da louca, fiquei radiante com a possibilidade de o senhor vir a falecer na mesma cidade em que assistira à morte de todos os seus habitantes. Foi um pensamento abominável, que só poderia ter sido formulado por alguém a quem Deus houvesse efetivamente abandonado. Ou melhor, por alguém que houvesse abandonado a Deus. Depois só o vi ontem, mas aí meus sentimentos já se haviam alterado. Por isso resolvi procurá-lo.
Nesse momento, pressenti que monsenhor estava em vias de pular um bom pedaço de sua história. Como eu estava ávido por conhecê-la em todos os seus pormenores, não me fiz de rogado e pedi que respeitasse a cronologia da instigante narrativa. Ele então contou que, depois de uns poucos dias, suas reservas alimentícias se esgotaram e após ter permanecido quase uma semana sem comer, não resistiu e como eu também assaltou o botequim de vidro. Não contente, carregou para a igreja a maior quantidade possível de alimentos que ainda não haviam se deteriorado, e graças a isso conseguiu se aguentar por mais alguns dias. Estando, no entanto, seriamente abalado do ponto de vista psicológico, passou a comer de maneira desenfreada, esquecendo-se de que, se por um lado conseguia compensar algumas carências, por outro acelerava o processo de retorno à situação antiga.
Quando a fonte secou, seu limiar de resistência à fome havia baixado muito. Ainda assim, tentou ao máximo dominar seus impulsos degustativos, mas 48 horas após ter feito a última refeição, eles se tornaram tão frenéticos que o prelado não teve outra alternativa a não ser sair pela cidade arrombando portas e violando dispensas, como uma formiga desvairada. E quanto mais resistência se lhe opunha uma porta, maior sua voracidade ao atingir a cozinha. Até que um dia sua consciência falou mais alto e monsenhor interrompeu suas atividades de rapina. Faltavam poucas horas para a chegada do trem. Foi até a estação e se deitou nos trilhos, disposto a neles fazer sua última digestão. De repente nos ouviu, a mim e a irmã Vôncia. Então se levantou, muito assustado, e pessou a nos vigiar.
Este incidente, segundo pude deduzir, lhe tirou a concentração e adiou seus propósitos suicidas. Quando o trem partiu e irmã Vôncia desapareceu, sentiu-se mais do que nunca uma criatura fracassada, um covarde que nem ao menos conseguira se atirar diante de um trem, atitude que até heroínas de romance haviam tomado com êxito. Convencido de que não conseguiria aguardar até a chegada do próximo trem, embrenhou-se no campo na esperança de ser picado mortalmente por uma aranha. Enfiou suas mãos nas moitas, rolou nos lugares que supunha habitados pelo pavoroso aracnídeo, mas foi tudo em vão. As caranguejeiras, que pululavam na região, pareciam temê-lo bem mais do que o Diabo à cruz.
Num dado momento, escuta um rumor de passos. Como um vietcong, se esgueira pelo capinzal, procurando a origem de tal ruído. Depois de alguns instantes de tensa expectativa, monsenhor, incrédulo, me vê passar todo esfolado. Algo então lhe diz que seu destino está irremediavelmente ligado ao meu e que só através de minha pessoa conseguirá retornar ao seu estado normal. Enquanto me segue, recapitula todos os dados que possui a meu respeito, chegando à curiosa conclusão de que o fato de eu ter escapado à chacina no cemitério não era obra do acaso, mas sim da vontade de Deus, que me enviara àquele lugar para purgá-lo de seus pecados e submetê-lo - a ele, monsenhor - a uma dura prova. Segue-me até a granja, espreita todos os meus movimentos, se assuta com meu pânico e passa a noite no mato remoendo seu delírio, como uma coruja desajustada. No dia seguinte, se aproxima da porteira. Eu acordo. Ele pensa em fugir. Eu me aproximo.
O raciocínio acerca dos meus poderes ele o fez tranquilamente e embora o julgasse insano, ao mesmo tempo parecia acreditar nele tanto quanto na existêcnia de Deus. Monsenhor Flávio, evidentemente, depois de passar por tantas provações, estava meio desequilibrado. E eu queria ajudá-lo, mas não sabia exatamente o que fazer. Qualquer atitude que tomasse geraria conseqüências, que tanto poderiam ser boas quanto más. E eu não queria me responsabilizar por nada que pudesse acontecer. Não era analista e não estava preparado para orientar uma pessoa cuja alma parecia ter-se partido ao meio. Mas também sentia que não podia adotar uma postura neutra, pois isso equivaleria a compactuar com a ruína definitiva daquele homem. Procurando ganhar tempo, perguntei-lhe se não estava com fomne, pergunta totalmente cretina em face do que acabara de escutar, mas que mereceu de monsenhor uma resposta afirmativa.
- Tem alguma preferência, monsenhor? - acrescentei, como se pudesse oferecer um vasto cardápio.
- Um pedaço de pão já seria bem vindo...- retrucou o prelado e num gesto involuntário levou a mão direita ao ventre, comprimindo-o.
- Creio que posso lhe oferecer bem mais que isso - respondi, levantando. - Aguarde um minuto, por favor.
E parti para a cozinha com a incômoda sensação de ter sido extremamente leviano, já que prometera uma coisa que talvez não pudesse cumprir. Bastaria ter dito que repartiria de bom grado tudo que houvesse. Mas não: deixara mais ou menos implícito que minhas reservas alimentícias equivaliam às de um supermercado!? É certo que ficara com pena do homenzinho, cujo aspecto era lastimável e procurara incutir-lhe um pouco de esperança. Só que em minha ânsia de aplacar-lhe a fome desconsiderei a hipótese de voltar da cozinha com algo inferior ao mínimo solicitado - eu sequer havia checado a comida que me fora destinada por irmã Geovana. Isto ocorrendo, ele pensaria que me divertia às suas custas e não me perdoaria jamais. A única saída era encontrar rapidamente a tal reserva alimentícia e torcer para que ela contivesse ao menos pão.
Ao mesmo tempo em que me amaldiçoava, vasculhava a cozinha, explorando armários, destapando latas, fuçando gavetas e prateleiras, tornando a espiar na geladeira que já sabia vazia, enfim, procurando em todos os lugares onde imaginava que poderia estar armazenada a maldita comida. Mas não havia o menor vestígio dela. Foi então que minha asma histérica começou a se manifestar: o leve chiado que dava início a esse processo evoluiu rapidamente até se converter num guincho de rato estrangulado, tão forte e estridente que acordou Anacleto, cujo sono, de tão profundo, dava a impressão de que ele resolvera hibernar. Ao abrir seus remelentos olhos, o formidável hirco os pousou de imediato nos meus, como se não tivesse a menor dúvida de que a mim cabia a responsabilidade pela interrupção de seu repouso. Depois de permanecer por um momento numa atitude reflexiva e algo grave, Anacleto se levantou e abandonou a cozinha, dirigindo-se para a parte dos fundos da casa. Imaginando que ele apenas procurasse um novo local para dormir, fui atrás dele disposto a lhe passar terrível admoestação por sua indiferença e falta de solidariedade para comigo num momento tão delicado.
Assim que saí da cozinha me deparei com uma grande área de serviço, onde havia três portas. Uma delas (a que eu tentara abrir na noite anterior) dava para o pátio e as outras deviam ser dos quartos da criadagem. Anacleto se estendera como um pachá em frente a uma dessas portas e, por mais incrível que possa parecer, já dormia. Sua facilidade para pegar no sono era verdadeiramente espantosa. Cheguei então à conclusão de que uma simples reprimenda, ainda que severa, não faria com que eu me sentisse vingado o bastante. Pensei em repetir com as barbas de Anacleto o que fizera com as saias de irmã Vôncia, mas faltava-me o indispensável combustível. Na ausência de uma solução mais interessante, resolvi jogar nele um balde d'água. Se ele não levasse o susto que eu esperava, lhe bateria com o balde na cabeça piolhenta.
Decisão tomada, fui até o tanque, mas nele não havia o recipiente adequado. Ao abrir a poorta situada à esquerda, deparei-me apenas com uma velha cama e um armário vazio. Sem perda de tempo, dirigí-me ao outro quarto. Mas ele estava trancado. Irritado, perdi as estribeiras e derrubei a porta com um violento pontapé. Assustado, Anacleto deu um majestoso salto e disparou em direção à sala. Mas como monsenhor Flávio, movido pelo mesmo sentimento, vinha em sentido contrário, ambos se chocaram bem no meio da cozinha, tendo monsenhor levado nítida desvantagem na trombada. Não obstante, consegujiu se arrastar até onde eu estava e ao introduzir sua cabeça no quarto recém arrombado, me encontrou transfigurado! O antigo dormitório fora adaptado para servir de dispensa e nele havia pão, queijo, vinho, biscoito, batatas, sal, açúcar, manteiga, água, frutas e uma porção de outras coisas que testemunhavam o zelo de minha amada. Além disso, as gulozeimas estavam tão bem arrumadas que o quartinho mais parecia uma loja especializada, onde qualquer um se sentiria tentado a adquirir ao menos um produto.
Quando consegui me recuperar um pouco, abandonei a dispensa e fui à cata de Anacleto, com o intuito de mais uma vez me desculpar pelos pensamentos sinistros e pela violência que quase perpetrara. Pensava igualmente em agradecer o toque me dera, pois estava claro que ele só se deirara ali para me indicar o local onde se ocultava a minha salvação. E era tão grande a minha ânsia de beijar suas barbas que passei por monsenhor sem ao menos lhe dirigir a palavra. Mas ao atingir a sala, o formidável hirco já se tinha evadido - e com toda a razão, diga-se de passagem. Voltando à área, lá encontrei monsenhor ainda no chão, enroscado como uma cascavel. Ajudei-o a se erguer e tentei compreender o que ele tentava dizer. Mas sua voz estava tão estrangulada - a cabeçada de Anacleto lhe atingira os bagos - que o sentido de suas palavras se tornava obscuro. Pedi então que se expresasse através de gestos. Monsenhor, atendendo à minha solicitação, indicou uma das prateleiras. Fiz sua vontade e o introduzi na dispensa, carregando-o em meus braços. Em seguida, me aproximei da tal prateleira. Monsenhor, trêmulo de emoção, estendeu o braço e sapecou sua mão suarenta bem em cima de um soberbo queijo, conspurcando-o com sua imundície. Uma hora mais tarde, depois de repetir com o queijo o mesmo procedimento que adotara em relação à agua, monsenhor dormia a sono solto no divã da sala. E se o baixo ventre ainda lhe doía, o mesmo não se poderia dizer de seu estômago, cuja agonia o providencial repasto interrompera.
Quanto a mim, depois de engolir o pedaço de queijo que monsenhor não conseguira devorar, sentei novamente na poltrona e pus-me a refletir. Tinha à minha frente um homem marcado por uma tragédia cujo desenrolar o fizera estabelecer comigo uma relação desvairada e que me procurara em parte para esclarecê-la, em parte para não morrer de fome. De mim, portanto, passavam a depender seu espírito e seu estômago. Quanto ao segundo, eu não me importaria de fornecer-lhe o indispensável, desde que sua voracidade não impuzesse sacrifícios ao meu. Mas no que se refere à sua cabeça, minhas inquietações permaneciam as mesmas. Como fazê-lo compreender que eu não ficara naquela cidadezinha por determinação de Deus? Como convencê-lo de que minha ida até o convento fora motivada por um premente desejo de sobreviver? De que forma poderia meter em sua cabeça que sua fuga do cemitério, devido às circunstâncias, nada tinha de desprezível e não justificava em absoluto o desespero que dele se apossara?
À medida que o tempo passava, mais aflito eu me tornava. Não conseguia definir uma estratégia para lidar com monsenhor, cujo estado estava a requerer a presença não de um possível amigo, mas de um médico. Por mais imaturo que eu pudesse ser naquela época, ainda assim conseguia perceber a gravidade do caso e as complicações que poderiam advir se ele não fosse devidamente tratado. Pouco a pouco, entretanto, e de uma forma quase que imperceptível, foi se criando dentro de mim um sentimento de repulsa por esse homem, que entrara de sopetão em minha vida e me obrigava a realizar um exaustivo esforço intelectual para solucionar problemas que só a ele competiam.
De repente, me pareceu um despropósito estar me desgantando com alguém que, além de formular pensamentos nada lisonjeiros a meu respeito, pretendera até mesmo me matar. Em nome do quê eu deveria ajudá-lo? Não o conhecia, não nutria por ele qualquer amizade, poderia quando muito conceder-lhe meu perdão e desejar que conseguisse se reencontrar consigo mesmo e, por extensão, com o Altíssimo. Afinal de contas, se analisada com frieza, minha atitude até aquele momento havia sido irrepreensível. Eu o recebera em minha casa - a granja se me afigurava como tal -, ouvira pacientemente sua longa história, o alimentara e no presente instante velava seu sono. Que mais poderia fazer? Alojá-lo ali? Adotá-lo? Dedicar-me a reorgtanizar sua mente estropiada? E meus planos de escrever a história de Ambrosina?E meu amor por irmã Geovana? E minha premência em encontrar um modo de escapar da turba? Tudo isso teria que passar a um plano secundário em função da existência de monsenhor Flávio!?
Indignado, comecei a caminhar, já resolvido a enxotar monsenhor Flávio assim que ele despertasse. Não lhe daria, inclusive, nenhuma explicação, muito menos tempo para formular objeções. Abriria a porta e lhe diria: "Monsenhor, tenha a bondade de se retirar". E ao menor vacilo de sua parte, o agarraria pelo cangote e o conduziria como um criminoso até a porteira, que fecharia à sua passagem com a expressa recomendação de que dela nunca mais ousasse se aproximar.
Uma vez resolvido o futuro de monsenhor, fiquei mais calmo e tornei a me sentar. Na ausência do que fazer, me dediquei a contemplá-lo. Possivelmente devido aos novos sentimentos que passara a nutrir a seu respeito, achei-o ainda mais feio. Ele se deitara de lado e mantinha as mãos unidas e os braços esticados, perpendiculares ao corpo, como se puxasse uma corda. A perna que ficara por baixo, a direita, permanecia reta e encostada no espaldar do divã, enquanto a esquerda, a menorzinha, esticada como os braços e a eles paralela, sugeria um vigoroso pontapé no vento. A boca, completamente escancarada, exibia uma coleção de dentes tão escuros que suspeitei que meu hóspede padecia de escorbuto. Para completar o repugnante quadro, um filete esverdeado saía lentamente daquela caverna pútrida, indo alojar-se no forro do sofá, a esta altura convertido em pântano.
Às cinco da tarde, como monsenhor insistisse em prolongar sua sesta, resolvi acordá-lo e pôr em prática o meu plano. Já não aguentava mais vê-lo estirado e babando em meu divã. Chamei-o então pelo nome, procurando conferir à minha voz um tom autoritário, mas ele ignorou meu apelo. Já perdendo a paciência, sacudi-o diversas vezes, aumentando gradativamente a violência dos solavancos. O patético prelado, no entanto, não parecia nem um pouco disposto a me atender. Pensei em pegá-lo no colo a atirá-lo do outro lado da cerca, como um saco de lixo, mas acabei desistindo, pois no íntimo desejava vê-lo retirar-se humilhado e carente do meu perdão.
Às seis horas, meus nervos estavam a ponto de se esfrangalhar. Em vista disso, parti para a abjeção. Acerquei-me sorrateiramente do prelado, me agachei bem perto de sua boca e dentro dela desferi uma certeira mijada! O efeito foi imediato: monsenhor deu um salto tão espetacular que acabou se estatelando no assoalho, debatendo-se e escabeceando como se houvessem colocado pimenta e não urina em sua boca. Enquanto isso, eu recolhi o agente da tremenda maldade, me esforçando ao máximo para conter o riso, sem contudo deixar de saborear os estertores de meu indesejado hóspede.
Finalmente, monsenhor Flávio se convenceu de que não estava se afogando e após sentar-se no divã, cravou em mim seus olhinhos de hiena atormentada:
- Sonhei que estava no inferno e que os demônios se divertiam derramando em minha boca urina de hipopótamo...
- É mesmo, monsenhor? - retruquei, intimamente ofendido.
- Litros e mais litros...eu já não conseguia mais respirar....
- Perdão...mas como sabe que era mijo de hipopótamo?
- Quando era garoto, meu pai me levava sempre ao zoológico. Eu adorava os hipopótamos. Um dia, um macho frustrado porque sua companheira rejeitava suas investidas amorosas, urinou na areia com tanta abundância que eu cheguei a vomitar. Nunca mais voltei ao zoológico e sempre que tenho pesadelos, lá estão os paquidermes, o cheiro de sua urina ou a própria. É terrível...
Nunca poderia supor que o odor de minha urina se parecesse à do grotesco animal e essa descoberta me fez, tempos depois, procurar um urologista para esclarecer essa bizarra semelhança. O médico consultado não compartilhou da opinião de monsenhor Flávio, antes de mais nada porque jamais havia cheirado urina de hipopótamo. Mas declarou que a minha, indubitavelmente, tinha um odor bem mais intenso do que o da maioria dos mortais - antes de prosseguirmos, quero declarar que jamais me recuperei inteiramemnte desse complexo e nunca mais tive tranquilidade para fazer xixi na presença de quem quer que fosse.
Logo após esse breve diálogo, monsenhor Flávio despediu-se, prometendo voltar no dia seguinte. Assim que fiquei sozinho, o remorso pela sórdida atitude começou a me perseguir de tal forma que por pouco não saí no encalço do prelado. Tentei afastá-lo me concentrando nas tarefas domésticas que tinha que realizar, como colocar num dos três quartos a vida de Ambrosina, encher de novo o filtro, fazer minha cama, pendurar minhas roupas no armário e assim por diante. Mas volta e meia a imagem do ratinho branco tomava conta dos meus pensamentos e fazia com que eu me sentisse uma pessoa execrável.
Às dez em ponto me meti na cama, exausto, confiando que dormiria imediatamente. Mas às onze, como o sono me fugisse, fui até a dispensa e devorei metade de um dos outros queijos, um pão enorme e para arrematar bebi quase um terço de um garrafão de vinho. Quando tornei a me deitar, adormeci de imediato, não apenas porque a cabeça me rodava e tinha o ventre saciado, mas sobretudo porque tomara uma decisão ianbalável: no dia seguinte pediria a monsenhor Flávio que me ouvisse em confissão e lhe relataria a infâmia que cometera, sem procurar para ela nenhuma atenuante, deixando-o à vontade para decidir se a colossal mijada que lhe dera merecia ou não o seu perdão.
Essa noite sonhei o tempo todo com hipopótamos...
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quarta-feira, 29 de setembro de 2010
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
Os sofrimentos do jovem Werther,
de Goethe:
Com os olhos na modernidade
Willi Bolle
A carta era, para o indivíduo burguês do século 18, a forma predileta de comunicação; por meio dela, buscava esclarecer o sentido de sua existência. No romance epistolar de Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, o protagonista se dirige em cartas a seu amigo e confidente, para lhe falar de sua experiência amorosa e social. Na parte final do romance, toma a palavra o editor-narrador, ainda assim, mantendo como fundamento de seu relato as cartas.
Cria-se assim uma distância maior em relação ao personagem, cuja patologia é mostrada com objetividade benevolente; ao mesmo tempo, o leitor é levado a aproximar-se da esfera íntima de Werther, na medida em que o centro da ação passa a ser as cartas dirigidas a Lotte. O derradeiro bilhete de amor é uma carta de despedida: "Na noite de Natal, terás entre tuas mãos trêmulas este papel"... Em tais circunstâncias, a carta diz o que nunca é dito, fala do amor e da vida a partir do limiar da morte. No instante antes de pegar na arma, a mesma mão está escrevendo.
Com esta contigüidade das imagens da pena e da arma, o pré-revolucionário Tempestade e Ímpeto - movimento literário onde se inscreve o Werther (1774) - diferencia-se claramente do resignado Romantismo (que surgiu um quarto de século depois), assim como a primavera se distingue do outono. O Werther é a expressão de uma sensibilidade nova e combativa; suas cartas traduzem a poética do jovem Goethe: "Volto-me para dentro de mim mesmo e encontro um mundo".
Ênfase na subjetividade e no mundo interior, mergulho no sonho, mas só para perceber mais agudamente, no ato de despertar, o mundo exterior: a sociedade, a natureza. Fazer poesia conforme a natureza, é o novo lema do movimento Tempestade e Ímpeto, que assim se liberta das regras da estética desgastada e das convenções sem vida.
Werter fala de uma manhã de primavera, quando sente o mundo em sua volta e o céu repousarem em sua alma como a imagem de uma mulher amada - "Ah! Se você pudesse exprimir tudo isso, se pudesse passar para o papel o sopro de tudo o que vive em você". Tal é sua disposição, antes de conhecer Lotte. O encontro de ambos ocorre no meio de crianças, os seres humanos mais próximos da natureza.
Qual é o lugar social da nova sensibiliadde? A burguesia? "Muito se pode dizer em proveito das regras, como também em louvor da sociedade burguesa. Um homem que se forma segundo essas regras nunca produzirá nada de mau gosto ou de ruim /.../; mas, em compensação, diga-se o que se disser, toda regra aniquila o verdadeiro sentimento e a verdadeira expressão da natureza".
O romance documenta como a classe burguesa elaborou sua sensibilidade. Eis a atividade por excelência de Werther: formar a sensibilidade - em contato com a natureza e os homens, lendo Homero e Ossian e, sobretudo, se entregando ao amor. O burguês "precisa ganhar dinheiro", em função disso orienta sua vida.
Para quem trabalha o escritor? Essa pergunta era fundamental para a geração de Tempestade e Ímpeto. Werther, aceitando a pressão da família e dos amigos, se emprega como secretário de um embaixador. Logo percebe que escrever a serviço da nobreza é se submeter à rotina pedante e ao formalismo vazio. Ao seu redor, Werther observa "a miséria aparente", o tédio, a luta ferrenha e mesquinha pela posição social e, o que mais o indigna, "a inevitável condição burguesa".
Sente que brincam com ele "como se fosse uma marionete" e que se encontra em companhia de pessoas que estão "se prostituindo". Na casa do conde, as pessoas da alta sociedade lhe fazem sentir, de maneira humilhante, sua condição de subalterno. - Diante disso, o romance não cultiva nenhuma falsa idéia de conciliação, nem o mito da ascensão social a qualquer preço - ele articula o protesto de uma geração. Werter pede demissão de seu trabalho na corte. Resolve escrever para si mesmo, para sua própria classe.
Com isso, o Werther se torna, em essência, o primeiro romance de formação de Goethe, embora subvertendo, de antemão, toda a linhagem. A "formação" vigente é denunciada como deformação, na medida em que reproduz a mentalidade de "dominadores e subalternos"; basta ver como a burguesia considera as crianças: "nossos iguais, que deveriam nos servir de modelo, as tratamos como nossos súditos".
O jovem Goethe e sua geração colocaram as bases para uma literatura nova, não só alemã, mas universal: a busca de uma sensibilidade nova, de um homem novo se fazendo em contato com o povo. Longe das estilizações, longe mesmo das canções de Ossian, e perto dos iletrados, dessa "classe de pessoas que chamamos de rudes e ignorantes".
Em meio a suas buscas, Werther conhece um jovem camponês que lhe fala de sua paixão por uma mulher. Tentar traduzir a essência daquele amor equivale para Werter a ir até os limites do dizível: "Seria preciso o talento do maior poeta para reproduzir, ao mesmo tempo, de uma maneira viva, a expressão de seus gestos, a harmonia de sua voz, o secreto fogo de seu olhar".
Daí em diante, correm em paralelo a experiência amorosa do jovem camponês e a de Werther, como se aquela paixão conferisse maior credibilidade à sua. Quando Werter reencontra o rapaz pela última vez, este está sendo preso, como autor de um crime passional. Mentalmente, Werther se põe no lugar dele, compreende sua ação e o defende. Replica-lhe o bailio que "desta maneira, todas as leis seriam anuladas e toda a segurança do Estado viria abaixo".
A paixão amorosa subvertendo a segurança do Estado! O amor, irracional e selvagem, irrompendo como uma torrente impetuosa, quebrando os diques e arrastando tudo a que se apega o filisteu! O cidadão sensato e a multidão estremecem por dentro, olhando o criminoso, porque a paixão revolve, torna visível o arcáico fundo de violência, em cima do qual se edifica a sociedade.
O conto da montanha magnética, espécie de embrião do romance de Werther, talvez possa esclarecer um pouco mais essa questão. "Os navios que se aproximavam, perdiam subitamente tudo o que era de ferro, os pregos voavam em direção à montanha e os pobres desgraçados naufragavam em meio às tábuas que desmoronavam". A narrativa popular é como a voz de um mítico destino.
De fato, Werther, embora avisado de que Lotte já está comprometida - acaba sendo "magnetizado". Tudo ocorre como diz o jovem camponês: não que ele tenha ido atrás dela, foi "como que atraído por ela". O instinto, o sonho, o louco desejo, e os diferentes alter ego de Werther: o jovem assassino, a moça suicida, o louco cheio de esperanças buscando flores no inverno para a rainha do seu coração - quanta matéria irracional!.
Então, toma a palavra a sensatez, na figura do editor. Essa diferença de técnica narrativa do romance em relação ao conto popular é significativa. Enquanto o personagem de Werther margulha cada vez mais no mito, sem volta, o narrador o acompanha a partir da margem da razão. À luz das cartas que ele põe em ordem, quer "descobrir os motivos mais íntimos e verdadeiros" da ação.
Tecnicamente novo, nesse romance, é o diálogo da razão com o irracional, ou também, podemos dizer, da Ilustração com o Tempestade e Ímpeto. Através do narrador também é possível conhecer melhor os sentimentos de Lotte. Seu amor por Werther e uma pergunta crucial que ela lhe faz: "Por que é que teve de nascer com essa impetuosidade, com essa paixão indomável que o prende a tudo que o impressiona? /.../ Por favor, modere-se! Seu espírito, seus conhecimentos, seu talento, quantos prazeres eles lhe oferecem! /.../ Não percebe que está se iludindo, que está se arruinando voluntariamente? Por que eu, Werther? Justamente eu...". - Pois é: por quê? Aqui o discurso da razão e do amor chega aos limites do decifrável.
Werther é o documento de uma geração, para a qual a literatura ainda era uma arma. As cartas do jovem Werther são o retrato de uma sociedade onde viver, no sentido pleno da palavra, é impossível. "Quando vejo as limitações que aprisionam a capacidade humana de ação e pesquisa; quando vejo que toda a atividade se esgota na satisfação de necessidades cujo único propósito é prolongar nossa própria existência, e ainda que toda a tranquilidade em relação a certas questões não passa de uma resignação sonhadora, pois as paredes que nos aprisionam estão cobertas de formas coloridas e perspectivas luminosas...".
No limiar da era burguesa, o personagem Werther cogita se vale ou não a pena entrar na máquina de ilusões de uma sociedade cujo projeto histórico real é a destruição dos outros e de si mesma. É verdade que lhe ocorre sentir profunda inveja de Albert, "ao vê-lo enterrado nos papéis até os olhos", ou pensar na oportunidade profissional que lhe propõe o ministro; mas, logo depois, se lembra da fábula do cavalo que, "insatisfeito com sua liberdade, deixou que colocassem sela e arreios, para que o cavalgassem e acabassem com ele".
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de Goethe:
Com os olhos na modernidade
Willi Bolle
A carta era, para o indivíduo burguês do século 18, a forma predileta de comunicação; por meio dela, buscava esclarecer o sentido de sua existência. No romance epistolar de Goethe, Os sofrimentos do jovem Werther, o protagonista se dirige em cartas a seu amigo e confidente, para lhe falar de sua experiência amorosa e social. Na parte final do romance, toma a palavra o editor-narrador, ainda assim, mantendo como fundamento de seu relato as cartas.
Cria-se assim uma distância maior em relação ao personagem, cuja patologia é mostrada com objetividade benevolente; ao mesmo tempo, o leitor é levado a aproximar-se da esfera íntima de Werther, na medida em que o centro da ação passa a ser as cartas dirigidas a Lotte. O derradeiro bilhete de amor é uma carta de despedida: "Na noite de Natal, terás entre tuas mãos trêmulas este papel"... Em tais circunstâncias, a carta diz o que nunca é dito, fala do amor e da vida a partir do limiar da morte. No instante antes de pegar na arma, a mesma mão está escrevendo.
Com esta contigüidade das imagens da pena e da arma, o pré-revolucionário Tempestade e Ímpeto - movimento literário onde se inscreve o Werther (1774) - diferencia-se claramente do resignado Romantismo (que surgiu um quarto de século depois), assim como a primavera se distingue do outono. O Werther é a expressão de uma sensibilidade nova e combativa; suas cartas traduzem a poética do jovem Goethe: "Volto-me para dentro de mim mesmo e encontro um mundo".
Ênfase na subjetividade e no mundo interior, mergulho no sonho, mas só para perceber mais agudamente, no ato de despertar, o mundo exterior: a sociedade, a natureza. Fazer poesia conforme a natureza, é o novo lema do movimento Tempestade e Ímpeto, que assim se liberta das regras da estética desgastada e das convenções sem vida.
Werter fala de uma manhã de primavera, quando sente o mundo em sua volta e o céu repousarem em sua alma como a imagem de uma mulher amada - "Ah! Se você pudesse exprimir tudo isso, se pudesse passar para o papel o sopro de tudo o que vive em você". Tal é sua disposição, antes de conhecer Lotte. O encontro de ambos ocorre no meio de crianças, os seres humanos mais próximos da natureza.
Qual é o lugar social da nova sensibiliadde? A burguesia? "Muito se pode dizer em proveito das regras, como também em louvor da sociedade burguesa. Um homem que se forma segundo essas regras nunca produzirá nada de mau gosto ou de ruim /.../; mas, em compensação, diga-se o que se disser, toda regra aniquila o verdadeiro sentimento e a verdadeira expressão da natureza".
O romance documenta como a classe burguesa elaborou sua sensibilidade. Eis a atividade por excelência de Werther: formar a sensibilidade - em contato com a natureza e os homens, lendo Homero e Ossian e, sobretudo, se entregando ao amor. O burguês "precisa ganhar dinheiro", em função disso orienta sua vida.
Para quem trabalha o escritor? Essa pergunta era fundamental para a geração de Tempestade e Ímpeto. Werther, aceitando a pressão da família e dos amigos, se emprega como secretário de um embaixador. Logo percebe que escrever a serviço da nobreza é se submeter à rotina pedante e ao formalismo vazio. Ao seu redor, Werther observa "a miséria aparente", o tédio, a luta ferrenha e mesquinha pela posição social e, o que mais o indigna, "a inevitável condição burguesa".
Sente que brincam com ele "como se fosse uma marionete" e que se encontra em companhia de pessoas que estão "se prostituindo". Na casa do conde, as pessoas da alta sociedade lhe fazem sentir, de maneira humilhante, sua condição de subalterno. - Diante disso, o romance não cultiva nenhuma falsa idéia de conciliação, nem o mito da ascensão social a qualquer preço - ele articula o protesto de uma geração. Werter pede demissão de seu trabalho na corte. Resolve escrever para si mesmo, para sua própria classe.
Com isso, o Werther se torna, em essência, o primeiro romance de formação de Goethe, embora subvertendo, de antemão, toda a linhagem. A "formação" vigente é denunciada como deformação, na medida em que reproduz a mentalidade de "dominadores e subalternos"; basta ver como a burguesia considera as crianças: "nossos iguais, que deveriam nos servir de modelo, as tratamos como nossos súditos".
O jovem Goethe e sua geração colocaram as bases para uma literatura nova, não só alemã, mas universal: a busca de uma sensibilidade nova, de um homem novo se fazendo em contato com o povo. Longe das estilizações, longe mesmo das canções de Ossian, e perto dos iletrados, dessa "classe de pessoas que chamamos de rudes e ignorantes".
Em meio a suas buscas, Werther conhece um jovem camponês que lhe fala de sua paixão por uma mulher. Tentar traduzir a essência daquele amor equivale para Werter a ir até os limites do dizível: "Seria preciso o talento do maior poeta para reproduzir, ao mesmo tempo, de uma maneira viva, a expressão de seus gestos, a harmonia de sua voz, o secreto fogo de seu olhar".
Daí em diante, correm em paralelo a experiência amorosa do jovem camponês e a de Werther, como se aquela paixão conferisse maior credibilidade à sua. Quando Werter reencontra o rapaz pela última vez, este está sendo preso, como autor de um crime passional. Mentalmente, Werther se põe no lugar dele, compreende sua ação e o defende. Replica-lhe o bailio que "desta maneira, todas as leis seriam anuladas e toda a segurança do Estado viria abaixo".
A paixão amorosa subvertendo a segurança do Estado! O amor, irracional e selvagem, irrompendo como uma torrente impetuosa, quebrando os diques e arrastando tudo a que se apega o filisteu! O cidadão sensato e a multidão estremecem por dentro, olhando o criminoso, porque a paixão revolve, torna visível o arcáico fundo de violência, em cima do qual se edifica a sociedade.
O conto da montanha magnética, espécie de embrião do romance de Werther, talvez possa esclarecer um pouco mais essa questão. "Os navios que se aproximavam, perdiam subitamente tudo o que era de ferro, os pregos voavam em direção à montanha e os pobres desgraçados naufragavam em meio às tábuas que desmoronavam". A narrativa popular é como a voz de um mítico destino.
De fato, Werther, embora avisado de que Lotte já está comprometida - acaba sendo "magnetizado". Tudo ocorre como diz o jovem camponês: não que ele tenha ido atrás dela, foi "como que atraído por ela". O instinto, o sonho, o louco desejo, e os diferentes alter ego de Werther: o jovem assassino, a moça suicida, o louco cheio de esperanças buscando flores no inverno para a rainha do seu coração - quanta matéria irracional!.
Então, toma a palavra a sensatez, na figura do editor. Essa diferença de técnica narrativa do romance em relação ao conto popular é significativa. Enquanto o personagem de Werther margulha cada vez mais no mito, sem volta, o narrador o acompanha a partir da margem da razão. À luz das cartas que ele põe em ordem, quer "descobrir os motivos mais íntimos e verdadeiros" da ação.
Tecnicamente novo, nesse romance, é o diálogo da razão com o irracional, ou também, podemos dizer, da Ilustração com o Tempestade e Ímpeto. Através do narrador também é possível conhecer melhor os sentimentos de Lotte. Seu amor por Werther e uma pergunta crucial que ela lhe faz: "Por que é que teve de nascer com essa impetuosidade, com essa paixão indomável que o prende a tudo que o impressiona? /.../ Por favor, modere-se! Seu espírito, seus conhecimentos, seu talento, quantos prazeres eles lhe oferecem! /.../ Não percebe que está se iludindo, que está se arruinando voluntariamente? Por que eu, Werther? Justamente eu...". - Pois é: por quê? Aqui o discurso da razão e do amor chega aos limites do decifrável.
Werther é o documento de uma geração, para a qual a literatura ainda era uma arma. As cartas do jovem Werther são o retrato de uma sociedade onde viver, no sentido pleno da palavra, é impossível. "Quando vejo as limitações que aprisionam a capacidade humana de ação e pesquisa; quando vejo que toda a atividade se esgota na satisfação de necessidades cujo único propósito é prolongar nossa própria existência, e ainda que toda a tranquilidade em relação a certas questões não passa de uma resignação sonhadora, pois as paredes que nos aprisionam estão cobertas de formas coloridas e perspectivas luminosas...".
No limiar da era burguesa, o personagem Werther cogita se vale ou não a pena entrar na máquina de ilusões de uma sociedade cujo projeto histórico real é a destruição dos outros e de si mesma. É verdade que lhe ocorre sentir profunda inveja de Albert, "ao vê-lo enterrado nos papéis até os olhos", ou pensar na oportunidade profissional que lhe propõe o ministro; mas, logo depois, se lembra da fábula do cavalo que, "insatisfeito com sua liberdade, deixou que colocassem sela e arreios, para que o cavalgassem e acabassem com ele".
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Teatro/CRÍTICA
"Urucubaca"
...................................
Bela estréia na Laura
Lionel Fischer
Como se sabe, o Afro-Reggae já existe há muitos anos e atuando em diversas frentes, invariavelmente com grande sucesso. Mas ainda que tal sucesso não tivesse ocorrido, continuariam sendo mais do que elogiáveis as premissas que levaram à criação do movimento, sendo a principal a possibilidade de oferecer reais oportunidades de desenvolvimento artístico e pessoal a indivíduos que, graças ao perverso sistema que impera neste país, em 99% dos casos jamais teriam acesso a tudo aquilo que as classes mais favorecidas usufruem.
Isto posto, cabe agora registrar a estréia profissional da Trupe de Teatro Afro-Reggae, ora em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim. Com texto assinado por Jorge Mautner e direção a cargo de Johayne Hildefonso e Malu Cotrim, "Urucubaca" chega à cena com elenco formado por Feijão, André Luiz, Cecília Alves, Dayane Cunha, Du Machado, Etilaine Andrade, Flávia Soares, Flávio Martins, Joyce Alves, Lívia Gaspar, Marlon Castilho, Pedro Casarin, Raphael Rodrigues e Rosali Nunes, que dividem o palco com a Banda Kitôto, formada por Ronald Simbora (vocal, guitarra e cordas), Geyse Costa (vocal), Tony Menezes (bateria e percussão), Adilson Junior (teclado) e Daniel Nunes (contrabaixo).
Abordando vários e pertinentes temas, dentre eles o amor, a violência e o sexo, o texto de Jorge Mautner não constitui exatamente uma peça, no sentido convencional do termo; sua estrutura lembra mais uma espécie de colagem, com as cenas sucedendo-se sem qualquer preocupação com o estabelecimento de uma ordem cronológica. Na verdade, é como se estivéssemos diante de uma sucessão de "fotos", só que no presente caso o álbum em questão expõe, como resultado final, não uma cópia da realidade, mas uma opinião crítica sobre a mesma, às vezes impregnada de humor, outras de tragicidade.
E mesmo acreditando que o texto pudesse ser ainda mais contundente desde que fosse um pouco reduzido, este excesso é plenamente compensado não só pela validade dos conteúdos, mas também pela forma como estão materializados na cena. Johayne Hildefonso e Malu Cotrim criam uma dinâmica em que palavra, gestos, movimento, músicas e danças se fundem de forma surpreendente e vigorosa, gerando um resultado de grande expressividade.
Quanto ao numeroso elenco, é evidente que alguns intérpretes ainda necessitam de maior aprimoramento no tocante ao domínio da palavra. Mas isto, certamente, é uma questão que será resolvida em pouco tempo e não chega a comprometer o entendimento da platéia. Quanto aos demais recursos empregados, tanto no canto, como na dança e nas passagens em que a música predomina, aí não há nenhuma ressalva a fazer, pois todos dominam esses meios expressivos com maestria.
Além disso, é realmente empolgante e comovente constatar a alegria generalizada de estar em cena, certamente fruto da consciência de todos de que ali estão não para distrair criaturas já de si tão mal atentas, mas para conscientizá-las de que, ao menos em teoria, este país pode um dia se tornar uma verdadeira mãe-gentil, e não perpetuar-se em seu papel de madrasta dos que tiveram a "urucubaca" de não nascer em berço esplêndido.
Na equipe técnica, destacamos com o maior entusiasmo o excelente trabalho de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Samuel Abrantes (figurinos), Fernando Mello da Costa (cenografia), Djalma Amaral (iluminação), Johayne Hildefonso e Raphael Rodrigues (direção de movimento), Jairo Cliff (direção musical) e Lila Shaktihare (preparação vocal), cabendo ainda registrar o excelente release que me foi enviado, escrito por Sandra Vilela e Simone Kabarite.
URUCUBACA - Texto de Jorge Mautner. Direção de Johayne Hildefonso e Malu Cotrim. Com a Trupe de Teatro Afro-Reggae. Casa de Cultura Laura Alvim. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.
"Urucubaca"
...................................
Bela estréia na Laura
Lionel Fischer
Como se sabe, o Afro-Reggae já existe há muitos anos e atuando em diversas frentes, invariavelmente com grande sucesso. Mas ainda que tal sucesso não tivesse ocorrido, continuariam sendo mais do que elogiáveis as premissas que levaram à criação do movimento, sendo a principal a possibilidade de oferecer reais oportunidades de desenvolvimento artístico e pessoal a indivíduos que, graças ao perverso sistema que impera neste país, em 99% dos casos jamais teriam acesso a tudo aquilo que as classes mais favorecidas usufruem.
Isto posto, cabe agora registrar a estréia profissional da Trupe de Teatro Afro-Reggae, ora em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim. Com texto assinado por Jorge Mautner e direção a cargo de Johayne Hildefonso e Malu Cotrim, "Urucubaca" chega à cena com elenco formado por Feijão, André Luiz, Cecília Alves, Dayane Cunha, Du Machado, Etilaine Andrade, Flávia Soares, Flávio Martins, Joyce Alves, Lívia Gaspar, Marlon Castilho, Pedro Casarin, Raphael Rodrigues e Rosali Nunes, que dividem o palco com a Banda Kitôto, formada por Ronald Simbora (vocal, guitarra e cordas), Geyse Costa (vocal), Tony Menezes (bateria e percussão), Adilson Junior (teclado) e Daniel Nunes (contrabaixo).
Abordando vários e pertinentes temas, dentre eles o amor, a violência e o sexo, o texto de Jorge Mautner não constitui exatamente uma peça, no sentido convencional do termo; sua estrutura lembra mais uma espécie de colagem, com as cenas sucedendo-se sem qualquer preocupação com o estabelecimento de uma ordem cronológica. Na verdade, é como se estivéssemos diante de uma sucessão de "fotos", só que no presente caso o álbum em questão expõe, como resultado final, não uma cópia da realidade, mas uma opinião crítica sobre a mesma, às vezes impregnada de humor, outras de tragicidade.
E mesmo acreditando que o texto pudesse ser ainda mais contundente desde que fosse um pouco reduzido, este excesso é plenamente compensado não só pela validade dos conteúdos, mas também pela forma como estão materializados na cena. Johayne Hildefonso e Malu Cotrim criam uma dinâmica em que palavra, gestos, movimento, músicas e danças se fundem de forma surpreendente e vigorosa, gerando um resultado de grande expressividade.
Quanto ao numeroso elenco, é evidente que alguns intérpretes ainda necessitam de maior aprimoramento no tocante ao domínio da palavra. Mas isto, certamente, é uma questão que será resolvida em pouco tempo e não chega a comprometer o entendimento da platéia. Quanto aos demais recursos empregados, tanto no canto, como na dança e nas passagens em que a música predomina, aí não há nenhuma ressalva a fazer, pois todos dominam esses meios expressivos com maestria.
Além disso, é realmente empolgante e comovente constatar a alegria generalizada de estar em cena, certamente fruto da consciência de todos de que ali estão não para distrair criaturas já de si tão mal atentas, mas para conscientizá-las de que, ao menos em teoria, este país pode um dia se tornar uma verdadeira mãe-gentil, e não perpetuar-se em seu papel de madrasta dos que tiveram a "urucubaca" de não nascer em berço esplêndido.
Na equipe técnica, destacamos com o maior entusiasmo o excelente trabalho de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Samuel Abrantes (figurinos), Fernando Mello da Costa (cenografia), Djalma Amaral (iluminação), Johayne Hildefonso e Raphael Rodrigues (direção de movimento), Jairo Cliff (direção musical) e Lila Shaktihare (preparação vocal), cabendo ainda registrar o excelente release que me foi enviado, escrito por Sandra Vilela e Simone Kabarite.
URUCUBACA - Texto de Jorge Mautner. Direção de Johayne Hildefonso e Malu Cotrim. Com a Trupe de Teatro Afro-Reggae. Casa de Cultura Laura Alvim. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.
sexta-feira, 24 de setembro de 2010
Flores de Chumbo
Lionel Fischer
(1984)
CAPÍTULO XIV
No dia seguinte me levantei bem cedo, por volta das seis horas. Sonhara a noite inteira com os mais variados perigos, mas curiosamente a aparição noturna não ocupou um lugar de destaque nos meus pesadelos. A turba invasora e a milenar Semibreve me atormentaram bem mais. Com relação à pavorosa anciã, tive com ela um sonho terrível. Eu havia adormecido ao ar livre, embaixo de um frondosa mangueira, à espera de irmã Geovana. Subitamente, sinto uma dor terrível e desperto. Olho em torno e não consigo identificar nada que pudesse ter provocado a tal dor. Escuto, no entanto, uma risadinha difusa, volátil, vinda do topo da mangueira. Depois de fixar bem a vista, descubro que existe alguém lá em cima, meio tapado pela folhagem, que me faz sinais. Eu pergunto quem é, mas o vulto não responde. Eu insisto e as risadinhas se tornam ainda mais crueis. Finalmente, ameaço subir na árvore e aí a criatura arremessa uma coisa ensangüentada. Eu me aproximo, olho com atenção, mas não consigo identificar o que possa ser aquela paçoca coagulada e pútrida. Então, a pessoa se identifica: "Sou a irmã Semibreve, não me reconhece?" - "Não!" - respondo secamente. "Que pena...- ela prossegue -...espero ao menos que reconheça o que restou de sua genitália, que arranquei com minhas tenazes...". Sinto de novo a dor terrível, procuro minha masculinidade e não a encontro: meu baixo ventre havia sido privado do gracioso pedúnculo que sempre o ornamentara!?
Poderia ter me detido em especular sobre esse sonho e todos os demais, mas achei mais útil inspecionar o quintal, para ver se o monge ainda estava lá. Cheio de cautela, comecei a abrir lentamente uma das janelas, pois através das frestas não conseguia enxergar o desgraçado, tentando ao máximo evitar fazer qualquer ruído que denunciasse minhas intenções. Mas as enferrujadas dobradiças protestaram em coro e o jeito foi deixar a janela apenas entreaberta, o que em todo caso já me possibilitava alguma visão do pátio. Mas nele, ao menos no pedaço que me era dado ver, não se achava a aparição noturna. Um pouco mais aliviado, repeti o mesmo processo com a janela situada do lado oposto, que, como sua congênere, também gemeu e protestou. O resultado foi idêntico. Então, resolvi sair.
Era a única decisão possível. Se não a tomasse à luz do dia, à noite é que não a tomaria de modo algum. Além do que - pensei - me faltavam dados suficientes para afirmar que fossem inamistosas as intenções do notívago espectro. Afinal, ele apenas me observara, se aproximara e ante minha fuga tentara um posterior contato. Ele poderia estar se sentindo só e ter se acercado com o objetivo de amenizar a própria solidão. Poderia também estar perdido, incapaz de encontrar o caminho de casa e, ao me ver no pátio, pensou em obter alguma informação. Ambas as hipóteses eram cabíveis e se eu fugira esbaforido, isto se deve à nossa formação limitada e pouco transcendente, que não nos prepara para eventuais encontros com seres mais evoluídos do que nós.
Essa breve e singela reflexão teve o poder de afastar de meu espírito o resquício de inquietação que ainda o habitava. Era preciso, não obstante, irromper no pátio com uma postura que evidenciasse de forma cristalina a segurança que passara a sentir. Isso facilitaria meu contato com o monge, caso suas intenções fossem realmente amistosas. Ou o faria refletir um pouco mais, desde que pretendesse me fazer mal - essa é a grande vantagem de uma atitude confiante: tanto pode aproximar quanto intimidar.
Depois de escavucar a memória em busca de um tipo cuja principal característica fosse a inabalável segurança, resolvi compor um mocinho de faroeste, esse admirável personagem que mesmo cercado por duzentos índios e tendo apenas como arma um revólver com seis balas, se mantém imperturbável, escapando invariavelmente e não raro sem esgotar sua parca munição. Entretanto, após caminhar um pouco pela sala tentando reproduzir o andar indolente e balançoso do mocinho, dando especial ênfase às pernas arqueadas, aos braços jogados de qualquer maneira e à cabeça levemente inclinada para o lado esquerdo, resolvi desistir, pois meu senso crítico me disse que o resultado estava muito mais para orangotango do que para John Wayne. Decidido, portanto, a me assumir como era, abri a porta com destemor, dei um passo e...me estatelei!
Algo extremamente sólido se estendera bem diante da entrada e como eu olhava para a frente e para o alto não percebi sua existência. O resultado dessa desatenção foi um tropeção memorável, que só terminou no pátio. Embora tenha me machucado um pouco na queda, não senti dor alguma, mas sim um medo atroz. A criatura noturna, contrariando todas as minhas expectativas, de volátil não tinha nada, muito pelo contrário: era de uma robustez inquestionável. Imobilizado pela tensão, levei alguns segundos até reunir coragem suficiente para me erguer e em seguida me virar para encarar o espectro - e devo confessar que só tomei essa decisão por medo de que ele me atacasse pelas costas e cravasse em meu pescoço suas encardidas unhas.
Ao fazê-lo, no entanto, a visão do corpo que me fizera tropeçar converteu meu terror em júbilo: estendido na soleira da porta, imperturbável e cínico, estava o meu querido, gentil e injustiçado Anacleto! Fora ele, então, que das trevas emergira na noite passada, com o único propósito de me ajudar mais uma vez a sair de uma situação difícil. Doce, formidável hirco, cuja nobreza de espírito o fazia sobrepujar as injustiças que eu lhe fazia! Em três saltos o alcancei e logo beijava sofregamente sua asquerosa barba, ao mesmo tempo em que murmurava palavras de agradecimento e carinho, que o soberbo e chifrudo mamífero recebeu, como de hábito, com a mais absoluta displicência, não se dignando nem ao menos a me olhar nos olhos. Mas isso era de todo secundário: o essencial é que ele viera me ver, movido pelas melhores intenções, não exigindo nada em troca desse gesto. Eu que aprendesse a lidar melhor com meu complexo de rejeição.
Passados esses momentos de efusão, contei-lhe tudo que me acontecera desde o nosso último encontro, aproveitando para me desculpar pela atitude homicida que tomara no quarto de Ambrosina. Falei do meu amor, de minhas expectativas, da possibilidade da cidade ser invadida e me arrastarem dali, enfim, não omiti um único detalhe. Quanto a Anacleto, este ouviu meu relato olhando noutra direção e provavelmente pensando em outra coisa, como faria um analista ortodoxo. E quando concluiu que eu terminara, cravou em mim seu olhar nublado, deu um pequeno arroto, esticou-se de barriga pra cima e adormeceu. A maneira relaxada como se deitou, sua respiração tranquila, a ausência de qualquer espécie de tensão, tudo isso acabou contribuindo para que eu o imitasse, copiando-lhe a postura.
Ao acordar, exatamente às dez horas, percebi que Anacleto e eu não estávamos mais sozinhos. Um homem de cerca de 60 anos, de saias negras e chapeuzinho me olhava fixamente da porteira da granja. Ele tinha um ar enlouquecido e seu corpo pendia para a esquerda num ângulo de cerca de 30 graus. Cheguei a pensar em acordar Anacleto visando algum conselho, mas achei melhor não fazê-lo, pois o bode poderia ter uma crise de mau humor e resolver sumir. Levantei-me, então, e fui ao encontro da inclinada criatura.
À medida que dela me aproximava fui me conscientizando de sua extrema feiúra. O homenzinho, que não devia medir mais do que 1,60m, possuía um rosto que era uma curiosa mescla de excessos e carências. Seu nariz era o maior e mais pontudo que já vira. Suas orelhas, gigantescas e abanadas, ultrapassavam em muito a aba de seu chapéu, que talvez nelas encontrasse sustentação. Quanto ao seu queixo e lábios, impossível descrevê-los, já que praticamente inexistiam. No que se refere aos seus olhos, a natureza fora particularmente ingrata, pois não só os concebera microscópicos quanto os colocara bem ao fundo de cavidades imensas, o que os tornava ainda menores e impedia o pobre homem de enxergar qualquer coisa que não estivesse à sua frente. Isso explicava seus incessantes movimentos de cabeça, que um observador pouco atento poderia atribuir a um tique nervoso, quando na verdade eram a expressão de uma necessidade.
Ao atingir a porteira, cumprimentei-o e perguntei o que desejava. Mas ele não se dignou a me conceder uma resposta: optou por me olhar de alto a baixo e de uma forma que me pareceu insolente. Como eu não lhe devia nada e não precisava dele, não tinha por que permanecer estaqueado à sua frente até ele resolver dar um basta em suas investigações visuais. Assim, elevando um pouco a voz, lhe disse:
- Meu caro senhor: eu me chamo Gabriel de Aquino, tenho 1,75m, 25 anos e pertenço à espécie humana. Se o seu objetivo é me fazer alguma pergunta, estou à sua disposição. Mas se pretende continuar me contemplando como se eu fosse um mapa-mundi, serei constrangido a lhe pedir que vá embora.
Ao escutar minhas palavras, o raquítico homenzinho pareceu acordar e sua primeira providência foi descobrir a cabeça, como se estivesse na presença de um superior. Em seguida, se apresentou:
- Sou monsenhor Flávio e espero que me perdoe essa pequena descortesia e não a transforme em falta grave.
Monsenhor Flávio!? Então eu estava certo! Ela escapara da chacina e continuava na cidade! Mas como me localizara? Graças a um simples acaso ou recebera informações? E a se confirmar a segunda hipótese, quem as teria fornecido? Essas perguntas me ocorriam enquanto apertava sua mão, que suava abundantemente. Intuindo que monsenhor poderia me ser da maior utilidade, convidei-o a entrar, convite aceito sem a menor hesitação. Enquanto caminhávamos até a casa pude compreender o porquê da inclinação de seu corpo quando em estado de inércia: sua perna esquerda, embora não apresentasse nenhum defeito (como mais tarde pude constatar), era sensivelmente menor que a direita, o que fazia com que monsenhor, ao andar, se assemelhasse a um pêndulo.
Assim que entramos indiquei-lhe o sofá e pedi que me aguardasse um momento. Depois de abrir totalmente as janelas, fui até a cozinha buscar algo para oferecer-lhe. Na geladeira, que estava desligada, não havia nada. Mas descobri um pouco de água num velho filtro e copos num armário. Após procurar inutilmente uma jarra ou algo parecido, resolvi levar o filtro até a sala, pois desconfiei que monsenhor beberia mais do que um copo. E de fato não me enganei: ele tomou oito seguidos! Quando chegou minha vez, havia sobrado tão pouca água que se tivesse que tomar uma aspirinba não conseguiria fazê-lo. Em todo o caso, minha sede poderia esperar. Minha curiosidade, não.
Sentando-me então numa das poltronas situadas em frente ao divã, assumi uma postura mediante a qual pretendia demonstrar que não apenas dispunha do tempo que se fizesse necessário para ouvi-lo, como também que aguardava sua narrativa com o maior interesse. Mas, não sei por que, ele se ajeitou no divã exatamente como eu em minha poltrona, o que me levou a imaginar que esperava de mim o mesmo que eu dele. Mas isso não fazia o menor sentido. Afinal, fora ele a me procurar e portanto deveria ter algo a dizer, ou ao menos perguntar, cabendo-lhe, portanto, a iniciativa. Sendo, em determinadas circunstâncias, de uma teimosia inimaginável, decidi que morreria sentado naquela poltrona, se preciso fosse, mas que de minha boca não haveria de brotar o primeiro verbo. Como monsenhor parecia imbuído de idênticos propósitos, estabeleceu-se entre nós uma feroz batalha, na qual a única arma era o silêncio e cujo desfecho estaria decretado quando uma das partes, por cansaço ou tédio, articulasse a primeira frase.
Meia-hora depois, a situação permanecia inalterada. Mas se minha determinação não sofrera nenhum abalo, o mesmo não poderia ser dito do meu corpo, que começava a dar mostras de esgotamento. Desde o início da contenda, tanto eu como meu adversário não havíamos realizado nenhum movimento, como se a imobilidade absoluta também fizesse parte das regras dessa cretina disputa. Eu não podia adivinhar o que se passava no organismo de monsenhor, mas minhas pernas já estavam insensíveis e meus pés formigavam. Afora isso, ao longo dos últimos dez minutos, começara a sentir um comichão insuportável na parte inferior do testítculo esquerdo, o que me fez supor que um covarde carrapato, aproveitando-se de minha passividade, realizava orgias no meu saco. Comecei então a pressentir que dentro de pouquíssimo tempo teria que renunciar à luta - mal sabia eu que monsenhor Flávio, nesse momento, formulava o mesmo pensamento...
Seus motivos, no entanto, tinham outra origem. Ele havia se sentado justamente na parte do sofá em que o estofamento estava gasto e as molas espetavam. Como tinha a ornamentar-lhe o ânus um frondoso cacho de hemorróidas (tal confissão me foi feita posteriormente, é claro), o mesmo já estava em brasas. Nossa situação, portanto, tornava-se crítica. Quis o destino, entretanto, que dela saíssemos com a mesma aparente dignidade que nela entráramos. De repente, Anacleto irrompeu pela sala e se embrenhou na cozinha. Era o pretexto de que necessitávamos. Erguemo-nos de um salto, rigorosamente juntos, como se algo de extremamente grave houvesse ocorrido, e partimos atrás do formidável hirco - eu acariciando o matratado testítulo e monsenhor agarrado ao próprio cu.
Quando entramos na cozinha, Anacleto acabara de se espichar no ladrilho, sem dúvida um local mais adequado para se refrescar do que na varanda, onde não soprava a mais leve brisa. Tínhamos, no entanto, que levar um pouco adiante nossa farsa e começamos a recriminar nosso salvador pelo "susto" que nos dera. Instalou-se, então, naquela cozinha, uma atmosfera tão bizarra que ao cabo de poucos minutos resolvemos voltar para a sala. Lá chegando, sem a menor cerimônia, avaliamos os danos causados por nossa mútua estupidez. Eu arriei as calças e estraçalhei o famigerado carrapato. Monsenhor Flávio, mais discreto, contentou-se em massagear com mãos de enfermeira a zona dolorida. Finalmente, tornamos a nos sentar. Monsenhor, prudentemente, ocupou o outro lado do sofá. Eu voltei para a mesma poltrona, só que dessa vez me acomodei da maneira mais confortável possível. Então, espontaneamente, monsenhor começou a falar...
___________________________
Lionel Fischer
(1984)
CAPÍTULO XIV
No dia seguinte me levantei bem cedo, por volta das seis horas. Sonhara a noite inteira com os mais variados perigos, mas curiosamente a aparição noturna não ocupou um lugar de destaque nos meus pesadelos. A turba invasora e a milenar Semibreve me atormentaram bem mais. Com relação à pavorosa anciã, tive com ela um sonho terrível. Eu havia adormecido ao ar livre, embaixo de um frondosa mangueira, à espera de irmã Geovana. Subitamente, sinto uma dor terrível e desperto. Olho em torno e não consigo identificar nada que pudesse ter provocado a tal dor. Escuto, no entanto, uma risadinha difusa, volátil, vinda do topo da mangueira. Depois de fixar bem a vista, descubro que existe alguém lá em cima, meio tapado pela folhagem, que me faz sinais. Eu pergunto quem é, mas o vulto não responde. Eu insisto e as risadinhas se tornam ainda mais crueis. Finalmente, ameaço subir na árvore e aí a criatura arremessa uma coisa ensangüentada. Eu me aproximo, olho com atenção, mas não consigo identificar o que possa ser aquela paçoca coagulada e pútrida. Então, a pessoa se identifica: "Sou a irmã Semibreve, não me reconhece?" - "Não!" - respondo secamente. "Que pena...- ela prossegue -...espero ao menos que reconheça o que restou de sua genitália, que arranquei com minhas tenazes...". Sinto de novo a dor terrível, procuro minha masculinidade e não a encontro: meu baixo ventre havia sido privado do gracioso pedúnculo que sempre o ornamentara!?
Poderia ter me detido em especular sobre esse sonho e todos os demais, mas achei mais útil inspecionar o quintal, para ver se o monge ainda estava lá. Cheio de cautela, comecei a abrir lentamente uma das janelas, pois através das frestas não conseguia enxergar o desgraçado, tentando ao máximo evitar fazer qualquer ruído que denunciasse minhas intenções. Mas as enferrujadas dobradiças protestaram em coro e o jeito foi deixar a janela apenas entreaberta, o que em todo caso já me possibilitava alguma visão do pátio. Mas nele, ao menos no pedaço que me era dado ver, não se achava a aparição noturna. Um pouco mais aliviado, repeti o mesmo processo com a janela situada do lado oposto, que, como sua congênere, também gemeu e protestou. O resultado foi idêntico. Então, resolvi sair.
Era a única decisão possível. Se não a tomasse à luz do dia, à noite é que não a tomaria de modo algum. Além do que - pensei - me faltavam dados suficientes para afirmar que fossem inamistosas as intenções do notívago espectro. Afinal, ele apenas me observara, se aproximara e ante minha fuga tentara um posterior contato. Ele poderia estar se sentindo só e ter se acercado com o objetivo de amenizar a própria solidão. Poderia também estar perdido, incapaz de encontrar o caminho de casa e, ao me ver no pátio, pensou em obter alguma informação. Ambas as hipóteses eram cabíveis e se eu fugira esbaforido, isto se deve à nossa formação limitada e pouco transcendente, que não nos prepara para eventuais encontros com seres mais evoluídos do que nós.
Essa breve e singela reflexão teve o poder de afastar de meu espírito o resquício de inquietação que ainda o habitava. Era preciso, não obstante, irromper no pátio com uma postura que evidenciasse de forma cristalina a segurança que passara a sentir. Isso facilitaria meu contato com o monge, caso suas intenções fossem realmente amistosas. Ou o faria refletir um pouco mais, desde que pretendesse me fazer mal - essa é a grande vantagem de uma atitude confiante: tanto pode aproximar quanto intimidar.
Depois de escavucar a memória em busca de um tipo cuja principal característica fosse a inabalável segurança, resolvi compor um mocinho de faroeste, esse admirável personagem que mesmo cercado por duzentos índios e tendo apenas como arma um revólver com seis balas, se mantém imperturbável, escapando invariavelmente e não raro sem esgotar sua parca munição. Entretanto, após caminhar um pouco pela sala tentando reproduzir o andar indolente e balançoso do mocinho, dando especial ênfase às pernas arqueadas, aos braços jogados de qualquer maneira e à cabeça levemente inclinada para o lado esquerdo, resolvi desistir, pois meu senso crítico me disse que o resultado estava muito mais para orangotango do que para John Wayne. Decidido, portanto, a me assumir como era, abri a porta com destemor, dei um passo e...me estatelei!
Algo extremamente sólido se estendera bem diante da entrada e como eu olhava para a frente e para o alto não percebi sua existência. O resultado dessa desatenção foi um tropeção memorável, que só terminou no pátio. Embora tenha me machucado um pouco na queda, não senti dor alguma, mas sim um medo atroz. A criatura noturna, contrariando todas as minhas expectativas, de volátil não tinha nada, muito pelo contrário: era de uma robustez inquestionável. Imobilizado pela tensão, levei alguns segundos até reunir coragem suficiente para me erguer e em seguida me virar para encarar o espectro - e devo confessar que só tomei essa decisão por medo de que ele me atacasse pelas costas e cravasse em meu pescoço suas encardidas unhas.
Ao fazê-lo, no entanto, a visão do corpo que me fizera tropeçar converteu meu terror em júbilo: estendido na soleira da porta, imperturbável e cínico, estava o meu querido, gentil e injustiçado Anacleto! Fora ele, então, que das trevas emergira na noite passada, com o único propósito de me ajudar mais uma vez a sair de uma situação difícil. Doce, formidável hirco, cuja nobreza de espírito o fazia sobrepujar as injustiças que eu lhe fazia! Em três saltos o alcancei e logo beijava sofregamente sua asquerosa barba, ao mesmo tempo em que murmurava palavras de agradecimento e carinho, que o soberbo e chifrudo mamífero recebeu, como de hábito, com a mais absoluta displicência, não se dignando nem ao menos a me olhar nos olhos. Mas isso era de todo secundário: o essencial é que ele viera me ver, movido pelas melhores intenções, não exigindo nada em troca desse gesto. Eu que aprendesse a lidar melhor com meu complexo de rejeição.
Passados esses momentos de efusão, contei-lhe tudo que me acontecera desde o nosso último encontro, aproveitando para me desculpar pela atitude homicida que tomara no quarto de Ambrosina. Falei do meu amor, de minhas expectativas, da possibilidade da cidade ser invadida e me arrastarem dali, enfim, não omiti um único detalhe. Quanto a Anacleto, este ouviu meu relato olhando noutra direção e provavelmente pensando em outra coisa, como faria um analista ortodoxo. E quando concluiu que eu terminara, cravou em mim seu olhar nublado, deu um pequeno arroto, esticou-se de barriga pra cima e adormeceu. A maneira relaxada como se deitou, sua respiração tranquila, a ausência de qualquer espécie de tensão, tudo isso acabou contribuindo para que eu o imitasse, copiando-lhe a postura.
Ao acordar, exatamente às dez horas, percebi que Anacleto e eu não estávamos mais sozinhos. Um homem de cerca de 60 anos, de saias negras e chapeuzinho me olhava fixamente da porteira da granja. Ele tinha um ar enlouquecido e seu corpo pendia para a esquerda num ângulo de cerca de 30 graus. Cheguei a pensar em acordar Anacleto visando algum conselho, mas achei melhor não fazê-lo, pois o bode poderia ter uma crise de mau humor e resolver sumir. Levantei-me, então, e fui ao encontro da inclinada criatura.
À medida que dela me aproximava fui me conscientizando de sua extrema feiúra. O homenzinho, que não devia medir mais do que 1,60m, possuía um rosto que era uma curiosa mescla de excessos e carências. Seu nariz era o maior e mais pontudo que já vira. Suas orelhas, gigantescas e abanadas, ultrapassavam em muito a aba de seu chapéu, que talvez nelas encontrasse sustentação. Quanto ao seu queixo e lábios, impossível descrevê-los, já que praticamente inexistiam. No que se refere aos seus olhos, a natureza fora particularmente ingrata, pois não só os concebera microscópicos quanto os colocara bem ao fundo de cavidades imensas, o que os tornava ainda menores e impedia o pobre homem de enxergar qualquer coisa que não estivesse à sua frente. Isso explicava seus incessantes movimentos de cabeça, que um observador pouco atento poderia atribuir a um tique nervoso, quando na verdade eram a expressão de uma necessidade.
Ao atingir a porteira, cumprimentei-o e perguntei o que desejava. Mas ele não se dignou a me conceder uma resposta: optou por me olhar de alto a baixo e de uma forma que me pareceu insolente. Como eu não lhe devia nada e não precisava dele, não tinha por que permanecer estaqueado à sua frente até ele resolver dar um basta em suas investigações visuais. Assim, elevando um pouco a voz, lhe disse:
- Meu caro senhor: eu me chamo Gabriel de Aquino, tenho 1,75m, 25 anos e pertenço à espécie humana. Se o seu objetivo é me fazer alguma pergunta, estou à sua disposição. Mas se pretende continuar me contemplando como se eu fosse um mapa-mundi, serei constrangido a lhe pedir que vá embora.
Ao escutar minhas palavras, o raquítico homenzinho pareceu acordar e sua primeira providência foi descobrir a cabeça, como se estivesse na presença de um superior. Em seguida, se apresentou:
- Sou monsenhor Flávio e espero que me perdoe essa pequena descortesia e não a transforme em falta grave.
Monsenhor Flávio!? Então eu estava certo! Ela escapara da chacina e continuava na cidade! Mas como me localizara? Graças a um simples acaso ou recebera informações? E a se confirmar a segunda hipótese, quem as teria fornecido? Essas perguntas me ocorriam enquanto apertava sua mão, que suava abundantemente. Intuindo que monsenhor poderia me ser da maior utilidade, convidei-o a entrar, convite aceito sem a menor hesitação. Enquanto caminhávamos até a casa pude compreender o porquê da inclinação de seu corpo quando em estado de inércia: sua perna esquerda, embora não apresentasse nenhum defeito (como mais tarde pude constatar), era sensivelmente menor que a direita, o que fazia com que monsenhor, ao andar, se assemelhasse a um pêndulo.
Assim que entramos indiquei-lhe o sofá e pedi que me aguardasse um momento. Depois de abrir totalmente as janelas, fui até a cozinha buscar algo para oferecer-lhe. Na geladeira, que estava desligada, não havia nada. Mas descobri um pouco de água num velho filtro e copos num armário. Após procurar inutilmente uma jarra ou algo parecido, resolvi levar o filtro até a sala, pois desconfiei que monsenhor beberia mais do que um copo. E de fato não me enganei: ele tomou oito seguidos! Quando chegou minha vez, havia sobrado tão pouca água que se tivesse que tomar uma aspirinba não conseguiria fazê-lo. Em todo o caso, minha sede poderia esperar. Minha curiosidade, não.
Sentando-me então numa das poltronas situadas em frente ao divã, assumi uma postura mediante a qual pretendia demonstrar que não apenas dispunha do tempo que se fizesse necessário para ouvi-lo, como também que aguardava sua narrativa com o maior interesse. Mas, não sei por que, ele se ajeitou no divã exatamente como eu em minha poltrona, o que me levou a imaginar que esperava de mim o mesmo que eu dele. Mas isso não fazia o menor sentido. Afinal, fora ele a me procurar e portanto deveria ter algo a dizer, ou ao menos perguntar, cabendo-lhe, portanto, a iniciativa. Sendo, em determinadas circunstâncias, de uma teimosia inimaginável, decidi que morreria sentado naquela poltrona, se preciso fosse, mas que de minha boca não haveria de brotar o primeiro verbo. Como monsenhor parecia imbuído de idênticos propósitos, estabeleceu-se entre nós uma feroz batalha, na qual a única arma era o silêncio e cujo desfecho estaria decretado quando uma das partes, por cansaço ou tédio, articulasse a primeira frase.
Meia-hora depois, a situação permanecia inalterada. Mas se minha determinação não sofrera nenhum abalo, o mesmo não poderia ser dito do meu corpo, que começava a dar mostras de esgotamento. Desde o início da contenda, tanto eu como meu adversário não havíamos realizado nenhum movimento, como se a imobilidade absoluta também fizesse parte das regras dessa cretina disputa. Eu não podia adivinhar o que se passava no organismo de monsenhor, mas minhas pernas já estavam insensíveis e meus pés formigavam. Afora isso, ao longo dos últimos dez minutos, começara a sentir um comichão insuportável na parte inferior do testítculo esquerdo, o que me fez supor que um covarde carrapato, aproveitando-se de minha passividade, realizava orgias no meu saco. Comecei então a pressentir que dentro de pouquíssimo tempo teria que renunciar à luta - mal sabia eu que monsenhor Flávio, nesse momento, formulava o mesmo pensamento...
Seus motivos, no entanto, tinham outra origem. Ele havia se sentado justamente na parte do sofá em que o estofamento estava gasto e as molas espetavam. Como tinha a ornamentar-lhe o ânus um frondoso cacho de hemorróidas (tal confissão me foi feita posteriormente, é claro), o mesmo já estava em brasas. Nossa situação, portanto, tornava-se crítica. Quis o destino, entretanto, que dela saíssemos com a mesma aparente dignidade que nela entráramos. De repente, Anacleto irrompeu pela sala e se embrenhou na cozinha. Era o pretexto de que necessitávamos. Erguemo-nos de um salto, rigorosamente juntos, como se algo de extremamente grave houvesse ocorrido, e partimos atrás do formidável hirco - eu acariciando o matratado testítulo e monsenhor agarrado ao próprio cu.
Quando entramos na cozinha, Anacleto acabara de se espichar no ladrilho, sem dúvida um local mais adequado para se refrescar do que na varanda, onde não soprava a mais leve brisa. Tínhamos, no entanto, que levar um pouco adiante nossa farsa e começamos a recriminar nosso salvador pelo "susto" que nos dera. Instalou-se, então, naquela cozinha, uma atmosfera tão bizarra que ao cabo de poucos minutos resolvemos voltar para a sala. Lá chegando, sem a menor cerimônia, avaliamos os danos causados por nossa mútua estupidez. Eu arriei as calças e estraçalhei o famigerado carrapato. Monsenhor Flávio, mais discreto, contentou-se em massagear com mãos de enfermeira a zona dolorida. Finalmente, tornamos a nos sentar. Monsenhor, prudentemente, ocupou o outro lado do sofá. Eu voltei para a mesma poltrona, só que dessa vez me acomodei da maneira mais confortável possível. Então, espontaneamente, monsenhor começou a falar...
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quinta-feira, 23 de setembro de 2010
"FALA!"
Eric Bentley
Toda a literatura é feita de palavras, mas as peças teatrais são feitas de palavras faladas. Embora qualquer literatura possa ser lida em voz alta, as peças são escritas para serem declamadas. É porque o drama apresenta homens falando que o teatro contrata homens falantes para comunicá-lo. É dispendioso. E nada depõe com mais segurança sobre o interesse da gente em ouvir palavras faladas do que a nossa disposição em pagar para isso.
Uma pessoa afirma, por vezes, ter aprendido um idioma estrangeiro sem aprender a falá-lo ou a compreendê-lo, quando falado. Qualquer pessoa que tenha tentado isso sabe até que ponto é diminuta a experiência que pode esperar dessa proeza. As palavras aprendidas dessa maneira ("Vire à direita", "Não pise na grama") podem ter uma certa utilidade, mas nunca poderão ser o que as palavras são nos idiomas que falamos e ouvimos.
No fundo, a linguagem é muito pouco uma questão de utilidade. Uma certa espécie de manuais sustenta que as crianças aprendem palavras a fim de pedirem coisas. Na realidade, a maneira mais convincente de pedir o gênero de coisas que as crianças querem é gritar sem dizer uma palavra - o que as crianças fazem, antes e depois de aprenderem a falar. Quem tiver escutado crianças de dois anos de idade sabe que elas não falam tanto para obter coisas como por terem prazer nisso. Aos dois anos, o meu filho Philip disse: "Mamãe, não fale! Phlilip fala!" - ele gostava de ouvir o som de sua própria voz e diferia de um adulto, unicamente, pelo fato de não se envergonhar disso.
E no sexto dia, Deus fez o homem e disse: "Homem, fala!". E o homem falou, e nunca mais deixou de falar até hoje. A ontogenia repete a filogenia. Cada um de nós pode afirmar sinceramente: eu gostaria de falar incessantemente. Por quê? Em primeiro lugar, porque Narciso é Narciso, e só usava um espelho porque o gravador de fita magnética ainda não fora inventado. Falar é, sem dúvida, entre todas as formas da vida que conhecemos, o modo primordial de auto-afirmação, do berço ao púlpito, da cabana do lenhador à Casa Branca.
Tampouco é destituído de astúcia. Muitas vezes comparado aos trinados amorosos de pássaros, poderia igualmente ser equiparado aos rugidos das feras famintas. Em seus infatigáveis esforços para se ferirem mutuamente, os homens usam um milhão de palavras para cada bala. Pois ainda mais que balas, as palavras habilitam-nos a combinar o máximo de hostilidade com o máximo de covardia.
É interessante notar que a Psicanálise é uma terapêutica exclusivamente verbal. O analista e o paciente nada mais fazem do que falar ou deixar pausas entre as falas. Esse, ainda mais do que duas dúzias de volumes de suas obras completas, é o tributo de Freud ao Verbo. Na verdade, da maneira de falar de um homem tudo o mais pode ser deduzido a seu respeito. À parte aquilo que ele diz, a dedução pode efetuar-se através de sua ignorância de quando deve parar, ou de quando começar, de suas hesitações, de sua recusa em permitir pausas que possibilitem a resposta de outras pessoas. A falta de estilo faz o homem.
Freud viu os homens como delatores de si mesmos. Outros, à maneira de Judas, podem trair com um beijo; na maioria das vezes, denunciam-se eles próprios com palavras. Com sua intuição para tudo o que era humanamente significativo, Freud logo acertou com o que parecia constituir um excêntrico assunto de deslizes da língua e erros verbais em geral. Lendo o que ele tinha a dizer-nos a tal respeito, compreendemos ser característico da língua cometer deslizes, e que as palavras são aquilo com que os homens contam, usualmente, para errar, antes de seus erros converterem-se em ação. Antes dos assassinatos de Júlio César e do Rei Duncan está a decisão de matá-los, uma decisão a que se chegou com palavras. Aí se encontra a oportunidade do dramaturgo.
Grandes oradores, dizemos muitas vezes, são os que urdem uma espécie de fascinação, e a magia, numa acepção mais literal, é desde o início a finalidade em vista. Acreditar em magia é acreditar no poder máximo das palavras; pois que, se os conjuros são válidos, então as palavras podem mover montanhas. A fé nas palavras sempre foi mais forte e mais propagada que a fé na fé. Homens sem crença em Deus murmurarão as fórmulas verbais de tais crenças quando estiverem em apuros. Não estão por esse motivo recuperando a fé em Deus; estão apenas mantendo sua fé nas palavras. Para as pessoas mais civilizadas, a frase "a magia das palavras" é figurativa. Abrange fenômenos bons e maus: Hitler também foi um mágico da palavra. Do lado positivo, "a magia das palavras" sugere o feitiço da literatura e, em especial, da literatura dramática.
Significa também que eu gostaria de falar não só incessantemente, mas incomparavelmente. Aos dois anos de idade, estou convencido de que posso; talvez ainda aos três e quatro anos; mas pelo caminho essa ilusão vai-se perdendo com outras, o que é uma sorte, visto que, num mundo de tantos milhões de pessoas, dificilmente seria viável para cada pessoa falar o tempo todo. Desiludidos, caímos no silêncio; e, pela primeira vez, estamos livres para escutar.
Felizmente, a nossa estrutura inclui um mecanismo que nos impede de sucumbirmos de pura inveja se o que ouvimos é uma fala incomparável. É esse o ato de identificação. Se não os puderes vencer, une-te a eles. Se não puderes ser um grande falador, identifica-te com os grandes faladores. Cantando "O sole mio" no banheiro, a nossa voz ressoa, de maneira notável (em nossa opinião), como a de Caruso. Rivalizando com Caruso, qualquer um de nós pode rivalizar com Winston Churchill, Demóstenes, Laurence Olivier, Oscar Wilde, Bernard Shaw. E, desde que essa rivalidade não seja levada a sério, a situação é salutar e deveras necessária se quisermos que se estabeleça um contato vivo entre as grandes palavras e nós próprios.
Disse Nietzche: "No fim de contas, só nos experimentamos a nós próprios", e, quer esse comentário abranja ou não a verdade toda, chama a nossa atenção para certas limitações inalteráveis aos poderes e possibilidades de cada um. Se não somos eloqüentes, agarramo-nos à eloqüência dos outros. Ao que parece, ninguém pode prescindir da eloqüência: é tão indispensável quanto irresistível. Poderemos lamentar esse fato quando pensamos na eloqüência de alguns demagogos ou evangelistas, mas é também a ele que devemos o perene interesse humano pelas grandes obras dramáticas, as quais, como Ronald Peacock diz, "baseiam-se na voz do poeta".
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Trecho extraído do livro "A experiência viva do teatro", tradução de Álvaro Cabral, Zahar Editores, 1964. Este fragmento foi pinçado do capítulo DIÁLOGO, que contém ainda tópicos de grande interesse: O dramaturgo como falador, A eloqüência do diálogo, Naturalismo, Prosa retórica, Verso retórico, Poesia, Antipoesia e Antipeças. Trata-se de um livro imprescindível para os estudantes e profissionais de teatro, não só pela multiplicidade de temas que aborda, mas também pela extrema competência, cultura e originalidade do autor, considerado um dos mais brilhantes ensaístas teatrais do século XX.
Eric Bentley
Toda a literatura é feita de palavras, mas as peças teatrais são feitas de palavras faladas. Embora qualquer literatura possa ser lida em voz alta, as peças são escritas para serem declamadas. É porque o drama apresenta homens falando que o teatro contrata homens falantes para comunicá-lo. É dispendioso. E nada depõe com mais segurança sobre o interesse da gente em ouvir palavras faladas do que a nossa disposição em pagar para isso.
Uma pessoa afirma, por vezes, ter aprendido um idioma estrangeiro sem aprender a falá-lo ou a compreendê-lo, quando falado. Qualquer pessoa que tenha tentado isso sabe até que ponto é diminuta a experiência que pode esperar dessa proeza. As palavras aprendidas dessa maneira ("Vire à direita", "Não pise na grama") podem ter uma certa utilidade, mas nunca poderão ser o que as palavras são nos idiomas que falamos e ouvimos.
No fundo, a linguagem é muito pouco uma questão de utilidade. Uma certa espécie de manuais sustenta que as crianças aprendem palavras a fim de pedirem coisas. Na realidade, a maneira mais convincente de pedir o gênero de coisas que as crianças querem é gritar sem dizer uma palavra - o que as crianças fazem, antes e depois de aprenderem a falar. Quem tiver escutado crianças de dois anos de idade sabe que elas não falam tanto para obter coisas como por terem prazer nisso. Aos dois anos, o meu filho Philip disse: "Mamãe, não fale! Phlilip fala!" - ele gostava de ouvir o som de sua própria voz e diferia de um adulto, unicamente, pelo fato de não se envergonhar disso.
E no sexto dia, Deus fez o homem e disse: "Homem, fala!". E o homem falou, e nunca mais deixou de falar até hoje. A ontogenia repete a filogenia. Cada um de nós pode afirmar sinceramente: eu gostaria de falar incessantemente. Por quê? Em primeiro lugar, porque Narciso é Narciso, e só usava um espelho porque o gravador de fita magnética ainda não fora inventado. Falar é, sem dúvida, entre todas as formas da vida que conhecemos, o modo primordial de auto-afirmação, do berço ao púlpito, da cabana do lenhador à Casa Branca.
Tampouco é destituído de astúcia. Muitas vezes comparado aos trinados amorosos de pássaros, poderia igualmente ser equiparado aos rugidos das feras famintas. Em seus infatigáveis esforços para se ferirem mutuamente, os homens usam um milhão de palavras para cada bala. Pois ainda mais que balas, as palavras habilitam-nos a combinar o máximo de hostilidade com o máximo de covardia.
É interessante notar que a Psicanálise é uma terapêutica exclusivamente verbal. O analista e o paciente nada mais fazem do que falar ou deixar pausas entre as falas. Esse, ainda mais do que duas dúzias de volumes de suas obras completas, é o tributo de Freud ao Verbo. Na verdade, da maneira de falar de um homem tudo o mais pode ser deduzido a seu respeito. À parte aquilo que ele diz, a dedução pode efetuar-se através de sua ignorância de quando deve parar, ou de quando começar, de suas hesitações, de sua recusa em permitir pausas que possibilitem a resposta de outras pessoas. A falta de estilo faz o homem.
Freud viu os homens como delatores de si mesmos. Outros, à maneira de Judas, podem trair com um beijo; na maioria das vezes, denunciam-se eles próprios com palavras. Com sua intuição para tudo o que era humanamente significativo, Freud logo acertou com o que parecia constituir um excêntrico assunto de deslizes da língua e erros verbais em geral. Lendo o que ele tinha a dizer-nos a tal respeito, compreendemos ser característico da língua cometer deslizes, e que as palavras são aquilo com que os homens contam, usualmente, para errar, antes de seus erros converterem-se em ação. Antes dos assassinatos de Júlio César e do Rei Duncan está a decisão de matá-los, uma decisão a que se chegou com palavras. Aí se encontra a oportunidade do dramaturgo.
Grandes oradores, dizemos muitas vezes, são os que urdem uma espécie de fascinação, e a magia, numa acepção mais literal, é desde o início a finalidade em vista. Acreditar em magia é acreditar no poder máximo das palavras; pois que, se os conjuros são válidos, então as palavras podem mover montanhas. A fé nas palavras sempre foi mais forte e mais propagada que a fé na fé. Homens sem crença em Deus murmurarão as fórmulas verbais de tais crenças quando estiverem em apuros. Não estão por esse motivo recuperando a fé em Deus; estão apenas mantendo sua fé nas palavras. Para as pessoas mais civilizadas, a frase "a magia das palavras" é figurativa. Abrange fenômenos bons e maus: Hitler também foi um mágico da palavra. Do lado positivo, "a magia das palavras" sugere o feitiço da literatura e, em especial, da literatura dramática.
Significa também que eu gostaria de falar não só incessantemente, mas incomparavelmente. Aos dois anos de idade, estou convencido de que posso; talvez ainda aos três e quatro anos; mas pelo caminho essa ilusão vai-se perdendo com outras, o que é uma sorte, visto que, num mundo de tantos milhões de pessoas, dificilmente seria viável para cada pessoa falar o tempo todo. Desiludidos, caímos no silêncio; e, pela primeira vez, estamos livres para escutar.
Felizmente, a nossa estrutura inclui um mecanismo que nos impede de sucumbirmos de pura inveja se o que ouvimos é uma fala incomparável. É esse o ato de identificação. Se não os puderes vencer, une-te a eles. Se não puderes ser um grande falador, identifica-te com os grandes faladores. Cantando "O sole mio" no banheiro, a nossa voz ressoa, de maneira notável (em nossa opinião), como a de Caruso. Rivalizando com Caruso, qualquer um de nós pode rivalizar com Winston Churchill, Demóstenes, Laurence Olivier, Oscar Wilde, Bernard Shaw. E, desde que essa rivalidade não seja levada a sério, a situação é salutar e deveras necessária se quisermos que se estabeleça um contato vivo entre as grandes palavras e nós próprios.
Disse Nietzche: "No fim de contas, só nos experimentamos a nós próprios", e, quer esse comentário abranja ou não a verdade toda, chama a nossa atenção para certas limitações inalteráveis aos poderes e possibilidades de cada um. Se não somos eloqüentes, agarramo-nos à eloqüência dos outros. Ao que parece, ninguém pode prescindir da eloqüência: é tão indispensável quanto irresistível. Poderemos lamentar esse fato quando pensamos na eloqüência de alguns demagogos ou evangelistas, mas é também a ele que devemos o perene interesse humano pelas grandes obras dramáticas, as quais, como Ronald Peacock diz, "baseiam-se na voz do poeta".
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Trecho extraído do livro "A experiência viva do teatro", tradução de Álvaro Cabral, Zahar Editores, 1964. Este fragmento foi pinçado do capítulo DIÁLOGO, que contém ainda tópicos de grande interesse: O dramaturgo como falador, A eloqüência do diálogo, Naturalismo, Prosa retórica, Verso retórico, Poesia, Antipoesia e Antipeças. Trata-se de um livro imprescindível para os estudantes e profissionais de teatro, não só pela multiplicidade de temas que aborda, mas também pela extrema competência, cultura e originalidade do autor, considerado um dos mais brilhantes ensaístas teatrais do século XX.
quarta-feira, 22 de setembro de 2010
Artigo imperdível
Lionel Fischer
O jornal O Globo publicou hoje, no Segundo Caderno, um artigo que considero imperdível, assinado pelo escritor, ensaísta e letrista Francisco Bosco. E meu irrestrito entusiasmo se deve às reflexões empreendidas pelo autor sobre temas que considero fundamentais em nossa época. Assim, transcrevo abaixo - e na íntegra - o dito artigo, esperando que vocês usufruam ao máximo as idéias e pensamentos expostos.
***
Compulsões contemporâneas
Francisco Bosco
Entre os dias 9 e 16 do mês corrente, deu-se a II Semana dos Realizadores, com curadoria de Lis Kogan e Eduardo Valente, apresentando a produção do que vem sendo chamado de Novíssimo Cinema Brasileiro. Com um espírito desavisado, de curiosidade, fui a uma sessão que reunia um curta, "Fantasmas", de André Oliveira, e um documentário, "Pacific", de Marcelo Pedroso. O curta é muito bom, mas é sobre "Pacific" que quero escrever. Desculpem-me os leitores por mais uma coluna talvez impopular, já que poucos terão visto o filme ou poderão vê-lo após a leitura do que se segue. Mas o filme é instigante, merece ser repercutido e toca em questões fundamentais do nosso tempo.
"Pacific" é um filme de montagem, em sentido estrito. Ele é composto de imagens feitas, em caráter privado, por turistas num cruzeiro entre Recife e Fernando de Noronha. A equipe de "Pacific" (que é o nome do navio onde se passa quase todo o filme) só estabeleceu contato com os passageiros que se filmavam ao fim da viagem, quando solicitou o material para fazer, a partir dele, um documentário. Desses poucos elementos, uma vez montados, ressaem muitas questões.
O cruzeiro reúne passageiros de classe média baixa. É o povo brasileiro da era Lula, com seu poder aquisitivo ampliado, podendo viajar para um destino turístico de elite. Aqui começamos a perceber um conjunto impressionante - e, para mim, deprimente - de sintomas culturais. Em primeiro lugar, a compulsão por filmar a viagem. O material não revela um olhar atento a excepcionalidades ou agindo de modo inventivo. Filma-se a banalidade, sem tgransfigurá-la por qualquer operação. Filmar aparece assim como uma demonstração - contundente, por seu caráter imaculado de material espontâneo - de um processo cultural onipresente.
Esse processo é a confusão entre ser e ser visto, traço decisivo do capitalismo espetacularizado. Em "Pacific", não nos enganemos, a compulsão por exibir-se é tornada caricata por sua ingenuidade kitsch, mas não permite que se escarneça dela como se nada tivesse a ver "conosco". Ela é um sintoma que nos atinge a todos, em maior ou menor grau: o que o filósofo alemão Christoph Türcke, em uma teoria da sociedade de notável exatidão, chama de "compulsão à emissão".
Com efeito, fomos tomados por um "horror vacui", que faz com que tenhamos que estar todo o tempo ocupados, e que sintamos nossa existência real como insuficiente: é necessário emitir, mandar e-mails, disparar SMS, postar recados no Facebook etc. É uma sociedade de viciados, que precisa de doses, cada vez maiores, de exibição e emissão. "Pacific" torna essa percepção mais aguda pelo estatuto espontâneo das imagens, pela vulgaridade do código cultural de que elas participam (o kitsch, transfigurado em trash pelo olhar metalinguístico de um código cultural "superior"), e também pela ironia aguda que faz coabitarem a compulsão desenfreada pelo eu e pela alegria estrondosa no contexto de uma viagem em pleno oceano, sobre infinito e silencioso azul. Assim, em alto mar, a imensidão e o silêncio são excluídos das imagens. "Pacific", enquanto título, é uma pérola irônica.
Portanto não é só vulgaridade kitsch e da compulsão exibicionista que vem certa melancolia do filme. A tristeza assoma sobretudo da alegria compulsiva e compulsória a bordo do navio. Aqui não se pode saber o quanto isso é efeito (deliberado ou não) da montagem. O fato é que na grande maioria das cenas as pessoas se mostram "felizes". Um homem participa de uma competição grotesca de tomar cerveja no canudinho de cabeça pra baixo; um senhor se mexe como um autômato no meio de uma coreografia de macarena; dezenas de pessoas dançam frenéticas numa festa temática.
Ora, não há alegria sem intervalos. A alegria é uma exepcionalidade. Freud, numa conhecida passagem de "O mal-estar na civilização", escreveu: "O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como manifestação episódica". A alegria compulsiva se mostra uma tentativa de recalcar, ao menos da imagem filmada, o tédio.
Na cena mais forte do filme, essa operação se revela insustentável. Um rapaz está filmando suas duas tias, de meia-idade, isoladas, desanimadas, à margem da "festa tropical". Elas, a princípio, não se percebem filmadas. O rapaz comenta, em off: "Aqui estão minhas duas tias, morgadas, sem saber o que fazer". Então a câmera se aproxima das tias, uma delas a percebe, e desanda a falar animadamente: "Estamos aqui, uma da manhã, na festa tropical!", ao que o rapaz, com desconcertante crueldade, interrompe: "Eu acabei de falar que vocês estavam aí morgadas, sem nada para fazer". O meio-riso amarelo na boca da tia contém a chave que abre o filme inteiro.
Estarei eu sendo muito duro? Tradicionalmente, a representação do povo pelas classes mais altas (econômica ou socialmente), no Brasil, é ou crítico-revolucinária, ou terna, ou identificadora de virtudes perdidas pelo processo neurótico, digo, civilizatório. Em "Pacific", a meu ver, não. O povo é objeto (de certo modo sujeito, já que são eles que se filmam) de olhar zombeteiro. O que isso, se for verdade, revela sobre o Brasil de hoje? Maturidade? Desagregação? Seja como for, uma coisa é certa: o povo do Pacific divide conosco os mesmos sintomas.
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Lionel Fischer
O jornal O Globo publicou hoje, no Segundo Caderno, um artigo que considero imperdível, assinado pelo escritor, ensaísta e letrista Francisco Bosco. E meu irrestrito entusiasmo se deve às reflexões empreendidas pelo autor sobre temas que considero fundamentais em nossa época. Assim, transcrevo abaixo - e na íntegra - o dito artigo, esperando que vocês usufruam ao máximo as idéias e pensamentos expostos.
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Compulsões contemporâneas
Francisco Bosco
Entre os dias 9 e 16 do mês corrente, deu-se a II Semana dos Realizadores, com curadoria de Lis Kogan e Eduardo Valente, apresentando a produção do que vem sendo chamado de Novíssimo Cinema Brasileiro. Com um espírito desavisado, de curiosidade, fui a uma sessão que reunia um curta, "Fantasmas", de André Oliveira, e um documentário, "Pacific", de Marcelo Pedroso. O curta é muito bom, mas é sobre "Pacific" que quero escrever. Desculpem-me os leitores por mais uma coluna talvez impopular, já que poucos terão visto o filme ou poderão vê-lo após a leitura do que se segue. Mas o filme é instigante, merece ser repercutido e toca em questões fundamentais do nosso tempo.
"Pacific" é um filme de montagem, em sentido estrito. Ele é composto de imagens feitas, em caráter privado, por turistas num cruzeiro entre Recife e Fernando de Noronha. A equipe de "Pacific" (que é o nome do navio onde se passa quase todo o filme) só estabeleceu contato com os passageiros que se filmavam ao fim da viagem, quando solicitou o material para fazer, a partir dele, um documentário. Desses poucos elementos, uma vez montados, ressaem muitas questões.
O cruzeiro reúne passageiros de classe média baixa. É o povo brasileiro da era Lula, com seu poder aquisitivo ampliado, podendo viajar para um destino turístico de elite. Aqui começamos a perceber um conjunto impressionante - e, para mim, deprimente - de sintomas culturais. Em primeiro lugar, a compulsão por filmar a viagem. O material não revela um olhar atento a excepcionalidades ou agindo de modo inventivo. Filma-se a banalidade, sem tgransfigurá-la por qualquer operação. Filmar aparece assim como uma demonstração - contundente, por seu caráter imaculado de material espontâneo - de um processo cultural onipresente.
Esse processo é a confusão entre ser e ser visto, traço decisivo do capitalismo espetacularizado. Em "Pacific", não nos enganemos, a compulsão por exibir-se é tornada caricata por sua ingenuidade kitsch, mas não permite que se escarneça dela como se nada tivesse a ver "conosco". Ela é um sintoma que nos atinge a todos, em maior ou menor grau: o que o filósofo alemão Christoph Türcke, em uma teoria da sociedade de notável exatidão, chama de "compulsão à emissão".
Com efeito, fomos tomados por um "horror vacui", que faz com que tenhamos que estar todo o tempo ocupados, e que sintamos nossa existência real como insuficiente: é necessário emitir, mandar e-mails, disparar SMS, postar recados no Facebook etc. É uma sociedade de viciados, que precisa de doses, cada vez maiores, de exibição e emissão. "Pacific" torna essa percepção mais aguda pelo estatuto espontâneo das imagens, pela vulgaridade do código cultural de que elas participam (o kitsch, transfigurado em trash pelo olhar metalinguístico de um código cultural "superior"), e também pela ironia aguda que faz coabitarem a compulsão desenfreada pelo eu e pela alegria estrondosa no contexto de uma viagem em pleno oceano, sobre infinito e silencioso azul. Assim, em alto mar, a imensidão e o silêncio são excluídos das imagens. "Pacific", enquanto título, é uma pérola irônica.
Portanto não é só vulgaridade kitsch e da compulsão exibicionista que vem certa melancolia do filme. A tristeza assoma sobretudo da alegria compulsiva e compulsória a bordo do navio. Aqui não se pode saber o quanto isso é efeito (deliberado ou não) da montagem. O fato é que na grande maioria das cenas as pessoas se mostram "felizes". Um homem participa de uma competição grotesca de tomar cerveja no canudinho de cabeça pra baixo; um senhor se mexe como um autômato no meio de uma coreografia de macarena; dezenas de pessoas dançam frenéticas numa festa temática.
Ora, não há alegria sem intervalos. A alegria é uma exepcionalidade. Freud, numa conhecida passagem de "O mal-estar na civilização", escreveu: "O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como manifestação episódica". A alegria compulsiva se mostra uma tentativa de recalcar, ao menos da imagem filmada, o tédio.
Na cena mais forte do filme, essa operação se revela insustentável. Um rapaz está filmando suas duas tias, de meia-idade, isoladas, desanimadas, à margem da "festa tropical". Elas, a princípio, não se percebem filmadas. O rapaz comenta, em off: "Aqui estão minhas duas tias, morgadas, sem saber o que fazer". Então a câmera se aproxima das tias, uma delas a percebe, e desanda a falar animadamente: "Estamos aqui, uma da manhã, na festa tropical!", ao que o rapaz, com desconcertante crueldade, interrompe: "Eu acabei de falar que vocês estavam aí morgadas, sem nada para fazer". O meio-riso amarelo na boca da tia contém a chave que abre o filme inteiro.
Estarei eu sendo muito duro? Tradicionalmente, a representação do povo pelas classes mais altas (econômica ou socialmente), no Brasil, é ou crítico-revolucinária, ou terna, ou identificadora de virtudes perdidas pelo processo neurótico, digo, civilizatório. Em "Pacific", a meu ver, não. O povo é objeto (de certo modo sujeito, já que são eles que se filmam) de olhar zombeteiro. O que isso, se for verdade, revela sobre o Brasil de hoje? Maturidade? Desagregação? Seja como for, uma coisa é certa: o povo do Pacific divide conosco os mesmos sintomas.
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Teatro/CRÍTICA
"Chave de cadeia"
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Deliciosa ode à dor de cotovelo
Lionel Fischer
"Chave de Cadeia é um espetáculo musical sobre a paixão, a insatisfação, o exagero amoroso e sua conexão inevitável com o sofrimento. O termo que dá título ao espetáculo refere-se a perigo iminente, complicação, baixaria. O amor, inspiração primeira para obras-primas da música popular brasileira, será cantado com humor, sensibilidade e sofisticação. Em cena, a atriz e cantora Ana Baird e Rene Rossano contam a história de uma crooner decadente, uma apaixonada terminal. Uma amante descontrolada, submissa, escandalosa e por isso mesmo risível. Uma abordagem irônica e refinada sobre a compulsão amorosa e o desequilíbrio emocional a que estamos expostos, em maior ou menor grau, pelo exercício da arte do amor".
Este trecho, extraído do release que me foi enviado, retrata com exatidão a proposta do presente espetáculo, cabendo ressaltar o seguinte detalhe: a protagonista é uma crooner, ou seja, em alguma instância uma personagem, pois do contrário estaríamos diante de uma apresentação apenas musical. E o fato de sua personalidade ter sido descrita justificaria não somente sua postura em cena, mas a forma como interpreta as 19 canções selecionadas, criadas por renomados compositores nacionais e estrangeiros, todas elas fazendo uma espécie de ode à dor de cotovelo. Em cartaz na Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon, "Chave de cadeia - Uma comédia musical de bolso" chega à cena com direção, cenografia, figurinos e interpretação a cargo de Ana Baird, acompanhada ao violão e guitarra por Rene Rossano.
Para fugir da estrutura de um recital, como já foi dito, estamos diante de uma personalidade definida, e que portanto canta e age em sintonia com a mesma. Assim, por exemplo, a parte inicial da montagem (por sinal muito engraçada) nos mostra a cantora estirada num divã, adormecida, que só acorda para o espetáculo após o guitarrista emitir sons cada vez mais altos e estridentes. Então ela se levanta, meio trôpega, vai até sua bolsa - driblando uma infinidade de garrafas de bebidas alcoólicas espalhadas pelo chão - e dela retira mais garrafas, cigarros, produtos de maquiagem etc. Finalmente, começa a cantar, já estando então bastante claro o contexto da apresentação.
Ana Baird é uma ótima atriz e como cantora exibe a mesma excelência. E a mescla desses dois dotes permite ao espectador tanto se divertir com a forma como canta algumas canções como também se emocionar com aquelas em que a tristeza predomina. Além disso, como a intérprete possui forte presença cênica, grande carisma e irretocável preparo corporal, o resultado não poderia ser outro: uma divertida e emocinada noitada músico-teatral, que sem dúvida haverá de ser acolhida com grande entusiasmo pelo público carioca. E tal sucesso deve também ser em muito creditado à performance de Rene Rossano, tanto pelo virtuosismo que exibe nos dois instrumentos como também pela beleza dos arranjos, cujas dissonantes harmonias contribuem de forma decisiva para ressaltar as dissonâncias inerentes à paixão.
Com relação à equipe técnica, Ana Baird responde por ótima cenografia e um figurino totalmente em sintonia com a personalidade que encarna, cabendo destacar a expressiva luz de Paulo César Medeiros, em geral soturna e depressiva, bem de acordo com a atmosfera do espetáculo. Finalmente, um último registro: parabenizamos a maravilhosa atriz que é Louise Cardoso por ter acreditado nesta deliciosa proposta e tê-la produzido.
CHAVE DE CADEIA - Espetáculo musical idealizado e protagonizado por Ana Baird, que divide a cena com o músico Rene Rossano. Teatro do Leblon. Terças e quartas, 21h.
"Chave de cadeia"
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Deliciosa ode à dor de cotovelo
Lionel Fischer
"Chave de Cadeia é um espetáculo musical sobre a paixão, a insatisfação, o exagero amoroso e sua conexão inevitável com o sofrimento. O termo que dá título ao espetáculo refere-se a perigo iminente, complicação, baixaria. O amor, inspiração primeira para obras-primas da música popular brasileira, será cantado com humor, sensibilidade e sofisticação. Em cena, a atriz e cantora Ana Baird e Rene Rossano contam a história de uma crooner decadente, uma apaixonada terminal. Uma amante descontrolada, submissa, escandalosa e por isso mesmo risível. Uma abordagem irônica e refinada sobre a compulsão amorosa e o desequilíbrio emocional a que estamos expostos, em maior ou menor grau, pelo exercício da arte do amor".
Este trecho, extraído do release que me foi enviado, retrata com exatidão a proposta do presente espetáculo, cabendo ressaltar o seguinte detalhe: a protagonista é uma crooner, ou seja, em alguma instância uma personagem, pois do contrário estaríamos diante de uma apresentação apenas musical. E o fato de sua personalidade ter sido descrita justificaria não somente sua postura em cena, mas a forma como interpreta as 19 canções selecionadas, criadas por renomados compositores nacionais e estrangeiros, todas elas fazendo uma espécie de ode à dor de cotovelo. Em cartaz na Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon, "Chave de cadeia - Uma comédia musical de bolso" chega à cena com direção, cenografia, figurinos e interpretação a cargo de Ana Baird, acompanhada ao violão e guitarra por Rene Rossano.
Para fugir da estrutura de um recital, como já foi dito, estamos diante de uma personalidade definida, e que portanto canta e age em sintonia com a mesma. Assim, por exemplo, a parte inicial da montagem (por sinal muito engraçada) nos mostra a cantora estirada num divã, adormecida, que só acorda para o espetáculo após o guitarrista emitir sons cada vez mais altos e estridentes. Então ela se levanta, meio trôpega, vai até sua bolsa - driblando uma infinidade de garrafas de bebidas alcoólicas espalhadas pelo chão - e dela retira mais garrafas, cigarros, produtos de maquiagem etc. Finalmente, começa a cantar, já estando então bastante claro o contexto da apresentação.
Ana Baird é uma ótima atriz e como cantora exibe a mesma excelência. E a mescla desses dois dotes permite ao espectador tanto se divertir com a forma como canta algumas canções como também se emocionar com aquelas em que a tristeza predomina. Além disso, como a intérprete possui forte presença cênica, grande carisma e irretocável preparo corporal, o resultado não poderia ser outro: uma divertida e emocinada noitada músico-teatral, que sem dúvida haverá de ser acolhida com grande entusiasmo pelo público carioca. E tal sucesso deve também ser em muito creditado à performance de Rene Rossano, tanto pelo virtuosismo que exibe nos dois instrumentos como também pela beleza dos arranjos, cujas dissonantes harmonias contribuem de forma decisiva para ressaltar as dissonâncias inerentes à paixão.
Com relação à equipe técnica, Ana Baird responde por ótima cenografia e um figurino totalmente em sintonia com a personalidade que encarna, cabendo destacar a expressiva luz de Paulo César Medeiros, em geral soturna e depressiva, bem de acordo com a atmosfera do espetáculo. Finalmente, um último registro: parabenizamos a maravilhosa atriz que é Louise Cardoso por ter acreditado nesta deliciosa proposta e tê-la produzido.
CHAVE DE CADEIA - Espetáculo musical idealizado e protagonizado por Ana Baird, que divide a cena com o músico Rene Rossano. Teatro do Leblon. Terças e quartas, 21h.
terça-feira, 21 de setembro de 2010
Um livro maravilhoso
Lionel Fischer
Não sei se já comentei aqui que, durante muitos anos, fiz resenhas literárias para os jornais O Globo e Jornal do Brasil. E os livros que me davam para avaliar abrangiam assuntos tão diversos que, em várias ocasiões, achei que estavam superestimando minha capacidade de avaliá-los para os leitores. Cheguei mesmo a levantar esta questão com as editorias dos dois jornais, mas foi inútil. Então, segui lendo e avaliando. E ontem, por acaso, me deparei com uma obra que me pareceu muito familiar e ao consultar velhíssimos arquivos, constatei que havia feito uma resenha sobre ela, publicada no JB em 1988. Chama-se "O último dos Justos", de autoria de André Schwartz-Bart, tradução de Maria Lucia Autran Dourado/Editora José Olympio. Não sei se a obra ainda pode ser encontrada em alguma livraria, mas certamente em algum sebo. Então, caso vocês se deparem com ela, comprem sem a menor hesitação, pois trata-se de um livro absolutamente imprescindível, pelas razões que exporei abaixo, transcrevendo literalmente a resenha publicada.
* * *
Ser um Justo
Velha lenda recontada com o som e a fúria do Holocausto
"Por que é tão difícil viver entre os homens?", perguntou um dia a Nietzche um jovem estudante. "Porque é difícil permanecer calado", retrucou o filósofo. André Schwartz-Bart optou por não permanecer calado. Em 1943, quando as palavras revelaram-se inúteis, juntou-se à Resistência Francesa e passou a praticar um idioma todo ele feito de gestos. Tinha, nessa ocasião, apenas quinze anos. Aos trinta, já de novo totalmente afeito ao exercício da linguagem, escreveu "O último dos Justos", prêmio Gouncourt de 1959, que talvez possa ser considerada a mais expressiva narrativa de ficção sobre o holocausto de que foi vítima o povo judeu.
O autor tomou como ponto de partida a Lenda dos Justos, pouco conhecida do Ocidente, que imputa a 36 judeus chamados de Justos a responsabilidade de impedir a humanidade de aniquilar-se, obrigando-os para tanto a absorver em seus corações todo o sofrimento do mundo. Para alguns talmudistas, a lenda remonta ao tempo de Isaías, mas a maioria dos estudiosos situa seu nascimento no século XII. O mais curioso, porém, é que em muitos casos o justo ignora sua condição, e mesmo quando a comunidade que o cerca tenta convencê-lo a assumir plenamente o papel que lhe cabe ele reluta, na maioria das vezes por se achar indigno de exercê-la. Seja como for, o espírito da lenda é bem claro e, por mais paradoxal que possa parecer, algo cristão, na medida em que pressupõe que o sacrifício de alguns possa redimir a maioria.
Ernie Levy tenta ser um Justo. Desde pequeno procura desesperadamente se encaixar nesse perfil, que imagina como o mais nobre reservado a alguém de sua raça. Sua pretensão de se anular, de sobrepor ao seu próprio sofrimento o dos outros, suas tentativas de compreender o que no fundo não pode ser compreendido, tudo nele, enfim, revela uma tendência para a bondade e a resignação verdadeiramente comovente. Um dia, porém, depois que um grupo de jovens nazistas o submete a uma série inimaginável de humilhações, refugia-se desesperado num trigal e lá, para sua imensa perplexidade, põe-se a massacrar joaninhas, gafanhotos, borboletas, seres que amava e aos quais, portanto, jamais pensara em causar dano.
Finalmente, exausto, deixa-se cair sobre a relva e cerra os olhos, mas na noite imperfeita de suas pálpebras todas as sua vítimas começam a formigar. Em sua consciência de Justo, é forçado a admitir que não passa de um inseto devorador, um verme indigno - e então decide se matar. Horas depois, no banheiro de sua casa, corta o pulso esquerdo e, após aguardar um longo tempo, temendo o fracasso de sua tentativa de aniquilar-se, atira-se pela janela.
Mas Ernie Levy, que julgara haver fracassado em sua tentativa de se tornar um Justo, fracassa igualmente ao procurar a morte violenta; esta ele só encontraria muitos anos depois, como convinha a todo judeu, nas câmaras de gás. Durante esse intervalo, todavia, o autor nos conduz por uma longa e tortuosa estrada, plena de sofrimento, desespero e solidão, mas também rica em solidariedade, coragem e desprendimento, viagem inesquecível que certamente contribuirá para o nascimento - ou quem sabe a solidificação - no coração de cada leitor de algo insubstituível em sua vida: a crença de que, apesar de tudo, o homem ainda detém, dentro de si, a possibilidade de transcender as misérias que o rodeiam e reconstruir o mundo.
***
Trecho da obra
"As vozes morriam uma a uma ao longo do poema inacabado; as crianças agonizantes cravavam as unhas nas coxas de Ernie, num supremo esforço, e o braço de Golda se tornava mais fraco, seus beijos estavam se esfumando, quando ela se agarrou ao pescoço do amado e exalou num sopro: - 'Não o tornarei a ver mais? Nunca Mais?'"
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Lionel Fischer
Não sei se já comentei aqui que, durante muitos anos, fiz resenhas literárias para os jornais O Globo e Jornal do Brasil. E os livros que me davam para avaliar abrangiam assuntos tão diversos que, em várias ocasiões, achei que estavam superestimando minha capacidade de avaliá-los para os leitores. Cheguei mesmo a levantar esta questão com as editorias dos dois jornais, mas foi inútil. Então, segui lendo e avaliando. E ontem, por acaso, me deparei com uma obra que me pareceu muito familiar e ao consultar velhíssimos arquivos, constatei que havia feito uma resenha sobre ela, publicada no JB em 1988. Chama-se "O último dos Justos", de autoria de André Schwartz-Bart, tradução de Maria Lucia Autran Dourado/Editora José Olympio. Não sei se a obra ainda pode ser encontrada em alguma livraria, mas certamente em algum sebo. Então, caso vocês se deparem com ela, comprem sem a menor hesitação, pois trata-se de um livro absolutamente imprescindível, pelas razões que exporei abaixo, transcrevendo literalmente a resenha publicada.
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Ser um Justo
Velha lenda recontada com o som e a fúria do Holocausto
"Por que é tão difícil viver entre os homens?", perguntou um dia a Nietzche um jovem estudante. "Porque é difícil permanecer calado", retrucou o filósofo. André Schwartz-Bart optou por não permanecer calado. Em 1943, quando as palavras revelaram-se inúteis, juntou-se à Resistência Francesa e passou a praticar um idioma todo ele feito de gestos. Tinha, nessa ocasião, apenas quinze anos. Aos trinta, já de novo totalmente afeito ao exercício da linguagem, escreveu "O último dos Justos", prêmio Gouncourt de 1959, que talvez possa ser considerada a mais expressiva narrativa de ficção sobre o holocausto de que foi vítima o povo judeu.
O autor tomou como ponto de partida a Lenda dos Justos, pouco conhecida do Ocidente, que imputa a 36 judeus chamados de Justos a responsabilidade de impedir a humanidade de aniquilar-se, obrigando-os para tanto a absorver em seus corações todo o sofrimento do mundo. Para alguns talmudistas, a lenda remonta ao tempo de Isaías, mas a maioria dos estudiosos situa seu nascimento no século XII. O mais curioso, porém, é que em muitos casos o justo ignora sua condição, e mesmo quando a comunidade que o cerca tenta convencê-lo a assumir plenamente o papel que lhe cabe ele reluta, na maioria das vezes por se achar indigno de exercê-la. Seja como for, o espírito da lenda é bem claro e, por mais paradoxal que possa parecer, algo cristão, na medida em que pressupõe que o sacrifício de alguns possa redimir a maioria.
Ernie Levy tenta ser um Justo. Desde pequeno procura desesperadamente se encaixar nesse perfil, que imagina como o mais nobre reservado a alguém de sua raça. Sua pretensão de se anular, de sobrepor ao seu próprio sofrimento o dos outros, suas tentativas de compreender o que no fundo não pode ser compreendido, tudo nele, enfim, revela uma tendência para a bondade e a resignação verdadeiramente comovente. Um dia, porém, depois que um grupo de jovens nazistas o submete a uma série inimaginável de humilhações, refugia-se desesperado num trigal e lá, para sua imensa perplexidade, põe-se a massacrar joaninhas, gafanhotos, borboletas, seres que amava e aos quais, portanto, jamais pensara em causar dano.
Finalmente, exausto, deixa-se cair sobre a relva e cerra os olhos, mas na noite imperfeita de suas pálpebras todas as sua vítimas começam a formigar. Em sua consciência de Justo, é forçado a admitir que não passa de um inseto devorador, um verme indigno - e então decide se matar. Horas depois, no banheiro de sua casa, corta o pulso esquerdo e, após aguardar um longo tempo, temendo o fracasso de sua tentativa de aniquilar-se, atira-se pela janela.
Mas Ernie Levy, que julgara haver fracassado em sua tentativa de se tornar um Justo, fracassa igualmente ao procurar a morte violenta; esta ele só encontraria muitos anos depois, como convinha a todo judeu, nas câmaras de gás. Durante esse intervalo, todavia, o autor nos conduz por uma longa e tortuosa estrada, plena de sofrimento, desespero e solidão, mas também rica em solidariedade, coragem e desprendimento, viagem inesquecível que certamente contribuirá para o nascimento - ou quem sabe a solidificação - no coração de cada leitor de algo insubstituível em sua vida: a crença de que, apesar de tudo, o homem ainda detém, dentro de si, a possibilidade de transcender as misérias que o rodeiam e reconstruir o mundo.
***
Trecho da obra
"As vozes morriam uma a uma ao longo do poema inacabado; as crianças agonizantes cravavam as unhas nas coxas de Ernie, num supremo esforço, e o braço de Golda se tornava mais fraco, seus beijos estavam se esfumando, quando ela se agarrou ao pescoço do amado e exalou num sopro: - 'Não o tornarei a ver mais? Nunca Mais?'"
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segunda-feira, 20 de setembro de 2010
Flores de Chumbo
Lionel Fischer
(1984)
CAPÍTULO XIII
Dois dias depois lá ia eu sacolejando ao lado de irmã Vôncia, na mesma carroça em que transportara a vida de Ambrosina. O colosso manejava com extrema perícia os cavalos, que pareciam ter consciência da força da natureza que os guiava e não ousavam de desobedecê-la. Além disso deveriam estar algo intrigados, pois irmã Vôncia cantava a plenos pulmões uma canção estranhíssima, cuja tônica era a ausência de melodia. Eu também estava intrigado, não tanto com a canção em si, mas com a euforia da giganta. Até hoje não sei se ela procurava me insuflar um pouco de alegria - eu assumira um ar triste, para não levantar suspeitas - ou se simplesmente festejava de forma descarada a minha partida.
Em todo o caso, cantava. Antes assim, pois eu tinha uma infinidade de coisas para pensar que teria que adiar se minha condutora resolvesse entabular uma conversa. Estava vivendo uma atmosfera de sonho. Os acontecimentos haviam tomado um rumo tão imprevisto que escapavam a qualquer previsão que eu pudesse ter feito. Se a simples confirmação de que irmã Geovana me amava já teria sido suficiente para me deixar de cama, o fato de ela, além disso, ter arquitetado todo um elaborado plano para me manter ao seu alcance me deixara totalmente desequilibrado. Este desequilíbrio se deve ao meu monumental complexo de inferioridade. No fundo, custava-me admitir que conquistara, única e exclusivamente por meus próprios méritos, uma mulher admirável, preferindo creditar ao acaso ou à sorte todo o mérito em questão. E no entanto, até mesmo a própria vida eu colocara em risco por causa dessa paixão desenfreada...
Quanto chegamos à estação, faltavam 15 minutos para as três da tarde. Se o trem estivesse no horário, dentro de um quarto de hora o veríamos surgir. Irmã Vôncia continuava aos berros e agora agitava numa das mãos um envelope. Como sua cantoria já estava me dando nos nervos, perguntei se enviava notícias suas a algum parente. Sempre cantando, como se estivéssemos num musical, ela me informou que era uma carta para as autoridades, na qual irmã Geovana comunicava a tragédia e pedia auxílio. Essa informação me deixou bastante apreensivo, na medida em que a cidade seria invadida não apenas por quem de direito, mas também por uma turba de curiosos, fanáticos, gente que se alimenta de catástrofes, turistas, carpideiras profissionais e mais uma infinidade de pessoas.
Quanto aos jornalistas, o que fariam com um material tão rocambolesco? Duvido que acreditassem na versão de irmã Geovana. E ainda que a julgassem plausível, a deturpariam até fazê-la parecer-se com tudo, menos com a verdade. E se resolvessem vasculhar a cidade em busca de sobreviventes? Fatalmente acabariam me encontrando, logo a mim, a única testemunha ocular de toda a tragédia!? Aí seria o caos: teria que justificar a ocupação de uma propriedade que não me pertencia; inventar uma desculpa para não ter procurado as autoridades (mesmo que não houvesse uma forma efetiva de fazê-lo), preferindo aguardá-las comodamente instalado; convencer a todos que a versão de irmã Geovana era verdadeira etc. Enfim, teria que me virar pelo avesso para não ser considerado suspeito e conduzido algemado para a capital. E ainda que não fizessem nada disso, eu seria forçado a sair da cidade. Afinal, nada justificaria minha permanência nela. E era esta a hipótese que mais me aterrava: como suportar a ausência de irmã Geovana? E se ela, com o passar dos dias, começasse a me esquecer? Quem poderia me garantir que quando tornássemos a nos encontrar ela não me trataria como a um estranho? A única saída seria encontrar uma maneira de não ser descoberto e continuar na cidade. Mas, como?
A chegada do trem me trouxe de novo à realidade. Assim que ele parou, irmã Vôncia foi até a locomotiva entregar a missiva ao condutor. Mas o pobre homem ou era surdo ou não conseguia entender nada, pois logo o colosso começou a ameaçá-lo de morte, caso ele não colocasse o trem em movimento em cinco minutos - em marcha-ré, bem entendido. Nesse meio tempo, três tímidos passageiros abandonaram o único vagão aberto ao público e começaram a caminhar pela plataforma. Mas não haviam dado nem vinte passos quando deram de cara com irmã Vôncia, que deixara a locomotiva com o ar de quem havia cometido ou estava prestes a cometer um hediondo crime. Assim que os viu, a giganta avançou na direção deles com tamanha determinação que os coitados, intuindo que corriam sério risco, voltaram correndo para o vagão e com suas tralhas se taparam. Então, irmã Vôncia se virou para mim:
- Agora é a sua vez, senhor Aquino!
E me indicou a entrada com um gesto que pretendia ser gracioso, mas que qualquer hipopótamo executaria sem esforço e com idêntico resultado. Quando me viu instalado, deu um urro, o trem um apito e se pôs em movimento. Os três passageiros rezavam, sepultados por suas bagagens. Eu só carregava comigo uma pequena mala, que nada continha e abandonaria no próprio trem. Essa idéia partira de irmã Geovana, que sabendo que eu teria que caminhar um bom trecho até chegar à granja, resolveu despachar na frente minha verdadeira mala e a vida de Ambrosina, como creio já haver relatado. Mas como eu teria que sair do convento com alguma bagagem para evitar que o colosso desconfiasse de alguma coisa, deixou no meu quarto uma maleta vazia com a recomendação expressa de que eu, ao carregá-la, simulasse que estava cheia. E que não me desgrudasse dela um só instante, pois se irmã Vôncia a tocasse fatalmente quereria saber que coisas seriam essas que eu carregava e que não pesavam nada.
Em resumo: um plano simples e eficaz. Se fosse eu, teria armado um esquema tão complicado que acabaria fracassando. Aliás, nós, homens, somos um desastre em nossa obsessão de sempre optar por estratégias mirabolantes. Penso mesmo que no dia em que a espionagem internacional estiver totalmente entregue às mulheres, o mundo não terá mais segredos. Primeiro porque elas conseguirão devassar, devido ao senso prático que possuem, todos os redutos onde estivessem guardados. E depois porque acabarão contando umas às outras as respectivas descobertas, o que logo converteria o mundo num gigantesco e eletrizante salão de beleza. Mas, retomemos a narrativa.
Passados cinco minutos, resolvi pular do trem. Como um dublê de cinema, projetei meu corpo no espaço e aterrissei na relva, procurando amortecer a queda com uma série de rolamentos, que na verdade não a amorteceram em absoluto, muito pelo contrário, só fizeram piorar o baque. Teria sido bem mais simples saltar em pé, já que o trem não andava a mais de 20 quilômetros por hora. Mas não: resolvera me transformar num rocambole só porque isso poderia conferir ao meu salto uma plasticidade que ele não precisaria ter. Essa bravata, diga-se de passagem, me custou contusões generalizadas, de natureza sobretudo esfolantes.
Ao atingir a granja, já era noite fechada. No entanto, meus problemas apenas começavam. Por mais que me empenhasse não conseguia abrir a porta. A chave se recusava peremptoriamente a entrar na fechadura e quando o fazia, não girava. Experimentei com uma mão, com a outra, com as duas, mas a maldita parecia firmemente decidida a me proibir repouso e segurança. Como estava certo de que irmã Geovana não me daria a chave errada, imaginei que poderia haver um outra porta, nos fundos, e às apalpadelas saí à sua procura.
Quando a encontrei, repeti com ela o mesmo procedimento, obtendo idêntico resultado. Desesperado, sentei-me na terra úmida e comecei a pensar em minha amada, esforçando-me ao máximo para estabelecer contato com ela. Se conseguisse, ela poderia enviar de volta a resposta salvadora, utilizando-se do mesmo mecanismo. Afinal, se ela me dera a chave, deveria conhecer o macete que a fazia girar, a menos que o tempo houvesse danificado a fechadura, o que não me deixaria outra alternativa a não ser a de arrombar a porta ou uma das janelas - pela chaminé é que eu não me meteria em hipótese alguma, pois assistira a um filme no qual um gatuno tenta fazê-lo e fica entalado no meio do caminho, sofrendo antes de morrer uma cruel e ridícula agonia.
Apósa alguns minutos de intensíssimos esforços, concluí que o fracasso da operação se devia à postura que adotara, muito mais parecida com a de um nordestino em beira de estrada do que com a dos seres transcendentais que habitam, como as cabras, as mais inacessíveis montanhas. Postando-me então como um monge do Tibet, comecei a murmurar a palavra "OM" nas mais variadas entonações, porque lera não sei onde que a mesma, quando corretamente utilizada, possuía poderes mágicos. Mas os resultados continuavam nulos. Se alguém se aproximasse de mim nesse momento pensaria que, ao invés de estar tentando invocar uma pessoa, eu padecia de um doloroso problema gastro-intestinal. O meu "OM" estava muito mais para cólica do que para transcendência...
Finalmente convencido do próprio fiasco, relaxei o corpo, sentei-me normalmente e abri os olhos. Ao fazê-lo, quase tive uma síncope: a uma distância de no máximo dez metros, um par de olhos me contemplava fixamente. Não tive a menor dúvida de que o meu "OM" havia funcionado, só que quem o captara não fora irmã Geovana, mas sim, ao que imaginei, um daqueles místicos do Himalaia, que decidira conhecer aquele que, sem ser um iniciado, tivera a ousadia de se utilizar de seus segredos telepáticos. Paralisado de terror, não conseguia comandar uma única molécula do meu corpo. Creio mesmo que até certas funções vitais ficaram em suspenso por alguns minutos - o único sintoma que atestava que eu ainda vivia era o suor que me escorria do couro cabeludo e, principalmente, dos sovacos.
Depois de um tempo que me pareceu uma eternidade, o espectro resolveu vir ao meu encontro - deveria ser bem mais baixo do que eu, mas a suposição de que fosse uma pessoa diminuta não alterava em absoluto o terror que sentia. Num puro instinto de defesa, comecei a pronunciar de novo a palavra "OM", numa tentativa de enxotar a criatura com o mesmo recurso que a trouxera. Mas devia estar articulando a palavra mágica de forma um tanto confusa, pois os olhos se aproximavam sempre e cada vez mais. Entretanto, quando a aparição se achava praticamente em cima de mim, meu organismo resolveu reagir de forma mais pragmática e eu saí em disparada pelas trevas. Contornando novamente a residência, atingi a porta e - pasmem! - consegui abrí-la sem nenhum problema, dentro da casa me trancando e debaixo de um sofá me escondendo.
Assim permaneci, absolutamente imóvel, por umas duas horas, na esperança de que o assombrado monge desistisse de prolongar por mais tempo aquela sessão de terror. Findo esse prazo, me arrastei até uma das janelas e espreitei as trevas. Novamente o pânico: lá estava o par de olhos e, o que é pior, olhando na minha direção. Fui então para a janela situada no lado oposto da sala, mas ao cabo de poucos segundos novamente apareceram as bolinhas fosforescentes. Tive que admitir que a cruel assombração estava decididamente empenhada em me perseguir. Mas - pensei -se ela se conformasse em permanecer no quintal, tudo bem; dentro de poucas horas amanheceria e de dia eu poderia enfrentá-la em condições menos adversas. E foi com esse pensamento positivo que me deitei no sofá e adormeci, não sem antes correr de uma janela à outra umas vinte vezes, só para testar a constância e resistência do abominável monge.
__________________
Lionel Fischer
(1984)
CAPÍTULO XIII
Dois dias depois lá ia eu sacolejando ao lado de irmã Vôncia, na mesma carroça em que transportara a vida de Ambrosina. O colosso manejava com extrema perícia os cavalos, que pareciam ter consciência da força da natureza que os guiava e não ousavam de desobedecê-la. Além disso deveriam estar algo intrigados, pois irmã Vôncia cantava a plenos pulmões uma canção estranhíssima, cuja tônica era a ausência de melodia. Eu também estava intrigado, não tanto com a canção em si, mas com a euforia da giganta. Até hoje não sei se ela procurava me insuflar um pouco de alegria - eu assumira um ar triste, para não levantar suspeitas - ou se simplesmente festejava de forma descarada a minha partida.
Em todo o caso, cantava. Antes assim, pois eu tinha uma infinidade de coisas para pensar que teria que adiar se minha condutora resolvesse entabular uma conversa. Estava vivendo uma atmosfera de sonho. Os acontecimentos haviam tomado um rumo tão imprevisto que escapavam a qualquer previsão que eu pudesse ter feito. Se a simples confirmação de que irmã Geovana me amava já teria sido suficiente para me deixar de cama, o fato de ela, além disso, ter arquitetado todo um elaborado plano para me manter ao seu alcance me deixara totalmente desequilibrado. Este desequilíbrio se deve ao meu monumental complexo de inferioridade. No fundo, custava-me admitir que conquistara, única e exclusivamente por meus próprios méritos, uma mulher admirável, preferindo creditar ao acaso ou à sorte todo o mérito em questão. E no entanto, até mesmo a própria vida eu colocara em risco por causa dessa paixão desenfreada...
Quanto chegamos à estação, faltavam 15 minutos para as três da tarde. Se o trem estivesse no horário, dentro de um quarto de hora o veríamos surgir. Irmã Vôncia continuava aos berros e agora agitava numa das mãos um envelope. Como sua cantoria já estava me dando nos nervos, perguntei se enviava notícias suas a algum parente. Sempre cantando, como se estivéssemos num musical, ela me informou que era uma carta para as autoridades, na qual irmã Geovana comunicava a tragédia e pedia auxílio. Essa informação me deixou bastante apreensivo, na medida em que a cidade seria invadida não apenas por quem de direito, mas também por uma turba de curiosos, fanáticos, gente que se alimenta de catástrofes, turistas, carpideiras profissionais e mais uma infinidade de pessoas.
Quanto aos jornalistas, o que fariam com um material tão rocambolesco? Duvido que acreditassem na versão de irmã Geovana. E ainda que a julgassem plausível, a deturpariam até fazê-la parecer-se com tudo, menos com a verdade. E se resolvessem vasculhar a cidade em busca de sobreviventes? Fatalmente acabariam me encontrando, logo a mim, a única testemunha ocular de toda a tragédia!? Aí seria o caos: teria que justificar a ocupação de uma propriedade que não me pertencia; inventar uma desculpa para não ter procurado as autoridades (mesmo que não houvesse uma forma efetiva de fazê-lo), preferindo aguardá-las comodamente instalado; convencer a todos que a versão de irmã Geovana era verdadeira etc. Enfim, teria que me virar pelo avesso para não ser considerado suspeito e conduzido algemado para a capital. E ainda que não fizessem nada disso, eu seria forçado a sair da cidade. Afinal, nada justificaria minha permanência nela. E era esta a hipótese que mais me aterrava: como suportar a ausência de irmã Geovana? E se ela, com o passar dos dias, começasse a me esquecer? Quem poderia me garantir que quando tornássemos a nos encontrar ela não me trataria como a um estranho? A única saída seria encontrar uma maneira de não ser descoberto e continuar na cidade. Mas, como?
A chegada do trem me trouxe de novo à realidade. Assim que ele parou, irmã Vôncia foi até a locomotiva entregar a missiva ao condutor. Mas o pobre homem ou era surdo ou não conseguia entender nada, pois logo o colosso começou a ameaçá-lo de morte, caso ele não colocasse o trem em movimento em cinco minutos - em marcha-ré, bem entendido. Nesse meio tempo, três tímidos passageiros abandonaram o único vagão aberto ao público e começaram a caminhar pela plataforma. Mas não haviam dado nem vinte passos quando deram de cara com irmã Vôncia, que deixara a locomotiva com o ar de quem havia cometido ou estava prestes a cometer um hediondo crime. Assim que os viu, a giganta avançou na direção deles com tamanha determinação que os coitados, intuindo que corriam sério risco, voltaram correndo para o vagão e com suas tralhas se taparam. Então, irmã Vôncia se virou para mim:
- Agora é a sua vez, senhor Aquino!
E me indicou a entrada com um gesto que pretendia ser gracioso, mas que qualquer hipopótamo executaria sem esforço e com idêntico resultado. Quando me viu instalado, deu um urro, o trem um apito e se pôs em movimento. Os três passageiros rezavam, sepultados por suas bagagens. Eu só carregava comigo uma pequena mala, que nada continha e abandonaria no próprio trem. Essa idéia partira de irmã Geovana, que sabendo que eu teria que caminhar um bom trecho até chegar à granja, resolveu despachar na frente minha verdadeira mala e a vida de Ambrosina, como creio já haver relatado. Mas como eu teria que sair do convento com alguma bagagem para evitar que o colosso desconfiasse de alguma coisa, deixou no meu quarto uma maleta vazia com a recomendação expressa de que eu, ao carregá-la, simulasse que estava cheia. E que não me desgrudasse dela um só instante, pois se irmã Vôncia a tocasse fatalmente quereria saber que coisas seriam essas que eu carregava e que não pesavam nada.
Em resumo: um plano simples e eficaz. Se fosse eu, teria armado um esquema tão complicado que acabaria fracassando. Aliás, nós, homens, somos um desastre em nossa obsessão de sempre optar por estratégias mirabolantes. Penso mesmo que no dia em que a espionagem internacional estiver totalmente entregue às mulheres, o mundo não terá mais segredos. Primeiro porque elas conseguirão devassar, devido ao senso prático que possuem, todos os redutos onde estivessem guardados. E depois porque acabarão contando umas às outras as respectivas descobertas, o que logo converteria o mundo num gigantesco e eletrizante salão de beleza. Mas, retomemos a narrativa.
Passados cinco minutos, resolvi pular do trem. Como um dublê de cinema, projetei meu corpo no espaço e aterrissei na relva, procurando amortecer a queda com uma série de rolamentos, que na verdade não a amorteceram em absoluto, muito pelo contrário, só fizeram piorar o baque. Teria sido bem mais simples saltar em pé, já que o trem não andava a mais de 20 quilômetros por hora. Mas não: resolvera me transformar num rocambole só porque isso poderia conferir ao meu salto uma plasticidade que ele não precisaria ter. Essa bravata, diga-se de passagem, me custou contusões generalizadas, de natureza sobretudo esfolantes.
Ao atingir a granja, já era noite fechada. No entanto, meus problemas apenas começavam. Por mais que me empenhasse não conseguia abrir a porta. A chave se recusava peremptoriamente a entrar na fechadura e quando o fazia, não girava. Experimentei com uma mão, com a outra, com as duas, mas a maldita parecia firmemente decidida a me proibir repouso e segurança. Como estava certo de que irmã Geovana não me daria a chave errada, imaginei que poderia haver um outra porta, nos fundos, e às apalpadelas saí à sua procura.
Quando a encontrei, repeti com ela o mesmo procedimento, obtendo idêntico resultado. Desesperado, sentei-me na terra úmida e comecei a pensar em minha amada, esforçando-me ao máximo para estabelecer contato com ela. Se conseguisse, ela poderia enviar de volta a resposta salvadora, utilizando-se do mesmo mecanismo. Afinal, se ela me dera a chave, deveria conhecer o macete que a fazia girar, a menos que o tempo houvesse danificado a fechadura, o que não me deixaria outra alternativa a não ser a de arrombar a porta ou uma das janelas - pela chaminé é que eu não me meteria em hipótese alguma, pois assistira a um filme no qual um gatuno tenta fazê-lo e fica entalado no meio do caminho, sofrendo antes de morrer uma cruel e ridícula agonia.
Apósa alguns minutos de intensíssimos esforços, concluí que o fracasso da operação se devia à postura que adotara, muito mais parecida com a de um nordestino em beira de estrada do que com a dos seres transcendentais que habitam, como as cabras, as mais inacessíveis montanhas. Postando-me então como um monge do Tibet, comecei a murmurar a palavra "OM" nas mais variadas entonações, porque lera não sei onde que a mesma, quando corretamente utilizada, possuía poderes mágicos. Mas os resultados continuavam nulos. Se alguém se aproximasse de mim nesse momento pensaria que, ao invés de estar tentando invocar uma pessoa, eu padecia de um doloroso problema gastro-intestinal. O meu "OM" estava muito mais para cólica do que para transcendência...
Finalmente convencido do próprio fiasco, relaxei o corpo, sentei-me normalmente e abri os olhos. Ao fazê-lo, quase tive uma síncope: a uma distância de no máximo dez metros, um par de olhos me contemplava fixamente. Não tive a menor dúvida de que o meu "OM" havia funcionado, só que quem o captara não fora irmã Geovana, mas sim, ao que imaginei, um daqueles místicos do Himalaia, que decidira conhecer aquele que, sem ser um iniciado, tivera a ousadia de se utilizar de seus segredos telepáticos. Paralisado de terror, não conseguia comandar uma única molécula do meu corpo. Creio mesmo que até certas funções vitais ficaram em suspenso por alguns minutos - o único sintoma que atestava que eu ainda vivia era o suor que me escorria do couro cabeludo e, principalmente, dos sovacos.
Depois de um tempo que me pareceu uma eternidade, o espectro resolveu vir ao meu encontro - deveria ser bem mais baixo do que eu, mas a suposição de que fosse uma pessoa diminuta não alterava em absoluto o terror que sentia. Num puro instinto de defesa, comecei a pronunciar de novo a palavra "OM", numa tentativa de enxotar a criatura com o mesmo recurso que a trouxera. Mas devia estar articulando a palavra mágica de forma um tanto confusa, pois os olhos se aproximavam sempre e cada vez mais. Entretanto, quando a aparição se achava praticamente em cima de mim, meu organismo resolveu reagir de forma mais pragmática e eu saí em disparada pelas trevas. Contornando novamente a residência, atingi a porta e - pasmem! - consegui abrí-la sem nenhum problema, dentro da casa me trancando e debaixo de um sofá me escondendo.
Assim permaneci, absolutamente imóvel, por umas duas horas, na esperança de que o assombrado monge desistisse de prolongar por mais tempo aquela sessão de terror. Findo esse prazo, me arrastei até uma das janelas e espreitei as trevas. Novamente o pânico: lá estava o par de olhos e, o que é pior, olhando na minha direção. Fui então para a janela situada no lado oposto da sala, mas ao cabo de poucos segundos novamente apareceram as bolinhas fosforescentes. Tive que admitir que a cruel assombração estava decididamente empenhada em me perseguir. Mas - pensei -se ela se conformasse em permanecer no quintal, tudo bem; dentro de poucas horas amanheceria e de dia eu poderia enfrentá-la em condições menos adversas. E foi com esse pensamento positivo que me deitei no sofá e adormeci, não sem antes correr de uma janela à outra umas vinte vezes, só para testar a constância e resistência do abominável monge.
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sábado, 18 de setembro de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Doidas e santas"
.......................................................
Pertinentes reflexões sobre o amor
Lionel Fischer
Livremente inspirada no livro homônimo de contos de Martha Medeiros, a peça em questão tem como principal foco a relação amorosa de um casal, Beatriz e Orlando, juntos há 20 anos. Beatriz é uma psicanalista de sucesso, uma mulher moderna, antenada, financeiramente independente. Mas não é feliz em seu casamento com Orlando, um homem parecido com a maioria, ou seja, muito chegado a futebol, cerveja e sobretudo desatento àquelas pequenas delicadezas cotidianas que, aparentemente irrelevantes, são fundamentais para o fortalecimento de uma relação, e mais ainda quando a mulher tem uma natureza romântica - aliás, quase todas têm uma natureza romântica, mesmo as que adotam uma postura fálica.
Então, um belo dia, Beatriz resolve se separar, e suas alegações não encontram respostas satisfatórias por parte do marido. A filha do casal, Marina, uma adolescente de 15 anos, não participa desse momento específico, que a protagonista partilha um pouco com sua irmã, a solteirona Berenice. No complemento da família, temos D. Elda, uma senhora tresloucada que só surge no final e vive às turras com a neta.
Eis, em resumo, o enredo de "Doidas e santas", em cartaz na Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon. Com dramaturgia assinada por Regiana Antonini, a peça chega à cena com direção de Ernesto Piccolo e elenco formado por Cissa Guimarães (Beatriz), Giuseppe Oristanio (Orlando) e Josie Antello, que dá vida às demais personagens.
Como foi criado a partir de crônicas independentes entre si, ainda que tendo como principal foco o amor, como já foi dito, em alguns momento temos a sensação de que o texto perde um pouco seu caráter dramatúrgico (em termos de ação dramática) e enverada para o lado confessional, mesmo nas passagens em que Beatriz fala com o marido - quando se dirige diretamente à platéia, aí torna-se evidente que busca nela uma possibilidade de escuta, da qual carecia com seu parceiro. Mas como as reflexões empreendidas por Martha Medeiros são da maior pertinência, os espectadores se mantêm atentos e interessados, o que aconteceria mesmo que Cissa Guimarães estivesse sozinha em cena.
Quanto ao espetáculo, Ernesto Piccolo impõe à cena uma dinâmica, digamos, comportada e funcional, pois não haveria mesmo outra postura a ser adotada. Mas, ainda assim, em alguns momentos consegue criar passagens divertidas, que servem de contraponto àquelas em que a dor predomina. E cabe também destacar a habilidade do encenador de extrair atuações convincentes de Giuseppe Oristanio (excelente ator, com ótimos trabalhos realizados tanto no teatro como na TV) e da excelente comediante que é Josie Antello.
No que se refere a Cissa Guimarães, a atriz vive com notável capacidade de entrega as emoções inerentes a toda separação, comovendo profundamente a platéia ao extravasar as dores de Beatriz, suas mágoas, desapontamentos, carências, assim como a nostalgia dos momentos felizes de um passado que parece impossível de ser resgatado. Ao mesmo tempo, não deixa de exibir seu mais do que conhecido humor quando este se faz necessário. Enfim, uma atuação segura, convincente, emocionada e emocionante, o que nos faz desejar que Deus continue a abençoar e proteger essa profissional que, segundo todos que a conhecem, a todos ilumina com sua coragem e inabalável fé na vida.
Na equipe técnica, são corretos os trabalhos de todos os profissionais envolvidos neste projeto - Sérgio Marimba (cenografia), Jorginho de Carvalho (iluminação), Rodrigo Penna (trilha sonora) e Helena Araújo e Djalma Brilhante (figurinos).
DOIDAS E SANTAS - Texto de Regiana Antonini. Direção de Ernesto Piccolo. Com Cissa Guimarães, Giuseppe Oristanio e Josie Antello. Teatro do Leblon. Quinta e sexta, 21h30; sábado, 19h30 e 21h30; domingo, 20h.
"Doidas e santas"
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Pertinentes reflexões sobre o amor
Lionel Fischer
Livremente inspirada no livro homônimo de contos de Martha Medeiros, a peça em questão tem como principal foco a relação amorosa de um casal, Beatriz e Orlando, juntos há 20 anos. Beatriz é uma psicanalista de sucesso, uma mulher moderna, antenada, financeiramente independente. Mas não é feliz em seu casamento com Orlando, um homem parecido com a maioria, ou seja, muito chegado a futebol, cerveja e sobretudo desatento àquelas pequenas delicadezas cotidianas que, aparentemente irrelevantes, são fundamentais para o fortalecimento de uma relação, e mais ainda quando a mulher tem uma natureza romântica - aliás, quase todas têm uma natureza romântica, mesmo as que adotam uma postura fálica.
Então, um belo dia, Beatriz resolve se separar, e suas alegações não encontram respostas satisfatórias por parte do marido. A filha do casal, Marina, uma adolescente de 15 anos, não participa desse momento específico, que a protagonista partilha um pouco com sua irmã, a solteirona Berenice. No complemento da família, temos D. Elda, uma senhora tresloucada que só surge no final e vive às turras com a neta.
Eis, em resumo, o enredo de "Doidas e santas", em cartaz na Sala Tônia Carrero do Teatro do Leblon. Com dramaturgia assinada por Regiana Antonini, a peça chega à cena com direção de Ernesto Piccolo e elenco formado por Cissa Guimarães (Beatriz), Giuseppe Oristanio (Orlando) e Josie Antello, que dá vida às demais personagens.
Como foi criado a partir de crônicas independentes entre si, ainda que tendo como principal foco o amor, como já foi dito, em alguns momento temos a sensação de que o texto perde um pouco seu caráter dramatúrgico (em termos de ação dramática) e enverada para o lado confessional, mesmo nas passagens em que Beatriz fala com o marido - quando se dirige diretamente à platéia, aí torna-se evidente que busca nela uma possibilidade de escuta, da qual carecia com seu parceiro. Mas como as reflexões empreendidas por Martha Medeiros são da maior pertinência, os espectadores se mantêm atentos e interessados, o que aconteceria mesmo que Cissa Guimarães estivesse sozinha em cena.
Quanto ao espetáculo, Ernesto Piccolo impõe à cena uma dinâmica, digamos, comportada e funcional, pois não haveria mesmo outra postura a ser adotada. Mas, ainda assim, em alguns momentos consegue criar passagens divertidas, que servem de contraponto àquelas em que a dor predomina. E cabe também destacar a habilidade do encenador de extrair atuações convincentes de Giuseppe Oristanio (excelente ator, com ótimos trabalhos realizados tanto no teatro como na TV) e da excelente comediante que é Josie Antello.
No que se refere a Cissa Guimarães, a atriz vive com notável capacidade de entrega as emoções inerentes a toda separação, comovendo profundamente a platéia ao extravasar as dores de Beatriz, suas mágoas, desapontamentos, carências, assim como a nostalgia dos momentos felizes de um passado que parece impossível de ser resgatado. Ao mesmo tempo, não deixa de exibir seu mais do que conhecido humor quando este se faz necessário. Enfim, uma atuação segura, convincente, emocionada e emocionante, o que nos faz desejar que Deus continue a abençoar e proteger essa profissional que, segundo todos que a conhecem, a todos ilumina com sua coragem e inabalável fé na vida.
Na equipe técnica, são corretos os trabalhos de todos os profissionais envolvidos neste projeto - Sérgio Marimba (cenografia), Jorginho de Carvalho (iluminação), Rodrigo Penna (trilha sonora) e Helena Araújo e Djalma Brilhante (figurinos).
DOIDAS E SANTAS - Texto de Regiana Antonini. Direção de Ernesto Piccolo. Com Cissa Guimarães, Giuseppe Oristanio e Josie Antello. Teatro do Leblon. Quinta e sexta, 21h30; sábado, 19h30 e 21h30; domingo, 20h.
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