sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)


CAPÍTULO XIV


No dia seguinte me levantei bem cedo, por volta das seis horas. Sonhara a noite inteira com os mais variados perigos, mas curiosamente a aparição noturna não ocupou um lugar de destaque nos meus pesadelos. A turba invasora e a milenar Semibreve me atormentaram bem mais. Com relação à pavorosa anciã, tive com ela um sonho terrível. Eu havia adormecido ao ar livre, embaixo de um frondosa mangueira, à espera de irmã Geovana. Subitamente, sinto uma dor terrível e desperto. Olho em torno e não consigo identificar nada que pudesse ter provocado a tal dor. Escuto, no entanto, uma risadinha difusa, volátil, vinda do topo da mangueira. Depois de fixar bem a vista, descubro que existe alguém lá em cima, meio tapado pela folhagem, que me faz sinais. Eu pergunto quem é, mas o vulto não responde. Eu insisto e as risadinhas se tornam ainda mais crueis. Finalmente, ameaço subir na árvore e aí a criatura arremessa uma coisa ensangüentada. Eu me aproximo, olho com atenção, mas não consigo identificar o que possa ser aquela paçoca coagulada e pútrida. Então, a pessoa se identifica: "Sou a irmã Semibreve, não me reconhece?" - "Não!" - respondo secamente. "Que pena...- ela prossegue -...espero ao menos que reconheça o que restou de sua genitália, que arranquei com minhas tenazes...". Sinto de novo a dor terrível, procuro minha masculinidade e não a encontro: meu baixo ventre havia sido privado do gracioso pedúnculo que sempre o ornamentara!?

Poderia ter me detido em especular sobre esse sonho e todos os demais, mas achei mais útil inspecionar o quintal, para ver se o monge ainda estava lá. Cheio de cautela, comecei a abrir lentamente uma das janelas, pois através das frestas não conseguia enxergar o desgraçado, tentando ao máximo evitar fazer qualquer ruído que denunciasse minhas intenções. Mas as enferrujadas dobradiças protestaram em coro e o jeito foi deixar a janela apenas entreaberta, o que em todo caso já me possibilitava alguma visão do pátio. Mas nele, ao menos no pedaço que me era dado ver, não se achava a aparição noturna. Um pouco mais aliviado, repeti o mesmo processo com a janela situada do lado oposto, que, como sua congênere, também gemeu e protestou. O resultado foi idêntico. Então, resolvi sair.

Era a única decisão possível. Se não a tomasse à luz do dia, à noite é que não a tomaria de modo algum. Além do que - pensei - me faltavam dados suficientes para afirmar que fossem inamistosas as intenções do notívago espectro. Afinal, ele apenas me observara, se aproximara e ante minha fuga tentara um posterior contato. Ele poderia estar se sentindo só e ter se acercado com o objetivo de amenizar a própria solidão. Poderia também estar perdido, incapaz de encontrar o caminho de casa e, ao me ver no pátio, pensou em obter alguma informação. Ambas as hipóteses eram cabíveis e se eu fugira esbaforido, isto se deve à nossa formação limitada e pouco transcendente, que não nos prepara para eventuais encontros com seres mais evoluídos do que nós.

Essa breve e singela reflexão teve o poder de afastar de meu espírito o resquício de inquietação que ainda o habitava. Era preciso, não obstante, irromper no pátio com uma postura que evidenciasse de forma cristalina a segurança que passara a sentir. Isso facilitaria meu contato com o monge, caso suas intenções fossem realmente amistosas. Ou o faria refletir um pouco mais, desde que pretendesse me fazer mal - essa é a grande vantagem de uma atitude confiante: tanto pode aproximar quanto intimidar.

Depois de escavucar a memória em busca de um tipo cuja principal característica fosse a inabalável segurança, resolvi compor um mocinho de faroeste, esse admirável personagem que mesmo cercado por duzentos índios e tendo apenas como arma um revólver com seis balas, se mantém imperturbável, escapando invariavelmente e não raro sem esgotar sua parca munição. Entretanto, após caminhar um pouco pela sala tentando reproduzir o andar indolente e balançoso do mocinho, dando especial ênfase às pernas arqueadas, aos braços jogados de qualquer maneira e à cabeça levemente inclinada para o lado esquerdo, resolvi desistir, pois meu senso crítico me disse que o resultado estava muito mais para orangotango do que para John Wayne. Decidido, portanto, a me assumir como era, abri a porta com destemor, dei um passo e...me estatelei!

Algo extremamente sólido se estendera bem diante da entrada e como eu olhava para a frente e para o alto não percebi sua existência. O resultado dessa desatenção foi um tropeção memorável, que só terminou no pátio. Embora tenha me machucado um pouco na queda, não senti dor alguma, mas sim um medo atroz. A criatura noturna, contrariando todas as minhas expectativas, de volátil não tinha nada, muito pelo contrário: era de uma robustez inquestionável. Imobilizado pela tensão, levei alguns segundos até reunir coragem suficiente para me erguer e em seguida me virar para encarar o espectro - e devo confessar que só tomei essa decisão por medo de que ele me atacasse pelas costas e cravasse em meu pescoço suas encardidas unhas.

Ao fazê-lo, no entanto, a visão do corpo que me fizera tropeçar converteu meu terror em júbilo: estendido na soleira da porta, imperturbável e cínico, estava o meu querido, gentil e injustiçado Anacleto! Fora ele, então, que das trevas emergira na noite passada, com o único propósito de me ajudar mais uma vez a sair de uma situação difícil. Doce, formidável hirco, cuja nobreza de espírito o fazia sobrepujar as injustiças que eu lhe fazia! Em três saltos o alcancei e logo beijava sofregamente sua asquerosa barba, ao mesmo tempo em que murmurava palavras de agradecimento e carinho, que o soberbo e chifrudo mamífero recebeu, como de hábito, com a mais absoluta displicência, não se dignando nem ao menos a me olhar nos olhos. Mas isso era de todo secundário: o essencial é que ele viera me ver, movido pelas melhores intenções, não exigindo nada em troca desse gesto. Eu que aprendesse a lidar melhor com meu complexo de rejeição.

Passados esses momentos de efusão, contei-lhe tudo que me acontecera desde o nosso último encontro, aproveitando para me desculpar pela atitude homicida que tomara no quarto de Ambrosina. Falei do meu amor, de minhas expectativas, da possibilidade da cidade ser invadida e me arrastarem dali, enfim, não omiti um único detalhe. Quanto a Anacleto, este ouviu meu relato olhando noutra direção e provavelmente pensando em outra coisa, como faria um analista ortodoxo. E quando concluiu que eu terminara, cravou em mim seu olhar nublado, deu um pequeno arroto, esticou-se de barriga pra cima e adormeceu. A maneira relaxada como se deitou, sua respiração tranquila, a ausência de qualquer espécie de tensão, tudo isso acabou contribuindo para que eu o imitasse, copiando-lhe a postura.

Ao acordar, exatamente às dez horas, percebi que Anacleto e eu não estávamos mais sozinhos. Um homem de cerca de 60 anos, de saias negras e chapeuzinho me olhava fixamente da porteira da granja. Ele tinha um ar enlouquecido e seu corpo pendia para a esquerda num ângulo de cerca de 30 graus. Cheguei a pensar em acordar Anacleto visando algum conselho, mas achei melhor não fazê-lo, pois o bode poderia ter uma crise de mau humor e resolver sumir. Levantei-me, então, e fui ao encontro da inclinada criatura.

À medida que dela me aproximava fui me conscientizando de sua extrema feiúra. O homenzinho, que não devia medir mais do que 1,60m, possuía um rosto que era uma curiosa mescla de excessos e carências. Seu nariz era o maior e mais pontudo que já vira. Suas orelhas, gigantescas e abanadas, ultrapassavam em muito a aba de seu chapéu, que talvez nelas encontrasse sustentação. Quanto ao seu queixo e lábios, impossível descrevê-los, já que praticamente inexistiam. No que se refere aos seus olhos, a natureza fora particularmente ingrata, pois não só os concebera microscópicos quanto os colocara bem ao fundo de cavidades imensas, o que os tornava ainda menores e impedia o pobre homem de enxergar qualquer coisa que não estivesse à sua frente. Isso explicava seus incessantes movimentos de cabeça, que um observador pouco atento poderia atribuir a um tique nervoso, quando na verdade eram a expressão de uma necessidade.

Ao atingir a porteira, cumprimentei-o e perguntei o que desejava. Mas ele não se dignou a me conceder uma resposta: optou por me olhar de alto a baixo e de uma forma que me pareceu insolente. Como eu não lhe devia nada e não precisava dele, não tinha por que permanecer estaqueado à sua frente até ele resolver dar um basta em suas investigações visuais. Assim, elevando um pouco a voz, lhe disse:

- Meu caro senhor: eu me chamo Gabriel de Aquino, tenho 1,75m, 25 anos e pertenço à espécie humana. Se o seu objetivo é me fazer alguma pergunta, estou à sua disposição. Mas se pretende continuar me contemplando como se eu fosse um mapa-mundi, serei constrangido a lhe pedir que vá embora.

Ao escutar minhas palavras, o raquítico homenzinho pareceu acordar e sua primeira providência foi descobrir a cabeça, como se estivesse na presença de um superior. Em seguida, se apresentou:

- Sou monsenhor Flávio e espero que me perdoe essa pequena descortesia e não a transforme em falta grave.

Monsenhor Flávio!? Então eu estava certo! Ela escapara da chacina e continuava na cidade! Mas como me localizara? Graças a um simples acaso ou recebera informações? E a se confirmar a segunda hipótese, quem as teria fornecido? Essas perguntas me ocorriam enquanto apertava sua mão, que suava abundantemente. Intuindo que monsenhor poderia me ser da maior utilidade, convidei-o a entrar, convite aceito sem a menor hesitação. Enquanto caminhávamos até a casa pude compreender o porquê da inclinação de seu corpo quando em estado de inércia: sua perna esquerda, embora não apresentasse nenhum defeito (como mais tarde pude constatar), era sensivelmente menor que a direita, o que fazia com que monsenhor, ao andar, se assemelhasse a um pêndulo.

Assim que entramos indiquei-lhe o sofá e pedi que me aguardasse um momento. Depois de abrir totalmente as janelas, fui até a cozinha buscar algo para oferecer-lhe. Na geladeira, que estava desligada, não havia nada. Mas descobri um pouco de água num velho filtro e copos num armário. Após procurar inutilmente uma jarra ou algo parecido, resolvi levar o filtro até a sala, pois desconfiei que monsenhor beberia mais do que um copo. E de fato não me enganei: ele tomou oito seguidos! Quando chegou minha vez, havia sobrado tão pouca água que se tivesse que tomar uma aspirinba não conseguiria fazê-lo. Em todo o caso, minha sede poderia esperar. Minha curiosidade, não.

Sentando-me então numa das poltronas situadas em frente ao divã, assumi uma postura mediante a qual pretendia demonstrar que não apenas dispunha do tempo que se fizesse necessário para ouvi-lo, como também que aguardava sua narrativa com o maior interesse. Mas, não sei por que, ele se ajeitou no divã exatamente como eu em minha poltrona, o que me levou a imaginar que esperava de mim o mesmo que eu dele. Mas isso não fazia o menor sentido. Afinal, fora ele a me procurar e portanto deveria ter algo a dizer, ou ao menos perguntar, cabendo-lhe, portanto, a iniciativa. Sendo, em determinadas circunstâncias, de uma teimosia inimaginável, decidi que morreria sentado naquela poltrona, se preciso fosse, mas que de minha boca não haveria de brotar o primeiro verbo. Como monsenhor parecia imbuído de idênticos propósitos, estabeleceu-se entre nós uma feroz batalha, na qual a única arma era o silêncio e cujo desfecho estaria decretado quando uma das partes, por cansaço ou tédio, articulasse a primeira frase.

Meia-hora depois, a situação permanecia inalterada. Mas se minha determinação não sofrera nenhum abalo, o mesmo não poderia ser dito do meu corpo, que começava a dar mostras de esgotamento. Desde o início da contenda, tanto eu como meu adversário não havíamos realizado nenhum movimento, como se a imobilidade absoluta também fizesse parte das regras dessa cretina disputa. Eu não podia adivinhar o que se passava no organismo de monsenhor, mas minhas pernas já estavam insensíveis e meus pés formigavam. Afora isso, ao longo dos últimos dez minutos, começara a sentir um comichão insuportável na parte inferior do testítculo esquerdo, o que me fez supor que um covarde carrapato, aproveitando-se de minha passividade, realizava orgias no meu saco. Comecei então a pressentir que dentro de pouquíssimo tempo teria que renunciar à luta - mal sabia eu que monsenhor Flávio, nesse momento, formulava o mesmo pensamento...

Seus motivos, no entanto, tinham outra origem. Ele havia se sentado justamente na parte do sofá em que o estofamento estava gasto e as molas espetavam. Como tinha a ornamentar-lhe o ânus um frondoso cacho de hemorróidas (tal confissão me foi feita posteriormente, é claro), o mesmo já estava em brasas. Nossa situação, portanto, tornava-se crítica. Quis o destino, entretanto, que dela saíssemos com a mesma aparente dignidade que nela entráramos. De repente, Anacleto irrompeu pela sala e se embrenhou na cozinha. Era o pretexto de que necessitávamos. Erguemo-nos de um salto, rigorosamente juntos, como se algo de extremamente grave houvesse ocorrido, e partimos atrás do formidável hirco - eu acariciando o matratado testítulo e monsenhor agarrado ao próprio cu.

Quando entramos na cozinha, Anacleto acabara de se espichar no ladrilho, sem dúvida um local mais adequado para se refrescar do que na varanda, onde não soprava a mais leve brisa. Tínhamos, no entanto, que levar um pouco adiante nossa farsa e começamos a recriminar nosso salvador pelo "susto" que nos dera. Instalou-se, então, naquela cozinha, uma atmosfera tão bizarra que ao cabo de poucos minutos resolvemos voltar para a sala. Lá chegando, sem a menor cerimônia, avaliamos os danos causados por nossa mútua estupidez. Eu arriei as calças e estraçalhei o famigerado carrapato. Monsenhor Flávio, mais discreto, contentou-se em massagear com mãos de enfermeira a zona dolorida. Finalmente, tornamos a nos sentar. Monsenhor, prudentemente, ocupou o outro lado do sofá. Eu voltei para a mesma poltrona, só que dessa vez me acomodei da maneira mais confortável possível. Então, espontaneamente, monsenhor começou a falar...
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