domingo, 28 de fevereiro de 2010

Teatro/CRÍTICA


"RockAntygona"


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Ousada versão de obra-prima


Lionel Fischer


Antes de analisar o espetáculo em questão, estou optando por me deter em um texto que consta do belo programa criado por Victor Hugo Cecatto. Tal texto, ao que suponho de autoria de Guilherme Leme, diretor da montagem, expõe de forma pertinente as premissas que a nortearam. Mas o que me chamou a atenção foi o fato de algumas palavras (ou frases curtas)estarem impressas em corpo bem maior que as demais, umas em branco, outras em vermelho - e aqui excluo os sobrenomes de alguns filósofos e estudiosos citados. Seria apenas uma decisão inventiva do programador visual? Ou quem sabe uma forma de ressaltar os conteúdos mais significativos?

Pois bem: renunciando às frases, das palavras do grupo "branco" constam Intolerância (duas vezes), Reações, Rebeldes, Cortantes, Reiventadas, Incessante, Indefesa, Arbitrária, Abusiva, Inspiram, Crença, Arrebatou, Jornada, Relendo, Insatisfação, Enfrentamento, Tempo, Crie e Manifesto. Já as vermelhas destacam Mudanças, Guitarra, Insatisfação, Lei, Imposição, Desobedece, Inspirando e Rompimento.

Isto posto, e antes que se tenha a impressão de que estou pretendendo criar uma espécie de quebra-cabeça, um jogo de possíveis correspondências entre o branco e o vermelho, gostaria apenas de ressaltar que todos os termos enfatizados, ainda que encarados isoladamente, têm estreita ligação com a essência da tragédia - a suposta exceção ficaria por conta de "guitarra", mas esta se insere com total propriedade no espetáculo.

Inspirada na tragédia "Antígona", de Sófocles, "RockAntygona" acaba de entrar em cartaz no Espaço Sesc, com direção assinada por Guilherme Leme e elenco formado por Luis Melo (Creonte), Larissa Bracher (Antygona), Armando Babaiof (Hémon) e Marcelo H, aqui denominado Mídia Eletrônica, que desempenha a função do Narrador.

Por tratar-se de obra por demais conhecida, não creio ser necessário resumir seu enredo. O primoritário é tentar compreender as razões que levaram Guilherme Leme a fazer uma redução tão drástica desta obra-prima - aparecem em cena apenas a protagonista Antígona, seu tio e governante Creonte e um dos filhos deste, Hémon, noivo de Antígona.

Partindo do pressuposto de que tal decisão não tenha sido tomada em função de baratear a produção, só nos resta supor que Guilherme Leme objetivou, através de uma síntese tão radical, demonstrar que a essência do pensamento do autor poderia ser materializada desta forma. E talvez inserí-lo visceralmente na contemporaneidade, ao valer-se de uma trilha sonora eletrônica que prioriza a inquietude, a agressividade e a urgência, assim como a quase que total impossibilidade de entendimento que caracteriza as relações humanas.

Trata-se apenas de uma hipótese e, como tal, sujeita a todos os enganos. Mas se algo ao menos parecido com o que acabamos de expor passou pela cabeça do encenador, só nos resta parabenizá-lo, dada a excelência do resultado obtido. Impondo à cena uma dinâmica angustiante e claustrofóbica, e apoiado na excelente performance dos intérpretes, Guilherme Leme oferece ao público uma versão capaz de gerar alguma polêmica, mas jamais merecedora do rótulo de "modernosa". E quem assim a encarar, certamente é porque cultiva uma das muitas palavras acima destacadas, como, por exemplo, a Intolerância.

No complemento da ficha técnica, destacamos com grande entusiasmo a belíssima trilha sonora de Vulgue Tostoi (Marcelo H. e Jr Tostoi), que enfatiza de forma contundente e exasperante os múltiplos climas emocionais em jogo, tornando-se quase que um personagem. A mesma excelência se faz presente na cenografia de Aurora dos Campos e na iluminação de Tomás Ribas, sendo corretos os figurinos de Tatiana Brescia.

ROCKANTYGONA - Inspirado na tragédia "Antígona", de Sófocles. Concepção e direção de Guilherme Leme. Com Luis Melo, Larissa Bracher, Armando Babaiof e Marcelo H. Espaço Sesc. Quinta e domingo, 20h. Sexta e sábado, 21h30.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Temporada Teatral de 2009
Destaques


Lionel Fischer


Recentemente coloquei aqui os espetáculos que julguei mais interessantes da temporada passada. Mas agora citarei os profissionais que mais se destacaram nas categorias Autor/Diretor/Ator/Atriz/Cenário/Figurino/Iluminação e Música (esta última incluindo música original, direção musical, trilha sonora e arranjos). E, como vocês verão, sem nenhuma preocupação de colocar o mesmo número de profissionais nas diversas categorias, e sem tampouco nomeá-los na ordem de minha preferência.


AUTOR

Rodrigo Nogueira - "Play"
Maitê Proença e Luiz Carlos Góes - "As meninas"
Lícia Manzo - "A história de nós dois"
Leilah Assumpção - "Adorável desgraçada"
Alice Steinbruck - "Torpedos"
Cristiane Jatahy - "Corte seco"


DIRETOR

Moacyr Góes - "O silêncio dos amantes"
Enrique Diaz - "In On It"
Marcelo Subiotto - "Espia uma mulher que se mata"
Amir Haddad - "As meninas"
Charles Möeller - "O despertar da primavera"
Malu Galli - "A máquina de abraçar"
Ana Teixeira e Stephane Brodt - "Kabul"
Cristiane Jatahy - "Corte seco"


ATOR

Guilherme Leme - "O estrangeiro"
Fernando Eiras - "In On It"
Emílio de Mello - "In On it"
Rodrigo Pandolfo - "O despertar da primavera"


ATRIZ

Marília Pêra - "Gloriosa"
Carolina Virgües - "Malentendido"
Fernanda Montenegro - "Viver sem tempos mortos"
Mariana Lima - "A máquina de abraçar"
Débora Duarte - "Adorável desgraçada"


CENOGRAFIA

Vera Oliveira - "Decameron: a arte de fornicar"
Cristina Novaes - "As meninas"
Fernando Mello da Costa e Rostand de Albuquerque - "Mobydick"
Rogério Falcão - "O despertar da primavera"


FIGURINOS

Beth Filipeccki - "As meninas"
Kika Lopes - "Mobydick"
Marcelo Pies - "O despertar da primavera"
Stephane Brodt - "Kabul"


ILUMINAÇÃO

Maneco Quinderé - "O estrangeiro" e "Mobydick"
Paulo César Medeiros - "O despertar da primavera" e "As meninas"


MÚSICA

Diogo Ahmed - trilha sonora e direção musical de "Malentendido"
Marcelo Castro - direção musical de "Avenida Q."
Tato Taborda - música e direção musical de "Mobydick"
Tim Rescala - arranjos e direção musical de "Miranda por Miranda"
Beto Lemos - música de "Kabul"

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"As conchambranças de Quaderna"


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Textos de Suassuna em ótima versão


Lionel Fischer


Ao contrário do que costuma ocorrer, aqui estamos diante de dois textos curtos de Ariano Suassuna, ao que parece inéditos. No primeiro, a trama gira em torno do casamento de duas irmãs, no mesmo dia, que sofre múltiplos percalços porque o noivo de uma delas resolve casar com a outra. No segundo, uma mulher faz um pacto com o Diabo para que este leve para o inferno o esposo que a traíra e a amante, sendo as duas histórias costuradas pelo narrador Quaderna, principal personagem do romance de Suassuna A pedra do reino.

Eis, em resumo, os enredos de As conchambranças de Quaderna, atual cartaz do Teatro Sesc Ginástico. Inez Viana assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Leonardo Brício, Dani Barros, Débora Lamm, Ricardo Souzedo, Iano Salomão, Diogo Camargos, Zé Wendel, Junior Dantas e Viviane Câmara, que dividem o palco com os músicos Thais Ferreira e Guilherme Bedran.

Como de hábito, Suassuna cria ótimos personagens, assim como tramas que, numa certa medida, nos remetem às farsas medievais, cuja estrutura repousa quase sempre na astúcia do protagonista e em sua habilidade de, após muitas confusões, resolvê-las de forma satisfatória. Além disso, cabe ressaltar a agilidade dos diálogos e a profussão de expressões tipicamente nordestinas, sempre saborosas e, no presente caso, algumas provavelmente inventadas pelo autor.

Com relação ao espetáculo, Inez Viana impõe à cena uma dinâmica vertiginosa, repleta de marcações imprevistas e divertidas, invariavelmente materializadas na cena de forma impecável pelo numeroso elenco. Este, por sinal, evidencia enorme prazer e competência na criação dos muitos personagens, além de exibir deliciosa contracena.

Neste sentido, seria um tanto injusto particularizar algum desempenho, dada a uniformidade e excelência do conjunto. Mas como eventuais injustiças fazem parte da natureza humana - e, salvo monumental engano de minha parte, pertenço à espécie humana - me é impossível não destacar as hilárias e versáteis participações de Leonardo Brício (Quaderna), Dani Barros (Comadre Perpétua e Dona Júlia Souza), Débora Lamm (Mercedes e Carmelita) e Ricardo Souzedo (Cumpadre Corsino e Doutor Juiz Rolando Sapo).

Na ficha técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo a linda cenografia de Nello Marrese, os criativos figurinos de Flávio Souza, a expressiva iluminação de Renato Machado e a direção musical de Marcelo Alonso Neves, sem dúvida elementos de fundamental importância para o inquestionável sucesso desta mais do que oportuna e divertida empreitada teatral.

AS CONCHAMBRANÇAS DE QUADERNA - Texto de Ariano Suassuna. Direção de Inez Viana. Com Leonardo Brício, Dani Barros e outros. Teatro Sesc Ginástico. Quinta a domingo, 19h.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Aqueles dois"


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Belíssimo encontro no CCBB


Lionel Fischer


Extraído do volume Morangos mofados, publicado em 1982, o conto Aqueles dois talvez seja a obra ficcional nacional que melhor retrate o envolvimento afetivo de dois homens. Isto se dá por uma série de motivos, que tentarei explicitar mais adiante. Importa agora registrar que uma excelente adaptação do conto de Caio Fernando Abreu está em cartaz no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil, em temporada que se encerra no próximo dia 28.

Com concepção assinada pela Cia. Luna Lunera, de Minas Gerais, o espetáculo chega à cena com criação, direção e dramaturgia de Cláudio Dias, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves, Rômulo Braga e Zé Walter Albinati, sendo que os quatro primeiros defendem os dois protagonistas do conto, Raul e Saul, assim como atuam como narradores.

Como foi dito no parágrafo inicial, esta talvez seja a obra nacional que melhor retrate o envolvimento afetivo entre dois homens. Em primeiro lugar, porque nos expõe gradativamente a mútua atração que os personagens vão sentindo e isto acontece não em função do exterior de cada um, mas de afinidades internas e artísticas, impossíveis de serem compreendidas e muito menos aceitas pelos "normais" companheiros de repartição dos dois protagonistas.

Outro ponto a ser destacado é a ausência total de qualquer vulgaridade, pois o que está em causa é muito mais um encontro de almas do que de corpos ávidos por um fugaz prazer. E também cabe mencionar a sutil e ferina crítica que o autor faz à hipocrisia, aos preconceitos e à mediocridade, sempre valendo-se de uma linguagem ao mesmo tempo poética e não isenta de humor.

Sem sombra de dúvida, Caio Fernando Abreu conseguiu criar uma obra plena de humanidade e que permanece atualíssima, pois embora os gays venham conquistando cada vez mais o espaço que durante tanto tempo lhes foi negado, seria por demais ingênuo acreditar que já possam assumir publicamente seus afetos sem gerar incômodo nos supostos detentores dos valores morais e éticos de uma sociedade como a nossa, que, como todos sabemos, carece totalmente de moral e ética, sendo pródiga em intolerância e hipocrisia.

Quanto ao espetáculo, este cativa o espectador desde o primeiro instante, graças ao talento dos intérpretes, sua notável capacidade de entrega e a sinceridade com que se relacionam com a platéia, afora as criativas e surpreendentes soluções cênicas adotadas, cuja aparente simplicidade é completamente enganosa, sendo fruto de elaborado processo cujo resultado é uma linguagem moderna sem jamais ser modernosa. Como sempre sustentou Peter Brook, o teatro é a arte do encontro. E aqui este se dá de forma superlativa e inesquecível.

Na ficha técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo a cenografia e figurinos assinados pelo núcleo de criadores do espetáculo, assim como a trilha sonora, que imagino ter sido criada pelo grupo. E mais ainda a expressiva iluminação de Felipe Cosse e Juliano Coelho, que enfatiza com grande sensibilidade os múltiplos climas emocionais em jogo.

AQUELES DOIS - Texto de Caio Fernando Abreu. Com a Cia. Luna Lunera. Teatro III do CCBB. Quarta a domingo, 19h30.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

"Navalha na carne":
documento dramático


por Sábato Magaldi



Plínio Marcos irrompe na dramaturgia brasileira com uma verdade e uma violência que de súbito deslocam os valores sobre os quais repousavam nossas experiências realistas. Dois perdidos numa noite suja já provocara esse impacto, desnudando o comportamento de dois indivíduos que se dilaceram numa strindberguiana "luta de cérebros", até a destruição. Navalha na carne retoma o mesmo procedimento de sondagem psicológica e ruptura brusca de um abscesso, para que a catarse traga o alívio final.

Com a autenticidade do levantamento que Plínio Marcos faz das situações sociais e dos caracteres em jogo, as figuras do submundo pintadas pela nossa ficção se tornam de repente românticas, líricas, próximas do róseo. Nunca um escritor nacional se preocupou tanto em investigar sem lentes embelezadoras a realidade, mostrando-a ao público na crueza da matéria bruta. A primeira impressão que se tem é a do documento - a fatia de vida cortada ainda quente do cenário original, o flagrante íntimo surpreendido de um buraco de fechadura.

O ato único de Navalha na carne reúne apenas três personagens: uma prostituta, o cafetão e o empergado homossexual do hotel de quinta classe. Neusa Suely, voltando ao quarto, encontra Wado na cama, a ler uma revista em quadrinhos. Ele nem havia saído: sem dinheiro, que fazer lá fora? Antes de revelar a Suely o motivo do mau humor, Wado exercita seu sadsimo, e ela acredita numa intriga da vadia do 102.

Garantindo Suely que deixou no criado-mudo o dinheiro, ocorre a suspeita de furto, e só Veludo seria o responsável por ele. Interrogatório nos mais persuasivos métodos policiais, e Veludo acaba confessando que tirou a quantia destinada a Wado: a metado fora para o resistente rapaz do bar e a outra metade para a maconha. A entrega do cigarro de erva a Wado será o princípio da reconciliação, com a promessa de que o dinheiro será devolvido. Veludo quer apenas uma baforada e se inicia uma cena ambígua entre os dois, cortada por uma explosão de Suely, que expulsa do quarto o homossexual.

Ele deixara escapar o xingatóriio de "galinha velha", que Wado depois retoma para feri-la e humilhá-la. Com sadismo implacável, Wado menciona as pelancas de Suely e tira-lhe a maquiagem do rosto, para esfregar nele o espelho denunciador dos 50 anos (ela diz não ter mais de 30, gastos e envelhecidos naquela vida triste). Ao reconhecer, arriada, a própria miséria, Suely tenta uma saída pela verdade: se não tem beleza para assegurar a correspondência de Wado, que ele cumpra o papel de quem recebe dinheiro feminino.

Prostituta, Suely inverte a situação, tornando consciente o jogo prostituído de Wado. E apoia o desejo de tê-lo à força na cama. Ao ver-se acuado, o homem de fala macia tenta uma nova sedução e a Suely se rende, desfazendo-se da arma. Seguro, Wado acaba por sair tranquilamente. Quando se apagam as luzes, Suely tira a pelinha de mortadela no sanduíche, companheiro único da solidão.

Demo-nos ao trabalho de resumir a sucessão de episódios para que os leitores saibam realmente o que se passa no texto, sem iludi-lo com implicações inverídicas ou com atenuantes descabidas. Acrescente-se a esse esquema, revelador na sua crueza, uma linguagem fiel ao meio, com o inventário dos palavrões conhecidos, e se completará a fisionomia de Navalha na carne. Quais as lições a tirar?

Uma primeira virtude da peça é a sua concentração, a ausência de delongas inúteis e de artifícios de qualquer natureza. A economia verbal, representada pelo mínimo de palavras que as personagens balbuciam ou vomitam, intensifica a relação dramática, num ritmo bem equilibrado de clímax e relaxamento. A procura da exatidão vocabular resvala às vezes para o pitoresco, mas não o condenamos, porque permite um desafogo cômico, em meio ao mal-estar sufocante.

O público é contundentemente desafiado pela interpelação implícita nos diálogos, participando à força de uma realidade exposta sem véus. Outro mérito dessa narrativa franca é que ela não prescinde da sutileza, dos subentendidos e das alusões. As personagens se dizem tudo o que têm a dizer, com uma dureza proposital, que dispensaria a extrapolação. Mas há ainda uma carga subjetiva em seus atos e suas palavras que o autor manipula com visível mestria.

Cite-se a mistura do prazer masoquista e de afirmação de honra que há na recusa de Veludo fumar o cigarro que Wado quer impingir-lhe. Veja-se, principalmente, a ambigüidade que salta da aparente repulsa de Wado pelo homossexual - uma atração disfarçada pela surra que pretende aplicar-lhe, negando-lhe de início o cigarro. E acompanhe-se o desmascaramento que Suely faz da cena, investindo contra o amante. Com o mesmo vigor antiilusionista que é a marca de uma parte ponderável da melhor ficção contemporânea, Plínio Marcos realiza obra de arte verdadeira.

As personagens são talhadas com espírito de síntese, o que fortalece seus traços essenciais. Marginalizadas no submundo em que vivem, por assim dizer rastejam os seus sentimentos, e não é à toa que frequentemente são jogadas ao solo. A matéria primordial que as dintingue é a tristeza, caracterizada em variadas formas. Veludo e Wado, além de prisioneiros do vício, alimentam-se de uma melancólica ilusão: o primeiro obrigado a roubar o dinheiro com que tentaria obter o afeto de um rapaz, e o segundo, querendo parecer condescendente, porque arranjaria mulheres mais bonitas do que Suely, mas na verdade tirando o sustento da canseira dela.

Nem a desforra do sarro deixado pelo mundo, com o encontro agradável de Wado, Suely consegue, e daí seu sentimento de que são seres reduzidos à imanência: "Às vezes chego a pensar: poxa, será que eu sou gente? Será que eu, você, o Veludo somos gente? Chego até a duvidar! Duvido que gente de verdade viva assim, aporrinhando o outro, um se servindo do outro". A condição de objeto, de criaturas exiladas no mundo (no submundo), que Suely intui, implica numa bonita nostalgia de transcendência, que engrandece a personagem e a recupera para uma ética superior. Aliás, a insubmissão a desvios, ressaltada no texto, já caracterizara a moralidade congênita de Suely, nao obstante o trabalho a que se dedica.

Por isso parecem-nos infelizes os consideranda do Departamento de Polícia Federal, ao proibir a encenação total ou parcial de Navalha na carne em todo o País (Portaria de 14 de junho, publicada no Diário Oficial da União no dia 19). Pode-se ler no documento:

"Compete à censura federal a seleção de espetáculos públicos, visando a preservar a sociedade de influências lesivas ao consenso comum, tendentes a aviltar os padrões de valores morais e culturais coletivamente aceitos. Os aspectos ofensivos ao decoro público inseridos em função de entretenimento popular tornam a representação antiestética e consequentemente comprometem-lhe o mérito artístico. Há uma profusão de sequências obscenas, termos torpes, anomalias e morbidez explorados na peça, a qual é desprovida de mensagem construtiva, positiva, e de sanções a impulsos ilegítimos, o que a torna inadequada a platéia de qualquer nível etário".

Permitimo-nos julgar que essas considerações foram feitas com base no que Navalha na carne tem de mais aparente e superficial. Desde que se adimita ser a peça uma obra de arte autêntica, está claro que não teve o intuito de chocar gratuitamente o público. Pode-se até concluir que, denunciando uma realidade, que precisa ser corrigida, ela acabaria por resguardar a sociedade dos males que a solapam. O tratamento artístico de uma situação nunca é antiestético, mas analisa em profundidade um fenômeno social.

A linguagem, se fosse amenizada, falsearia a caracterização psicológica e o ambiente. A piedade que as criaturas provocam no autor e nos espectadores traz uma mensagem construtiva, de amor e compreensão pelos seres marginalizados, que devem ser trazidos para o sadio convívio humano. O horror que a protagonista sente de tudo, repelindo com náusea os impulsos equívocos do homem que a explora, já representa uma sanção moral contra o meio em que vive. Ademais, cabe-nos discordar da exigência da mensagem construtiva e positiva. Ela se confunde, em geral, com as palavras de ordem, no campo da arte, dos regimes totalitários.

Os limites de Navalha na carne decorrem das próprias intenções do autor, cujo objetivo foi o de documentar uma realidade. A peça se inscreve, assim, dentro das fronteiras do realismo, ou de um neo-realismo, quando a literatura moderna procura abrir-se numa expressão mais ampla. O texto ainda se prende à idéia da ficção como forma de conhecimento e acreditamos que, nesse território, o ensaio pode ser muito mais eloqüente e conclusivo do que o teatro. Mas, sobretudo na dramaturgia brasileira, que experimenta numerosos caminhos, ela se impõe como estágio salutar para quebra de tabus e preparo do terreno em função de vôos mais altos. É uma inútil hipocrisia querer interditar para um público adulto a visão dessa realidade.
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O presente artigo foi extraído do livro Moderna Dramaturgia Brasileira (Editora Perspectiva/1998), leitura obrigatória para todos aqueles que desejam se aprofundar no entendimento da obra de alguns dos mais renomados dramaturgos nacionais, já que o livro é de autoria de um dos maiores críticos e ensaístas do País. O volume analisa textos de:

Oswald de Andrade
Nelson Rodrigues
Jorge Andrade
Ariano Suassuna
Vicente Catalano
Vinícius de Moraes
Pedro Bloch
Gláucio Gill
José Celso Martinez Corrêa
Augusto Boal
Dias Gomes
Domingos Oliveira
Oduvaldo Vianna Filho
Lauro César Muniz
Bráulio Pedroso
Plínio Marcos
José Vicente
Leilah Asssunção
Isabel Câmara
Consuelo de Castro
Mário Prata
Maria Adelaide Amaral
Juca de Oliveira
Edla van Steen
David George
José Eduardo Vendramini
Mara Carvalho
Alberto Guzik.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Joracy Camargo
e
sua obra-prima


R. Magalhães Júnior


O que dá a medida do êxito de uma peça teatral é a sua capacidade de resistência ao tempo. Os falsos sucessos são passageiros. Existem por um momento e, às vezes, dão a impressão de coisa definitiva. Contudo, não sobrevivem. Suas lembranças se adelgaçam na distância, seus ecos se perdem no tempo. Não foi o que aconteceu com Deus lhe pague, a famosa comédia de Joracy Camargo. Lembro-me ainda de seu lançamento, pois em tal época eu já estava dominado pela paixão do teatro, escrevendo, ou melhor, tentando escrever as minhas primeiras peças e já fazendo críticas.

É impossível descrever o entusiasmo com que todos acolheram a criação de Procópio Ferreira. Os retratos do grande ator apareceram nas capas das revistas de maior circulação. E as representações pareciam não ter mais fim. Um banquete no Palace Hotel, com discursos de muita gente - hoje só me lembro de que Gilberto Amado foi um dos que falaram - celebrou a vitória do então jovem autor. Semanas depois, brigavam empresários argentinos, para apresentar em seu país a peça de Joracy Camargo.

Dios se lo pague acabou indo à cena, simultaneamente, em dois teatros em Buenos Aires. Em viagem pelo Prata, em fins de 1934 e início de 1935, vi uma dessas versões, interpretada pelo ator Alfredo Camiña. Este não era nenhum Procópio. Mas que fabulosa realização cenográfica e que apuro geral na encenação! Quando voltei ao Brasil, nem o autor, nem o grande ator brasileiro estavam mais no Rio. Tinham ido levar Deus lhe pague a Portugal, onde, apesar das dificuldades com a censura, o êxito não foi menor.

Alguns anos mais tarde essa peça - que nunca mais deixou de ser representadíssima no Brasil e na Argentina, ao mesmo tempo que se multiplicavam suas traduções em idiomas estrangeiros - começava a ser objeto de interesse de empresas cinematográficas. Joracy Camargo cedeu seus direitos a uma companhia argentina, que a filmou com Arturo de Cordova e Zully Moreno. O filme levou Deus lhe pague não só a todas as nações de língua espanhola, mas a quase todo o mundo.

Em 1952, quando fui um dos delegados do Brasil ao Congresso Internacional de Direito Autoral, em Amsterdã, de passagem por Paris caminhava eu com Joracy Camargo, meu companheiro de delegação, pela "Avenue des Chapms-Elysées", quando no lado oposto vi um imenso cartaz cobrindo toda a fachada de um cinema. Chamei a atenção de Joracy Camargo:

- Que coisa curiosa! Aquela figura tem certa semelhança com um dos teus mendigos...

Marchamos para o cinema e já na metade do caminho pudemos ler o título do filme em questão: Le mendiant de minuit (O mendigo da meia-noite). Nenhuma referência, em letras grandes, a não ser esta: filme falado em francês.

- É um filme francês - disse Joracy, muito preocupado em ganhar tempo. - Vamos embora...

- Então continuemos por este lado...

Agora, diante do cinema, vendo as fotografias em exposição, vimos que se tratava justamente de Dios se lo pague, dublado em francês graças à reperscussão alcançada no Festival Cinematográfico de Veneza, onde a obra de Joracy Camargo conquistara o prêmio destinado ao melhor argumento. Todos esses desdobramentos justificam as sucessivas reedições que a famosa peça vem alcançando. Deus lhe pague concorreu, em grande parte, para que a Academia Brasileira de Letras conferisse a Joracy Camargo, sua maior láurea, o Prêmio Machado de Assis. Nos Estados Unidos, o texto tem sido utilizado no ensino de nosso idioma. O diálogo vivo, natural, brilhante, enxuto e preciso de Joracy Camargo é um exemplo de como se pode exprimir idéias em nossa língua com simplicidade e espontaneidade.

No panorama da dramaturgia brasileira, Deus lhe pague representa um verdadeiro marco: o do início do nosso teatro moderno. Três gerações anteriores tinham lançado as bases dessa dramaturgia: a de José de Alencar, Domingos de Magalhães, Gonçalves Dias, Pinheiro Guimarães, Quintino Bocaiúva e Joaquim Manuel de Macedo iniciou a arrancada; a de França Junior, Arthur Azevedo, Aluísio Azevedo, Moreira Sampaio, José Piza e Coelho Neto continuou-a; a de Paulo Barreto, Roberto Gomes, Viriato Corrêa, Oduvaldo Vianna, Armando Gonzaga, Paulo Gonçalves e Abadie Faria Rosa levou-a um pouco adiante.

Como uma ponte entre essa geração e a atual, Joracy Camargo foi o primeiro a ter a percepção de que era necessário abrir caminhos novos e trazer para a cena o debate de problemas antes proibidos. Hoje, Deus lhe pague, uma peça mansa e pacífica, tem trânsito livre em toda a parte. Mas chegou a estar proibida por algum tempo, como subversiva, só com tremendo esforço vindo a ser posteriormente liberada.

Sobre o que representou esta peça, nada melhor do que transcrever aqui algumas palavras da introdução que, na antologia Teatro Brasileiro Contemporâneo, escreveram os professores Wilson Martins, grande crítico brasileiro e Seymour Menton, o primeiro da New York University e o segundo da University os California, Irviney:

"Dez anos antes, quando estreou a peça de Joracy Camargo a situação era profundamente diversa. (...). Deus lhe pague, de seu lado, repercutiu como uma bomba e chegou a inquietar a polícia: era uma peça que 'pensava' e que 'fazia pensar'; no fundo, ela aceitava a organização social tal como existia, mas, pela primeira vez, permitia-se criticá-la".

Para os mesmos autores, Deus lhe pague "foi uma revolução no pensamento, sem chegar a ser uma revolução do teatro" em matéria de renovação dos processos de encenação. Vão mais adiante, traçando um paralelo entre Deus lhe pague e Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, que é outro marco da renovação de nosso teatro: "É possível pensar que, quanto ao conteúdo, Deus lhe pague era, no momento da sua criação, muito mais revolucionária do que Vestido de noiva em 1943", etc. O destino dessa peça, que Wilson Martins e Seymour Menton dizem ser de "crítica social e deliberadamente revolucionária" (qualquer que seja, em outro plano, a validade e a profundidade do seu pensamento) se completa agora, com sua apresentação, em edição popular, pelas EDIÇÕES DE OURO. Era sem dúvida um título que estava faltando entre seus clássicos.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Nelson Rodrigues
- a obra -

Hélio Pellegrino


A obra teatral de Nelson Rodrigues compõe-se de duas vertentes nítidas, cuja fisionomia complementar lhes confere plena unidade. Uma vertente prepara a outra, cava os alicerces da seguinte e ambas, numa síntese que jamais está ausente do conjunto da obra de qualquer artista importante, revelam a visão complexíssima que tem do mundo este teatrólogo robusto, sem dúvida dos maiores até agora surgidos em língua portuguesa.

Ao primeiro movimento da obra de Nelson Rodrigues, poderíamos chamar de mitológico. Aí encontramos este "mural primitivo, pintado com sangue e com excremento, onde se espoja toda a brutalidade poética do bicho-criatura humano", para usarmos a excelente expressão de Pompeu de Sousa. As grandes peças iniciais de Nelson Rodrigues - Vestido de noiva, Anjo negro, Senhora dos afogados, Álbum de família - pertencem a esse ciclo inaugural, genesíaco, onde o autor, voltado para as raízes mais profundas do seu inconsciente, busca encontrar a sua mitologia pessoal, fundante, ao mesmo tempo que, nesta pesquisa, exprime problemas e situações essenciais da espécie.

Essas peças do "ciclo mitológico" significam o movimento que faz o autor no sentido de sua interioridade, numa sondagem vertical das estruturas, a partir das quais a sua obra - e a sua própria personalidade - passam a conhecer-se e a construir-se. Claro está que a direção criadora dessa fase do teatro de Nelson Rodrigues tem repercussões na linguagem por ele usada e, além disso, se reflete na recorrência com que, numa mesma peça, as mesmas situações básicas se repetem, numa pseudo monotonia que, longe de significar simplificação e empobrecimento, tem todo o sentido de um trabalho humano, poético e dramático que traz em si a fatalidade de esgotar-se - para surgir à luz em toda a sua grandeza.

O autor escava os seus temas, gira em torno deles, exacerba-os para clarificá-los e, a uma crítica menos avisada, este esforço poderá parecer sobrecarga rebarbativa quando, em verdade, obedece apenas aos movimentos da sístole e diástole que caracterizam a pulsação do espírito em seus níveis inconscientes mais arcaicos. Amor e ódio, nascimento e morte, incesto e crime, gênese e apocalipse - tais são as massas incandescentes que giram no universo dramático de Nelson Rodrigues, na primeira fase do seu teatro, sem nenhum compromisso com a verossimilhança e sem pretender qualquer transcrição realista do mundo objetivo.

Este dado é muito importante para se compreender a estrutura dramática das peças de Nelson Rodrigues, na primeira etapa de sua criação. Acima da realidade está o mito, no que comporta de essencial e universal. Não se trata, aqui, de utilizar como substância dramática a situação concreta do homem no mundo, mas de iluminar, poética e intuitivamente, o feixe mais profundo de sua possibilidades conflitivas fundamentais. Em Álbum de família, por exemplo, - e escolho esta peça por considerá-la central dentro da obra de Nelson Rodrigues, e sua mais importante criação mítica - não se vai encontrar a história de uma família determinada, sofrendo a influência mediadora do seu tempo, do seu meio e apresentando, portanto, uma fisionomia, conflitiva, específica e historicamente condicionada.

Nessa obra, o que importa é o mito do incesto, tratado em todas as direções possíveis, desdobrado nos dilaceramentos e nos ódios que lhe são intrínsecos. Senhorinha, Nonô, Jonas, Glorinha não são pessoas de carne e osso, são símbolos, são arquétipos, solenes e terríveis na sua grandeza e na sua miséria super-humanas, e o não-entendimento deste fato gera equívocos ingênuos e grosseiros - como o da estupidez policial que interditou a peça por considerá-la imoral.
O homem, na sua marcha para a consciência, ou melhor, na sua busca dos Logos, arranca sempre do mito, do chão fecundo e obscuro de sua alma, onde fervem as situações fundantes em toda a sua ingênua e terrível crueldade.

É esse mundo, e esse humus pré-lógico que Nelson Rodrigues, no seu esforço de estruturação de si mesmo e de sua obra, procura trabalhar e transcrever. Neste sentido, sua obra é tão imoral como a mitologia grega ou a mitologia de qualquer povo, crivada de incestos, de crimes, de sangue e excremento. E, ao chamar-se de tarados os personagens arquétipos de Nelson Rodrigues, cai-se no mesmo e profundo ridículo que corresponderia a uma acusação desse tipo feita a Édipo, no Édipo Rei, de Sófocles. A moral convencional se aplica aos humanos, não aos heróis míticos da espécie.

Eles são tão imorais ou tão elementares como um grande rio em plena enchente, destruindo casas, alagando campos, afogando crianças e rebanhos. E, ao mesmo tempo, esses heróis são profundamente morais, porque exemplares na sua coragem superhumana de descer aos abismos, clareando as trevas que dormem no fundo de cada ser humano e que nós - por não sermos heróis - não conseguimos suportar.

Do ponto de vista da linguagem, as peças míticas de Nelson Rodrigues se adequam à matéria-prima dramática que lhes dá substância. A linguagem é solene, poética, encantatória. O verbo do mito participa de sua condição supra-racional. As imagens e os símbolos verbais estão carregados de sentido intuiitivo, iluminante, supra-coloquial. Não há nada, nessas peças, da banalidade cotidiana do prosaísmo sufocante que, depois, na sua segunda fase criativa, será a matéria de trabalho do grande damaturgo.

Nelson Rodrigues, na fase inaugural de sua obra, persegue o "autêntico real absoluto", de Novalis, a poesia que se identifica à verdade ideal e, por isto mesmo, ultrapassa o homem de carne e osso, encravado dentro do mundo, pojado do cotidiano que revela a sua pequenez e, ao mesmo tempo, a sua grandeza. Os personagens míticos de Nelson Rodrigues são sempre grandes, desmesurados, uma vez que - habitantes do Olimpo - participam da perenidade dos deuses antigos. Eles são intemporais, pois lançam suas raízes na matriz da alma humana - também intemporal - e deles não se pode esperar que sejam o retrato do homem histórico, mas a sua transposição transfigurada para o plano do mito.

Já na segunda fase de sua obra, Nelson Rodrigues, tendo encontrado em si mesmo, através da vertente mítica, os temas fundamentais de sua equação pessoal e de sua dramaturgia, caminha ao encontro não do homem imortal, mas do homem que morre. "Esse bicho da terra tão pequeno", mergulhado na sua ecologia específica, morador do subúrbio, crivado de contradições, envenenado de banalidade, mas vivo, vivo na sua condição trágica de ser marcado pelo pecado e pela morte, será o barro a partir do qual Nelson Rodrigues, apos A falecida, passará a esculpir sua obra teatral.

É claro que existe uma unidade essencial entre ambos os movimentos dessa obra. A comédia mítica se sucede à comédia humana. Ao homem como pura interioridade, se sucede o homem carioca, o homem do subúrbio, o ser humano particularíssimo nascido do homem geral mitológico. Esta marcha para a realidade, cujo primeiro lance, como vimos, é expresso através de A falecida, não significa uma ruptura de significados, mas um desdobramento analítico dos significados anteriores.

Da síntese intuitiva, isto é, da poesia, Nelson Rodriges parte para a análise de caracteres, isto é, para a prosa. E esta passagem da poesia para a prosa corresponde ao domínio, conquistado pelo autor, de sua temática pessoal profunda, de tal forma que já lhe é possível surpreender a poesia na prosa, as situações exemplares dentro do que é peculiar, particular, específico. Como Balzac, Nelson Rodrigues sabe agora que, no ambiente provinciano, nos pequenos meios afogados pela rotina, no subúrbio - que é a província do dramaturgo - se escondem as mais intensas paixões humanas.

A partir de A falecida passamos a assistir, na obra de Nelson Rodrigues, ao desfile dramático dos mesmos temas que fazem a pletora de sua fase mítica, mas já com outra conotação, com outra estrutura, com outra linguagem. Amor e ódio, nascimento e morte, gênese e apocalipse continuam a ser os assuntos que o obsedam. Mas esses movimentos da alma estão encarnados, ganham finitude, miséria, cotitianeidade, através da galeria de tipos criados pelo autor. Seus personagens descem do Olimpo, se aproximam de nós, exprimem a presença, em nós, dos grandes temas configurados à nossa dimensão humana e, nesse sentido, nos comovem e nos horrorizam mais - pois já agora ouvimos, por intermédio deles, a voz de nossos próprios horrores pessoais.

A grande novidade, a meu ver, dessa fase "balzaqueana" na obra de Nelson Rodrigues reside na linguagem. É óbvio que, a uma guinada tão intensa, qual seja a passagem da comédia mítica para a comédia humana, correspondeu necessariamente uma mudança decisiva e orgânica da linguagem. É admirável a maneira pela qual essa mudança foi feita. A linguagem de Nelson Rodrigues, em sua segunda fase criativa, possui uma formidável plasticidade, participa intrinsicamente do processo vivo dessa fase, chega a exprimi-lo - e, nas suas peças sucessivas, cada vez com mais força.

Pode-se caracterizar a obra de Nelson Rodrigues, desde A falecida, a partir da linguagem. Esta, à semelhança de seus personagens, desceu do Olimpo e se plantou no subúrbio, criou raízes neste ambiente, desceu até a sua terra mais profunda para brotar com um vigor e uma originalidade absolutos. É magnífica a forma pela qual Nelson Rodrigues, abandonando a semântica solene e hierática do mito, chegou libérrimo à expressão coloquial que colhe a palavra na sua fonte popular mais pura, sem nenhum recurso "literário", sem qualquer contrafação que revele o artifício ou a busca da simplicidade.

Sua linguagem é simples, porque é perfeita. E nesta medida, sendo simples, é complexíssima, pois traz consigo os meios expressivos que lhe possibilitam a revelação dramática de caracteres humanos e de situações metafísicas profundas. Acredito que Nelson Rodrigues, para realizar uma tal proeza semântica, se apoiou na experiência literária que para ele representa A vida como ela é, crônica diária de gosto quase sempre duvidoso, mas que lhe serve às mil maravilhas para afiar seus instrumento verbal. E, assim, sua crônica tem, dentro de sua obra, um papel auxiliar de primeira importância.
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Extraído de Nelson Rodrigues - Teatro quase completo, volume IV (tempo brasileiro/1966)

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"O homem inesperado"


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Deliciosa e emocionante viagem



Lionel Fischer


Como se sabe, toda viagem contém potencialmente alguma dose de risco. Não me refiro, evidentemente, a desastres concretos, como a queda de um avião ou o descarrilhamento de um trem. Por "risco" entendo a possibilidade de entrarmos em contato com realidades fora do roteiro previsto, que podem ser maravilhosas ou catastróficas. No pesente caso, um escritor famoso e uma mulher que muito o admira dividem a cabine de um trem que vai de Paris a Frankfurt.

Durante a viagem, ele tece considerações sobre sua vida e carreira literária, enquanto ela fala de seu passado e deixa claro que gostaria de estabelecer algum contato com o escritor. E este também, após algum tempo, manifesta o mesmo desejo. No entanto, tais confissões são feitas para a platéia e só nos instantes finais da viagem eles efetivamente se falam. Só no final da viagem. Por que seria?

Bem, a possível resposta virá mais adiante. Por ora, cabe registrar que "O homem inesperado", da escritora francesa Yasmina Reza, está em cartaz no Teatro Fashion Mall, com direção assinada por Emílio de Mello (supervisão de Daniel Filho) e elenco formado por Paulo Goulart e Nicette Bruno.

O presente texto pode ser encarado de diversas maneiras. E embora aborde uma série de temas, o principal me parece ser o tempo. Tanto no sentido do que já vivemos, de todas as recordações armazenadas, das reflexões que fazemos sobre o rumo que adotamos para nossas vidas, como também, e sobretudo, pelo tempo que consumimos tecendo inúteis considerações até termos coragem de materializar nossos impulsos.

No mundo atual, é facílimo para pessoas de todas as idades - e não apenas para os jovens - estabelecer uma infinidade de contatos via e-mail, messanger, orkut, torpedos etc. E isto por uma razão muito simples: valendo-se destes recursos, as pessoas utilizam apenas a palavra escrita, que pode ser elaborada com relativa calma e alguma prudência. Mas quando se trata de um contato ao vivo, a suposta e anterior espontaneidade cede lugar a um certo desconforto, uma espécie de timidez fruto da impossibilidade de se camuflar quem realmente somos. A palavra agora é falada, os olhares se encontram, e aí não há muita escapatória. A anterior empatia ou atração podem desaparecer numa questão de segundos.

No presente caso, os dois ótimos personagens perdem um tempo precioso, quando já poderiam ter estabelecido algum contato logo no início da viagem. E quando chegam a fazê-lo, o trem já está chegando a Frankfurt e eles provavelmente nunca mais se verão. Ou seja: optaram pelo discurso interno, por especulações solitárias de múltiplas naturezas, assim desperdiçando um encontro que poderia ser fundamental em suas vidas. E, não custa nada registrar, não se trata de dois adolescentes, mas de pessoas maduras...

Com relação ao espetáculo, o excelente ator Emílio de Mello trabalha a cena de forma simples, priorizando o essencial: a meticulosa exposição do caráter dos dois personagens, que ora se materializa com muito humor, ora de forma um tanto melancólica. Mas sempre interessando profundamente a platéia, dadas as questões que ambos levantam e também porque todos os espectadores torcem avidamente para que ambos finalmente parem de divagar e assumam claramente o múto interesse.

No que diz respeito a Paulo Goulart e Nicette Bruno, o que ainda pode-se dizer sobre dois intérpretes tão maravilhosos? São casados na vida real, todos sabemos, mas isso não garantiria
uma contracena tão intensa, cúmplice e afetuosa como exibem. E vê-los juntos no palco sempre foi, e continuará sendo, um motivo de grande emoção. E como acredito que teatro e vida caminham de mãos dadas, Nicette e Paulo são um perfeito exemplo desta minha crença.

Assim, só posso parabenizar de forma entusiasmada a performance de ambos, irretocável sob todos os aspectos, cabendo registrar o longo e apaixonado beijo que trocam no palco durante os aplausos - como tenho a singular propriedade de chorar por razões que a outros fariam rir, devo confessar que, aplaudindo de pé a atuação do casal, me percebi com os olhos marejados; e só não cheguei a carpir como uma lavadeira grega por pura timidez...

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo a contribuição de todos os profissionais envolvidos neste projeto tão oportuno e emocionante - Daniel Filho (supervisão), Flávio Marinho (tradução), Marcos Flaksman (cenografia e concepção de imagens), Marília Carneiro e Antonio Araújo (figurinos), Aurélio de Simoni (iluminação) e Marcelo Alonso Neves (direção musical e trilha sonora original).

O HOMEM INESPERADO - Texto de Yasmina Reza. Direção de Emílio de Mello. Com Paulo Goulart e Nicette Bruno. Teatro Fashion Mall. Sexta e sábado, 21h30. Domingo às 18 e 20h.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Agreste Malvarosa"

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Bela fábula contra o preconceito


Lionel Fischer



Após ganhar os prêmios Shell e APCA (São Paulo) em 2004, a peça "Agreste", de Newton Moreno, foi exibida no Rio de Janeiro, no início de 2006, com o mesmo elenco (Paulo Marcello e João Carlos Andreazza) e direção (Márcio Aurélio) da versão paulista. E naquela ocasião, quando o jornal Tribuna da Imprensa ainda circulava, fiz uma excelente crítica, que tinha por título "Encontro inesquecível no Poeira". Agora o texto volta a ser exibido aqui com novo título ("Agreste Malvarosa") e numa versão completamente diversa, a começar pelo fato de que os personagens são interpretados por atrizes. Em cartaz no Teatro Municipal do Jockey, a peça chega à cena com direção assinada por Ana Teixeira e Stephane Brodt (Cia. Amok Teatro) e elenco formado por Millene Ramalho e Rita Elmôr.

Para os que não assistiram à montagem anterior, reproduzo agora um trecho do release que me foi enviado, e que sintetiza muito bem o enredo: "A história começa com um flerte no meio da cerca, quando um casal de lavradores descobre o amor. Cada um de um lado da cerca. Apesar de perceber que há 'algo no amor deles que não deveria aconntecer', um dia o casal de lavradores foge, rompe a cerca para viver junto em um casebre sertão adentro".

A percepção que ambos têm de que há algo de errado na paixão que começam a nutrir um pelo outro, de certa forma já induz o espectador a perceber o que é. Em todo caso, vou me abster de revelar o que o texto deixa implícito, em respeito aos espectadores que eventualmente não se dêem conta do que ocorre nas entrelinhas. Mais adiante, no entanto, tudo se esclarece, o que conduz a um desfecho trágico.

Bela e original, contundente em sua investida contra o preconceito relativo ao amor incondicional, esta fábula de Newton Moreno recebeu uma versão cênica bem ao estilo da Cia. Amok Teatro, que, dentre outras características, privilegia a música como elemento integrante da ação e confere a esta um caráter algo ritualístico.

No presente caso, porém, os diretores se excederam um pouco neste último aspecto, pois quase toda a ação transcorre em um ritmo por demais lento, e tal lentidão acaba minimizando a inegável riqueza do universo gestual das atrizes, assim como a forma sempre intensa com que articulam o texto. Acredito que, sem renunciar à estética da Amok Teatro, os encenadores poderiam ter imposto à cena uma pulsação mais vigorosa, o que impediria, por exemplo, que muitas vezes o sentido de algumas frases se perca, dada a forma tão cortada como são enunciadas.

Com relação às músicas criadas por Beto Lemos, sem dúvida belas e expessivas, certamente elas cumprem um papel importantíssimo no transcorrer da narrativa, mas às vezes seu volume chega a impedir a compreensão do que é dito - nessas passagens, pelo menos no que diz respeito a mim, fiquei indeciso sobre o foco que deveria privilegiar, até porque Beto Lemos toca muito bem violão, acordeão, tambor e rebeca.

No tocante ao elenco, Millene Ramalho e Rita Elmôr se entregam apaixonadamente à tarefa de narrar e viver múltiplos personagens, e o fazem de forma irrepreensível, exibindo total domínio de seus recursos expressivos. E a mesma excelência se faz presente na cenografia e figurinos assinados por Brodt, assim como na iluminação de Renato Machado.

AGRESTE MALVAROSA - Texto de Newton Moreno. Direção de Ana Teixeira e Stephane Brodt. Com Millene Ramalho e Rita Elmôr. Teatro Municipal do Jockey. Sexta e sábado, 21h30. Domingo, 21h.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Produto"


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Hilariantes delírios no Porão


Lionel Fischer


Um diretor de cinema recebe em seu escritório uma jovem atriz, a quem pretende convidar para protagozinar seu próximo filme. Mas como ela ainda desconhece o roteiro, ele começa a explicitá-lo. E o faz não apenas contando o enredo, mas esmiuçando-o de forma obsessiva, detalhando planos, imitando vozes, reproduzindo as rubricas, enfim, agindo ele próprio como se fosse ao mesmo tempo o diretor, o roteirista, a personagem a ser vivida pela atriz e uma série de outros papéis, mantendo invariavelmente um tom exacerbado, canastrão e delirante. Diante de tal quadro, a atriz permanece muda todo o tempo e acaba indo embora sem aceitar o papel.

Eis, em resumo, o enredo de "Produto", do dramaturgo inglês Mark Ravenhill. Em cartaz no Espaço Rogério Cardoso da Casa de Cultura Laura Alvim, a montagem chega à cena com direção de Marcelo Aquino e interpretação a cargo de Ary Coslov e Gabriela Munhoz.

Não sabemos exatamente qual possa ter sido a intenção do dramaturgo. Numa leitura apressada, poderíamos supor que pretendeu ironizar a figura dos diretores cinematográficos, que normalmente se julgam parentes próximos de Deus e portanto detentores do monopólio da verdade. Mas também é possivel um outro olhar: tenha ou não consciência do absurdo roteiro que defende com tamanha paixão, o fato é que o diretor tenta sofregamente convencer a jovem atriz em ascensão a participar do projeto, provavelmente por julgar que sua presença pode gerar lucro à delirante e apelativa empreitada.

Seja como for, o fato é que estamos diante de uma excelente comédia, que prende a atenção do espectador desde o início em função das hilariantes peripécias de um enredo completamente desvairado. E se a isto somarmos o excelente trabalho de todos os profissionais envolvidos nesta produção, o resultado só poderia ser uma noite repleta de surpresas e risos.

Com relação à montagem, Marcelo Aquino impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o texto, renunciando a marcações mais elaboradas - que aqui seriam totalmente dispensáveis - e se concentrando quase que totalmente no trabalho dos atores, por sinal irrepreensível.

Na pele do tresloucado James, Ary Coslov retorna aos palcos cariocas após prolongada e imperdoável ausência - tudo bem que tem dirigido peças de sucesso, assim como feito excelente trabalho como diretor de TV, mas mesmo assim me considero no direito de protestar, já que Coslov é um ator maravilhoso. E aqui exibe atuação irretocável, variando ritmos, inflexões, trabalhando otimamente as pausas e conseguindo conferir total credibilidade a um personagem completamente alucinado.

E a mesma eficiência se faz presente na performance de Gabriela Munhoz, que, como já foi dito, sem pronunciar uma única palavra, consegue transmitir todas as emoções que assaltam Olívia, sempre de maneira sutil e expressiva. Serve como exemplo para todos os atores - iniciantes ou veteranos - que avaliam a importância de um papel pela quantidade de suas falas. Não pode haver maior equívoco do este. Na dúvida, é só dar uma conferida na irrepreensível performance de Gabriela Munhoz.

Na equipe técnica, Marcos Flaksman cria uma cenografia simples e funcional, composta de duas cadeiras giratórias e um espelho, elementos suficientes para que a trama se desenrole de forma eficiente. Rô Nascimento responde por ótimos figurinos, a mesma excelência aplicando-se à luz de Aurélio de Simoni, à ótima tradução de Rachel Ripani e à trilha sonora (muito divertida) de Coslov.

PRODUTO - Texto de Mark Ravenhill. Direção de Marcelo Aquino. Com Ary Coslov e Gabriela Munhoz. Porão da Laura Alvim. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Barata Ribeiro 193"


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Artistas: ser ou não ser


Lionel Fischer


Como já disse em várias críticas, é sempre melhor se partir de uma boa idéia quando se pretende escrever uma peça - ou fazer seja o que for. Mas isso em nada garante a qualidade do produto final, já que algumas das maiores obras-primas dramatúrgicas tiveram como ponto de partida idéias não necessariamente brilhantes, sendo o maior exemplo Hamlet, de Shakespeare, sabidamente o melhor texto já escrito. Qual o enredo de Hamlet? Logo no início, um jovem príncipe é informado pelo fantasma de seu pai de que ele fora morto por seu irmão, que ora ocupa seu lugar no trono e no leito de sua ex-esposa. E então? Trata-se de uma idéia deslumbrante? Obviamente que não. O que confere ao texto sua insuperável grandeza é a forma como Shakespeare o desenvolveu, os magníficos personagens que criou, os diálogos impregnados de belíssima poesia, as pertinentes reflexões que empreende, a ação avassaladora etc.etc.

Com isto quero dizer basicamente o seguinte: no presente caso, Márcio Libar escreveu um texto cuja essência repousa em um contexto já muito explorado, qual seja: três jovens que ambicionam viver de sua arte dividem o mesmo apartamento e lutam para materializar seus sonhos, além de enfrentar as habituais dificuldades do dia-a-dia, como comer e pagar o aluguel, dentre outras.
Daí poderia resultar algo de grande valor ou um produto como este, que, mesmo não isento de méritos, deixa um pouco a desejar.

Com criação assinada por Márcio Libar, Lázaro Menezes, Vitor Peres e Bernardo Mendes, e direção e dramaturgia sob a responsabilidade de Libar, "Barata Ribeiro 193" está em cartaz no Teatro Planetário da Gávea/Maria Clara Machado, estando o elenco formado por Lázaro Menezes, Vitor Peres e Bernardo Mendes.

Tudo se passa no período de três meses, de 31 de dezembro de 2008 a 23 de março de 2009. João Fischer (seria meu parente?), mineiro de São Pedro dos Ferros, ambiciona ser dramaturgo, e divide o apartamento com o carioca Daniel, que pretende ser ator. Eles acabam aceitando como parceiro de moradia o gaúcho Arlindo, recém chegado de Passo Fundo, que também deseja fazer carreira como ator, embora também cante, dance e toque instrumentos. Tal "arranjo" visa, fundamentalmente, amortecer a cota de aluguel de cada um.

Isto posto, tem início a trama propriamente dita, que, ao menos em princípio, deveria gerar empatia na platéia, que certamente haveria de torcer para que todos conseguissem tiunfar como artistas. Mas aí surge o primeiro problema. Ainda bem no início do espetáculo, o candidato a dramaturgo expõe o tema de sua peça: ele nos fala de um boi em frente ao qual existe uma enorme poça de sangue. E tudo parece se resumir a isto, posto que ele nada mais fala. O gaúcho fica meio perplexo e a platéia ri. Então, uma questão me ocorreu: estaria Libar pretendendo mostrar que nem todos, por mais que o desejem, podem se tornar artistas? Esta me parece ser a única conclusão possível, dada a debilidade do tema em que o "dramaturgo" vem trabalhando há tanto tempo. Consequentemente, dele só podemos nos apiedar, pois torna-se literalmente impossível torcer por alguém tão completamente destituído de talento.

Quanto a Daniel, o ator carioca que estuda na Ong de uma favela e eventualmente faz animações em festas ou eventos, ele exibe aquele comportamento típico dos habitantes deste aprazível balneário: é relaxado fisicamente, gosta de soltar piadas e tenta sempre encontrar soluções práticas para os problemas que enfrenta - menos a última, que omitimos por razões óbvias e que acaba conduzindo a um desfecho trágico. Mas ainda assim jamais consegui acreditar realmente em sua paixão pela arte de representar, no sentido mais radical do termo - aliás, tal descrença se apóia em uma frase que já conhecia, dita pelo personagem: "Resolvi ser artista para não ter que acordar cedo".

No que se refere ao gaúcho Arlindo, este é sem dúvida o personagem mais bem estruturado, pois em nenhum momento duvidamos da honestidade de suas ambições, e muito menos do seu preparo - como já foi dito, além de representar ele canta, dança e toca vários instrumentos. E mais: abandonou sua cidade natal mesmo sabendo que poderia passar em um concurso público que fez, cujo resultado ainda ignora, mas que se aprovado lhe daria condições de usufruir uma vida menos instável do que a inerente a qualquer carreira artística.

Pois bem: se de fato minha avaliação sobre o perfil dos três personagens está correta - trata-se apenas de uma hipótese e, como tal, sujeita a todos os enganos - o principal conflito deveria girar não tanto em torno de dificuldades financeiras, mas sim da possibilidade ou não de alguém ser realmente artista, fato que independe da vontade ou até mesmo de esforço. E sendo os três personagens tão diferentes, as discussões entre eles poderiam ser altamente pertinentes, já que os três defenderiam pontos de vista diversos, dada a singularidade de cada um. E se isso acontece eventualmente - pois de fato acontece - acredito que a peça se tornaria mais interessante e contundente se tais questões fossem mais aprofundadas, o que nos permitiria conhecer de forma mais visceral as inseguranças e incertezas de cada um.

Com relação ao espetáculo, Márcio Libar impõe à cena uma dinâmica despojada, quase que totalmente centrada nas relações entre os personagens - a exceção fica por conta de uns vídeo-clips, por sinal muito bons, feitos por Rômulo Pacheco. Trata-se de um decisão acertada, pois neste tipo de texto firulas formais são inteiramente dispensáveis. E sua atuação junto aos atores exibe mais acertos do que equívocos.

Vitor Peres, que intepreta o mineiro João, entrega-se com paixão ao personagem, mas deve atentar para um detalhe: muitas vezes ele parece estar drogado ou ter bebido muito, quando imagino que deseje transmitir esgotamento. Bernardo Mendes convence parcialmente na pele do carioca Daniel, só não o fazendo totalmente porque exibe alguns problemas de dicção e emissão vocal, sobretudo nas passagens em que seu personagem fala rápido. Quanto a Lázaro Menezes, este é sem dúvida o mais preparado dos três: tem boa voz, presença e ótimo preparo corporal.

Na complemento da equipe técnica, são corretos os figurinos de Miguel Salgado, a cenografia de Dodô Giovanetti e a iluminação de Luis Carlos Nem, cabendo destacar a música incidental de Lázaro Meneses e a trilha tema de Bena Lobo, que conta com ótima letra de Rômulo Pacheco.

BARATA RIBEIRO 193 - Texto e direção de Márcio Libar. Com Vitor Peres, Lázaro Menezes e Bernardo Mendes. Teatro Planetário da Gávea/Maria Clara Machado. Sábado e segunda, 21h. Domingo, 20h.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Oui, oui...A França é aqui - A Revista do ano"


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Diversão e encantamento na Maison


Lionel Fischer


Por razões que não cabe aqui detalhar, o fato é que não assisti à vitoriosa temporada deste espetáculo no ano passado. Mas agora pude fazê-lo e assim constatar que todos os elogios que escutei a respeito do mesmo eram mais do que merecidos. Tendo como formato a revista-de-ano e fio condutor da trama a comédia de costume O tipo brasileiro, de França Junior, os autores Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche criaram um delicioso musical que faz uma espécie de apanhado dos mais de 500 anos de influência da França no Rio de Janeiro.

Com direção assinada por João Fonseca, o espetáculo está em cartaz no Teatro Maison de France. No elenco, Gottsha, Marya Bravo, Solange Badim, César Augusto, Cristiano Gualda e Gustavo Gasparani, acompanhados pelos músicos Nando Duarte, Fabiano Salek e João Bittencourt.

Apoiado em um roteiro com dezenas de canções maravilhosas, o musical faculta ao espectador uma visão ao mesmo tempo séria (no sentido histórico) e completamente desvairada da já mencionada influência francesa na cultura carioca. Contendo tipos hilariantes, diálogos engraçadíssimos, tiradas saborosas e situações que oscilam entre o real e o delirante, Oui, oui...a França é aqui merece ser considerado um entretenimento de altíssimo nível, que diverte e emociona simultaneamente em graus superlativos - na saída do teatro, uma senhora virou-se para mim e como se me conhecesse de longa data, afirmou: "Por mim, ficaria aqui a noite inteira!". Acho que eu também.

Quanto à direção, João Fonseca realiza aqui um de seus melhores espetáculos. Valendo-se de marcações imprevistas e sempre divertidas, assim como de um ritmo pleno de vigor, o encenador constrói uma montagem absolutamente encantadora, que cativa o espectador desde o primeiro momento e o mantém subjugado até o final. Sem dúvida, um dos mais significativos espetáculos atualmente em cartaz e que esperamos que permaneça em cena por muito tempo. O Rio de Janeiro, já tão combalido por suas habituais misérias, merece esse inesquecível momento de lazer e mais do que merecida alegria.

Com relação ao elenco, todos os atores exibem desempenhos irretocáveis, tanto no que diz respeito ao canto como à dança e à representação. Formam um conjunto absolutamente coeso e que transmite à platéia o enorme prazer que sentem de estar em cena. De qualquer forma, torna-se impossível não conferir um destaque especial a Gustavo Gasparani e a Solange Badim.

Gustavo Gasparani é um ator completo, um verdadeiro comediante, capaz de conferir credibilidade a tudo que faz. Tem presença, carisma, ótima voz, canta muitíssimo bem e dança esplendidamente - aliás, quanto a este último quesito, me vejo forçado a confessar que sempre que vejo Gustavo dar uma "sambadinha", minha inveja ultrapassa os limites do suportável. E os mesmos predicados se aplicam a Solange Badim, atriz que ainda não atingiu um reconhecimento público compatível com seu enorme talento - mas certamente os sempre caprichosos deuses do teatro haverão, o mais breve possível, de alçá-la à condição que já há muito merece: a de uma das melhores intérpretes em atividade no Rio de Janeiro.

Com relação aos demais integrantes desta brilhante equipe, destacamos com o mesmo entusiasmo a direção musical de João Callado e Nando Duarte, a performance dos músicos, os engraçadíssimos e delirantes figurinos de Marcelo Olinto, a expressiva iluminação de Paulo César Medeiros, a criativa cenografia de Nello Marrese, a saborosa coreografia de Sueli Guerra, a preparação vocal de Pedro Lima e o excelente release que me foi enviado pelo assessor de imprensa Marcelo Rocha, contendo não apenas detalhadas informações sobre o espetáculo como também no tocante a todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral.

OUI, OUI...A FRANÇA É AQUI - Texto de Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche. Direção de João Fonseca. Com Gottsha, Marya Bravo, Solange Badim, César Augusto, Cristiano Gualda e Gustavo Gasparani. Teatro Maison de France. Quinta e sexta, 19h30. Sábado e domingo, 20h.