Teatro/CRÍTICA
"Aquelas mulheres"
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As aparências enganam
Lionel Fischer
Costuma-se dizer que as aparências enganam. Talvez não enganem sempre, mas com toda certeza no presente caso. Senão, vejamos: numa leitura apressada e superficial, poderíamos supor estar diante de um enredo girando em torno de um jovem escritor em ascensão que, tendo decidido se casar, ao mesmo tempo sente inadiável necessidade de se redimir perante algumas de suas ex-namoradas, as quais abandonou. Então, ele se encontra com quatro delas, em quartos de hotel, sempre em cidades diferentes, e com elas tenta travar diálogos que, em sua opinião, teriam o poder de aliviar sua suposta culpa.
No entanto, não é nada disso que acontece. Autor de um único conto de relativo sucesso, conto este "levemente inspirado" em suas experiências amorosas, o homem agora objetiva escrever um romance. Mas como não consegue extrair de si mesmo a matéria ficcional, procura as ex-namoradas munido de um gravador - fato só revelado no quarto e último encontro -, o que destrói por completo a imagem que dele poderíamos fazer até então: um homem realmente arrependido do que fez e que parte determinado em busca da própria redenção.
De autoria de Neil LaBute, "Aquelas mulheres" está em cartaz no Teatro Fashion Mall, com direção assinada pelo cineasta Flávio R. Tambellini e elenco formado por Pedro Brício (Homem), Larissa Maciel (Sam, namorada de Seattle), Tyler (Paula Braun, namorada de Chicago), Lorena da Silva (Lindsay, namorada de Boston) e Luiza Mariani (Bobbi, namorada de Los Angeles). Como se vê, o protagonista, além de conquistador inveterado e especialista em abandonos, deve nutrir também especial fascínio pela geografia...
Como imagino já estar ao menos sugerido, amor e redenção são coisas que nada interessam ao protagonista. E ele só não assume contornos de um verdadeiro crápula porque, em primeiro lugar, carece - e tudo sugere que tenha consciência disto - do indispensável talento que lhe permitiria escrever sem lançar mão do expediente acima mencionado. Ou seja, é a impotência criativa que o move. E também porque não consegue camuflar sua insegurança, infantilidade e uma certa debilidade emocional típica dos norte-americanos, que, além disso, tentam ser sempre objetivos e pragmáticos, mesmo em questões amorosas, que, como todos sabemos, passam ao largo de quesitos como objetividade e pragmatismo.
Quanto ao texto articulado, Labute sem dúvida objetiva criticar o modus vivendi (cruzes!!!) de seu país, como o faz em todas as suas peças. E certamente consegue criar personagens interessantes e levanta questões pertinentes. Achamos, no entanto, que o texto poderia ter sido um pouco reduzido, o que o tornaria mais contundente.
No que se refere ao espetáculo, Flávio Tambellini impõe à cena uma dinâmica em consonância com o texto, conseguindo diversificar as marcações em função da relação do protagonista com as quatro ex-namoradas. Mas talvez pudesse ter encontrado uma solução mais teatral para a mudança dos cenários (seria mesmo imprescindível alterá-los completamente, com isso perdendo-se um tempo precioso?). Tudo bem que são quatro histórias distintas, mas como todas têm algo em comum, é possível que um intervalo menor entre elas - ou até mesmo a ausência de qualquer intervalo - conferisse à montagem um caráter menos previsível e impregnado de maior nervosidade. Pensando não realisticamente, talvez fosse interessante imaginar que o protagonista, ao invés de visitar sua ex-namoradas, fosse por elas "visitado", como se as tais visitas já tivessem ocorrido e se materializassem na cena como penosas lembranças.
No tocante ao elenco, Pedro Brício intepreta com segurança e variedade emocional um personagem que só não chega a ser abominável porque é patético - o efetivo mal que causou às ex-namoradas me parece inferior ao mal que ele causou, e continuará a causar, a si mesmo. Na pele de Sam, Larissa Maciel faz de forma irretocável aquela típica caipira do interior, com capacidade mínima de refletir com maior profundidade sobre qualquer coisa. Paula Braun está excelente vivendo a descolada e irônica Tyler, cujo maior mérito é o de viver cada momento como se fosse o último, sem ficar inutil e neuroticamente presa a lembranças do passado. Lorena da Silva constrói muito bem a segura e algo vingativa Lindsay, cabendo ressaltar o modo como a atriz consegue mesclar o caráter autoritário e ao mesmo tempo sarcástico da personagem. Finalmente, Luiza Mariani (Bobbi) desenha com perfeição a personalidade mais lúcida do texto, aquela que desmascara o protagonista e por isso o leva ao desespero, sem no entanto em nenhum momento apiedar-se dele e sequer cogitar a hipótese de reatar o relacionamento que tiveram, como ele acaba desejando.
Com relação à equipe técnica, Maneco Quinderé cria sutis variações luminísticas para cada uma das histórias, sublinhando com sensibilidade os múltiplos climas emocionais em jogo. Bettine Silveira responde por figurinos em total consonância com o caráter e condição social dos personagens, sendo corretas a cenografia de Cristina Borges e a trilha sonora do DJ Nepal.
AQUELAS MULHERES - Texto de Neil LaBute. Direção de Flávio R. Tambellini. Com Pedro Brício, Larissa Maciel, Paula Braun, Lorena da Silva e Luiza Mariani. Teatro Fashion Mall. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h.
domingo, 31 de janeiro de 2010
sábado, 30 de janeiro de 2010
A poesia, linguagem do teatro
José Javorsek
Em um estudo muito interessante sobre o "Teatro nos infernos" - é assim que Morvan Lebesque caracteriza o teatro de Artaud, de Beckett e de alguns outros - encontramos uma divisão bem simplificada da história do teatro em três grandes períodos.
Primeiro período
No início de sua história, o homem, esmagado pela sua insignificância e rodeado de mistérios, se dirige aos deuses e lhes lança um apelo patético: ele lhes suplica que desçam à terra para explicar o que ele, o homem, faz aqui na terra, ou melhor, para lhe determinar o que não deve fazer. É o tempo da invocação religiosa que se inicia pela simples dança sagrada e através da representação egípcia e em seguida grega, vai aos poucos se lacaizando. A poesia, na sua forma mais primitiva e ao mesmo tempo mais expressiva, oferece ao teatro da época seus verdadeiros meios de expressão. Se compreendemos a tragédia como uma presença mágica e fatal de realidades que só se manifestam indiretamente, ou melhor, que não são jamais representadas, então podemos estar quase certos que a poesia e a tragédia têm uma fonte de inspiração comum.
Segundo período
Cansado de apelar aos deuses, o homem afasta seu olhar do céu e o dirige para dentro dele mesmo. Ele se escolhe como espetáculo, acaricia seu retrato no espelho, planta-se audaciosamente no centro da cena. Se tentarmos compreender o papel da poesia neste segundo grande período do teatro, constatamos que foi rechaçado para um segundo plano e que perdeu seu antigo poder ativo. O primeiro plano é ocupado pela ação, pela intriga, pela história, enfim, caracteres humanos e pelos conflitos que daí resultam. É o teatro literário que lança suas raízes, e o teatro elisabetano é o único que ainda conserva uma parte de sua antiga magia poética. Este teatro literário se degrada, transformando-se lentamente em um teatro psicológico, numa fotocópia da vida real. Aos poucos, o teatro, que escolheu a sociedade dos homens como assunto de seus espetáculos, torna-se por sua vez um jogo da sociedade e muito freqüentemente um empreendimento só para a diversão. A poesia foi totalmente banida dele.
Terceiro período
Peço desculpas por citar mais uma vez Morvan Lebesque, cujas formas de simplificação me parecem excelentes: "Milênios se passaram e o homem não se tornou talvez semelhante aos deuses, como ele desejaria, mas penetrou, abrindo uma brecha, em seu vasto domínio. Graças aos recursos de seu cérebro, primeiro conheceu o universo e sua forma, em seguida lançou-se no espaço e agora possui o privilégio essencialmente divino de habitar os planetas e destruí-los. O homem se tornou seu próprio deus, e se ele se contempla, ele o faz das alturas, do plano elevado de máquinas onde antes ele colocara Zeus e o Cristo - das altitudes vertiginosas onde sua inteligência se instalou, precedendo seu corpo". Tentaremos demonstrar como neste terceiro período, quer dizer, na época moderna, a poesia reencontrou seu papel ativo, função que havia perdido durante alguns séculos.
Mas é preciso imediatamente reconhecer que a arte do teatro vem entre as últimas artes que progrediram no sentido ditado pela época moderna. Há um século já a poesia penetrara no mundo novo, a pintura seguiu-a de perto, o mesmo acontecendo com a música. Só a arte do teatro continuou até a pouco tempo presa às tradições antigas. Claudel, por exemplo, um grande poeta dramático, foi obrigado a esperar quase meio século para que lhe fizessem justiça, permitindo que sua obra fosse levada à cena. Mesmo um movimento literário tão forte e também tão revolucionário como o surrealismo não conseguiu revolucionar uma arte que se aburguesara tão profundamente.
Antonin Artaud, o teórico-mártir da renovação poética do teatro, morreu sem ver realizadas suas idéias, que só tomaram corpo depois de 1950 através do chamado teatro de vanguarda ou teatro do absurdo - ou seja, teatro moderno. E mesmo hoje subsiste nos lugares mais diferentes do mundo um teatro tipicamente burguês, por conseguinte um teatro falsamente realista, pretensiosamente psicológico ou psicanalítico, um teatro totalmente desprovido de poesia. Eis porque o teatro moderno teve que ser em primeiro lugar e antes de mais nada um protesto contra o incrível estreitamente imposto à cena.
Mas não sejamos vítimas de um malentendido: como a poesia não é sinônimo da versificação, assim também a poesia no teatro não se confunde com a poesia de teatro. Desde a idade clássica até "Chantecler", conhecemos milhares de versos, e pode ser que estes versos conduzam a alma ao transcendente invisível, mas não se trata em quase nenhum dos casos de poesia do teatro. Trata-se talvez de uma sucessão de temas líricos, idílicos, épicos, dialogados de uma maneira mais ou menos feliz, eis tudo.
Entretanto, a obra teatral não é somente texto; a obra teatral se compõe de gritos, de lamentações, de aparições, de surpresas; de marcações de cena de toda a espécie, da beleza mágica dos figurinos, do jogo de luz fantástico e quase perturbador, da beleza das vozes também: vozes de timbre e de forças diversas, vozes roucas, vozes suaves, vozes augustas, vozes ingênuas, vozes que parece enfeitiçar...e ainda de gestos, mímicas, danças, acrobacias, cores, pinturas, cenário, música - e mesmo de intrigas e histórias.
Porque é importante reconhecer que, se nos esquecemos que o teatro possui sua linguagem própria, sua poesia própria, a culpa é de Aristóteles que descreveu as fissuras do teatro e substituiu a loucura divina por fórmulas matemáticas. E estas mesmas fórmulas matemáticas acabaram dissecando o teatro, torcendo-lhe o pescoço e abaixando o seu nível até o ponto onde encontramos hoje em dia um pouco por toda a parte. Não faz muito tempo que, sentindo-nos atraídos pela verdadeira obra teatral, começamos a pesquisar as tradições mais antigas do teatro. Estas tradições conservaram a escritura teatral primitiva, o que explica que a nossa curiosidade de hoje em dia esteja orientada para as civilizações antigas e que procuremos pacientemente compreender a história e a beleza do "Nô" japonês, das cerimônias hititas, do teatro do antigo Egito, do antigo teatro hindu, da ópera chinesa, do teatro de Java e de Bali, da dramaturgia do México antigo.
Não se explica este fato pelo gosto do exótico ou pelo processo atual de integração das civilizações. Mas a causa deste novo interesse está no fato de que podemos encontrar nas obras teatrais destas civilizações antigas a inspiração de uma criação nova, através da qual reaparecerá o verdadeiro teatro com todo o seu brilho original. Por conseguinte, iremos também salvar a poesia, esta poesia que por múltiplas razões, encontra cada vez menos aceitação pelo espírito de nossa época, mas que no teatro conservará seu poder comunicativo, pois que o teatro é uma arte coletiva.
O teatro é a poesia no espaço, é o maior dos mistérios da poesia, por o Verbo, este veículo impalpável da poesia, se fez carne, se incarna diante dos olhos dos espectadores. E assistimos a este espetáculo maravilhoso que é o verbo se tornando gesto, ritmo, luz, enfim, se materializando diante de nós. Ficamos maravilhados observando como o teatro desperta as imagens adormecidas e as faz surgir no movimento e no espaço tal como Lázaro retornando à vida. O teatro ressuscita a poesia, dá-lhe novamente a vida. Antonin Artaud comenta muito bem: "Esta linguagem concreta, destinada aos sentidos e independente da palavra deve satisfazer em primeiro lugar aos sentidos. Existe uma poesia para os sentidos, assim como existe uma poesia para a linguagem, e esta linguagem física e concreta à qual me refiro só é verdadeiramente teatral na medida em que os pensamentos que ela exprime escapam à linguagem articulada".
Sabemos hoje em dia que Antonin Artaud exagerou intencionalmente a perseguição à linguagem no teatro. Na verdade, esta linguagem articulada invadiu demasiadamente o palco e quase que anulou inteiramente a verdadeira expressão teatral. Daí este ódio injusto de Antonin Artaud. Mas hoje em dia a linguagem articulada encontra cada vez mais o seu justo lugar no teatro e inicia uma aventura sem precedentes. Muitas vezes a palavra se torna ela própria espetáculo e encontramos então palavras-bombas, palavras-estrelas, palavras-poeira, palavras-damas, palavras- cachorros, palavras que cantam e palavras que silenciam.
Aqueles que são apaixonados pela palavra podem ficar satisfeitos, pois o teatro com sua cores, suas luzes e sua maravilhosa atmosfera veste a palavra com roupagens suntuosas e lhe oferece o lugar mais prestigioso para se mostrar. Esta palavra está para o teatro assim como um soberbo manequim está para uma grande"boutique" de costureiros. Ela tem muito que fazer e muito que apresentar.
Há também uma linguagem do teatro moderno que poderíamos denominar de linguagem congelada, e que é o contrário da linguagem em festa, da linguagem musical, da linguagem-maravilha. Esta outra linguagem é uma linguagem dissecada, uma linguagem mecânica, uma linguagem-clichê, uma linguagem aborrecida, de um tédiio contagiante. É uma linguagem derrisória através da qual inúmeros problemas do homem moderno se manifestam de uma maneira teatral. Vemos por conseguinte que a palavra como veículo de comunicação guarda sua posição. Ela somente mudou seu papel literário e se investiu do papel feito para o palco. Nem poderia ser de outra maneira. O teatro é um fenômeno coletivo, que é produzido pela comunicação, que, naturalmente, pode ser feita de várias maneiras. A linguagem articulada continua, pois, sendo o elo mais divino de nossas comunicações.
Somente quando consideramos tudo que se passa no palco como imagens materiais da poesia é que chegamos à verdadeira obra teatral. Se nos convencermos que o público não procura o teatro burguês, mas que através dos crimes, do amor, das guerras, das intrigas e das infelicidades, ele procura um estado poético, um estado que transcende a vida, um estado que, pelo seu caráter coletivo, popular e quase físico só o teatro pode oferecer, se tudo isto é verdade, então a vanguarda do teatro de hoje será - esperemos - o começo de uma grande época do teatro moderno.
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Artigo extraído e um pouco reduzido da revista "Esprit" (dezembro de 1964). O artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 38/1967, edição já esgotada.
José Javorsek
Em um estudo muito interessante sobre o "Teatro nos infernos" - é assim que Morvan Lebesque caracteriza o teatro de Artaud, de Beckett e de alguns outros - encontramos uma divisão bem simplificada da história do teatro em três grandes períodos.
Primeiro período
No início de sua história, o homem, esmagado pela sua insignificância e rodeado de mistérios, se dirige aos deuses e lhes lança um apelo patético: ele lhes suplica que desçam à terra para explicar o que ele, o homem, faz aqui na terra, ou melhor, para lhe determinar o que não deve fazer. É o tempo da invocação religiosa que se inicia pela simples dança sagrada e através da representação egípcia e em seguida grega, vai aos poucos se lacaizando. A poesia, na sua forma mais primitiva e ao mesmo tempo mais expressiva, oferece ao teatro da época seus verdadeiros meios de expressão. Se compreendemos a tragédia como uma presença mágica e fatal de realidades que só se manifestam indiretamente, ou melhor, que não são jamais representadas, então podemos estar quase certos que a poesia e a tragédia têm uma fonte de inspiração comum.
Segundo período
Cansado de apelar aos deuses, o homem afasta seu olhar do céu e o dirige para dentro dele mesmo. Ele se escolhe como espetáculo, acaricia seu retrato no espelho, planta-se audaciosamente no centro da cena. Se tentarmos compreender o papel da poesia neste segundo grande período do teatro, constatamos que foi rechaçado para um segundo plano e que perdeu seu antigo poder ativo. O primeiro plano é ocupado pela ação, pela intriga, pela história, enfim, caracteres humanos e pelos conflitos que daí resultam. É o teatro literário que lança suas raízes, e o teatro elisabetano é o único que ainda conserva uma parte de sua antiga magia poética. Este teatro literário se degrada, transformando-se lentamente em um teatro psicológico, numa fotocópia da vida real. Aos poucos, o teatro, que escolheu a sociedade dos homens como assunto de seus espetáculos, torna-se por sua vez um jogo da sociedade e muito freqüentemente um empreendimento só para a diversão. A poesia foi totalmente banida dele.
Terceiro período
Peço desculpas por citar mais uma vez Morvan Lebesque, cujas formas de simplificação me parecem excelentes: "Milênios se passaram e o homem não se tornou talvez semelhante aos deuses, como ele desejaria, mas penetrou, abrindo uma brecha, em seu vasto domínio. Graças aos recursos de seu cérebro, primeiro conheceu o universo e sua forma, em seguida lançou-se no espaço e agora possui o privilégio essencialmente divino de habitar os planetas e destruí-los. O homem se tornou seu próprio deus, e se ele se contempla, ele o faz das alturas, do plano elevado de máquinas onde antes ele colocara Zeus e o Cristo - das altitudes vertiginosas onde sua inteligência se instalou, precedendo seu corpo". Tentaremos demonstrar como neste terceiro período, quer dizer, na época moderna, a poesia reencontrou seu papel ativo, função que havia perdido durante alguns séculos.
Mas é preciso imediatamente reconhecer que a arte do teatro vem entre as últimas artes que progrediram no sentido ditado pela época moderna. Há um século já a poesia penetrara no mundo novo, a pintura seguiu-a de perto, o mesmo acontecendo com a música. Só a arte do teatro continuou até a pouco tempo presa às tradições antigas. Claudel, por exemplo, um grande poeta dramático, foi obrigado a esperar quase meio século para que lhe fizessem justiça, permitindo que sua obra fosse levada à cena. Mesmo um movimento literário tão forte e também tão revolucionário como o surrealismo não conseguiu revolucionar uma arte que se aburguesara tão profundamente.
Antonin Artaud, o teórico-mártir da renovação poética do teatro, morreu sem ver realizadas suas idéias, que só tomaram corpo depois de 1950 através do chamado teatro de vanguarda ou teatro do absurdo - ou seja, teatro moderno. E mesmo hoje subsiste nos lugares mais diferentes do mundo um teatro tipicamente burguês, por conseguinte um teatro falsamente realista, pretensiosamente psicológico ou psicanalítico, um teatro totalmente desprovido de poesia. Eis porque o teatro moderno teve que ser em primeiro lugar e antes de mais nada um protesto contra o incrível estreitamente imposto à cena.
Mas não sejamos vítimas de um malentendido: como a poesia não é sinônimo da versificação, assim também a poesia no teatro não se confunde com a poesia de teatro. Desde a idade clássica até "Chantecler", conhecemos milhares de versos, e pode ser que estes versos conduzam a alma ao transcendente invisível, mas não se trata em quase nenhum dos casos de poesia do teatro. Trata-se talvez de uma sucessão de temas líricos, idílicos, épicos, dialogados de uma maneira mais ou menos feliz, eis tudo.
Entretanto, a obra teatral não é somente texto; a obra teatral se compõe de gritos, de lamentações, de aparições, de surpresas; de marcações de cena de toda a espécie, da beleza mágica dos figurinos, do jogo de luz fantástico e quase perturbador, da beleza das vozes também: vozes de timbre e de forças diversas, vozes roucas, vozes suaves, vozes augustas, vozes ingênuas, vozes que parece enfeitiçar...e ainda de gestos, mímicas, danças, acrobacias, cores, pinturas, cenário, música - e mesmo de intrigas e histórias.
Porque é importante reconhecer que, se nos esquecemos que o teatro possui sua linguagem própria, sua poesia própria, a culpa é de Aristóteles que descreveu as fissuras do teatro e substituiu a loucura divina por fórmulas matemáticas. E estas mesmas fórmulas matemáticas acabaram dissecando o teatro, torcendo-lhe o pescoço e abaixando o seu nível até o ponto onde encontramos hoje em dia um pouco por toda a parte. Não faz muito tempo que, sentindo-nos atraídos pela verdadeira obra teatral, começamos a pesquisar as tradições mais antigas do teatro. Estas tradições conservaram a escritura teatral primitiva, o que explica que a nossa curiosidade de hoje em dia esteja orientada para as civilizações antigas e que procuremos pacientemente compreender a história e a beleza do "Nô" japonês, das cerimônias hititas, do teatro do antigo Egito, do antigo teatro hindu, da ópera chinesa, do teatro de Java e de Bali, da dramaturgia do México antigo.
Não se explica este fato pelo gosto do exótico ou pelo processo atual de integração das civilizações. Mas a causa deste novo interesse está no fato de que podemos encontrar nas obras teatrais destas civilizações antigas a inspiração de uma criação nova, através da qual reaparecerá o verdadeiro teatro com todo o seu brilho original. Por conseguinte, iremos também salvar a poesia, esta poesia que por múltiplas razões, encontra cada vez menos aceitação pelo espírito de nossa época, mas que no teatro conservará seu poder comunicativo, pois que o teatro é uma arte coletiva.
O teatro é a poesia no espaço, é o maior dos mistérios da poesia, por o Verbo, este veículo impalpável da poesia, se fez carne, se incarna diante dos olhos dos espectadores. E assistimos a este espetáculo maravilhoso que é o verbo se tornando gesto, ritmo, luz, enfim, se materializando diante de nós. Ficamos maravilhados observando como o teatro desperta as imagens adormecidas e as faz surgir no movimento e no espaço tal como Lázaro retornando à vida. O teatro ressuscita a poesia, dá-lhe novamente a vida. Antonin Artaud comenta muito bem: "Esta linguagem concreta, destinada aos sentidos e independente da palavra deve satisfazer em primeiro lugar aos sentidos. Existe uma poesia para os sentidos, assim como existe uma poesia para a linguagem, e esta linguagem física e concreta à qual me refiro só é verdadeiramente teatral na medida em que os pensamentos que ela exprime escapam à linguagem articulada".
Sabemos hoje em dia que Antonin Artaud exagerou intencionalmente a perseguição à linguagem no teatro. Na verdade, esta linguagem articulada invadiu demasiadamente o palco e quase que anulou inteiramente a verdadeira expressão teatral. Daí este ódio injusto de Antonin Artaud. Mas hoje em dia a linguagem articulada encontra cada vez mais o seu justo lugar no teatro e inicia uma aventura sem precedentes. Muitas vezes a palavra se torna ela própria espetáculo e encontramos então palavras-bombas, palavras-estrelas, palavras-poeira, palavras-damas, palavras- cachorros, palavras que cantam e palavras que silenciam.
Aqueles que são apaixonados pela palavra podem ficar satisfeitos, pois o teatro com sua cores, suas luzes e sua maravilhosa atmosfera veste a palavra com roupagens suntuosas e lhe oferece o lugar mais prestigioso para se mostrar. Esta palavra está para o teatro assim como um soberbo manequim está para uma grande"boutique" de costureiros. Ela tem muito que fazer e muito que apresentar.
Há também uma linguagem do teatro moderno que poderíamos denominar de linguagem congelada, e que é o contrário da linguagem em festa, da linguagem musical, da linguagem-maravilha. Esta outra linguagem é uma linguagem dissecada, uma linguagem mecânica, uma linguagem-clichê, uma linguagem aborrecida, de um tédiio contagiante. É uma linguagem derrisória através da qual inúmeros problemas do homem moderno se manifestam de uma maneira teatral. Vemos por conseguinte que a palavra como veículo de comunicação guarda sua posição. Ela somente mudou seu papel literário e se investiu do papel feito para o palco. Nem poderia ser de outra maneira. O teatro é um fenômeno coletivo, que é produzido pela comunicação, que, naturalmente, pode ser feita de várias maneiras. A linguagem articulada continua, pois, sendo o elo mais divino de nossas comunicações.
Somente quando consideramos tudo que se passa no palco como imagens materiais da poesia é que chegamos à verdadeira obra teatral. Se nos convencermos que o público não procura o teatro burguês, mas que através dos crimes, do amor, das guerras, das intrigas e das infelicidades, ele procura um estado poético, um estado que transcende a vida, um estado que, pelo seu caráter coletivo, popular e quase físico só o teatro pode oferecer, se tudo isto é verdade, então a vanguarda do teatro de hoje será - esperemos - o começo de uma grande época do teatro moderno.
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Artigo extraído e um pouco reduzido da revista "Esprit" (dezembro de 1964). O artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 38/1967, edição já esgotada.
sexta-feira, 29 de janeiro de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Máscaras de penas penadas"
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Difícil relação entre palco e platéia
Lionel Fischer
"O monólogo fala do caminho interno percorrido pelo ator ao intepretar uma personagem, a solidão, a busca da inspiração, a evocação das Musas, o renascimento, a timidez, a relação do consciente com o inconsciente, o contato com as Musas, com Mercúrio, com os deuses do teatro Diana, Apolo e Dionísio, e a integração desses mitos com sua psique. Em cena, Leona Cavalli, acompanhada de percussão. A ação começa com a atriz se preparando para entrar em cena, quando percebe que ainda não está pronta para começar. Presenciamos então sua busca e iniciação no caminho percorrido para interpretar sua personagem e se comunicar com a platéia.O texto faz parte do livro Caminho das pedras, reflexões de uma atriz", de Leona Cavalli, que vem com o monólogo de Ana Vitória Vieira Monteiro e Áudio-Livro com trilha sonora de Chico César".
O trecho acima, extraído do release que me foi enviado, retrata com precisão o que se pretendeu materializar na cena. No entanto, tal materialização se dá de forma um tanto confusa, em especial para espectadores pouco familiarizados com a mitologia grega, como tentarei mostrar em seguida. Em cartaz no Centro Cultural Solar de Botafogo, Máscaras de penas penadas (que tem como sub-título Cantos dos cantos iniciáticos do ator) tem direção assinada por Georgette Fadel e Ana Vitória Vieira Monteiro.
Como dito no parágrafo inicial, a atriz se prepara para entrar em cena, mas por motivos ignorados afirma não estar pronta para fazê-lo. Então, dá início - ao que suponho - a mais um ensaio daquilo que deveria exibir, mesclando a interpretação de vários personagens mitológicos com apelos pessoais aos referidos Deuses e Musas, objetivando (também é uma suposição) deles obter algum tipo de resposta que contribua para sua iluminação e fortalecimento.
Mas mesmo que minha suposição esteja correta, dificilmente um espectador não familiarizado com a mitologia grega (como já foi dito) conseguirá estabelecer uma relação mais visceral com o espetáculo, tantas são as referências e mais ainda em função do ritmo por demais acelerado, de uma maneira geral. Afora isso, não compreendi muito bem a parte final do espetáculo, quando Leona Cavalli vira ela mesma (ou a atriz que está em cena) e faz confissões diretas à platéia, expondo sua timidez, insegurança e muitas outras questões. A montagem estaria, com essa quebra, tentando justificar seu começo, quando a atriz confessa não estar preparada?
Enfim...seja como for, o texto não deixa de exibir belas passagens, assim como o espetáculo tira partido dos vastos recursos expressivos de Leona Cavalli, tanto vocais como corporais. Aliás, cumpre registrar que considero Leona Cavalli uma atriz brilhante, com forte presença cênica, carisma e notável capacidade de entrega. Só lamento que todo esse enorme talento esteja aqui a serviço de algo que provavelmente poderia ser melhor usufruído como literatura, e não na forma de um espetáculo teatral.
Na equipe técnica, Chico César responde por ótima trilha sonora, a mesma excelência presente nos figurinos de Antônio Filho e na iluminação de Ricardo Fujii, cabendo ainda destacar a preparação corporal de Tica Lemos e a preparação vocal de Patrícia Cáceres.
MÁSCARAS DE PENAS PENADAS - Texto de Ana Vitória Vieira Monteiro. Direção da autora em parceria com Georgette Fadel. Com Leona Cavalli. Centro Cultural Solar de Botafogo. Quartas e quintas, 21h.
"Máscaras de penas penadas"
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Difícil relação entre palco e platéia
Lionel Fischer
"O monólogo fala do caminho interno percorrido pelo ator ao intepretar uma personagem, a solidão, a busca da inspiração, a evocação das Musas, o renascimento, a timidez, a relação do consciente com o inconsciente, o contato com as Musas, com Mercúrio, com os deuses do teatro Diana, Apolo e Dionísio, e a integração desses mitos com sua psique. Em cena, Leona Cavalli, acompanhada de percussão. A ação começa com a atriz se preparando para entrar em cena, quando percebe que ainda não está pronta para começar. Presenciamos então sua busca e iniciação no caminho percorrido para interpretar sua personagem e se comunicar com a platéia.O texto faz parte do livro Caminho das pedras, reflexões de uma atriz", de Leona Cavalli, que vem com o monólogo de Ana Vitória Vieira Monteiro e Áudio-Livro com trilha sonora de Chico César".
O trecho acima, extraído do release que me foi enviado, retrata com precisão o que se pretendeu materializar na cena. No entanto, tal materialização se dá de forma um tanto confusa, em especial para espectadores pouco familiarizados com a mitologia grega, como tentarei mostrar em seguida. Em cartaz no Centro Cultural Solar de Botafogo, Máscaras de penas penadas (que tem como sub-título Cantos dos cantos iniciáticos do ator) tem direção assinada por Georgette Fadel e Ana Vitória Vieira Monteiro.
Como dito no parágrafo inicial, a atriz se prepara para entrar em cena, mas por motivos ignorados afirma não estar pronta para fazê-lo. Então, dá início - ao que suponho - a mais um ensaio daquilo que deveria exibir, mesclando a interpretação de vários personagens mitológicos com apelos pessoais aos referidos Deuses e Musas, objetivando (também é uma suposição) deles obter algum tipo de resposta que contribua para sua iluminação e fortalecimento.
Mas mesmo que minha suposição esteja correta, dificilmente um espectador não familiarizado com a mitologia grega (como já foi dito) conseguirá estabelecer uma relação mais visceral com o espetáculo, tantas são as referências e mais ainda em função do ritmo por demais acelerado, de uma maneira geral. Afora isso, não compreendi muito bem a parte final do espetáculo, quando Leona Cavalli vira ela mesma (ou a atriz que está em cena) e faz confissões diretas à platéia, expondo sua timidez, insegurança e muitas outras questões. A montagem estaria, com essa quebra, tentando justificar seu começo, quando a atriz confessa não estar preparada?
Enfim...seja como for, o texto não deixa de exibir belas passagens, assim como o espetáculo tira partido dos vastos recursos expressivos de Leona Cavalli, tanto vocais como corporais. Aliás, cumpre registrar que considero Leona Cavalli uma atriz brilhante, com forte presença cênica, carisma e notável capacidade de entrega. Só lamento que todo esse enorme talento esteja aqui a serviço de algo que provavelmente poderia ser melhor usufruído como literatura, e não na forma de um espetáculo teatral.
Na equipe técnica, Chico César responde por ótima trilha sonora, a mesma excelência presente nos figurinos de Antônio Filho e na iluminação de Ricardo Fujii, cabendo ainda destacar a preparação corporal de Tica Lemos e a preparação vocal de Patrícia Cáceres.
MÁSCARAS DE PENAS PENADAS - Texto de Ana Vitória Vieira Monteiro. Direção da autora em parceria com Georgette Fadel. Com Leona Cavalli. Centro Cultural Solar de Botafogo. Quartas e quintas, 21h.
quarta-feira, 27 de janeiro de 2010
Estilo e caracterização
Martin Esslin
O drama é a mais social de todas as formas de arte. Ele é, por sua própria natureza, uma criação coletiva: o dramaturgo, os atores, o cenógrafo, o figurinista, o encarregado dos acessórios de cena, o iluminador, o eletricista e assim por diante, todos fazem sua contribuição, do mesmo modo que também o faz a platéia, por sua simples presença. A parte literária do drama, o texto, é fixo, uma entidade permanente, porém cada representação de cada produção daquele mesmo texto é uma coisa diferente, porque os atores reagem de forma diferente a públicos diferentes entre si, bem como, é claro, a seus próprios estados interiores.
Essa fusão de um componente fixo e outro fluido é uma das principais vantagens que o teatro ao vivo leva em relação aos tipos gravados de drama - o cinema, o radioteatro, o teleteatro. Ao fixar permanentemente a interpretação/representação, bem como o texto, esses veículos condenam seus produtos a um inevitável processo de obsolescência, simplesmente porque os estilos de interpretação, dos trajes e da maquilagem, bem como as próprias técnicas de fixação em um filme, disco ou tape, mudam também, de modo que antigas gravações de radioteatro ou filmes antigos levam a marca indelével de produtos ligeiramente ridículos de uma outra época. Só os grandes clássicos, como por exemplo O bulevar do crime, de Marcel Carné, ou as comédias de Charles Chaplin ou Buster Keaton são capazes de sobreviver àquela aura de época passada.
O componente mais importante de qualquer performance dramática é o ator. Ele é a palavra transformada em carne viva. E carne, aqui, é usada no sentido mais tangível do termo. As pessoas vão ao teatro, acima de tudo, para ver pessoas bonitas; e entre outras coisas os atores são, também, pessoas que se exibem por dinheiro. Negar um forte componente erótico a qualquer experiência dramática é a mais tola das hipocrisias.
Em verdade, uma das maiores forças do teatro - bem como de todas as outras manifestações do drama - é a de que ele opera em todos os níveis a um só tempo, desde os mais básicos até os mais sublimes, e que no melhor drama uns e outros alcançam fusão perfeita. Deleitamo-nos com a poesia de Shakespeare em uma peça como Romeu e Julieta não só por se tratar de poesia suprema, mas também porque tal poesia configura-se em uma linda jovem e um rapaz que despertam nossos desejos; o desejo estimula a poesia e a poesia enobrece o desejo e, assim, a divisão entre corpo e mente, entre terreno e espiritual - o que constitui, de qualquer modo, uma falsa dicotomia - é abolida e a natureza unificada do homem, animal e espiritual, reafirma-se.
Os atores corporificam e interpretam o texto fornecido pelo autor. E poderia parecer que eles são totalmente livres para fazê-lo do modo como bem entendessem. Mas isso só é verdade dentro de certos limites, já que o autor tem à sua disposição um instrumento muito poderoso para impor aos atores o modo de representação que deseja. Tal instrumento é o estilo. Suponhamos que um ator tenha que dizer a seguinte fala em uma peça:
"Diga-me, amigo, quais as suas novas!
Sou todo ouvidos, ânsias e temores
E pronto p'ra enfrentar o que vier..."
Ou que tivesse de expressar idéias idênticas em igual situação nos seguintes termos:
"Como é, Peter, vamos logo com essa história. Estou louco para saber as novidades...Sente-se aí...quer tomar alguma coisa?...Você sabe como isso é importante para mim...Estou tentando ser otimista sobre a resposta...mas não consigo deixar de ter dúvidas, também. Quer com água ou soda?...Como é, diga logo o que tem para dizer...pode deixar que eu agüento..."
É claro que a primeira passagem, sendo em verso e em linguagem ligeiramente literária, não pode ser interpretada com a aflição, o naturalismo, da segunda, que expressa pensamentos e circunstâncias perfeitamente semelhantes. Porém, ao compor a passagem em verso, o autor torna impossível, por exemplo, que o ator acompanhe sua ação oferecendo uma bebida qualquer ao seu visitante: pura e simplesmente não fica bem ficar perguntando a um amigo se ele prefere água ou soda nos ritmos um tanto solenes do verso branco (e se alguém o fizer, o resultado será um efeito um tanto ou quanto cômico, o que, obviamente não é o que se deseja aqui).
A passagem em linguagem literariamente enaltecida, portanto, obviamente terá de ser dita com o ator mantendo uma postura muito mais digna e despojada; seus gestos terão de ser infinitamente mais estilizados, sua máscara muito mais serena. Para que o ator use linguagem desse tipo, por exemplo, é inconcebível que fique coçando a cabeça ou esfregando o nariz enquanto fala. Porém, para o ator que estivesse dizendo a segunda fala, tudo isso seria perfeitamente possível: os ritmos são menos formais, mais quebrados, as palavras usadas mais corriqueiras. Brecht, um dramaturgo que era também soberbo diretor teatral, exigia que o autor usasse linguagem gestual, o que significa que deveria escrever de modo a impor ao ator o estilo correto do movimento e da ação, compelindo-o a restringir-se à idéia que o autor tinha do modo pelo qual suas palavras deveriam ser representadas.
Porém o estilo em que é escrito o texto dramático preenche igualmente uma outra função: a de informar a platéia. Pelo estilo no qual a peça foi escrita o público é imediata e, em grande parte, insconscientemente informado da maneira pela qual deverá aceitar a obra, o que deverá esperar dela e a que nível deverá a ela reagir. Pois a reação de uma platéia depende em grande parte de suas expectativas. Se estiverem sob a impressão de que a peça é para ser engraçada ficarão mais rapidamente predispostos a rir do que se souberem, de início, que a obra deve ser encarada com a mais profunda seriedade.
Parte disso é comunicado ao público pelo título, pelo autor, pelos atores, ou pelo fato de ela ser descrita no programa como comédia, tragédia ou farsa. No entanto, pode haver muita gente na platéia que não recebeu qualquer tipo de informação prévia, enquanto que, por outro lado, nem sempre se torna claro, mesmo após a leitura do programa, quais são as intenções do autor ou do diretor. Na primeira apresentação de Esperando Godot, de Beckett, peça escrita em um estilo extremamente insólito naquele tempo, o público não sabia como reagir, se devia rir ou chorar. Porém na maioria dos casos - e em relação a convenções já consagradas - o estilo das falas, da interpretação, o estilo do cenário e dos figurinos, transmitem imediatamente ao público as infomações necessárias, permitindo-lhe afinar suas expectativas com o nível adequado: esse estilo então lhe dirá, para permanecermos dentro dos limites de nosso exemplo, a que nível de abstração a peça se desenrolará.
Em uma tragédia de Racine, por exemplo, a própria natureza dos versos alexandrinos altamente formalizados torna imediatamente claro que a peça concentrar-se-á nas mais sublimes paixões de seus personagens. Nesse tipo de peça nada é dito a respeito das preocupações menores dos personagens envolvidos. Fedra ou Andrômaca jamais são vistas comendo ou em conversa fútil. O verso e o nível da linguagem em pouco tempo dão-nos consciência disso.
________________________________
Artigo extraído - e aqui bastante reduzido - do 2º capítulo do livro Uma anatomia do drama, cuja leitura consideramos indispensável (Zahar Editores, Rio de Janeiro/1978).
Martin Esslin
O drama é a mais social de todas as formas de arte. Ele é, por sua própria natureza, uma criação coletiva: o dramaturgo, os atores, o cenógrafo, o figurinista, o encarregado dos acessórios de cena, o iluminador, o eletricista e assim por diante, todos fazem sua contribuição, do mesmo modo que também o faz a platéia, por sua simples presença. A parte literária do drama, o texto, é fixo, uma entidade permanente, porém cada representação de cada produção daquele mesmo texto é uma coisa diferente, porque os atores reagem de forma diferente a públicos diferentes entre si, bem como, é claro, a seus próprios estados interiores.
Essa fusão de um componente fixo e outro fluido é uma das principais vantagens que o teatro ao vivo leva em relação aos tipos gravados de drama - o cinema, o radioteatro, o teleteatro. Ao fixar permanentemente a interpretação/representação, bem como o texto, esses veículos condenam seus produtos a um inevitável processo de obsolescência, simplesmente porque os estilos de interpretação, dos trajes e da maquilagem, bem como as próprias técnicas de fixação em um filme, disco ou tape, mudam também, de modo que antigas gravações de radioteatro ou filmes antigos levam a marca indelével de produtos ligeiramente ridículos de uma outra época. Só os grandes clássicos, como por exemplo O bulevar do crime, de Marcel Carné, ou as comédias de Charles Chaplin ou Buster Keaton são capazes de sobreviver àquela aura de época passada.
O componente mais importante de qualquer performance dramática é o ator. Ele é a palavra transformada em carne viva. E carne, aqui, é usada no sentido mais tangível do termo. As pessoas vão ao teatro, acima de tudo, para ver pessoas bonitas; e entre outras coisas os atores são, também, pessoas que se exibem por dinheiro. Negar um forte componente erótico a qualquer experiência dramática é a mais tola das hipocrisias.
Em verdade, uma das maiores forças do teatro - bem como de todas as outras manifestações do drama - é a de que ele opera em todos os níveis a um só tempo, desde os mais básicos até os mais sublimes, e que no melhor drama uns e outros alcançam fusão perfeita. Deleitamo-nos com a poesia de Shakespeare em uma peça como Romeu e Julieta não só por se tratar de poesia suprema, mas também porque tal poesia configura-se em uma linda jovem e um rapaz que despertam nossos desejos; o desejo estimula a poesia e a poesia enobrece o desejo e, assim, a divisão entre corpo e mente, entre terreno e espiritual - o que constitui, de qualquer modo, uma falsa dicotomia - é abolida e a natureza unificada do homem, animal e espiritual, reafirma-se.
Os atores corporificam e interpretam o texto fornecido pelo autor. E poderia parecer que eles são totalmente livres para fazê-lo do modo como bem entendessem. Mas isso só é verdade dentro de certos limites, já que o autor tem à sua disposição um instrumento muito poderoso para impor aos atores o modo de representação que deseja. Tal instrumento é o estilo. Suponhamos que um ator tenha que dizer a seguinte fala em uma peça:
"Diga-me, amigo, quais as suas novas!
Sou todo ouvidos, ânsias e temores
E pronto p'ra enfrentar o que vier..."
Ou que tivesse de expressar idéias idênticas em igual situação nos seguintes termos:
"Como é, Peter, vamos logo com essa história. Estou louco para saber as novidades...Sente-se aí...quer tomar alguma coisa?...Você sabe como isso é importante para mim...Estou tentando ser otimista sobre a resposta...mas não consigo deixar de ter dúvidas, também. Quer com água ou soda?...Como é, diga logo o que tem para dizer...pode deixar que eu agüento..."
É claro que a primeira passagem, sendo em verso e em linguagem ligeiramente literária, não pode ser interpretada com a aflição, o naturalismo, da segunda, que expressa pensamentos e circunstâncias perfeitamente semelhantes. Porém, ao compor a passagem em verso, o autor torna impossível, por exemplo, que o ator acompanhe sua ação oferecendo uma bebida qualquer ao seu visitante: pura e simplesmente não fica bem ficar perguntando a um amigo se ele prefere água ou soda nos ritmos um tanto solenes do verso branco (e se alguém o fizer, o resultado será um efeito um tanto ou quanto cômico, o que, obviamente não é o que se deseja aqui).
A passagem em linguagem literariamente enaltecida, portanto, obviamente terá de ser dita com o ator mantendo uma postura muito mais digna e despojada; seus gestos terão de ser infinitamente mais estilizados, sua máscara muito mais serena. Para que o ator use linguagem desse tipo, por exemplo, é inconcebível que fique coçando a cabeça ou esfregando o nariz enquanto fala. Porém, para o ator que estivesse dizendo a segunda fala, tudo isso seria perfeitamente possível: os ritmos são menos formais, mais quebrados, as palavras usadas mais corriqueiras. Brecht, um dramaturgo que era também soberbo diretor teatral, exigia que o autor usasse linguagem gestual, o que significa que deveria escrever de modo a impor ao ator o estilo correto do movimento e da ação, compelindo-o a restringir-se à idéia que o autor tinha do modo pelo qual suas palavras deveriam ser representadas.
Porém o estilo em que é escrito o texto dramático preenche igualmente uma outra função: a de informar a platéia. Pelo estilo no qual a peça foi escrita o público é imediata e, em grande parte, insconscientemente informado da maneira pela qual deverá aceitar a obra, o que deverá esperar dela e a que nível deverá a ela reagir. Pois a reação de uma platéia depende em grande parte de suas expectativas. Se estiverem sob a impressão de que a peça é para ser engraçada ficarão mais rapidamente predispostos a rir do que se souberem, de início, que a obra deve ser encarada com a mais profunda seriedade.
Parte disso é comunicado ao público pelo título, pelo autor, pelos atores, ou pelo fato de ela ser descrita no programa como comédia, tragédia ou farsa. No entanto, pode haver muita gente na platéia que não recebeu qualquer tipo de informação prévia, enquanto que, por outro lado, nem sempre se torna claro, mesmo após a leitura do programa, quais são as intenções do autor ou do diretor. Na primeira apresentação de Esperando Godot, de Beckett, peça escrita em um estilo extremamente insólito naquele tempo, o público não sabia como reagir, se devia rir ou chorar. Porém na maioria dos casos - e em relação a convenções já consagradas - o estilo das falas, da interpretação, o estilo do cenário e dos figurinos, transmitem imediatamente ao público as infomações necessárias, permitindo-lhe afinar suas expectativas com o nível adequado: esse estilo então lhe dirá, para permanecermos dentro dos limites de nosso exemplo, a que nível de abstração a peça se desenrolará.
Em uma tragédia de Racine, por exemplo, a própria natureza dos versos alexandrinos altamente formalizados torna imediatamente claro que a peça concentrar-se-á nas mais sublimes paixões de seus personagens. Nesse tipo de peça nada é dito a respeito das preocupações menores dos personagens envolvidos. Fedra ou Andrômaca jamais são vistas comendo ou em conversa fútil. O verso e o nível da linguagem em pouco tempo dão-nos consciência disso.
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Artigo extraído - e aqui bastante reduzido - do 2º capítulo do livro Uma anatomia do drama, cuja leitura consideramos indispensável (Zahar Editores, Rio de Janeiro/1978).
terça-feira, 19 de janeiro de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Restos"
................................................
Apaixonante reflexão sobre o amor
Lionel Fischer
Considerado um dos dramaturgos mais interessantes da atualidade, Neil Labute está de novo em cartaz no Rio de Janeiro com "Restos". A peça, após cumprir bela temporada em São Paulo, pode ser assistida no Teatro dos Quatro. Marcio Aurélio assina a direção da montagem, que tem como único intérprete Antonio Fagundes.
Na pele de Edwar Carr, Fagundes dá vida a um homem simples e bem-sucedido comerciante que, no velório da esposa (15 anos mais velha do que ele), recorda a maravilhosa relação que tiveram. E em meio a muitas lembranças, tece pertinentes considerações sobre vários temas, como o amor, a solidão, a hipocrisia e os preconceitos, dentre outros.
E sendo Labute um autor de ponta, é claro que tudo que diz sobre os temas acima mencionados nos geram múltiplas reflexões, ora um tanto amargas, ora impregnadas de humor. E essa é uma das razões - afora o desempenho de Fagundes, que comentaremos mais adiante - que leva a platéia a acompanhar com grande interesse o relato deste homem profundamente dilacerado, mas ao mesmo tempo capaz de manter-se lúcido a ponto de conseguir, em meio à sua dor, expor suas idéias, pensamentos e sentimentos com total clareza.
No entanto, uma revelação feita nos cinco minutos finais da peça gera uma enorme surpresa, sem dúvida impactante, mas que em nosso entendimento não seria necessária, já que, ao menos em princípio, em nada alteraria tudo que foi dito anteriormente. Seja como for, é obvio que não revelaremos a tal surpresa, que cada espectador interpretará como quiser.
No tocante à montagem, Marcio Aurélio teve o bom senso de concentrar todo o seu foco não em marcações mirabolantes, mas na performance de Fagundes. Graças a isso, temos mais uma vez o privilégio de usufruir a interpretação de um dos maiores atores da atualidade. Senhor absoluto de seus vastíssimos recursos expressivos, Fagundes consegue materializar na cena todos os conteúdos propostos pelo autor, exibindo atuação apaixonada e apaixonante.
Como já dissemos inúmeras vezes, este país pode carecer de tudo, menos de intérpretes extraordinários. Uma ida, portanto, ao Teatro dos Quatro, torna-se obrigatória, não apenas para os amantes do teatro, em geral, mas sobretudo para aqueles que apreciam a dificílima arte de representar.
Na equipe técnica, Clarisse Abujamra responde por ótima tradução, a mesma excelência presente na cenografia de André Cortez e na iluminação não assinada, com Ricardo Almeida respondendo pelo correto figurino.
RESTOS - Texto de Neil Labute. Direção de Márcio Aurélio. Com Antonio Fagundes. Teatro dos Quatro. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h.
"Restos"
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Apaixonante reflexão sobre o amor
Lionel Fischer
Considerado um dos dramaturgos mais interessantes da atualidade, Neil Labute está de novo em cartaz no Rio de Janeiro com "Restos". A peça, após cumprir bela temporada em São Paulo, pode ser assistida no Teatro dos Quatro. Marcio Aurélio assina a direção da montagem, que tem como único intérprete Antonio Fagundes.
Na pele de Edwar Carr, Fagundes dá vida a um homem simples e bem-sucedido comerciante que, no velório da esposa (15 anos mais velha do que ele), recorda a maravilhosa relação que tiveram. E em meio a muitas lembranças, tece pertinentes considerações sobre vários temas, como o amor, a solidão, a hipocrisia e os preconceitos, dentre outros.
E sendo Labute um autor de ponta, é claro que tudo que diz sobre os temas acima mencionados nos geram múltiplas reflexões, ora um tanto amargas, ora impregnadas de humor. E essa é uma das razões - afora o desempenho de Fagundes, que comentaremos mais adiante - que leva a platéia a acompanhar com grande interesse o relato deste homem profundamente dilacerado, mas ao mesmo tempo capaz de manter-se lúcido a ponto de conseguir, em meio à sua dor, expor suas idéias, pensamentos e sentimentos com total clareza.
No entanto, uma revelação feita nos cinco minutos finais da peça gera uma enorme surpresa, sem dúvida impactante, mas que em nosso entendimento não seria necessária, já que, ao menos em princípio, em nada alteraria tudo que foi dito anteriormente. Seja como for, é obvio que não revelaremos a tal surpresa, que cada espectador interpretará como quiser.
No tocante à montagem, Marcio Aurélio teve o bom senso de concentrar todo o seu foco não em marcações mirabolantes, mas na performance de Fagundes. Graças a isso, temos mais uma vez o privilégio de usufruir a interpretação de um dos maiores atores da atualidade. Senhor absoluto de seus vastíssimos recursos expressivos, Fagundes consegue materializar na cena todos os conteúdos propostos pelo autor, exibindo atuação apaixonada e apaixonante.
Como já dissemos inúmeras vezes, este país pode carecer de tudo, menos de intérpretes extraordinários. Uma ida, portanto, ao Teatro dos Quatro, torna-se obrigatória, não apenas para os amantes do teatro, em geral, mas sobretudo para aqueles que apreciam a dificílima arte de representar.
Na equipe técnica, Clarisse Abujamra responde por ótima tradução, a mesma excelência presente na cenografia de André Cortez e na iluminação não assinada, com Ricardo Almeida respondendo pelo correto figurino.
RESTOS - Texto de Neil Labute. Direção de Márcio Aurélio. Com Antonio Fagundes. Teatro dos Quatro. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h.
sexta-feira, 15 de janeiro de 2010
Mea culpa
Lionel Fischer
Dois queridos parceiros deste blog - Daniel e Pedro Colen - postaram comentários muito elogiosos sobre a crítica que fiz de "Macbeth", o que me deixou muito feliz e agradecido. Mas ambos se ressentiram da ausência de qualquer menção à produção, sem dúvida impecável. E ambos têm razão. Até pretendia fazê-lo, mas por qualquer motivo acabei esquecendo. Então, aí está o meu tardio arrependimento, mas certamente inadiável.
E aproveito a ocasião para dizer, aos parceiros deste blog, que acho de suma importância receber comentários, sejam elogiosos ou não, sobre o que escrevo. Em especial no tocante às críticas. Não pretendo, como jamais pretendi ao longo desses últimos 20 anos, deter o monopólio da verdade. E certamente cometo alguns enganos, ou deixo de ressaltar aspectos importantes de uma montagem. Assim, todas as observações serão benvindas e muito me ajudarão no exercício da crítica teatral.
E, apenas para finalizar: fiz parte da comissão da Eletrobras que concedeu patrocínio a "Macbeth", projeto que julguei da maior importância e que defendi com unhas e dentes - e muitas palavras, evidentemente. Tinha absoluta certeza de que "Macbeth", pela excelência de todos os profissionais envolvidos - inclusive os ligados à produção - só por um desses acasos inexplicáveis deixaria de resultar em um espetáculo de altíssimo nível. Ou seja: os comentários de Daniel e Pedro Colen tornam-se ainda mais pertinentes em face do que acabo de dizer. A ambos, mais uma vez, agradeço.
Lionel Fischer
Dois queridos parceiros deste blog - Daniel e Pedro Colen - postaram comentários muito elogiosos sobre a crítica que fiz de "Macbeth", o que me deixou muito feliz e agradecido. Mas ambos se ressentiram da ausência de qualquer menção à produção, sem dúvida impecável. E ambos têm razão. Até pretendia fazê-lo, mas por qualquer motivo acabei esquecendo. Então, aí está o meu tardio arrependimento, mas certamente inadiável.
E aproveito a ocasião para dizer, aos parceiros deste blog, que acho de suma importância receber comentários, sejam elogiosos ou não, sobre o que escrevo. Em especial no tocante às críticas. Não pretendo, como jamais pretendi ao longo desses últimos 20 anos, deter o monopólio da verdade. E certamente cometo alguns enganos, ou deixo de ressaltar aspectos importantes de uma montagem. Assim, todas as observações serão benvindas e muito me ajudarão no exercício da crítica teatral.
E, apenas para finalizar: fiz parte da comissão da Eletrobras que concedeu patrocínio a "Macbeth", projeto que julguei da maior importância e que defendi com unhas e dentes - e muitas palavras, evidentemente. Tinha absoluta certeza de que "Macbeth", pela excelência de todos os profissionais envolvidos - inclusive os ligados à produção - só por um desses acasos inexplicáveis deixaria de resultar em um espetáculo de altíssimo nível. Ou seja: os comentários de Daniel e Pedro Colen tornam-se ainda mais pertinentes em face do que acabo de dizer. A ambos, mais uma vez, agradeço.
quinta-feira, 14 de janeiro de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Macbeth"
......................................................
A tragédia da ambigüidade
Lionel Fischer
Por tratar-se de uma obra por demais conhecida, pensei inicialmente em me abster de resumir seu enredo. Mas então pensei nos jovens seguidores do meu blog e também nos possíveis jovens - e, compreensivelmente, ainda pouco informados - que lêem minhas críticas mensais no jornal Folha Zona Sul, e que talvez desconheçam a tenebrosa trama arquitetada pelo fabuloso bardo. Assim sendo, aí vai a sinopse da peça, extraída na íntegra do excelente release que nos foi enviado:
"Voltando de uma batalha, Macbeth e Banquo, generais do exército escocês do Rei Duncan, encontram três feiticeiras. Macbeth é saudado profeticamente por elas como futuro Barão de Cawdor e Rei da Escócia, e Banquo, como pai de uma linhagem de reis. Nobres escoceses trazem a mensagem de que o Barão de Cawdor havia sido executado por traição e que todas as suas terras e título passariam a Macbeth. A realização da primeira parte da professia impulsiona a ambição de Macbeth em se tornar rei. Em seu castelo, sua mulher, Lady Macbeth, lê com satisfação a carta do marido relatando o encontro com as bruxas e a esperança ali contida. Mais tarde, na noite em que o rei Duncan se hospeda no castelo de Macbeth, este decide matá-lo, com a ajuda de Lady Macbeth. O ato brutal dá início a uma série de assassinatos que Macbeth, já coroado rei, cometerá para se manter no trono. De bravo guerreiro e grande general do exército escocês que retorna vitorioso dos campos de batalha; de súdito leal, merecedor da mais alta confiança do rei, Macbeth se transforma em um assassino inescrupuloso e bestial, cujos atos sanguinários são movidos por um único impulso: a ambição".
Bem, agora que todos já tiveram acesso detalhado ao enredo, aconselho uma ida urgente ao Espaço Tom Jobim, pois nele está materializada uma excelente versão da mais curta e talvez mais sanguinolenta dentre todas as tragédia escritas por Shakespeare: "Macbeth". Com direção assinada por Aderbal Freire-Filho - um dos melhores encenadores do país e sem dúvida possuidor do mais belo sorriso do teatro brasileiro -, a peça chega à cena com elenco formado por Daniel Dantas (Macbeth), Renata Sorrah (Lady Macbeth), Andrea Dantas (1ª Bruxa, Velho, Lady Macduff e Dama), Camilo Bevilacqua (Rei Duncan, 2ª Aparição, Mensageiro e Siward), Charles Fricks (Ross, Seyton, 1ª Aparição e Garçon), Edgard Amorim (3ª Bruxa, Macduff, Assassino de Banquo e voz do Filho de Macduff), Erom Cordeiro (Malcom, Assassino de Banquo e Garçon), Felipe Martins (2ª Bruxa, Angus, Criado, Porteiro e Jovem Siward), Guilherme Siman (Donaldbain, Assassino de Lady Macduff, Caithness, Criado e Garçon), Marcelo Flores (Capitão, Lorde, Assassino de Lady Macduff, Menteith e 3ª Aparição), Ricardo Conti (Fleance, Lennox, Capitão e Garçon) e Thelmo Fernandes (Banquo, Assassino de Lady Macduff, Médico e Maitre).
Com relação ao texto, tratados já foram escritos sobre ele, e por gênios como Jorge Luis Borges, Thomas De Quincey, Manuel Bandeira, Harold Bloom, Wilson Knight, Friedrich Nietzsche, Friedrich Schlegel e Peter Brook - estes citados no programa - e muitos outros. Portanto, é muito difícil que alguém ainda consiga tecer considerações sobre a peça que acrescentem algo de novo ao que já foi dito. No entanto, e ainda que rubro de modéstia e calçando as sandálias da humildade, ouso um breve adendo.
Do enredo que reproduzimos, consta que "...Macbeth se transforma em um assassino inescrupuloso e bestial, cujos atos sanguinários são movidos por um único impulso: a ambição". Tudo bem. Mas uma vez que atinge seu principal objetivo (tornar-se rei), teoricamente nada mais teria a ambicionar e assim poderia dar um basta em seus "atos sanguinários" - a menos que ameaças concretas ao seu poder o obrigassem a repetí-los. No entanto, algo imprevisto (e não atrelado à realidade) começa a acossá-lo na forma de visões, que poderíamos perfeitamente interpretar como tardias manifestações de culpa. Ou seja: se por um lado Macbeth exerce pleno controle sobre o real, torna-se refém de seu inconsciente, fato que contribui para humanizá-lo, despí-lo da aparente psicopatia de que padeceria - salvo monumental engano de minha parte, psicopatas não sentem remorso e de nada se arrependem.
Em resumo: assim como todos nós, Macbeth é um homem, e, portanto, nada de humano lhe é estranho. Assim sendo, dependendo das circunstâncias, aspectos obscuros de nossa personalidade podem perfeitamente vir à tona, contrariando frontalmente nossa conduta cotidiana. E, para mim, este é o aspecto mais fascinante e aterrador do texto: a ambiguidade inerente à condição humana, pois se nos é cômodo admitir que contemos um Mozart, temos que admitir, ainda que relutantes, que também contemos um Hitler. O Mal e o Bem - para simplificar a questão - são faces de uma mesma moeda, que nem sempre conseguimos manipular da forma que desejaríamos. E por isso não somos deuses, apenas homens, sujeitos portanto a infinitas variantes, sublimes ou abomináveis.
Quanto ao espetáculo, Aderbal Freire-Filho impõe à cena uma dinâmica de grande expressividade, conseguindo materializar os principais conteúdos propostos pelo autor. Isto se dá não apenas em função de marcações tão inventivas como imprevistas, que exploram com total propriedade a excelente cenografia de Fernando Mello da Costa (quatro grandes mesas de madeira que muitas vezes convertem-se em palcos), mas também de sua excelente atuação junto ao numeroso elenco, cabendo destacar a unidade do conjunto, assim como a clara compreensão que todos os intérpretes exibem não apenas do texto, mas da linguagem utilizada para convertê-lo em teatro.
Ainda assim, em uma montagem que tem dois protagonistas absolutos, seria injusto não tecer algumas considerações sobre suas performances - falar de todas seria literalmente impossível. Na pele de Macbeth, Daniel Dantas consegue ressaltar não apenas a cega fúria do personagem, mas também sua capacidade de reflexão, sarcasmo e convencimento. Na cena em que contrata os dois assassinos, por exemplo, Daniel opta por um tom coloquial, como se ali estivesse em causa uma coisa corriqueira e não o projeto de um assassinato, o que ressalta ainda mais o horror do mesmo. E na passagem em que é assombrado pelo fantasma de Banquo, durante o banquete, seu assombro e desespero eclodem em igual medida, "equilíbrio" sem dúvida nada fácil de atingir. E a mesma excelência se faz presente no desempenho de Renata Sorrah: sua Lay Macbeth nos causa horror com a frieza de seu maquiavélico plano, da mesma forma que nos gera compaixão quando a personagem é totalmente tomada pela loucura.
No complemento da ficha técnica, destaco com o mesmo entusiasmo a ótima tradução de Aderbal e João Dantas, os atemporais figurinos de Marcelo Pies, a expressiva iluminação de Luiz Paulo Nenen e a maravilhosa trilha sonora de Tato Taborda, que contribuem de forma indiscutível para o êxito desta mais do que oportuna empreitada. Gostaria ainda de ressaltar o belíssimo programa de Ludmila Machado - prefiro chamar de "programa" porque acho um tanto pernóstico "design gráfico" - e as fotos feitas por Nenem, que detalham momentos dos ensaios.
MACBETH - Texto de William Shakespeare. Direção de Aderbal Freire-Filho. Com Daniel Dantas, Renata Sorrah e grande elenco. Espaço Tom Jobim. Sexta e sábado, 20h30. Domingo, 20h.
"Macbeth"
......................................................
A tragédia da ambigüidade
Lionel Fischer
Por tratar-se de uma obra por demais conhecida, pensei inicialmente em me abster de resumir seu enredo. Mas então pensei nos jovens seguidores do meu blog e também nos possíveis jovens - e, compreensivelmente, ainda pouco informados - que lêem minhas críticas mensais no jornal Folha Zona Sul, e que talvez desconheçam a tenebrosa trama arquitetada pelo fabuloso bardo. Assim sendo, aí vai a sinopse da peça, extraída na íntegra do excelente release que nos foi enviado:
"Voltando de uma batalha, Macbeth e Banquo, generais do exército escocês do Rei Duncan, encontram três feiticeiras. Macbeth é saudado profeticamente por elas como futuro Barão de Cawdor e Rei da Escócia, e Banquo, como pai de uma linhagem de reis. Nobres escoceses trazem a mensagem de que o Barão de Cawdor havia sido executado por traição e que todas as suas terras e título passariam a Macbeth. A realização da primeira parte da professia impulsiona a ambição de Macbeth em se tornar rei. Em seu castelo, sua mulher, Lady Macbeth, lê com satisfação a carta do marido relatando o encontro com as bruxas e a esperança ali contida. Mais tarde, na noite em que o rei Duncan se hospeda no castelo de Macbeth, este decide matá-lo, com a ajuda de Lady Macbeth. O ato brutal dá início a uma série de assassinatos que Macbeth, já coroado rei, cometerá para se manter no trono. De bravo guerreiro e grande general do exército escocês que retorna vitorioso dos campos de batalha; de súdito leal, merecedor da mais alta confiança do rei, Macbeth se transforma em um assassino inescrupuloso e bestial, cujos atos sanguinários são movidos por um único impulso: a ambição".
Bem, agora que todos já tiveram acesso detalhado ao enredo, aconselho uma ida urgente ao Espaço Tom Jobim, pois nele está materializada uma excelente versão da mais curta e talvez mais sanguinolenta dentre todas as tragédia escritas por Shakespeare: "Macbeth". Com direção assinada por Aderbal Freire-Filho - um dos melhores encenadores do país e sem dúvida possuidor do mais belo sorriso do teatro brasileiro -, a peça chega à cena com elenco formado por Daniel Dantas (Macbeth), Renata Sorrah (Lady Macbeth), Andrea Dantas (1ª Bruxa, Velho, Lady Macduff e Dama), Camilo Bevilacqua (Rei Duncan, 2ª Aparição, Mensageiro e Siward), Charles Fricks (Ross, Seyton, 1ª Aparição e Garçon), Edgard Amorim (3ª Bruxa, Macduff, Assassino de Banquo e voz do Filho de Macduff), Erom Cordeiro (Malcom, Assassino de Banquo e Garçon), Felipe Martins (2ª Bruxa, Angus, Criado, Porteiro e Jovem Siward), Guilherme Siman (Donaldbain, Assassino de Lady Macduff, Caithness, Criado e Garçon), Marcelo Flores (Capitão, Lorde, Assassino de Lady Macduff, Menteith e 3ª Aparição), Ricardo Conti (Fleance, Lennox, Capitão e Garçon) e Thelmo Fernandes (Banquo, Assassino de Lady Macduff, Médico e Maitre).
Com relação ao texto, tratados já foram escritos sobre ele, e por gênios como Jorge Luis Borges, Thomas De Quincey, Manuel Bandeira, Harold Bloom, Wilson Knight, Friedrich Nietzsche, Friedrich Schlegel e Peter Brook - estes citados no programa - e muitos outros. Portanto, é muito difícil que alguém ainda consiga tecer considerações sobre a peça que acrescentem algo de novo ao que já foi dito. No entanto, e ainda que rubro de modéstia e calçando as sandálias da humildade, ouso um breve adendo.
Do enredo que reproduzimos, consta que "...Macbeth se transforma em um assassino inescrupuloso e bestial, cujos atos sanguinários são movidos por um único impulso: a ambição". Tudo bem. Mas uma vez que atinge seu principal objetivo (tornar-se rei), teoricamente nada mais teria a ambicionar e assim poderia dar um basta em seus "atos sanguinários" - a menos que ameaças concretas ao seu poder o obrigassem a repetí-los. No entanto, algo imprevisto (e não atrelado à realidade) começa a acossá-lo na forma de visões, que poderíamos perfeitamente interpretar como tardias manifestações de culpa. Ou seja: se por um lado Macbeth exerce pleno controle sobre o real, torna-se refém de seu inconsciente, fato que contribui para humanizá-lo, despí-lo da aparente psicopatia de que padeceria - salvo monumental engano de minha parte, psicopatas não sentem remorso e de nada se arrependem.
Em resumo: assim como todos nós, Macbeth é um homem, e, portanto, nada de humano lhe é estranho. Assim sendo, dependendo das circunstâncias, aspectos obscuros de nossa personalidade podem perfeitamente vir à tona, contrariando frontalmente nossa conduta cotidiana. E, para mim, este é o aspecto mais fascinante e aterrador do texto: a ambiguidade inerente à condição humana, pois se nos é cômodo admitir que contemos um Mozart, temos que admitir, ainda que relutantes, que também contemos um Hitler. O Mal e o Bem - para simplificar a questão - são faces de uma mesma moeda, que nem sempre conseguimos manipular da forma que desejaríamos. E por isso não somos deuses, apenas homens, sujeitos portanto a infinitas variantes, sublimes ou abomináveis.
Quanto ao espetáculo, Aderbal Freire-Filho impõe à cena uma dinâmica de grande expressividade, conseguindo materializar os principais conteúdos propostos pelo autor. Isto se dá não apenas em função de marcações tão inventivas como imprevistas, que exploram com total propriedade a excelente cenografia de Fernando Mello da Costa (quatro grandes mesas de madeira que muitas vezes convertem-se em palcos), mas também de sua excelente atuação junto ao numeroso elenco, cabendo destacar a unidade do conjunto, assim como a clara compreensão que todos os intérpretes exibem não apenas do texto, mas da linguagem utilizada para convertê-lo em teatro.
Ainda assim, em uma montagem que tem dois protagonistas absolutos, seria injusto não tecer algumas considerações sobre suas performances - falar de todas seria literalmente impossível. Na pele de Macbeth, Daniel Dantas consegue ressaltar não apenas a cega fúria do personagem, mas também sua capacidade de reflexão, sarcasmo e convencimento. Na cena em que contrata os dois assassinos, por exemplo, Daniel opta por um tom coloquial, como se ali estivesse em causa uma coisa corriqueira e não o projeto de um assassinato, o que ressalta ainda mais o horror do mesmo. E na passagem em que é assombrado pelo fantasma de Banquo, durante o banquete, seu assombro e desespero eclodem em igual medida, "equilíbrio" sem dúvida nada fácil de atingir. E a mesma excelência se faz presente no desempenho de Renata Sorrah: sua Lay Macbeth nos causa horror com a frieza de seu maquiavélico plano, da mesma forma que nos gera compaixão quando a personagem é totalmente tomada pela loucura.
No complemento da ficha técnica, destaco com o mesmo entusiasmo a ótima tradução de Aderbal e João Dantas, os atemporais figurinos de Marcelo Pies, a expressiva iluminação de Luiz Paulo Nenen e a maravilhosa trilha sonora de Tato Taborda, que contribuem de forma indiscutível para o êxito desta mais do que oportuna empreitada. Gostaria ainda de ressaltar o belíssimo programa de Ludmila Machado - prefiro chamar de "programa" porque acho um tanto pernóstico "design gráfico" - e as fotos feitas por Nenem, que detalham momentos dos ensaios.
MACBETH - Texto de William Shakespeare. Direção de Aderbal Freire-Filho. Com Daniel Dantas, Renata Sorrah e grande elenco. Espaço Tom Jobim. Sexta e sábado, 20h30. Domingo, 20h.
quarta-feira, 13 de janeiro de 2010
Hamlet
como fracasso artístico
Francis Fergusson
O ensaio de J. M. Robertson sobre Hamlet (Hamlet) juntamente com o ensaio de T. S. Eliot (Hamlet e seus problemas), aparentemente inspirado na leitura do de Robertson, podem ser tomados como típicos das objeções que muitos críticos fazem à obra: não conseguem encontrar qualquer unidade, ou consciência intelectual, na peça como um todo. Robertson, admitindo que ela constitua um soberbo entretenimento, que contenha personagens brilhantemente construídos e passagens de maravilhosa poesia, declara que ela deixa o intelecto crítico insatisfeito. Ele sugere que Shakespeare talvez não tenha pretendido mais do que um entretenimento e nunca tenha se preocupado com a unidade maios profunda ou com o significado mais amplo do conjunto:
"Se Shakespeare fosse ressuscitado e interrogado sobre por que procedera aqui e ali de maneira tão estranha, poderia com atitude irretorquível abrir os olhos de espanto e perguntar o porquê de querermos destruir assim seu mecanismo. 'Vocês querem o absoluto?', poderia ele perguntar, 'como diversão em um palco?'...Mas o intelecto crítico também tem seus direitos: sua preocupação é simplesmente a verdade conceitual".
Robertson e depois Eliot procuram a verdade conceitual em Hamlet e não a encontram. Gostariam de ser capazes de reduzir a peça a termos que a razão pudesse aceitar; e, na tentativa de satisfazer essa exigência, interpretam a peça de um modo que realmente a faz parecer confusa, amorfa: em resumo, um fracasso. "Não há dúvida de que Robertson está certo", escreve Eliot, "ao concluir que a principal emoção da peça é o sentimento de um filho em relação à sua mãe culpada". Mostra a seguir que há vários elementos e cenas inteiras da peça que nada têm a ver com o sentimento de um filho para com a mãe culpada, e que, segundo essa interpretação, o próprio Hamlet é incompreensível. Conclui que Shakespeare falhou em encontrar "objetivos equivalentes" para os sentimentos de Hamlet: "Hamlet (o homem) é dominado por uma emoção inexprimível, porque em excesso em relação aos fatos como eles nos são mostrados. E a suposta identidade de Hamlet com seu autor é genuína até o seguinte ponto: que as dificuldades de Hamlet devido à ausência de objetivos equivalentes aos seus sentimentos é um prolongamento das complicações de seu criador em face do problema artístico".
Nâo estou seguro de compreender a famosa fórmula de Eliot do objetivo equivalente de um sentimento, pelo menos sua aplicação a essa peça. Quer Eliot dizer que os muitos objetivos, fatos e cadeias de acontecimentos que Shakespeare apresenta para nos fazer partilhar e compreender os sentimentos de Hamlet não funcionam? Em outras palavras, que quando lemos ou vemos a peça não podemos compartilhar os sentimentos de Hamlet? Ou que não podemos compreender a psicologia de Hamlet? Hamlet apresenta-se repleto de sentimento - muito mais do que Polônio, por exemplo; mas esse sentimento é "em excesso?". Pode-se arriscar o palpite de que o que perturba Eliot aqui não é que o personagem falhe ao viver dramaticamente - sua vitalidade no palco, seus fascínio por muitos e variados públicos provam o contrário - mas apenas que nem ele nem seu autor expliquem a situação nos termos claros e precisos da razão. Hamlet é apresentado objetivamente, em cenário concreto e múltiplo, dentro da situação complexa de príncipe, filho e amante. Se queremos compreendê-lo, devemos considerá-lo assim, e não tentar simplificar e reduzir o quadro que Shakespeare oferece.
A opinião de que "a emoção essencial da peça é o sentimento de um filho para com a mãe culpada" é uma redução drástica da peça que Shakespeare escreveu. O sentimento de Hamlet para com a mãe culpada é sem dúvida essencial, mas não é mais essencial do que o sofrimento com a perda do pai. Stephen Daedalus em Ulysses constrói uma interpretação da peça nesse sentido, que revela pelo menos tanto quanto a interpretação de Eliot-Robertson. E Dover Wilson oferece uma explicação dos sentimentos de Hamlet que talvez seja ainda mais fértil: o jovem príncipe perdeu um trono, e perde com isso uma persona social e publicamente aceitável: um local de habitação e um nome. É por esse motivo que ele assombra o palco com os usurpados dos dramas clássicos: como uma Electra, que perdeu a vida tradicional que lhe era devida como filha, mulher e mãe - ou mesmo como o fantasma de Polyneikes, que não pode descansar porque a ordem ritual da sociedade, que poderia ter-lhe proporcionado o lugar de descanso, tinha sido destruída. E Wilson garante-nos que o público elisabetano (mais ou menos consciente de implicações deste tipo) terá aceito a perda do trono como explicação suficiente para o sofrimento de Hamlet.
Não é preciso negar a interpretação Eliot-Robertson, ou a joyciana, apenas porque se aceita a de Dover Wilson: ao contrário, os vários críticos devem ser considerados como os "refletores" jamesianos, cada um iluminando uma faceta do todo, desde seu ângulo particular. O "ângulo" de Dover Wilson, entetanto, tem um valor especial: ele possibilita ver, para além do problema de Hamlet como indivíduo, certos valores tradicionais da sociedade que sublinham a peça como um todo. E uma das principais objeções à crítica que Eliot nos traz à consideração é que ele não distingue claramente entre a história do indivíduo Hamlet e a história da peça com um todo. Ele se opõe à crítica de um Hamlet isolado da obra em que aparece; mas seu próprio ensaio trata de "Hamlet sem o príncipe da Dinamarca" - isto é, o caráter sem referência à sociedade onde ele se esforça por realizar-se. Por isso não pode entender a importância dos personagens menores, nem a significação de certas cenas que não contam o destino individual de Hamlet.
"Há cenas sem explicação", escreve ele, "a de Polônio-Laerte e a de Polônio-Reinaldo" - para as quais não vejo desculpas". Não há explicação nem desculpas para elas, se Shakespeare apenas tentava reproduzir o sentimento de um filho para com a mãe culpada. Se ele também estava querendo mostrar a relação de um filho para com seu pai, então toda a sequência Polônio-Laerte-Reinaldo faz sentido como um subenredo cômico-patético, com muitos parelos irônicos às histórias de Hamlet e do fantasma de seu pai. Se a isso acrescentarmos a sugestão de Dover Wilson, vemos que o bem-estar da Dinamarca - a ordem tradicional da sociedade, com seu pai-rei de quem depende "a vida de muitos" - é o assunto da peça como conjunto, em vez do problema individual de Hamlet.
No bem-estar da Dinamarca, Polônio, Laerte e Reinaldo têm uma parte. O postulado sobre o qual se baseia toda a ação (desde a primeira cena da murada, com os soldados espreitando a escuridão para discernir que perigos podem ameaçar a entidade política) é o de que "os tempos estão fora dos eixos". É infortúnio de Hamlet que, como príncipe, e como homem de profunda percepção, tenha, logo ele, "nascido para endireitá-las".
A interpretação Eliot-Robertson deixa claro que nenhum dos personagens, ou qualquer dos enredos ou sequências narrativas, pretende expressar o sentido da peça como um todo. Nem a peça oferece, mesmo nas meditações de Hamlet, o objetivo da verdade conceitual onde a razão pode encontrar satisfação e descanso. A referida interpretação tem o valor de mostrar o que Hamlet não é, em vez de lançar luz sobre sua verdadeira complexidade.
Tem também o valor de resumir um sentido de teatro e de drama que prevaleceu amplamente desde que o teatro elisabetano deixou de existir. As exigências e as críticas que Robertson e Eliot fazem teriam sido aprovadas pelos críticos da Idade da Razão, de Corneille a Voltaire. São em princípio muito semelhantes às que William Archer fez em seu livro sobre o drama elisabetano, O drama antigo e o novo. Archer pedia a psicologia naturalística de um Ibsen, e seus princípios estruturais eram os racionais da peça bem construída. Portanto, ele também não achou o drama do teatro de Shakespeare satisfatório.
É hábito nosso insistir em unidade de sentido e verdade conceitual; o valor da leitura crítica de Eliot-Robertson é que foi feita com tal clareza que mostrou o que vinha sendo feito em geral. Desde que compreendamos isso, o caminho está aberto, e podemos perguntar se Shakespeare não estaria compondo sobre princípios completamente diversos.
Há muito material para tal pesquisa. Existem estudos sobre aquele recurso característico dos elisabetanos, o enredo duplo. E existem muitos trabalhos recentes que mostram o teatro elisabetano, não desde o nosso ponto de vista contemporâneo, mas como o herdeiro da Idade Média e, ainda mais para trás, da antiguidade clássica. Sob a luz deles podemos ver, se não a unidade de Hamlet, pelo menos a espécie de "unidade por analogia" que a obra de Shakespeare tinha como objetivo.
______________________________
Artigo extraído do livro Evolução e sentido do teatro. Zahar Editores/1964.
como fracasso artístico
Francis Fergusson
O ensaio de J. M. Robertson sobre Hamlet (Hamlet) juntamente com o ensaio de T. S. Eliot (Hamlet e seus problemas), aparentemente inspirado na leitura do de Robertson, podem ser tomados como típicos das objeções que muitos críticos fazem à obra: não conseguem encontrar qualquer unidade, ou consciência intelectual, na peça como um todo. Robertson, admitindo que ela constitua um soberbo entretenimento, que contenha personagens brilhantemente construídos e passagens de maravilhosa poesia, declara que ela deixa o intelecto crítico insatisfeito. Ele sugere que Shakespeare talvez não tenha pretendido mais do que um entretenimento e nunca tenha se preocupado com a unidade maios profunda ou com o significado mais amplo do conjunto:
"Se Shakespeare fosse ressuscitado e interrogado sobre por que procedera aqui e ali de maneira tão estranha, poderia com atitude irretorquível abrir os olhos de espanto e perguntar o porquê de querermos destruir assim seu mecanismo. 'Vocês querem o absoluto?', poderia ele perguntar, 'como diversão em um palco?'...Mas o intelecto crítico também tem seus direitos: sua preocupação é simplesmente a verdade conceitual".
Robertson e depois Eliot procuram a verdade conceitual em Hamlet e não a encontram. Gostariam de ser capazes de reduzir a peça a termos que a razão pudesse aceitar; e, na tentativa de satisfazer essa exigência, interpretam a peça de um modo que realmente a faz parecer confusa, amorfa: em resumo, um fracasso. "Não há dúvida de que Robertson está certo", escreve Eliot, "ao concluir que a principal emoção da peça é o sentimento de um filho em relação à sua mãe culpada". Mostra a seguir que há vários elementos e cenas inteiras da peça que nada têm a ver com o sentimento de um filho para com a mãe culpada, e que, segundo essa interpretação, o próprio Hamlet é incompreensível. Conclui que Shakespeare falhou em encontrar "objetivos equivalentes" para os sentimentos de Hamlet: "Hamlet (o homem) é dominado por uma emoção inexprimível, porque em excesso em relação aos fatos como eles nos são mostrados. E a suposta identidade de Hamlet com seu autor é genuína até o seguinte ponto: que as dificuldades de Hamlet devido à ausência de objetivos equivalentes aos seus sentimentos é um prolongamento das complicações de seu criador em face do problema artístico".
Nâo estou seguro de compreender a famosa fórmula de Eliot do objetivo equivalente de um sentimento, pelo menos sua aplicação a essa peça. Quer Eliot dizer que os muitos objetivos, fatos e cadeias de acontecimentos que Shakespeare apresenta para nos fazer partilhar e compreender os sentimentos de Hamlet não funcionam? Em outras palavras, que quando lemos ou vemos a peça não podemos compartilhar os sentimentos de Hamlet? Ou que não podemos compreender a psicologia de Hamlet? Hamlet apresenta-se repleto de sentimento - muito mais do que Polônio, por exemplo; mas esse sentimento é "em excesso?". Pode-se arriscar o palpite de que o que perturba Eliot aqui não é que o personagem falhe ao viver dramaticamente - sua vitalidade no palco, seus fascínio por muitos e variados públicos provam o contrário - mas apenas que nem ele nem seu autor expliquem a situação nos termos claros e precisos da razão. Hamlet é apresentado objetivamente, em cenário concreto e múltiplo, dentro da situação complexa de príncipe, filho e amante. Se queremos compreendê-lo, devemos considerá-lo assim, e não tentar simplificar e reduzir o quadro que Shakespeare oferece.
A opinião de que "a emoção essencial da peça é o sentimento de um filho para com a mãe culpada" é uma redução drástica da peça que Shakespeare escreveu. O sentimento de Hamlet para com a mãe culpada é sem dúvida essencial, mas não é mais essencial do que o sofrimento com a perda do pai. Stephen Daedalus em Ulysses constrói uma interpretação da peça nesse sentido, que revela pelo menos tanto quanto a interpretação de Eliot-Robertson. E Dover Wilson oferece uma explicação dos sentimentos de Hamlet que talvez seja ainda mais fértil: o jovem príncipe perdeu um trono, e perde com isso uma persona social e publicamente aceitável: um local de habitação e um nome. É por esse motivo que ele assombra o palco com os usurpados dos dramas clássicos: como uma Electra, que perdeu a vida tradicional que lhe era devida como filha, mulher e mãe - ou mesmo como o fantasma de Polyneikes, que não pode descansar porque a ordem ritual da sociedade, que poderia ter-lhe proporcionado o lugar de descanso, tinha sido destruída. E Wilson garante-nos que o público elisabetano (mais ou menos consciente de implicações deste tipo) terá aceito a perda do trono como explicação suficiente para o sofrimento de Hamlet.
Não é preciso negar a interpretação Eliot-Robertson, ou a joyciana, apenas porque se aceita a de Dover Wilson: ao contrário, os vários críticos devem ser considerados como os "refletores" jamesianos, cada um iluminando uma faceta do todo, desde seu ângulo particular. O "ângulo" de Dover Wilson, entetanto, tem um valor especial: ele possibilita ver, para além do problema de Hamlet como indivíduo, certos valores tradicionais da sociedade que sublinham a peça como um todo. E uma das principais objeções à crítica que Eliot nos traz à consideração é que ele não distingue claramente entre a história do indivíduo Hamlet e a história da peça com um todo. Ele se opõe à crítica de um Hamlet isolado da obra em que aparece; mas seu próprio ensaio trata de "Hamlet sem o príncipe da Dinamarca" - isto é, o caráter sem referência à sociedade onde ele se esforça por realizar-se. Por isso não pode entender a importância dos personagens menores, nem a significação de certas cenas que não contam o destino individual de Hamlet.
"Há cenas sem explicação", escreve ele, "a de Polônio-Laerte e a de Polônio-Reinaldo" - para as quais não vejo desculpas". Não há explicação nem desculpas para elas, se Shakespeare apenas tentava reproduzir o sentimento de um filho para com a mãe culpada. Se ele também estava querendo mostrar a relação de um filho para com seu pai, então toda a sequência Polônio-Laerte-Reinaldo faz sentido como um subenredo cômico-patético, com muitos parelos irônicos às histórias de Hamlet e do fantasma de seu pai. Se a isso acrescentarmos a sugestão de Dover Wilson, vemos que o bem-estar da Dinamarca - a ordem tradicional da sociedade, com seu pai-rei de quem depende "a vida de muitos" - é o assunto da peça como conjunto, em vez do problema individual de Hamlet.
No bem-estar da Dinamarca, Polônio, Laerte e Reinaldo têm uma parte. O postulado sobre o qual se baseia toda a ação (desde a primeira cena da murada, com os soldados espreitando a escuridão para discernir que perigos podem ameaçar a entidade política) é o de que "os tempos estão fora dos eixos". É infortúnio de Hamlet que, como príncipe, e como homem de profunda percepção, tenha, logo ele, "nascido para endireitá-las".
A interpretação Eliot-Robertson deixa claro que nenhum dos personagens, ou qualquer dos enredos ou sequências narrativas, pretende expressar o sentido da peça como um todo. Nem a peça oferece, mesmo nas meditações de Hamlet, o objetivo da verdade conceitual onde a razão pode encontrar satisfação e descanso. A referida interpretação tem o valor de mostrar o que Hamlet não é, em vez de lançar luz sobre sua verdadeira complexidade.
Tem também o valor de resumir um sentido de teatro e de drama que prevaleceu amplamente desde que o teatro elisabetano deixou de existir. As exigências e as críticas que Robertson e Eliot fazem teriam sido aprovadas pelos críticos da Idade da Razão, de Corneille a Voltaire. São em princípio muito semelhantes às que William Archer fez em seu livro sobre o drama elisabetano, O drama antigo e o novo. Archer pedia a psicologia naturalística de um Ibsen, e seus princípios estruturais eram os racionais da peça bem construída. Portanto, ele também não achou o drama do teatro de Shakespeare satisfatório.
É hábito nosso insistir em unidade de sentido e verdade conceitual; o valor da leitura crítica de Eliot-Robertson é que foi feita com tal clareza que mostrou o que vinha sendo feito em geral. Desde que compreendamos isso, o caminho está aberto, e podemos perguntar se Shakespeare não estaria compondo sobre princípios completamente diversos.
Há muito material para tal pesquisa. Existem estudos sobre aquele recurso característico dos elisabetanos, o enredo duplo. E existem muitos trabalhos recentes que mostram o teatro elisabetano, não desde o nosso ponto de vista contemporâneo, mas como o herdeiro da Idade Média e, ainda mais para trás, da antiguidade clássica. Sob a luz deles podemos ver, se não a unidade de Hamlet, pelo menos a espécie de "unidade por analogia" que a obra de Shakespeare tinha como objetivo.
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Artigo extraído do livro Evolução e sentido do teatro. Zahar Editores/1964.
segunda-feira, 11 de janeiro de 2010
Teatro/CRÍTICA
"La musica"
..................................................
Belíssima reflexão sobre o amor
Lionel Fischer
"Tentei preservar o lado mais racional para que a discussão seja clara ao público. É uma peça repleta de silêncios, onde as pausas falam mais do que as palavras. Quando o casal se cala, a gente vê o grande significado da relação deles. Quando não há palavras, temos a sensação de ouvir os sentimentos que estão guardados dentro de cada um". Este trecho, extraído do release que nos foi enviado, foi escrito pelo diretor da montagem, Marcos Loureiro. E revela algo não muito comum em encenadores, sobretudo nos que se auto-definem como "de vanguarda": uma compreensão irretocável daquilo que é mais essencial em "La musica", de autoria da escritora, dramaturga e roteirista francesa Marquerite Duras (1914-1996).
Em função do que acaba de ser dito, só mesmo uma direção desastrada e/ou um elenco completamente desprovido de talento seriam capazes de impedir que o público usufruísse a extraordinária qualidade do texto. Mas, como ocorre exatamente o inverso, estamos diante de algo que merece ser prestigiado de forma incondicional pelo público carioca. Após cumprir temporada em São Paulo, "La musica" está em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim, interpretada por Xuxa Lopes (Anne-Marie Roche) e Hélio Cícero (Michel Nollet).
Casados durante 15 anos e separados há três, Michel e Anne-Marie marcam um encontro no saguão do hotel onde viveram um tempo, com o pretexto de definirem questões relativas a móveis. No entanto, o que está em causa vai muito além da partilha de bens. Torna-se evidente que ambos, ainda que já estejam se relacionando com outras pessoas, ainda não conseguiram libertar-se dos fortes laços que os uniram no passado, apesar das mútuas traições que ambos perpetraram a partir de um determinado momento. Os dois desejariam, possivelmente, reatar o relacionamento, mas ao mesmo tempo sabem que isso jamais ocorrerá. Por quê?
Bem, aí cada espectador poderá fazer a sua leitura. A nossa, que não pretende ser definitiva e nem mais pertinente do que outras, resume-se ao seguinte: quando o pacto de fidelidade entre um casal se rompe - desde que este pacto tenha sido colocado como uma premissa e supondo que ambos sejam íntegros e éticos - é porque está em causa algo muito mais significativo do que a mera busca do prazer com um estranho ou estranha. E aí podem ser infinitas as razões, mas acreditamos que uma das principais seja a ruptura de algo essencial: o respeito pela singularidade do outro. Isto pressupõe a convivência com eventuais diferenças e não uma tentativa de moldar o outro em função de nossos desejos. Sempre que enveredamos por esse caminho, renunciando à parceria e cumplicidade entre corpos e almas, e priorizamos o que poderíamos definir como uma tentativa de "domesticar" o outro, podemos estar certos de que já se descortina o caminho da separação.
Contendo ótimos personagens e diálogos que nos atingem como punhais e que ficam reverberando em nossas entranhas, "La musica" é um texto sublime, não apenas por sua beleza, mas pela possibilidade que nos oferta de refletirmos sobre nós mesmos e então, quem sabe, empreendermos algumas inadiáveis transformações em nossa maneira de olhar a vida, em geral, e o amor, em particular.
Com relação à encenação, esta sabiamente abdica de qualquer firula formal e, como bem definiu o diretor, se concentra nos personagens, no que eles dizem e sobretudo no que eles calam. Marcos Loureiro explora com grande sensibilidade as pausas, que aqui não são tempos mortos, mas impregnados de múltiplos significados. Aliás, aqueles minimamente familiarizados com a música, sabem que não são apenas as notas que importam, mas também os intervalos entre elas. Na música, como no teatro e na vida, as pausas não significam que não se tenha o que dizer ou tocar. Muito pelo contrário: às vezes a interrupção de uma fala, a dificuldade para se completar um pensamento ou verbalizar um sentimento, constituem momentos muito mais expressivos do que o seriam se a fluência permanecesse inalterada.
Quanto ao elenco, Xuxa Lopes exibe aqui uma das melhores atuações de sua carreira, conseguindo materializar todas as características de uma mulher ao mesmo tempo apaixonada e profundamente dilacerada por muitas dúvidas. O mesmo se dá com Hélio Cícero, cabendo apenas um pequeno registro: embora possuidor de belíssima voz, o ator, nas passagens mais dramáticas, quando se vale de um tom muito forte, às vezes torna parcialmente incompreensível o que diz.
No tocante à equipe técnica, aplaudimos com o mesmo entusiasmo o trabalho de todos os profissionais envolvidos - Marcos Ribas de Faria (tradução), Aurora dos Campos (cenografia), Cássio Brasil (figurinos) e Tomás Ribas (iluminação) - cuja contribuição é decisiva para o êxito inquestionável desta montagem imperdível.
LA MUSICA - Texto de Marguerite Duras. Direção de Marcos Loureiro. Com Xuxa Lopes e Hélio Cícero. Casa de Cultura Laura Alvim. Sexta e sábado às 21h. Domingo, 20h.
"La musica"
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Belíssima reflexão sobre o amor
Lionel Fischer
"Tentei preservar o lado mais racional para que a discussão seja clara ao público. É uma peça repleta de silêncios, onde as pausas falam mais do que as palavras. Quando o casal se cala, a gente vê o grande significado da relação deles. Quando não há palavras, temos a sensação de ouvir os sentimentos que estão guardados dentro de cada um". Este trecho, extraído do release que nos foi enviado, foi escrito pelo diretor da montagem, Marcos Loureiro. E revela algo não muito comum em encenadores, sobretudo nos que se auto-definem como "de vanguarda": uma compreensão irretocável daquilo que é mais essencial em "La musica", de autoria da escritora, dramaturga e roteirista francesa Marquerite Duras (1914-1996).
Em função do que acaba de ser dito, só mesmo uma direção desastrada e/ou um elenco completamente desprovido de talento seriam capazes de impedir que o público usufruísse a extraordinária qualidade do texto. Mas, como ocorre exatamente o inverso, estamos diante de algo que merece ser prestigiado de forma incondicional pelo público carioca. Após cumprir temporada em São Paulo, "La musica" está em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim, interpretada por Xuxa Lopes (Anne-Marie Roche) e Hélio Cícero (Michel Nollet).
Casados durante 15 anos e separados há três, Michel e Anne-Marie marcam um encontro no saguão do hotel onde viveram um tempo, com o pretexto de definirem questões relativas a móveis. No entanto, o que está em causa vai muito além da partilha de bens. Torna-se evidente que ambos, ainda que já estejam se relacionando com outras pessoas, ainda não conseguiram libertar-se dos fortes laços que os uniram no passado, apesar das mútuas traições que ambos perpetraram a partir de um determinado momento. Os dois desejariam, possivelmente, reatar o relacionamento, mas ao mesmo tempo sabem que isso jamais ocorrerá. Por quê?
Bem, aí cada espectador poderá fazer a sua leitura. A nossa, que não pretende ser definitiva e nem mais pertinente do que outras, resume-se ao seguinte: quando o pacto de fidelidade entre um casal se rompe - desde que este pacto tenha sido colocado como uma premissa e supondo que ambos sejam íntegros e éticos - é porque está em causa algo muito mais significativo do que a mera busca do prazer com um estranho ou estranha. E aí podem ser infinitas as razões, mas acreditamos que uma das principais seja a ruptura de algo essencial: o respeito pela singularidade do outro. Isto pressupõe a convivência com eventuais diferenças e não uma tentativa de moldar o outro em função de nossos desejos. Sempre que enveredamos por esse caminho, renunciando à parceria e cumplicidade entre corpos e almas, e priorizamos o que poderíamos definir como uma tentativa de "domesticar" o outro, podemos estar certos de que já se descortina o caminho da separação.
Contendo ótimos personagens e diálogos que nos atingem como punhais e que ficam reverberando em nossas entranhas, "La musica" é um texto sublime, não apenas por sua beleza, mas pela possibilidade que nos oferta de refletirmos sobre nós mesmos e então, quem sabe, empreendermos algumas inadiáveis transformações em nossa maneira de olhar a vida, em geral, e o amor, em particular.
Com relação à encenação, esta sabiamente abdica de qualquer firula formal e, como bem definiu o diretor, se concentra nos personagens, no que eles dizem e sobretudo no que eles calam. Marcos Loureiro explora com grande sensibilidade as pausas, que aqui não são tempos mortos, mas impregnados de múltiplos significados. Aliás, aqueles minimamente familiarizados com a música, sabem que não são apenas as notas que importam, mas também os intervalos entre elas. Na música, como no teatro e na vida, as pausas não significam que não se tenha o que dizer ou tocar. Muito pelo contrário: às vezes a interrupção de uma fala, a dificuldade para se completar um pensamento ou verbalizar um sentimento, constituem momentos muito mais expressivos do que o seriam se a fluência permanecesse inalterada.
Quanto ao elenco, Xuxa Lopes exibe aqui uma das melhores atuações de sua carreira, conseguindo materializar todas as características de uma mulher ao mesmo tempo apaixonada e profundamente dilacerada por muitas dúvidas. O mesmo se dá com Hélio Cícero, cabendo apenas um pequeno registro: embora possuidor de belíssima voz, o ator, nas passagens mais dramáticas, quando se vale de um tom muito forte, às vezes torna parcialmente incompreensível o que diz.
No tocante à equipe técnica, aplaudimos com o mesmo entusiasmo o trabalho de todos os profissionais envolvidos - Marcos Ribas de Faria (tradução), Aurora dos Campos (cenografia), Cássio Brasil (figurinos) e Tomás Ribas (iluminação) - cuja contribuição é decisiva para o êxito inquestionável desta montagem imperdível.
LA MUSICA - Texto de Marguerite Duras. Direção de Marcos Loureiro. Com Xuxa Lopes e Hélio Cícero. Casa de Cultura Laura Alvim. Sexta e sábado às 21h. Domingo, 20h.
Teatro/CRÍTICA
"As traças da paixão"
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Fantasias e dúvidas no Poeira
Lionel Fischer
Como se sabe, alguns textos - medíocres ou primorosos - permitem uma compreensão clara e imediata de seu enredo. Outros, como no presente caso, exigem algum tipo de especulação, pois podem ser apreendidos de diversas formas. Portanto, não sabemos se foi essa a intenção de Alcides Nogueira, mas entendemos seu texto da seguinte forma: tudo que é visto já aconteceu, ou seja, uma mulher (Marivalda), proprietária de um bar de beira de estrada em um local inóspito e isolado, recebe a visita de um estranho (Paco) e com ele permanece enquanto esse estranho se satisfaz com as fantasias (muitas vezes de natureza sexual) que ambos criam de comum acordo. Até que um belo dia ele se vai.
Escrita em 1994, "As traças da paixão" vem de cumprir temporada em São Paulo, e agora pode ser vista no Teatro Poeira. Marco Antonio Braz assina a direção, estando o elenco formado por Lucélia Santos e Maurício Machado.
De acordo com o release que nos foi enviado, o espetáculo utiliza "...uma linguagem atual, bem brasileira e com boas doses de humor sarcástico, une apelo popular e citações históricas (a princesa Anastácia, herdeira dos czares russos) e teatrais (Plínio Marcos, Nelson Rodrigues, Tchecov, Sófocles)". Sem dúvida, tais citações podem ser percebidas - ao menos por um público mais especializado. No entanto, em termos de conteúdo, não fica muito claro o que o autor pretendeu, além do resumo do enredo que fizemos - que pode estar completamente equivocado.
Mas na hipótese de que não esteja, ainda assim o resultado não está à altura de um autor do porte de Alcides Nogueira. Algumas situações ou se arrastam ou se repetem em demasia, gerando a permanente impressão de que tudo se resume mesmo aos tais jogos fantasiosos que os dois personagens estabelecem, mas que jamais nos permitem compreender as razões que os motivam e muito menos deles extrair um significado capaz de nos tocar de forma mais profunda.
Quanto ao espetáculo, Marco Antonio Braz impõe à cena uma dinâmica em sintonia com o material dramatúrgico, criando marcas ora mais atreladas ao real, ora mais impregnadas de um clima delirante e alucinatório. E no tocante à sua atuação junto aos intérpretes, tanto Lucélia Santos como Maurício Machado se entregam corajosamente à tarefa de materializar as, digamos, diferenciadas facetas dos personagens que interpretam, mas certamente poderiam chegar a um resultado mais expressivo se não fossem orientados, de uma maneira geral, a utilizar a voz e o corpo em registros por demais paroxísticos.
Com relação à equipe técnica, Juliana Fernandes responde por uma cenografia que retrata com precisão a decadência do bar, sendo corretos os figurinos que também assina. Roberto Cohen ilumina a cena com sensibilidade, o mesmo aplicando-se à trilha sonora de Tunica.
AS TRAÇAS DA PAIXÃO - Texto de Alcides Nogueira. Direção de Marco Antonio Braz. Com Lucélia Santos e Maurício Machado. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.
"As traças da paixão"
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Fantasias e dúvidas no Poeira
Lionel Fischer
Como se sabe, alguns textos - medíocres ou primorosos - permitem uma compreensão clara e imediata de seu enredo. Outros, como no presente caso, exigem algum tipo de especulação, pois podem ser apreendidos de diversas formas. Portanto, não sabemos se foi essa a intenção de Alcides Nogueira, mas entendemos seu texto da seguinte forma: tudo que é visto já aconteceu, ou seja, uma mulher (Marivalda), proprietária de um bar de beira de estrada em um local inóspito e isolado, recebe a visita de um estranho (Paco) e com ele permanece enquanto esse estranho se satisfaz com as fantasias (muitas vezes de natureza sexual) que ambos criam de comum acordo. Até que um belo dia ele se vai.
Escrita em 1994, "As traças da paixão" vem de cumprir temporada em São Paulo, e agora pode ser vista no Teatro Poeira. Marco Antonio Braz assina a direção, estando o elenco formado por Lucélia Santos e Maurício Machado.
De acordo com o release que nos foi enviado, o espetáculo utiliza "...uma linguagem atual, bem brasileira e com boas doses de humor sarcástico, une apelo popular e citações históricas (a princesa Anastácia, herdeira dos czares russos) e teatrais (Plínio Marcos, Nelson Rodrigues, Tchecov, Sófocles)". Sem dúvida, tais citações podem ser percebidas - ao menos por um público mais especializado. No entanto, em termos de conteúdo, não fica muito claro o que o autor pretendeu, além do resumo do enredo que fizemos - que pode estar completamente equivocado.
Mas na hipótese de que não esteja, ainda assim o resultado não está à altura de um autor do porte de Alcides Nogueira. Algumas situações ou se arrastam ou se repetem em demasia, gerando a permanente impressão de que tudo se resume mesmo aos tais jogos fantasiosos que os dois personagens estabelecem, mas que jamais nos permitem compreender as razões que os motivam e muito menos deles extrair um significado capaz de nos tocar de forma mais profunda.
Quanto ao espetáculo, Marco Antonio Braz impõe à cena uma dinâmica em sintonia com o material dramatúrgico, criando marcas ora mais atreladas ao real, ora mais impregnadas de um clima delirante e alucinatório. E no tocante à sua atuação junto aos intérpretes, tanto Lucélia Santos como Maurício Machado se entregam corajosamente à tarefa de materializar as, digamos, diferenciadas facetas dos personagens que interpretam, mas certamente poderiam chegar a um resultado mais expressivo se não fossem orientados, de uma maneira geral, a utilizar a voz e o corpo em registros por demais paroxísticos.
Com relação à equipe técnica, Juliana Fernandes responde por uma cenografia que retrata com precisão a decadência do bar, sendo corretos os figurinos que também assina. Roberto Cohen ilumina a cena com sensibilidade, o mesmo aplicando-se à trilha sonora de Tunica.
AS TRAÇAS DA PAIXÃO - Texto de Alcides Nogueira. Direção de Marco Antonio Braz. Com Lucélia Santos e Maurício Machado. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
Os signos no teatro
introdução à semiologia da
arte do espetáculo
Tadeuz Kowzan
A arte do espetáculo é, entre todas as artes, e, talvez, entre todos os domínios da atividade humana, aquela onde o signo manifesta-se com maior riqueza, verdade e densidade. A palavra pronunciada pelo ator tem, de início, sua significação lingüística, isto é, ela é o signo de objetos, de pessoas, de sentimentos, de idéias ou de suas inter-relações, as quais o autor do texto quis evocar. Mas a palavra pode mudar seu valor. Quão inúmeras maneiras de pronunciar as palavras "eu te amo" podem significar tanto a paixão, quanto a indiferença, a ironia como a piedade! A mímica do rosto e o gesto da mão podem sublinhar a significação das palavras, desmenti-la, dar-lhe uma nuança particular. Isto não é tudo. Muita coisa depende da atitude corporal do ator e de sua posição em relação aos coadjuvantes.
As palavras "eu te amo" possuem um valor emotivo e significativo diferente, segundo sejam pronunciadas por uma pessoa negligentemente sentada em sua poltrona, um cigarro na boca (papel significativo suplementar do acessório), por um homem que abraça uma mulher, ou que está de costas para a pessoa a quem dirige estas palavras.
Tudo é signo na representação teatral. Uma coluna de papelão significa que a cena se desenrola diante de um palácio. A luz do projetor destaca um trono e eis-nos no interior do palácio. A coroa sobre a cabeça do ator é o signo de realeza, enquanto que as rugas e a brancura de seu rosto, obtidos graças à maquilagem, e sua caminhada arrastada, são signos de velhice. Enfim, o galope de cavalos intensificando-se nos bastidores é o signo de que um viajante se aproxima.
O espetáculo serve-se tanto da palavra como de sistemas de significação não-lingüística. Utiliza-se tanto os signos auditivos como visuais. Aproveita os sistemas de signos destinados à comunicação entre homens e os sistemas criados em função da atividade artística.Utiliza-se de signos tomados em toda parte: na natureza, na vida social, nas diferentes ocupações, e em todos os domínios da Arte.
Se examinarmos, por curiosidade, a lista das artes "maiores" e artes "menores", em número de cem, estabelecida por Thomas Munro, é fácil constatar que cada uma delas pode encontrar seu lugar em uma representação teatral, aí desempenhando um papel semântico e que mais ou menos trinta, entre elas, ligando-se diretamente ao espetáculo. Praticamente, não há sistema de significação, não existe signo que não possa ser utilizado no espetáculo. A riqueza semiológica da arte do espetáculo explica, ao mesmo tempo, por que este domínio foi, de preferência, evitado pelos teóricos do signo. É por que riqueza e variedade querem dizer, neste caso, complexidade.
Os signos, no teatro, raramente se manifestam em estado puro. O simples exemplo das palavras "eu te amo" acabou de dizer-nos que o signo lingüístico é acompanhado freqüentemente do signo da entonação, do signo mímico, dos signos do movimento, e que todos os outros meios de expressão cênica - cenário, vestuário, maquilagem, ruídos - atuam simultaneamente sobre o espectador, na qualidade de combinações de signos que se completam, se reforçam, se especificam mutuamente ou, então, que se contradizem.
A análise de um espetáculo, do ponto de vista semiológico, apresenta sérias dificuldades. Deve-se proceder a cortes horizontais ou verticais? Trata-se, antes de tudo, de separar-se os signos superpostos de diferentes sistemas, ou de dividir o espetáculo em unidades no seu desenolvimento linear? Mas o espetáculo, e a maioria das combinações de signos, situam-se tanto no tempo como no espaço, o que torna a análise e a sistematização ainda mais complicadas.
O vasto domínio da arte do espetáculo poderia ser abordado, como campo de exploração semiológica, de várias maneiras. Qual método deve-se escolher? A tarefa seria sensivelmente facilitada se pudéssemos apoiar-nos na análise teórica, suficientemente desenvolvida, de cada sistema de signos de que se serve ou pode servir-se o espetáculo. Mas, no estado em que se encontram os estudos semiológicos, isto não é possível. Certos domínios da expressão artística, como as artes plásticas e a música, permanecem, praticamente, inexplorados pela Semiologia.
Outros, especificamente cênicos, como os movimentos corporais (mímica, gestos, atitudes), a maquilagem, a iluminação, estão em situação somente um pouco melhor. Seu valor semântico é perfeitamente apreciado e explorado pelos profissionais, mas faltam os fundamentos teóricos; os tratados existentes são repertórios de caráter puramente prático. Na falta de bases semiológicas suficientemente sólidas para se tirar conclusões sobre o papel dos diferentes sistemas de signos no fenômeno complexo do espetáculo, decidimos abordar a questão pelo rsultado, isto é, o espetáculo como uma realidade existente, tentando, com isto, colocar um pouco de ordem nesta desordem, ou melhor, na aparência de desordem, devido à riqueza de tudo que se desenrola, no espaço e no tempo, no curso de uma reprsentação teatral. Limitar-nos-emos, em nossas considerações, à arte teatral, aliás na acepção mais ampla (drama, ópera, balé, pantomima, marionetes), deixando de lado as outras formas de espetáculo, notadamente o cinema, a televisão, o circo e o music-hall.
É necessário, inicialmente, considerar a noção de signo. A teoria geral do signo é uma ciência fecunda que se desenvolve sobretudo no interior da Lógica, da Psicologia e da Língüística. Para a Semiologia, ela é um ponto de partida indispensável. O que não quer dizer que a noção de signo seja clara. Pelo contrário, as definições existentes variam sensivelmente, o próprio termo, signo, é contestado, ou melhor, rivalizado por um bom número de termos análogos: índice, sinal, símbolo, ícone, informação, mensagem, sintoma, insígnia, que apareceram, não para substituir, mas para diferenciar a noção de signo, segundo as inúmeras funções que lhe atribuem.
Não procuraremos, absolutamente, criar nomenclaturas e definições novas, para não atrapalhar mais, de início, a situação teórica do signo. Tentaremos escolher as nomenclaturas e definições que nos parecem mais racionais e, ao mesmo tempo, mais adaptadas ao nosso assunto, a saber, a semiologia do espetáculo.
1) Aceitamos o termo sem recorrer a outros termos do mesmo campo nocional.
2) Adotamos o esquema saussuriano significado e significante, dois componentes do signo (o significado corresponde ao conteúdo, o significante à expressão).
3) Quanto a classificação dos signos, aceitamos aquela que divide em signos naturais e signos artificiais.
Este último ponto requer alguns comentários. A distinção citada aparece no Vocabulário técnico e crítico da filosofia, de André Lalande. Eis o essencial de suas definições:
Signos naturais são aqueles onde a relação com a coisa significada resulta senão das leis da natureza: por exemplo, a fumaça, signo de fogo. Signos artificiais, aqueles onde a relação com a coisa significada repousa numa decisão voluntária e, freqüentemente, coletiva.
Esta distinção fundamental entre signos naturais e signos artificiais, adotada por vários autores, repousa num princípio bastante claro. Tudo é signo de qualquer coisa, em nós mesmos e no mundo que nos rodeia, na natureza e na atividade dos seres vivos. Os signos naturais são aqueles que nascem e existem sem participação da vontade; eles têm o caráter de signos para aquele que os percebe, que os interpreta, mas são emitidos involuntariamente. Esta categoria abarca principalmente os fenômenos da natureza (relâmpado: signo de tempestade; febre, signo de uma doença; cor da pele: signo de uma raça) e as ações dos seres vivos não destinadas a significar (reflexos).
Os signos artificiais são criados pelo homem ou pelo animal, voluntariamente, para assinalar qualquer coisa, para comunicar com alguém. Modificando um pouco as definições de Lalande, pode-se afirmar que é ao nível da emissão, e não da percepção, que se situa a diferença essencial entre signos naturais e signos artificiais, e que esta diferença é determinada pela ausência ou existência da vontade de emitir um signo.
Apesar de bastante clara, esta distinção não resolve todos os problemas práticos, não esgota certos casos limítrofes. Tomemos um exemplo de signo lingüístico. A exclamação "ai", de um fumante que queimou a mão com seu cigarro, é um signo natural. Mas seu xingamento, enunciado na ocasião, é um signo natural ou artificial? Isto depende de certas circunstâncias, como os hábitos lingüísticos daquele que os pronuncia, a presença ou ausência de testemunhas. Tomemos um signo procedente da mímica. Em que medida uma expressão de desgosto é um signo natural (reflexo involuntário) ou um signo artificial (ato voluntário para comunicar desgosto?)
Os signos de que se serve a arte teatral pertencem todos à categoria de signos artificiais. São signos artificiais por excelência. Resultam de um processo voluntário, são criados, geralmente, com premeditação, sua finalidade é a de comunicar no próprio instante. Isto não é nada extraordinário numa arte que não pode existir sem público. Emitidos voluntariamente, com plena consciência de comunicar, os signos teatrais são perfeitamente funcionais.
A arte teatral faz uso dos signos extraídos de todas as manifestações da natureza e de todas as atividades humanas. Mas, uma vez utilizados no teatro, cada um destes signos obtém um valor significativo bem mais pronunciado que no seu emprego primitivo. O espetáculo transforma os signos naturais em signos artificiais (o relâmpago); daí seu poder de "artificializar" os signos. Mesmo que eles não sejam, na vida, senão simples reflexos, tornam-se, no teatro, signos voluntários. Mesmo que na vida não tenham função comunicativa, obtêm esta função, necessariamente, em cena.
Por exemplo: o solilóquio de um sábio que procura formular seus pensamentos, ou de uma pessoa em um estado de superexcitação nervosa, compõe-se de signos lingüísticos, logo de signos artificiais, mas sem intenção de comunicar. Pronunciadas em cena, as mesmas palavras reencontram seu papel comunicativo, o monólogo do sábio ou da personagem, em estado de raiva, não tem outra intenção senão a de comunicar aos espectadores os seus pensamentos ou seu estado emotivo.
Acabamos de afirmar que todos os signos de que a arte teatral se serve são signos artificiais. Isto não exclui a existência, em uma representação teatral, de signos naturais. Os meios e as técnicas do teatro estão demasiadamente enraizadas na vida para que os signos naturais possam ser totalmente eliminados. Na dicção e na mímica de um ator, os hábitos estritamente pessoais são vizinhos de nuanças criadas voluntariamente e os gestos conscientes mesclados de movimentos reflexos. Os signos naturais confundem-se, neste caso, com os signos artificiais. Mas as complicações para o teórico vão ainda mais longe.
A voz trêmula de um jovem ator interpretando um velho é um signo artificial. Contrariamente, a voz trêmula de um ator octagenário, não tendo sido criada voluntariamente, é um signo natural tanto na vida como na cena. Mas ela é, ao mesmo tempo, um signo empregado voluntária e conscientemente na medida em que este ator interpreta uma personagem muito idosa. Esta voz está presente não pela vontade do ator, que não pode falar de outro modo; sua voz torna-se signo artificial pela vontade do diretor ou do dono do teatro que a escolheu para este papel. Vemos então que a escolha do ator para um papel ou a escolha da peça em função de um ator, escolha efetuada por seu físico (expressão do olhar, voz, idade, porte, constituição, temperamento, tudo aquilo que entra na noção de emprego) já é um ato semântico, visando obter os valores mais adequados às intenções do autor ou do diretor.
______________________________________
Artigo extraído (e aqui reduzido) do livro Semiologia do Teatro (Editora Perspectiva,coleção Debates/1978)
introdução à semiologia da
arte do espetáculo
Tadeuz Kowzan
A arte do espetáculo é, entre todas as artes, e, talvez, entre todos os domínios da atividade humana, aquela onde o signo manifesta-se com maior riqueza, verdade e densidade. A palavra pronunciada pelo ator tem, de início, sua significação lingüística, isto é, ela é o signo de objetos, de pessoas, de sentimentos, de idéias ou de suas inter-relações, as quais o autor do texto quis evocar. Mas a palavra pode mudar seu valor. Quão inúmeras maneiras de pronunciar as palavras "eu te amo" podem significar tanto a paixão, quanto a indiferença, a ironia como a piedade! A mímica do rosto e o gesto da mão podem sublinhar a significação das palavras, desmenti-la, dar-lhe uma nuança particular. Isto não é tudo. Muita coisa depende da atitude corporal do ator e de sua posição em relação aos coadjuvantes.
As palavras "eu te amo" possuem um valor emotivo e significativo diferente, segundo sejam pronunciadas por uma pessoa negligentemente sentada em sua poltrona, um cigarro na boca (papel significativo suplementar do acessório), por um homem que abraça uma mulher, ou que está de costas para a pessoa a quem dirige estas palavras.
Tudo é signo na representação teatral. Uma coluna de papelão significa que a cena se desenrola diante de um palácio. A luz do projetor destaca um trono e eis-nos no interior do palácio. A coroa sobre a cabeça do ator é o signo de realeza, enquanto que as rugas e a brancura de seu rosto, obtidos graças à maquilagem, e sua caminhada arrastada, são signos de velhice. Enfim, o galope de cavalos intensificando-se nos bastidores é o signo de que um viajante se aproxima.
O espetáculo serve-se tanto da palavra como de sistemas de significação não-lingüística. Utiliza-se tanto os signos auditivos como visuais. Aproveita os sistemas de signos destinados à comunicação entre homens e os sistemas criados em função da atividade artística.Utiliza-se de signos tomados em toda parte: na natureza, na vida social, nas diferentes ocupações, e em todos os domínios da Arte.
Se examinarmos, por curiosidade, a lista das artes "maiores" e artes "menores", em número de cem, estabelecida por Thomas Munro, é fácil constatar que cada uma delas pode encontrar seu lugar em uma representação teatral, aí desempenhando um papel semântico e que mais ou menos trinta, entre elas, ligando-se diretamente ao espetáculo. Praticamente, não há sistema de significação, não existe signo que não possa ser utilizado no espetáculo. A riqueza semiológica da arte do espetáculo explica, ao mesmo tempo, por que este domínio foi, de preferência, evitado pelos teóricos do signo. É por que riqueza e variedade querem dizer, neste caso, complexidade.
Os signos, no teatro, raramente se manifestam em estado puro. O simples exemplo das palavras "eu te amo" acabou de dizer-nos que o signo lingüístico é acompanhado freqüentemente do signo da entonação, do signo mímico, dos signos do movimento, e que todos os outros meios de expressão cênica - cenário, vestuário, maquilagem, ruídos - atuam simultaneamente sobre o espectador, na qualidade de combinações de signos que se completam, se reforçam, se especificam mutuamente ou, então, que se contradizem.
A análise de um espetáculo, do ponto de vista semiológico, apresenta sérias dificuldades. Deve-se proceder a cortes horizontais ou verticais? Trata-se, antes de tudo, de separar-se os signos superpostos de diferentes sistemas, ou de dividir o espetáculo em unidades no seu desenolvimento linear? Mas o espetáculo, e a maioria das combinações de signos, situam-se tanto no tempo como no espaço, o que torna a análise e a sistematização ainda mais complicadas.
O vasto domínio da arte do espetáculo poderia ser abordado, como campo de exploração semiológica, de várias maneiras. Qual método deve-se escolher? A tarefa seria sensivelmente facilitada se pudéssemos apoiar-nos na análise teórica, suficientemente desenvolvida, de cada sistema de signos de que se serve ou pode servir-se o espetáculo. Mas, no estado em que se encontram os estudos semiológicos, isto não é possível. Certos domínios da expressão artística, como as artes plásticas e a música, permanecem, praticamente, inexplorados pela Semiologia.
Outros, especificamente cênicos, como os movimentos corporais (mímica, gestos, atitudes), a maquilagem, a iluminação, estão em situação somente um pouco melhor. Seu valor semântico é perfeitamente apreciado e explorado pelos profissionais, mas faltam os fundamentos teóricos; os tratados existentes são repertórios de caráter puramente prático. Na falta de bases semiológicas suficientemente sólidas para se tirar conclusões sobre o papel dos diferentes sistemas de signos no fenômeno complexo do espetáculo, decidimos abordar a questão pelo rsultado, isto é, o espetáculo como uma realidade existente, tentando, com isto, colocar um pouco de ordem nesta desordem, ou melhor, na aparência de desordem, devido à riqueza de tudo que se desenrola, no espaço e no tempo, no curso de uma reprsentação teatral. Limitar-nos-emos, em nossas considerações, à arte teatral, aliás na acepção mais ampla (drama, ópera, balé, pantomima, marionetes), deixando de lado as outras formas de espetáculo, notadamente o cinema, a televisão, o circo e o music-hall.
É necessário, inicialmente, considerar a noção de signo. A teoria geral do signo é uma ciência fecunda que se desenvolve sobretudo no interior da Lógica, da Psicologia e da Língüística. Para a Semiologia, ela é um ponto de partida indispensável. O que não quer dizer que a noção de signo seja clara. Pelo contrário, as definições existentes variam sensivelmente, o próprio termo, signo, é contestado, ou melhor, rivalizado por um bom número de termos análogos: índice, sinal, símbolo, ícone, informação, mensagem, sintoma, insígnia, que apareceram, não para substituir, mas para diferenciar a noção de signo, segundo as inúmeras funções que lhe atribuem.
Não procuraremos, absolutamente, criar nomenclaturas e definições novas, para não atrapalhar mais, de início, a situação teórica do signo. Tentaremos escolher as nomenclaturas e definições que nos parecem mais racionais e, ao mesmo tempo, mais adaptadas ao nosso assunto, a saber, a semiologia do espetáculo.
1) Aceitamos o termo sem recorrer a outros termos do mesmo campo nocional.
2) Adotamos o esquema saussuriano significado e significante, dois componentes do signo (o significado corresponde ao conteúdo, o significante à expressão).
3) Quanto a classificação dos signos, aceitamos aquela que divide em signos naturais e signos artificiais.
Este último ponto requer alguns comentários. A distinção citada aparece no Vocabulário técnico e crítico da filosofia, de André Lalande. Eis o essencial de suas definições:
Signos naturais são aqueles onde a relação com a coisa significada resulta senão das leis da natureza: por exemplo, a fumaça, signo de fogo. Signos artificiais, aqueles onde a relação com a coisa significada repousa numa decisão voluntária e, freqüentemente, coletiva.
Esta distinção fundamental entre signos naturais e signos artificiais, adotada por vários autores, repousa num princípio bastante claro. Tudo é signo de qualquer coisa, em nós mesmos e no mundo que nos rodeia, na natureza e na atividade dos seres vivos. Os signos naturais são aqueles que nascem e existem sem participação da vontade; eles têm o caráter de signos para aquele que os percebe, que os interpreta, mas são emitidos involuntariamente. Esta categoria abarca principalmente os fenômenos da natureza (relâmpado: signo de tempestade; febre, signo de uma doença; cor da pele: signo de uma raça) e as ações dos seres vivos não destinadas a significar (reflexos).
Os signos artificiais são criados pelo homem ou pelo animal, voluntariamente, para assinalar qualquer coisa, para comunicar com alguém. Modificando um pouco as definições de Lalande, pode-se afirmar que é ao nível da emissão, e não da percepção, que se situa a diferença essencial entre signos naturais e signos artificiais, e que esta diferença é determinada pela ausência ou existência da vontade de emitir um signo.
Apesar de bastante clara, esta distinção não resolve todos os problemas práticos, não esgota certos casos limítrofes. Tomemos um exemplo de signo lingüístico. A exclamação "ai", de um fumante que queimou a mão com seu cigarro, é um signo natural. Mas seu xingamento, enunciado na ocasião, é um signo natural ou artificial? Isto depende de certas circunstâncias, como os hábitos lingüísticos daquele que os pronuncia, a presença ou ausência de testemunhas. Tomemos um signo procedente da mímica. Em que medida uma expressão de desgosto é um signo natural (reflexo involuntário) ou um signo artificial (ato voluntário para comunicar desgosto?)
Os signos de que se serve a arte teatral pertencem todos à categoria de signos artificiais. São signos artificiais por excelência. Resultam de um processo voluntário, são criados, geralmente, com premeditação, sua finalidade é a de comunicar no próprio instante. Isto não é nada extraordinário numa arte que não pode existir sem público. Emitidos voluntariamente, com plena consciência de comunicar, os signos teatrais são perfeitamente funcionais.
A arte teatral faz uso dos signos extraídos de todas as manifestações da natureza e de todas as atividades humanas. Mas, uma vez utilizados no teatro, cada um destes signos obtém um valor significativo bem mais pronunciado que no seu emprego primitivo. O espetáculo transforma os signos naturais em signos artificiais (o relâmpago); daí seu poder de "artificializar" os signos. Mesmo que eles não sejam, na vida, senão simples reflexos, tornam-se, no teatro, signos voluntários. Mesmo que na vida não tenham função comunicativa, obtêm esta função, necessariamente, em cena.
Por exemplo: o solilóquio de um sábio que procura formular seus pensamentos, ou de uma pessoa em um estado de superexcitação nervosa, compõe-se de signos lingüísticos, logo de signos artificiais, mas sem intenção de comunicar. Pronunciadas em cena, as mesmas palavras reencontram seu papel comunicativo, o monólogo do sábio ou da personagem, em estado de raiva, não tem outra intenção senão a de comunicar aos espectadores os seus pensamentos ou seu estado emotivo.
Acabamos de afirmar que todos os signos de que a arte teatral se serve são signos artificiais. Isto não exclui a existência, em uma representação teatral, de signos naturais. Os meios e as técnicas do teatro estão demasiadamente enraizadas na vida para que os signos naturais possam ser totalmente eliminados. Na dicção e na mímica de um ator, os hábitos estritamente pessoais são vizinhos de nuanças criadas voluntariamente e os gestos conscientes mesclados de movimentos reflexos. Os signos naturais confundem-se, neste caso, com os signos artificiais. Mas as complicações para o teórico vão ainda mais longe.
A voz trêmula de um jovem ator interpretando um velho é um signo artificial. Contrariamente, a voz trêmula de um ator octagenário, não tendo sido criada voluntariamente, é um signo natural tanto na vida como na cena. Mas ela é, ao mesmo tempo, um signo empregado voluntária e conscientemente na medida em que este ator interpreta uma personagem muito idosa. Esta voz está presente não pela vontade do ator, que não pode falar de outro modo; sua voz torna-se signo artificial pela vontade do diretor ou do dono do teatro que a escolheu para este papel. Vemos então que a escolha do ator para um papel ou a escolha da peça em função de um ator, escolha efetuada por seu físico (expressão do olhar, voz, idade, porte, constituição, temperamento, tudo aquilo que entra na noção de emprego) já é um ato semântico, visando obter os valores mais adequados às intenções do autor ou do diretor.
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Artigo extraído (e aqui reduzido) do livro Semiologia do Teatro (Editora Perspectiva,coleção Debates/1978)
sábado, 2 de janeiro de 2010
O Teatro e a História
do pensamento educacional
Richard Courtney
A característica essencial do homem é a sua imaginação criativa. É esta que o capacita a dominar seu meio de modo tal que ele supera as limitações de seu cérebro, de seu corpo e do universo material. É este "algo mais" que o distingue dos primatas superiores.
A imaginação criativa é essencialmente dramática em sua natureza. É a habilidade para perceber as possibilidades imaginativas, compreender as relações entre dois conceitos e captar a força dinâmica entre eles. A criança em desenvolvimento tem um primeiro ano de vida que é essencialmente motor; e então - com algumas crianças isso acontece de maneira súbita - ocorre a mudança: passa a jogar, desenvolve seu humor, finge ser ela mesma ou outro alguém.
A criança passou por outras mudanças anteriormente, algumas extremamente importantes, mas este é o desenvolvimento específico que difere o homem de outras criaturas vivas - a habilidade para compreender o ponto de vista de outrem, perceber em uma situação suas possibilidades cômicas, perceber as qualidades inerentes a duas diferentes idéias e a possível ação entre elas.
Fingir ser outra pessoa - atuar - é parte do processo de viver; podemos "fazer de conta", fisicamente, quando somos pequenos, ou fazê-lo internamente quando somos adultos. Atuamos todos os dias: com nossos amigos, nossa família, com estranhos. A imagem mais comum para esse processo é "a máscara e a face": nosso verdadeiro "eu" está escondido por muitas "mascaras" que assumimos no decorrer de cada dia.
Atuar é o método pelo qual convivemos com nosso meio, encontrando adequação através do jogo. A criança pequena, ao deparar-se com algo do mundo externo que não compreende, jogará com isso dramaticamente até que possa compreendê-lo. Podemos observá-la assim atuando várias vezes ao dia. À medida que ficamos mais velhos, o processo se torna cada vez mais interno, até que, quando adultos, passa a ser automático e jogamos dramaticamente em nossa imaginação - a tal ponto, inclusive, que podemos nem mesmo perceber que o fazemos. Logo, o processo dramático é um dos mais vitais para os seres humanos. Sem ele seríamos meramente uma massa de reflexos motores, com poucas qualidades humanas.
Cada época e cada sociedade desenvolve sua própria forma de educação. Em contraposição à Igreja medieval que desenvolveu um sistema educacional voltado para a manutenção do sacerdócio, e ao sistema educacional do século XIX, que realçou determinadas práticas acadêmicas no sentido de prover uma força clerical para a sociedade industrial, precisamos proporcionar uma educação que habilite os homens para desenvolverem suas qualidades humanas. É esta a maior necessidade de nosso tempo.
A crescente especialização de nossa sociedade científica tende a não se concentrar nas qualidades essencialmente humanas. Tanto em nossa educação quanto em nosso lazer precisamos cultivar o "homem total" e nos concentrarmos nas habilidades criativas do ser humano. A imaginação dramática deve ser ajudada e assistida por todos os métodos modernos de educação.
Esta atitude com relação ao processo educativo desenvolveu-se paulatinamente através dos séculos. Dentro da história do pensamento humano, a natureza educacional do jogo dramático tem sido compreendida por vários pensadores em diferentes épocas - mas, em seus próprios termos. A educação esteve relacionada com a estrutura global do pensamento dentro do qual o indivíduo esteve inserido. Assim, a postura de Platão desenvolveu-se a partir do pensamento grego exatamente como Ascham o fez a partir do pensamento renascentista.
O MUNDO ANTIGO
A educação ateniense do século V a.C. baseava-se na literatura, música e esportes. A literatura incluía leitura, escrita, aritimética e declamação das obras dos poetas - particularmente Homero. Este foi a suprema autoridade em religião e letras, e passagens inteiras de sua obra eram decoradas e então recitadas com todos os recursos teatrais - inflexão, expressão facial e gestos dramáticos. A música incluía o estudo do ritmo e harmonia e o domínio da lira e da flauta, enquanto que os esportes recebiam grande incentivo, das corridas ao jogo de bola, da luta de boxe à equitação e dança.
A dança recebia especial ênfase na medida em que era fundamental a todas as religiões e cerimônias dramáticas; sua forma era intensamente dramática e exigia grande habilidade. Cidadãos ricos treinavam o coro das festas religiosas e as crianças, muitas vezes pobres, eram submetidas a um rigoroso programa de poesia, religião, canto e dança - um programa coordenado, de fato, que expressava a harmonia de pensamento do indivíduo através do exercício rítmico.
Além do mais, o próprio teatro foi um importante instrumento educacional na medida em que disseminava o conhecimento e representava, para o povo, o único prazer literário disponível. Os dramaturgos eram considerados pelos professores tão relevantes quanto Homero, e eram recitados de maneira semelhante. O teatro, em todos os seus aspectos, foi a maior força unificadora e educacional no mundo ático.
PLATÃO
Platão considerava que a educação deveria estar calcada no jogo e na não-compulsão, e que:
...as crianças, desde tenra idade, devem participar de todas as formas mais lícitas de jogo, pois se elas não se encontram cercadas de tal atmosfera jamais crescerão para serem bem educados e virtuosos cidadãos.
A educação deve começar desde cedo, mas "de maneira lúdica e sem qualquer constrangimento", principalmente para que as crianças possam desenvolver "a tendência natural de seu caráter'.
Platão divide seu sistema educacional em duas partes: "música" e "ginástica". O uso que faz do termo "musical" é abrangente:
...os mais jovens de qualquer das espécies não podem manter seus corpos e vozes quietos, estão sempre querendo movimentar-se e gritar; uns saltando e pulando, e expandindo-se com esportividade e prazer; outros emitindo todas as formas de grito. Mas, enquanto que os animais não têm nenhuma percepção de ordem em seus movimentos, isto é, de ritmo e harmonia como são chamados, a nós, os deuses, que foram indicados para serem nossos companheiros na dança, nos deram o aprazível senso de harmonia e ritmo; assim eles nos estimularam para a vida, e nós os seguimos dando-nos as mãos em danças e músicas; e estes são chamados coros, que é um termo que expressa naturalmente a alegria. Começaremos, então, com a admisão de que a educação nos é dada primeiramente através de Apolo e das Musas...(para) aquele que sendo bem educado seja capaz de cantar e dançar bem.
A educação "musical", equilibrada com a recreação física, incluía canto, dança e literatura, e deveria ser enfocada a partir da tendência para o jogo. Sua razão para atribuir tal importância a este aspecto é que "ritmo e harmonia submergem mais profundamente nos recessos da alma" e, dessa maneira, discernimento, julgamento, benevolência e justiça se desenvolverão.
Embora Platão advogue por uma educação liberal baseada no jogo, ele não encontra lugar para o teatro em sua República. Para ele, o ideal é a verdade, e a realidade é uma cópia (ou imitação) dela. O teatro está ainda mais longe da verdade, porque imita a realidade. O ator também imita uma personagem - imitar, porém, é transgredir. Além disso, um ator pode ter que imitar uma personagem má, o que pode levá-lo a "contaminar a realidade". O teatro apresenta um grande perigo para a platéia: pode levá-la a sucumbir a emoções que deveriam ser subjugadas.
Ele distingue o jogo, que deveria ser a base da educação, do teatro, que é mau porque é imitação. Embora tenha sido contestado por Aristóteles, a influência de Platão expandiu-se durante a Idade Média, período no qual a obra de Aristóteles esteve perdida.
ARISTÓTELES
Aristóteles também deu destaque ao jogo na educação mas, sendo um cientista, o fez de um modo específico. O movimento lúdico deveria ser encorajado para prevenir a indolência, enquanto que o jogo em geral "conviria não ser nem liberal, nem muito árduo, nem muito ocioso". Era indicado também para o relaxamento "como um remédio". Define esses dois propósitos do jogo porque faz distinção entre entre atividades que têm um fim em si mesmas e podem ser desfrutadas por seus próprios objetivos (que é a felicidade) e aquelas que são recursos para um fim. Como a educação deve preparar para a vida prática e ao mesmo tempo proporcionar lazer, o jogo é de máxima importância. Até aqui, ele estaria de acordo com Platão.
Mas é na Poética, com sua discussão sobre o teatro, que a discordância tem início. A Poética permanece como um dos maiores trabalhos de crítica dramática da literatura mundial, embora seja tanto limitada quanto incompleta. Tem exercido grande influência em todos os períodos da história e não menos hoje, a despeito do fato de que algumas passagens são de origem duvidosa. Oferece uma resposta completa à crítica de Platão ao teatro.
Platão equivocou-se quanto à natureza da imitação, diz Aristóteles. O teatro não imita os fatos mas as idéias abstratas - o ator não imita o Édipo real, mas uma versão idealizada de seu caráter. Personagens dramáticas não são apresentadas como realmente são; a comédia as torna piores e a tragédia as torna melhores do que são na vida real. Além disso, imitação é natural à raça humana:
A imitação é natural no homem desde a infância, sendo esta uma de suas vantagens sobre os animais inferiores, pois ele é uma das criaturas mais imitativas da terra e aprende primeiro por imitação.
E mais, aprender através da imitação é um prazer intelectal:
É também natural para todos deleitarem-se em trabalhos de imitação...embora os fatos em si possam ser penosos de serem vistos, nós nos deliciamos em assistir a suas mais realistas representações na arte...(porque) estar aprendendo alguma coisa é o maior dos prazeres, não apenas para o filósofo mas também para todos os demais homens, por menor que seja a sua capacidade.
Para desenvolver sua tese, Aristóteles introduz sua teoria da Catarse; que a tragédia propicia a "purgação" das emoções:
Uma tragédia...é a imitação de uma ação que é importante, e também, em possuindo magnitude, é completa em si mesma, em linguagem e acessórios agradáveis, cada uma de suas formas empregadas separadamente nas partes da obra, não de forma narrativa, mas dramática; com incidentes despertando piedade e medo, recurso para efetuar sua catarse de tais emoções.
Sua explanação não nos chegou em sua íntegra, e o que temos é decepcionantemente incompleto. Mas é correntemente aceito que Aristóteles considerava que as emoções despertadas pela tragédia purgavam a alma como um remédio. Ao testemunhar uma tragédia, emoções impuras são experimentadas e dessa maneira expurgadas, de modo que nobres emoções de piedade e medo são realçadas. A influência da teoria da catarse foi dupla; primeiro, provendo o drama de um significado emocional; e, segundo, definindo a atitude trágica como contendo os elementos opostos de piedade e medo. (Kierkegaard preferiu tristeza e dor, I. A. Richards adotou piedade e terror, e outros escritores usaram seus próprios termos).
O PENSAMENTO ROMANO
De influência aristotélica, o conceito romano mais comum foi o de que a imitação tinha uma relação direta com arte e teatro. Cícero descreveu o teatro como "uma cópia da vida, um espelho dos costumes, um refelxo da verdade", um conceito que iria ecoar através dos séculos e eventualmente alcançar a idéia de Shakespeare de que a meta do teatro era "levantar, por assim dizer, o espelho para a natureza". Para os romanos, o teatro era imitação e teria um propósito educacional se pudesse ser de utilidade e ensinasse lições morais.
Horácio considerava que o teatro precisava tanto entreter quanto educar:
Todo o louvor obtém aquele poeta que une informação com prazer, ao mesmo tempo iluminando e instruindo o leitor.
Ele ordenou a visão clássica em uma série de regras para o teatro, realçando decoro e forma claramente definida: a comédia e a tragédia deveriam ser diferenciadas; as personagens criadas de acordo com o tipo; ações violentas não deveriam ser apresentadas; a estrutura deveria ser a de cinco atos - e assim por diante. Em Roma, as regras tomaram o lugar da especulação dos gregos.
Sêneca condenou o palco porque ele desviava o povo da séria ocupação de aprender e escreveu seus próprios dramas não para o teatro, mas para o estudo; estavam repletos de carnificinas e longas moralizações e, quando redescoberto durante a Renascença, teve uma influência que foi além de seus próprios méritos.
Dois escritores romanos assumiram os princípios do pensamento platônico, e, com seus escritos, à oposição ao teatro foi dada uma base intelectual, perdurando por séculos. Quintiliano exerceu sua influência durante o último período medieval e começo da Renascença - sobre Erasmo e Lutero, por exemplo. Plotino também reinterpretou o pensamento de Platão, mas sua influência foi principalmente junto aos primeiros padres católicos, e, com o neoplatonismo, afetou profundamente o pensamento católico até o século XII.
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Texto extraído do livro "Jogo, teatro e pensamento".
do pensamento educacional
Richard Courtney
A característica essencial do homem é a sua imaginação criativa. É esta que o capacita a dominar seu meio de modo tal que ele supera as limitações de seu cérebro, de seu corpo e do universo material. É este "algo mais" que o distingue dos primatas superiores.
A imaginação criativa é essencialmente dramática em sua natureza. É a habilidade para perceber as possibilidades imaginativas, compreender as relações entre dois conceitos e captar a força dinâmica entre eles. A criança em desenvolvimento tem um primeiro ano de vida que é essencialmente motor; e então - com algumas crianças isso acontece de maneira súbita - ocorre a mudança: passa a jogar, desenvolve seu humor, finge ser ela mesma ou outro alguém.
A criança passou por outras mudanças anteriormente, algumas extremamente importantes, mas este é o desenvolvimento específico que difere o homem de outras criaturas vivas - a habilidade para compreender o ponto de vista de outrem, perceber em uma situação suas possibilidades cômicas, perceber as qualidades inerentes a duas diferentes idéias e a possível ação entre elas.
Fingir ser outra pessoa - atuar - é parte do processo de viver; podemos "fazer de conta", fisicamente, quando somos pequenos, ou fazê-lo internamente quando somos adultos. Atuamos todos os dias: com nossos amigos, nossa família, com estranhos. A imagem mais comum para esse processo é "a máscara e a face": nosso verdadeiro "eu" está escondido por muitas "mascaras" que assumimos no decorrer de cada dia.
Atuar é o método pelo qual convivemos com nosso meio, encontrando adequação através do jogo. A criança pequena, ao deparar-se com algo do mundo externo que não compreende, jogará com isso dramaticamente até que possa compreendê-lo. Podemos observá-la assim atuando várias vezes ao dia. À medida que ficamos mais velhos, o processo se torna cada vez mais interno, até que, quando adultos, passa a ser automático e jogamos dramaticamente em nossa imaginação - a tal ponto, inclusive, que podemos nem mesmo perceber que o fazemos. Logo, o processo dramático é um dos mais vitais para os seres humanos. Sem ele seríamos meramente uma massa de reflexos motores, com poucas qualidades humanas.
Cada época e cada sociedade desenvolve sua própria forma de educação. Em contraposição à Igreja medieval que desenvolveu um sistema educacional voltado para a manutenção do sacerdócio, e ao sistema educacional do século XIX, que realçou determinadas práticas acadêmicas no sentido de prover uma força clerical para a sociedade industrial, precisamos proporcionar uma educação que habilite os homens para desenvolverem suas qualidades humanas. É esta a maior necessidade de nosso tempo.
A crescente especialização de nossa sociedade científica tende a não se concentrar nas qualidades essencialmente humanas. Tanto em nossa educação quanto em nosso lazer precisamos cultivar o "homem total" e nos concentrarmos nas habilidades criativas do ser humano. A imaginação dramática deve ser ajudada e assistida por todos os métodos modernos de educação.
Esta atitude com relação ao processo educativo desenvolveu-se paulatinamente através dos séculos. Dentro da história do pensamento humano, a natureza educacional do jogo dramático tem sido compreendida por vários pensadores em diferentes épocas - mas, em seus próprios termos. A educação esteve relacionada com a estrutura global do pensamento dentro do qual o indivíduo esteve inserido. Assim, a postura de Platão desenvolveu-se a partir do pensamento grego exatamente como Ascham o fez a partir do pensamento renascentista.
O MUNDO ANTIGO
A educação ateniense do século V a.C. baseava-se na literatura, música e esportes. A literatura incluía leitura, escrita, aritimética e declamação das obras dos poetas - particularmente Homero. Este foi a suprema autoridade em religião e letras, e passagens inteiras de sua obra eram decoradas e então recitadas com todos os recursos teatrais - inflexão, expressão facial e gestos dramáticos. A música incluía o estudo do ritmo e harmonia e o domínio da lira e da flauta, enquanto que os esportes recebiam grande incentivo, das corridas ao jogo de bola, da luta de boxe à equitação e dança.
A dança recebia especial ênfase na medida em que era fundamental a todas as religiões e cerimônias dramáticas; sua forma era intensamente dramática e exigia grande habilidade. Cidadãos ricos treinavam o coro das festas religiosas e as crianças, muitas vezes pobres, eram submetidas a um rigoroso programa de poesia, religião, canto e dança - um programa coordenado, de fato, que expressava a harmonia de pensamento do indivíduo através do exercício rítmico.
Além do mais, o próprio teatro foi um importante instrumento educacional na medida em que disseminava o conhecimento e representava, para o povo, o único prazer literário disponível. Os dramaturgos eram considerados pelos professores tão relevantes quanto Homero, e eram recitados de maneira semelhante. O teatro, em todos os seus aspectos, foi a maior força unificadora e educacional no mundo ático.
PLATÃO
Platão considerava que a educação deveria estar calcada no jogo e na não-compulsão, e que:
...as crianças, desde tenra idade, devem participar de todas as formas mais lícitas de jogo, pois se elas não se encontram cercadas de tal atmosfera jamais crescerão para serem bem educados e virtuosos cidadãos.
A educação deve começar desde cedo, mas "de maneira lúdica e sem qualquer constrangimento", principalmente para que as crianças possam desenvolver "a tendência natural de seu caráter'.
Platão divide seu sistema educacional em duas partes: "música" e "ginástica". O uso que faz do termo "musical" é abrangente:
...os mais jovens de qualquer das espécies não podem manter seus corpos e vozes quietos, estão sempre querendo movimentar-se e gritar; uns saltando e pulando, e expandindo-se com esportividade e prazer; outros emitindo todas as formas de grito. Mas, enquanto que os animais não têm nenhuma percepção de ordem em seus movimentos, isto é, de ritmo e harmonia como são chamados, a nós, os deuses, que foram indicados para serem nossos companheiros na dança, nos deram o aprazível senso de harmonia e ritmo; assim eles nos estimularam para a vida, e nós os seguimos dando-nos as mãos em danças e músicas; e estes são chamados coros, que é um termo que expressa naturalmente a alegria. Começaremos, então, com a admisão de que a educação nos é dada primeiramente através de Apolo e das Musas...(para) aquele que sendo bem educado seja capaz de cantar e dançar bem.
A educação "musical", equilibrada com a recreação física, incluía canto, dança e literatura, e deveria ser enfocada a partir da tendência para o jogo. Sua razão para atribuir tal importância a este aspecto é que "ritmo e harmonia submergem mais profundamente nos recessos da alma" e, dessa maneira, discernimento, julgamento, benevolência e justiça se desenvolverão.
Embora Platão advogue por uma educação liberal baseada no jogo, ele não encontra lugar para o teatro em sua República. Para ele, o ideal é a verdade, e a realidade é uma cópia (ou imitação) dela. O teatro está ainda mais longe da verdade, porque imita a realidade. O ator também imita uma personagem - imitar, porém, é transgredir. Além disso, um ator pode ter que imitar uma personagem má, o que pode levá-lo a "contaminar a realidade". O teatro apresenta um grande perigo para a platéia: pode levá-la a sucumbir a emoções que deveriam ser subjugadas.
Ele distingue o jogo, que deveria ser a base da educação, do teatro, que é mau porque é imitação. Embora tenha sido contestado por Aristóteles, a influência de Platão expandiu-se durante a Idade Média, período no qual a obra de Aristóteles esteve perdida.
ARISTÓTELES
Aristóteles também deu destaque ao jogo na educação mas, sendo um cientista, o fez de um modo específico. O movimento lúdico deveria ser encorajado para prevenir a indolência, enquanto que o jogo em geral "conviria não ser nem liberal, nem muito árduo, nem muito ocioso". Era indicado também para o relaxamento "como um remédio". Define esses dois propósitos do jogo porque faz distinção entre entre atividades que têm um fim em si mesmas e podem ser desfrutadas por seus próprios objetivos (que é a felicidade) e aquelas que são recursos para um fim. Como a educação deve preparar para a vida prática e ao mesmo tempo proporcionar lazer, o jogo é de máxima importância. Até aqui, ele estaria de acordo com Platão.
Mas é na Poética, com sua discussão sobre o teatro, que a discordância tem início. A Poética permanece como um dos maiores trabalhos de crítica dramática da literatura mundial, embora seja tanto limitada quanto incompleta. Tem exercido grande influência em todos os períodos da história e não menos hoje, a despeito do fato de que algumas passagens são de origem duvidosa. Oferece uma resposta completa à crítica de Platão ao teatro.
Platão equivocou-se quanto à natureza da imitação, diz Aristóteles. O teatro não imita os fatos mas as idéias abstratas - o ator não imita o Édipo real, mas uma versão idealizada de seu caráter. Personagens dramáticas não são apresentadas como realmente são; a comédia as torna piores e a tragédia as torna melhores do que são na vida real. Além disso, imitação é natural à raça humana:
A imitação é natural no homem desde a infância, sendo esta uma de suas vantagens sobre os animais inferiores, pois ele é uma das criaturas mais imitativas da terra e aprende primeiro por imitação.
E mais, aprender através da imitação é um prazer intelectal:
É também natural para todos deleitarem-se em trabalhos de imitação...embora os fatos em si possam ser penosos de serem vistos, nós nos deliciamos em assistir a suas mais realistas representações na arte...(porque) estar aprendendo alguma coisa é o maior dos prazeres, não apenas para o filósofo mas também para todos os demais homens, por menor que seja a sua capacidade.
Para desenvolver sua tese, Aristóteles introduz sua teoria da Catarse; que a tragédia propicia a "purgação" das emoções:
Uma tragédia...é a imitação de uma ação que é importante, e também, em possuindo magnitude, é completa em si mesma, em linguagem e acessórios agradáveis, cada uma de suas formas empregadas separadamente nas partes da obra, não de forma narrativa, mas dramática; com incidentes despertando piedade e medo, recurso para efetuar sua catarse de tais emoções.
Sua explanação não nos chegou em sua íntegra, e o que temos é decepcionantemente incompleto. Mas é correntemente aceito que Aristóteles considerava que as emoções despertadas pela tragédia purgavam a alma como um remédio. Ao testemunhar uma tragédia, emoções impuras são experimentadas e dessa maneira expurgadas, de modo que nobres emoções de piedade e medo são realçadas. A influência da teoria da catarse foi dupla; primeiro, provendo o drama de um significado emocional; e, segundo, definindo a atitude trágica como contendo os elementos opostos de piedade e medo. (Kierkegaard preferiu tristeza e dor, I. A. Richards adotou piedade e terror, e outros escritores usaram seus próprios termos).
O PENSAMENTO ROMANO
De influência aristotélica, o conceito romano mais comum foi o de que a imitação tinha uma relação direta com arte e teatro. Cícero descreveu o teatro como "uma cópia da vida, um espelho dos costumes, um refelxo da verdade", um conceito que iria ecoar através dos séculos e eventualmente alcançar a idéia de Shakespeare de que a meta do teatro era "levantar, por assim dizer, o espelho para a natureza". Para os romanos, o teatro era imitação e teria um propósito educacional se pudesse ser de utilidade e ensinasse lições morais.
Horácio considerava que o teatro precisava tanto entreter quanto educar:
Todo o louvor obtém aquele poeta que une informação com prazer, ao mesmo tempo iluminando e instruindo o leitor.
Ele ordenou a visão clássica em uma série de regras para o teatro, realçando decoro e forma claramente definida: a comédia e a tragédia deveriam ser diferenciadas; as personagens criadas de acordo com o tipo; ações violentas não deveriam ser apresentadas; a estrutura deveria ser a de cinco atos - e assim por diante. Em Roma, as regras tomaram o lugar da especulação dos gregos.
Sêneca condenou o palco porque ele desviava o povo da séria ocupação de aprender e escreveu seus próprios dramas não para o teatro, mas para o estudo; estavam repletos de carnificinas e longas moralizações e, quando redescoberto durante a Renascença, teve uma influência que foi além de seus próprios méritos.
Dois escritores romanos assumiram os princípios do pensamento platônico, e, com seus escritos, à oposição ao teatro foi dada uma base intelectual, perdurando por séculos. Quintiliano exerceu sua influência durante o último período medieval e começo da Renascença - sobre Erasmo e Lutero, por exemplo. Plotino também reinterpretou o pensamento de Platão, mas sua influência foi principalmente junto aos primeiros padres católicos, e, com o neoplatonismo, afetou profundamente o pensamento católico até o século XII.
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Texto extraído do livro "Jogo, teatro e pensamento".
sexta-feira, 1 de janeiro de 2010
Aos queridos amigos do blog:
Além de, mais uma vez, agradecer a presença de vocês neste modesto espaço de informação e reflexão sobre as artes, em geral, e o teatro, em particular, ratifico o que já disse recentemente: que 2010 seja o ano mais feliz de nossas vidas!
Mas um ano, como sabemos, não é uma "entidade" monolítica, mas o somatório de muitos dias. Portanto, se conseguirmos, por um lado, encarar cada dia como se fosse o último e assim vivê-lo com a indispensável paixão e intensidade, é possível que realmente consigamos materializar muitos de nossos sonhos - todos, naturalmente, seria impossível. Por outro, no entanto, há algo que não podemos desconsiderar.
Mesmo não sendo psicanalista, imagino que um dos maiores entraves para a nossa felicidade seja perpetuar aquele comportamento típico dos neuróticos (todos somos neuróticos, o que varia é o grau de nossa neurose ) que consiste, basicamente, em andar em círculos, repetindo inconscientemente os mesmos equívocos e a eles atribuindo causas externas, sem atentar para o fato de que essa compulsão à repetição só pode ser interrompida por nós mesmos.
Mas isso só se torna viável se renunciarmos às costumeiras lamúrias ou à arrogância e adotarmos uma postura mais humilde, prima-irmã da sabedoria. Se eu me recuso a pensar sobre o que fui, eu o serei sempre. Ou seja: todo aquele que se nega a refletir sobre o próprio passado está condenado a repeti-lo.
A vida, como sabemos, é uma longa e sinuosa estrada. E nela não existem atalhos. Não se deve cultivar a ilusão de que somos capazes de dar grandes saltos, sobretudo porque quase sempre ignoramos a extensão de nossas pernas. Então, me parece mais sábio e mais prudente ir construindo nossa história com firmeza e determinação, mas também com a paciência que se faz necessária. E tentando sempre perceber os nossos próprios limites.
E caso vocês cultivem alguma religião, qualquer que seja ela, e mesmo que não sigam nenhum credo específico, mas ao menos acreditem em algum poder superior, aí segue uma pequena oração que acho que pode fazer bem a todos nós:
"Deus, concedei-me a SERENIDADE para aceitar as coisas que não posso modifificar. CORAGEM, para modificar aquelas que posso. E SABEDORIA para perceber a diferença".
Beijos,
Lionel
Além de, mais uma vez, agradecer a presença de vocês neste modesto espaço de informação e reflexão sobre as artes, em geral, e o teatro, em particular, ratifico o que já disse recentemente: que 2010 seja o ano mais feliz de nossas vidas!
Mas um ano, como sabemos, não é uma "entidade" monolítica, mas o somatório de muitos dias. Portanto, se conseguirmos, por um lado, encarar cada dia como se fosse o último e assim vivê-lo com a indispensável paixão e intensidade, é possível que realmente consigamos materializar muitos de nossos sonhos - todos, naturalmente, seria impossível. Por outro, no entanto, há algo que não podemos desconsiderar.
Mesmo não sendo psicanalista, imagino que um dos maiores entraves para a nossa felicidade seja perpetuar aquele comportamento típico dos neuróticos (todos somos neuróticos, o que varia é o grau de nossa neurose ) que consiste, basicamente, em andar em círculos, repetindo inconscientemente os mesmos equívocos e a eles atribuindo causas externas, sem atentar para o fato de que essa compulsão à repetição só pode ser interrompida por nós mesmos.
Mas isso só se torna viável se renunciarmos às costumeiras lamúrias ou à arrogância e adotarmos uma postura mais humilde, prima-irmã da sabedoria. Se eu me recuso a pensar sobre o que fui, eu o serei sempre. Ou seja: todo aquele que se nega a refletir sobre o próprio passado está condenado a repeti-lo.
A vida, como sabemos, é uma longa e sinuosa estrada. E nela não existem atalhos. Não se deve cultivar a ilusão de que somos capazes de dar grandes saltos, sobretudo porque quase sempre ignoramos a extensão de nossas pernas. Então, me parece mais sábio e mais prudente ir construindo nossa história com firmeza e determinação, mas também com a paciência que se faz necessária. E tentando sempre perceber os nossos próprios limites.
E caso vocês cultivem alguma religião, qualquer que seja ela, e mesmo que não sigam nenhum credo específico, mas ao menos acreditem em algum poder superior, aí segue uma pequena oração que acho que pode fazer bem a todos nós:
"Deus, concedei-me a SERENIDADE para aceitar as coisas que não posso modifificar. CORAGEM, para modificar aquelas que posso. E SABEDORIA para perceber a diferença".
Beijos,
Lionel
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