quarta-feira, 30 de junho de 2010

As duas críticas

Bernard Dort

Conhecemos a função tradicional da crítica dramática: policiamento estético, constatação e, sobretudo, publicidade. Durante todo o século XIX e também nos dias de hoje, alguns críticos se consideram como os guardiães das leis do Teatro (teatro com T maiúsculo). Foi, por exemplo, o caso de Francisque Sarcey que, na França, exerceu uma verdadeira legislatura. Ele foi ao mesmo tempo o guardião da "peça bem feita" e o juiz da correta execução do espetáculo. Sua crítica repousava numa certa concepção da essência do teatro e considerava o espetáculo como a tradução cênica de uma realidade específica que existe fora dele. Estas noções estão aparentemente ultrapassadas, mas ainda hoje, mais ou menos conscientemente, são utilizadas por muitos críticos.

Enfim, Sarcey assegurava a publicidade do espetáculo: era ele quem fazia o público ir ou não ir ao teatro. Entre um tal crítico e o público existia um acordo tácito: ambos pertenciam ao único mundo para o qual se fazia teatro, ao mundo burguês. Assim, o crítico encarnava idealmente o espectador médio exemplar. Era ele quem "degustava" o espetáculo. Podia decretar, exatamente como um degustador de vinhos, que aprecia as safras segundo os anos de produção: "Barrault 47 é muito bom, mas Barrault 57, foi um mau ano".

Evidentemente, esta espécie de crítica está em vias de desaparecer. Mas ainda continua a ser praticada e a desempenhar um papel que está longe de poder ser negligenciado. Jean-Jacques Gautier, do Figaro, é exatamente um crítico deste tipo. De nada adianta vilipendiá-lo nem fazer dele o bode expiatório de todas as crises do nosso teatro. A questão é saber de que teatro se trata. Não é Jean-Jacques Gautier que é feroz e mau: ele exerce perfeitamente sua função, segundo sua concepção de teatro. É esta concepção que podemos e devemos pôr em questão.


Transformações capitais

De Sarcey até hoje a atividade teatral foi fundamentalmente modificada. Em primeiro lugar, passou-se da execução cênica à criação teatral. Ora, na maior parte dos casos, a crítica não compreendeu o que foi, o que representa ainda hoje, na atividade teatral, o aparecimento da encenação moderna. O paradoxal é que este fenômeno ainda não foi "integrado" pela crítica e, no entanto, já se fala no reino do encenador como ultrapassado. A crítica ainda vê no encenador apenas um executante superior. O aparecimento da encenação produziu uma noção nova: a de teatralidade, em certo sentido como oposição à idéia do teatro como um gênero particular e também como oposição à idéia da "peça bem feita". Ora, a crítica nem sempre levou em consideração esta teatralidade, à qual corresponde, no domínio literário, e sabemos com que êxito em nossos dias, a noção de literalidade.

Critérios internos não são suficientes para definir a atividade teatral. Ela é também função de critérios externos. Fazer teatro é dirigir-se sempre a alguém, mais exatamente a um grupo ou a uma coletividade, numa situação política e social precisa. Também neste terreno houve uma evolução considerável. Por um lado, o público ao mesmo tempo cresceu e se diferenciou: hoje não mais existe um único público - aquele público burguês em nome do qual falava a crítica do século XIX - mas, sim, vários públicos. Por outro lado, o teatro se descentralizou. Ora, essa descentralização coincidiu com uma centralização da imprensa e, ao menos na França, com o desaparecimento progressivo de uma imprensa regional autônoma.

Enfim, a noção de espetáculo considerado isoladamente foi substituída pela noção do empreendimento teatral: tornando-se assinantes, os espectadores passam a se comprometer não apenas para uma noite mas para uma série de representações. Uma outra forma de diálogo se estabelece entre teatro e espectadores, entre a comunidade teatral e a coletividade. As relações teatro-público não mais se limitam às relações que, no espaço de uma representação, se estabelecem entre palco e platéia. Agora se tornam mais contínuas. O crítico era o crítico de um espetáculo. Agora deve comentar uma sucessão de espetáculos. À descontinuidade sucede uma certa continuidade. Antes, era o crítico que regia a relação palco-platéia que cada peça tornava possível; agora, ele deve encontrar seu lugar numa organização mais ampla: a das relações duráveis entre duas comunidades.


A inércia crítica

Uma certa maneira de exercer a crítica dramática chega, portanto, a seu fim. Nos jornais, sobretudo nos jornais diários, a coluna de teatro cada vez importa menos. No século XIX os críticos importantes dispunham do que se chamava um "rodapé", ou seja, a parte de baixo de uma página: ali publicavam um longo artigo semanal, não necessariamente dedicado a um espetáculo. Podia consistir também num conjunto de reflexões gerais. Eram os colunistas que, dia-a-dia, comentavam os espetáculos. Hoje os críticos são cada vez mais transformados em colunistas: às vezes chegam a escrever até mesmo um artigo por dia.

Mas suas posições, na equipe dos jornais, está desvalorizada: significam menos que os repórteres esportivos e no máximo um pouco mais que aquele que escreve a coluna dos cães atropelados. O espaço reservado a seus artigos também diminuiu. Único entre os críticos de Paris, Jean-Jacques Gautier permanece uma personagem considerada em seu jornal, como antes havia acontecido com Sarcey. É que ainda existe uma adequação entre seu gosto próprio, o gosto de seus leitores e um certo setor do teatro de Paris (citemos por alto o teatro de boulevard -de Grédy e Berrilet a Anouilh, e mesmo Ionesco).

Em compensação, um outro crítico, o do Le Monde, teve seu papel diminuído: isso nada tem a ver com sua personalidade, com suas qualidades ou defeitos, mas refere-se ao fato de que os leitores do Le Monde são hoje menos homogêneos que os leitores do Figaro. E não constituem a clientela de um único setor do teatro. Paradoxalmente este fato está também relacionado com a vontade de informação e de abertura do referido crítico.

Hoje a crítica freqüentemente funciona como um freio. Ela permanece na retaguarda da evolução do teatro. Em vez de descobrir as novas experiências teatrais, não faz mais do que consagrá-las depois que tenham sido descobertas. Desde 1950 a crítica da grande imprensa se dedica somente a avalizar a vanguarda dos anos 50, a descentralização, a influência brechtiana e o teatro de expressão corporal. E sempre com um notável atraso em relação aos acontecimentos.


Uma outra crítica

Deve-se então concluir que a crítica é inútil? Isto seria um paradoxo no momento em que outras artes e sobretudo em literatura, a crítica desempenha um papel cada vez mais considerável, onde a atividade crítica se tornou parte integrante da criação literária. Face a uma crítica de consumo (que é cada vez mais substituída pela publicidade), uma outra crítica é possível e necessária. Ela será ao mesmo tempo crítica do fato teatral como fato estético e crítica das condições sociais e políticas da atividade teatral. Vamos defini-la de um lado como crítica semiológica da representação teatral e de outro lado como crítica sociológica da atividade teatral.

Neste caso o crítico se encontraria numa posição nova em relação ao teatro. Estaria igualmente dentro e fora. É possível encontrar uma aproximação desta função naquilo que os alemães chamam "dramaturgo". Sem dúvida podemos ter dúvidas sobre o trabalho de alguns "dramaturgos" nos dias de hoje. Mas a exigência de um verdadeiro trabalho dramatúrgico se faz sentir cada vez mais. E que é este trabalho dramatúrgico senão uma reflexão crítica sobre a passagem do fato literário ao fato teatral? Uma espécie de crítica antecipada. Aqui o vínculo entre uma nova definição da crítica e o aparecimento da encenação moderna aparece com clareza.

Mas o crítico pode ter ainda um outro papel: o de educar o público. Não no sentido acadêmico da palavra, mas iniciando-o na linguagem teatral, fazendo-o refletir em sua função: a função de público. Brecht gostava de afirmar que existem pelo menos três artes no teatro: a arte do autor, a arte do ator e a arte do espectador. O crítico pode ser aquele que ensinará ao espectador a arte de ser espectador.

Quanto ao mais, estas duas faces de uma atividade crítica são complementares: elas se reúnem numa reflexão sobre o fato teatral global. Aqui, reencontram a própria atividade teatral considerada como representação das representações que nós nos fazemos de nossa sociedade, como crítica vivida destas representações - em resumo, como crítica de nossa ideologia.

Mas o teatro que efetivamente desejo não é aquele que aspira à ação direta nem aquele realizado por uma pequena comunidade fechada nela mesma: é um teatro de representação e de reflexão sociais. Numa atividade teatral desta espécie, a crítica possui um papel capital a representar. Ela é parte integrante da mesma. É um fator essencial de sua dinâmica: o motor deste teatro dialético do qual nos falava Brecht.
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Artigo extraído do livro "O teatro e sua realidade"/ Editora Perspectiva/1977.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Virgínia Woolf

Lionel Fischer

Como os queridos seguidores deste blog sabem, a maioria dos artigos que coloco nele se referem ao teatro. No entanto, vez por outra abro uma exceção, como o faço agora. Tentando organizar em pastas a infinidade de artigos que já escrevi (proeza que jamais levarei a cabo de forma satisfatória, a não ser que surja em minha vida uma mulher dotada de infinita paciência e boa vontade), hoje me deparei com uma matéria que escrevi para o jornal O Globo, em 1989, a respeito do lançamento do livro "Diários de Virgínia Woolf", editado pela Companhia das Letras, e que talvez ainda possa ser adquirido. Por tratar-se de uma leitura fascinante e que tem como protagonista aquela que muitos consideram a maior escritora de língua inglesa de todos os tempos, reproduzo a seguir a referida matéria, acreditando que muitos de vocês possam se sentir estimulados a ler (ou reler) este livro inesquecível.

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Segredos revelados

"Acho que vou ficar louca. Estou ouvindo vozes e não consigo me concentrar no trabalho. Não consigo continuar lutando". Num último rasgo de lucidez, a mulher que redigiu essas linhas percebe que a batalha que travara durante a vida contra a loucura chegava ao fim. Então, só vislumbra um caminho, que a leva até as margens do rio Ouse, que passa nos fundos de sua casa. Se desfaz do chapéu e da bengala, enche o casaco de pedras e se atira na água. O corpo só é encontrado semanas depois, algo desfigurado pela ação do tempo, das águas e dos peixes. Sobram, porém, indícios que eliminam qualquer esperança de um possível engano: o cadáver resgatado das águas naquela manhã é mesmo o de Virgínia Woolf.

Os segredos dessa mulher de personalidade complexa, incansável batalhadora, que fundou e administrou a Editora Hogart Press - destinada a lançar novos autores -, encheram cinco diários, num total de 3.500 páginas. A síntese desses diários a Companhia das Letras coloca à disposição do leitor, organizada por Quentin Bell, sobrinho da autora e seu principal biógrafo, sob o título "Diários de Virgínia Woolf".

Nascida em Londres, em 1882, filha de um dos mais célebres filósofos e críticos literários do período vitoriano, Sir Leslie Stephen, desde muito cedo Virgínia Stephen - seu nome de solteira - fez da imensa biblioteca do pai seu recanto avorito. Aproveitando-se do fato de que em sua época as meninas eram em geral educadas em casa, organizava todo o seu tempo em função dos livros. Aos 13 anos, a vida pacata e organizada que levava sofre dois terríveis golpes, que se não chegam a comprometer sua vocação de escritora, contribuem de forma decisiva para abalar sua estrutura psíquica. Primeiro, a morte de sua mãe, e em seguida uma tentativa de estupro por parte de seu meio-irmão George. Desesperada, tenta se atirar por uma janela, mas é contida. Embora salva da morte, jamais conseguiria se libertar da idéia do suicídio como solução para suas angústias, assim como nunca se entregaria totalmente a um homem. Talvez por isso tenha se casado com o aristocrata Leonard Woolf, homossexual confesso.

Autora de nove romances, dos quais dois são considerados obras-primas - "Orlando" e "As ondas" -, comparada a Proust e a Faulkner pela ruptura da estrutura narrativa do romance tradicional que imprimiu à maioria de suas obras, Virgínia Woolf foi também brilhante crítica literária e ensaísta. Admirada por intelectuais e artistas como T.S.Elliot, E.M.Foster, Bertrand Russel e o economista John Maynard Keynes, entre outros, fundou um movimento que ficou conhecido como o Círculo de Bloomsbury, que durante algum tempo exerceu em Londres grande hegemonia intelectual.

Por ser uma obra de natureza íntima, em princípio destinada a não ser lida por ninguém, todo diário tem como vantagem o pressuposto de que o autor não mentirá jamais, que se exporá ao máximo e sem nenhum pudor. E é o que faz Virgínia Woolf: desnuda por completo sua complexa e contraditória personalidade. Mas fala igualmente do mundo que a rodeia, de seus amigos e inimigos, dos hábitos e costumes de uma sociedade que definia como preconceituosa e sumamente hipócrita. São tão surpreendentes e cáusticas suas opiniões que, ao invés de comentá-las, talvez seja mais interessante transcrevê-las, como se estivéssemos entrevistando aquela que muitos consideram como a maior autora de língua inglesa.


Lar - Local onde se exerce, no seu mais completo esplendor, a tirania masculina.

Sexo - Sexo e poder se confundem.

Livros - Todo livro ilícito é de longe mais interessante do que os livros decentes, que ficam o tempo todo respeitando as ilusões.

Milton (autor de "O paraíso perdido") - Foi o primeiro machista.

Arte de escrever - O pior na arte de escrever é que a gente depende demais de elogios.

Honestidade - As únicas pessoas honestas são os artistas. Os reformadores sociais e os filantropos nutrem tantos desejos vergonhosos sob a máscara do amor ao próximo que no fim há mais defeitos a aportar neles do que em nós.

Vida - É tão trágica, tão semelhante a uma estreita faixa de pavimento sobre um abismo. Olho para baixo, sinto vertigem, não sei se conseguirei caminhar até o fim.

Doença - Tenho de tomar nota dos sintomas da doença, para reconhecê-la da próxima vez. No primeiro dia, a gente se sente desgraçada; no segundo, feliz.

"Ulysses" (de James Joyce) - Prolixo, insuportável, pretensioso e vulgar.

Vita (Vita Sack-ville-West, escritora e mulher extravagante com quem Virgínia Woolf teria mantido um romance) - Sim, gosto dela: do seu andar majestoso, de suas pernas. Seria capaz de anexá-la para sempre a meus objetos de uso pessoal.

Rompimento com Vita - Está muito gorda, a própria dama nobre indolente, a vitalidade perdida, sem interesse por livros; não tem escrito poemas; só se interessa por cães, flores e construções. É o fim de tudo. Mas não há rancor, não há desilusão, só um pouco de vazio.

Seus semelhantes - Eu não amo meus semelhantes. Detesto-os. Desdenho-os. Deixo-os cair sobre mim como sujos pingos de chuva.

Seu cérebro - É um colapso de nervos total em miniatura.

Feriado - É o dia ideal para se passear no cemitério à procura dos túmulos da família.

Relação conjugal - É uma vida automática, mas em cada semana há pelo menos um dia em que se forma, entre marido e mulher, uma pérola de sensações, que é muito mais plena e sensível por causa dos dias rotineiros, inconscientes e mecânicos. O que equivale a dizer que o ano é marcado por momentos de grande intensidade.

Depressão - Desço ao fundo do poço e nada me protege do assalto da verdade. Lá no fundo não sou capaz de escrever; existo, no entanto. Sou. Então me pergunto: quem sou?

Sociedade - O valor da sociedade é que ela nos rechaça.

Poesia - O grande período da poesia, o de Shakespeare, foi subjetivo; o nosso é objetivo; as civilizações morrem quando ficam objetivadas. Os poetas só são capazes de escrever quando dispõem de símbolos.

Freud - É muito velho, encarquilhado e de feições contraídas. Tem o olhar brilhante de um macaco, movimentos espasmódicos paralisados, tartamudo; mas perspicaz.

Censura - Andei pensando nos censores. Que vultos imaginários nos admoestam? Se digo sim, fulano vai me chamar de emotiva. Se aquilo, vai me achar burguesa. Os livros me parecem cercados por um círculo de censores invisíveis.

Idéias - Qualquer idéia é mais real do que todo o infortúnio da guerra. Pela idéia existo. É a única contribuição que posso dar.

Woolf para as pessoas - Sou importante para mim mesma. No entanto, sem nenhuma importância para as pessoas: como a sombra passando sobre as colinas.

Para si mesma - Sou pretensiosa, medíocre. Uma impostora.

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segunda-feira, 28 de junho de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Rebú"
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Melodrama em versão impecável
Lionel Fischer
Criada em 2006, a Cia. Teatro Independente começou sua trajetória de forma auspiciosa - o esquete "Cachorro" venceu o I Mercadão Cultural - RJ nas categorias "Melhor Esquete" e "Melhor Direção". No ano seguinte, este trabalho originou um espetáculo também intitulado "Cachorro", indicado ao Prêmio Shell na categoria "Melhor Direção". E agora o grupo volta à cena com "Rebú", de Jô Bilac, autor do já citado "Cachorro". Em cartaz no Teatro "Gláucio Gill", o texto conta com direção de Vinicius Arneiro e elenco formado por Carolina Pismel, Júlia Marini, Diego Becker e Paulo Verlings.
Segundo o release que nos foi enviado, o texto pretenderia o seguinte: "Em tom de tragicomédia, o Teatro Independente cria um verdadeiro 'rebú' em uma peça de época com ares cinematográficos. O clima remete a um set de filmagem, porém sem o uso de recursos de projeções e afins. Ambientada no fim do século XIX, a trama conta a história dos recém-acasados Matias e Bianca, que moram numa casa isolada em meio a um campo. O jovem casal prepara-se para receber Vladine, irmã adoentada de Matias, que traz consigo seu bem mais precioso: Nataniel, uma espécie de filho. A exagerada cautela com a saúde da hóspede e a presença de seu acompanhante faz com que Bianca, aos poucos, crie uma rivalidade com ambos, levando às últimas conseqüências o embate".
Efetivamente, o fragmento acima citado traduz o essencial da trama, cabendo apenas ressaltar que Nataniel, acompanhante de Vladine, é um bode cego, ainda que humanizado e destituído de chifres. Trata-se, realmente, de um divertido e surpreendente achado. E o enredo em questão apoia-se em uma estrutura narrativa típica do melodrama, só que elevando ao superlativo as surpresas, paixões, emoções e dilaceramentos inerentes ao gênero.
Quanto às surpresas e reviravoltas, não cabe aqui mencioná-las, pois isso privaria o espectador de usufruí-las. Mas torna-se imperioso registrar o seguinte: se a montagem não levasse 75 minutos e sim meia-hora, não tenho a menor dúvida de que sairia do teatro consciente de haver assistido a algo de grande interesse. No entanto, o texto nos parece excessivo, e aos poucos o interesse começa a decair, mesmo que a direção continue criando soluções surpreendentes e o trabalho dos atores se mantenha em excelente nível.
"Rebú" reafirma o talento de Jô Bilac como dramaturgo, pois seu texto cria situações "hilariantemente trágicas", assim conseguindo materializar um olhar divertidamente crítico com relação a um gênero estruturado em cima de paixões e situações sempre à beira do paroxismo. Mas, como já foi dito, sua extensão acaba comprometendo suas ótimas idéias e bem estruturados personagens.
Quanto ao espetáculo, a direção de Vinicius Arneiro traduz de forma exemplar os conteúdos propostos pelo autor, valendo-se de marcas em total consonância com os tresloucados arroubos do texto, sendo tais marcas primorosamente executadas pelo elenco. Neste particular, cumpre ressaltar a notável precisão dos intérpretes com relação ao divertido e passional universo gestual proposto, assim como a habilidade do conjunto no tocante a variações rítmicas e modulações vocais.
Na equipe técnica, Paulo César Medeiros ilumina a cena valendo-se de surpreendentes contrastes de luz e sombra, contribuindo de forma decisiva para a valorização dos múltiplos climas emocionais em jogo. A mesma eficiência se faz presente nos figurinos de Marcelo Olinto, na cenografia de Daniele Geammal e na trilha sonora original de Luciano Correa.
REBÚ - Texto de Jô Bilac. Direção de Vinicius Arneiro. Com Carolina Pisnel, Júlia Marini, Diego Becker e Paulo Verlings. Teatro Gláucio Gill. Sábado e domingo, 21h.
Teatro/CRÍTICA

"Mira! - enquanto nossos olhos se perdem"

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A dor de uma perda irreparável


Lionel Fischer

Como não recebi o release do espetáculo, só pude me basear no curto texto do programa distribuído ao público para ter acesso às pretensões dos envolvidos na presente montagem. E o mais curioso é que saí do teatro com a sensação de ter assistido a um espetáculo diferente do descrito no referido programa. Dele consta o seguinte fragmento:

"'Mira!' é um espetáculo que fala da crise masculina que perturba os homens entre os 40 e 50 anos. É uma comédia dramática, ou uma tragicomédia de costumes ou ainda um desabafo bem humorado de quem perdeu a juventude, os cabelos e a noção dos motivos que os fizeram desejar, tão ardentemente, há pelo menos 20 anos, serem exatamente o que são ou ainda invejarem o que gostariam de ser".

No entanto, e ainda que possa ter percebido fugazes momentos em consonância com o acima descrito, minha impressão é a de ter visto um espetáculo essencialmente trágico, mesmo que eventualmente contendo momentos de humor. Em cartaz no Espaço Sesc, "Mira!" conta com texto e direção de Oscar Saraiva (em colaboração com os atores Alexandre Mello, Fred Tolipan e Vitor Lemos, sendo que Oscar Saraiva também está em cena) e supervisão artística de André Paes Leme.

Em sua primeira metade, o texto nos mostra uma seqüência de cenas aparentemente desconexas, em que vários temas são abordados, obedecendo a uma estrutura bastante fragmentada e algo alucinatória. Se o texto terminsasse aqui, não saberia exatamente o que dizer sobre ele. Poderia, no máximo, sair tecendo uma série de conjecturas, mas todas elas fruto de impressões carentes de maior solidez.

Entretanto, na parte seguinte, tudo gira em torno do desespero de um homem que, após perder a mulher de sua vida num acidente de carro, dá mostras de não ter forças suficientes para seguir sozinho. Então seus três amigos tentam, de todas as formas, demovê-lo de sua decisão de se matar, missão que acaba se revelando inútil. Diante disso, só pude supor o seguinte: a primeira parte da peça poderia ser a expressão dos pesadelos do protagonista enquanto se recuperava do acidente em um hospital ou então em sua casa, desde que não tenha sofrido ferimentos de maior gravidade.

Mas mesmo que ambas as hipóteses não estejam corretas, o fato é que o primeiro segmento se dá num plano irreal, ao contrário do segundo. E é neste último que o texto realmente se torna tocante, já que o protagonista explicita com igual arrebatamento tanto a sua paixão como sua incapacidade de suportar sua perda. E os argumentos dos amigos tentando devolver-lhe a esperança são muito pertinentes, alternando frases ora estimulantes, ora consoladoras, às vezes ásperas, mas sempre visando fazer com que o protagonista renuncie a uma decisão já tomada e irreversível.

Com relação ao espetáculo, Oscar Saraiva impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o texto, criando marcas propositamente alucinadas em sua primeira parte e outras, digamos, mais humanamente apreensíveis na segunda. E todas elas otimamente executadas pelo elenco, composto de excelente atores, que exibem vasta gama de recursos expressivos e uma contracena que evidencia a inteligência cênica de todos.

No tocante à equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo a iluminação de Renato Machado, o vídeo de Mandrake Filmes (com marcante participação de Helena Varvaki), os figurinos de Ticiana Passos e a despojada e funcional cenografia, não assinada.

MIRA - Texto e direção de Oscar Saraiva. Com Oscar Saraiva, Alexandre Mello, Fred Tolipan e Vítor Lemos. Espaço Sesc. Sábado e domingo, 21h. (a temporada deveria encerrar-se neste último domingo, mas parece que foi prorrogada por mais uma semana. Mas ainda que tal não se dê, é bem provável que a montagem entre novamente em cartaz em outro teatro)

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Em causa própria...mas nobre causa!

Lionel Fischer

Recentemente, durante um evento ligado ao teatro, uma jovem estudante - cumpre assinalar que AS jovens estudantes costumam fazer bem mais perguntas do que OS jovens estudantes - me perguntou por que eu não havia escrito, até o momento, nenhum livro sobre teatro, já que, em sua opinião, "eu sabia tudo sobre teatro". Mesmo que tal afirmação seja completamente falsa, já que ninguém chega a saber tudo sobre o que quer que seja, por um momento abaixei os olhos, rubro de modéstia, mas logo em seguida recuei dois passos, pálido de espanto, como um personagem de soneto.

"Como assim?" - pensei - "ainda não escrevi um livro sobre o teatro???". Então informei à dita jovem que já havia, sim, escrito um livro sobre teatro, em parceria com meu amigo e parceiro de vida Bernardo Jablonski, lançado em 2004, com o título "O teatro por dentro ou por dentro do teatro - tudo aquilo que você sempre quis saber sobre o teatro e nunca lhe ocorreu".

Ela demonstrou um certo espanto, não apenas com a informação que recebera, mas também com a parte do título que vem depois do hífen. Então lhe expliquei que tratava-se, naturalmente, de uma brincadeira, pois ninguém pode querer saber tudo sobre alguma coisa que nunca lhe ocorreu...

Então ela sorriu...e as amigas que a acompanhavam riram dela...- as mulheres são sempre implacáveis, concordam?

Mas, enfim. O prólogo acima foi escrito com o intuito de divulgar o referido volume, que continua à venda em livrarias como Letras & Expressões, Travessa etc. E para tentar convencer os meus queridos seguidores deste blog a adquirir esta obra imortal (Perdoai-me, Senhor!), transcrevo a seguir parte da "orelha" e a contra-capa do livro, ambas assinadas por Domingos Oliveira.

Parte da "Orelha"

É no epicentro da esculhambação que se encontra a perfeita ordem. É dando risadas que se recebe ensinamentos. A verdadeira coerência deve conter grãos de indecisão. O pensamento lógico para não ser traído pela coerência tem exatamente que trair a si mesmo. Introduzir as impurezas em sua limpidez, demonstrando, assim, logicamente, que há muitas coisas que a lógica não alcança. A disciplina é militar. A organização é teatral. Até surubas são organizadas, dizem. Rindo de si mesmos, os autores deste livro esculhambado e incoerente criaram uma espécie de suruba de idéias, sérias/gaiatas que encantará o jovem leitor. Ele desejará saber quando os autores estão falando sério e quando estão brincando. Mas logo desistirão desta tarefa compreendendo que nem eles mesmos sabem. Livres dessa preocupação, a única coisa que lhes restará será fazer teatro, do bom e do melhor.


Contra-capa

Bernardo Jablonski e Lionel Fischer escreveram um livro sobre teatro porque amam o teatro e querem comentar suas principais questões. Bernardo Jablonski e Lionel Fischer escreveram um livro de humor porque, por filosofia e gosto perdem amigos, mas não perdem piadas. Bernardo Jablonski e Lionel Fischer escreveram um delicioso e excelente livro de humor sobre o teatro.
O livro desses dois intelectuais da pesada é baseado numa premissa formal. Lançada a questão um responde Sim e o outro responde Não, incognitamente. O provável é que ambos tenham escrito tudo, juntos. Saber combinar o Sim e o Não é um atributo das boas almas.
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Só faltou informar: a editora chama-se Caravansarai.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

O Realismo no Teatro Brasileiro
1ª fase (1855-1884)

Elza de Andrade


O Realismo é uma reação contra o Romantismo: o Romantismo era a poteose do sentimento; o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos, para condenar o que houver de mau na nossa sociedade. (Eça de Queirós)


Contexto Histórico

1. Na segunda metade do século XIX, o contexto sócio-político europeu mudou profundamente. Lutas sociais, tentativas de revolução, novas idéias políticas, científicas. O mundo agitava-se e a literatura não podia mais, como no tempo do Romantismo, viver de idealizações, do culto do "eu" e da fuga à realidade. Era necessária uma arte mais objetiva, que atendesse ao desejo do momento: o de analisar, compreender, criticar e transformar a realidade.

2. Os escritores realistas desejavam retratar o homem e a sociedade em sua totalidade. Não bastava mostrar a face sonhadora e idealizada da vida como fizeram os românticos; era preciso mostrar a face nunca antes revelada: a do cotidiano massacrante, do amor adúltero, da falsidade e do egoísmo humano, da impotência do homem diante dos poderosos.

3. "Madame Bovary" (1857), romance de Gustave Flaubert (França) marca o início do realismo na literatura européia. No Brasil, o Realismo se confunde com o fim da escreavidão, com a proclamação da República, com o início da economia cafeeira e do trabalho assalariado do imigrante europeu.

4. Principais autores realistas brasileiros na literatura:

Machado de Assis (1839-1908) - considerado o nosso maior autor realista: "Memórias póstumas de Brás Cubas", "Quincas Borba", "Dom Casmurro", "Esaú e Jacó", "Memorial de Aires".

Raul Pompéia (1863-1895) - "O Ateneu".

Aluísio Azevedo (1857-1913) - "O mulato", "Casa de pensão", "O cortiço".


Algumas características do Realismo

5. Com o desenvolvimento do pensamento humano tudo deve ser explicado cientificamente, portanto a realidade deve ser captada através da observação, tal qual o cientista no laboratório.

6. O Realismo focalizava sua atenção sobre uma classe social específica: a classe média, que está sempre sendo empurrada para baixo - situação propícia ao desenvolvimento de conflitos psicológicos.

7. Preocupação com a verdade. A verdade é o único guia do escritor.

8. Retrata a vida presente dos personagens, pois só a vida do momento pode ser objeto de análise e observação, ao contrário dos românticos, que amavam o passado.

9. Narrativa lenta e cheia de detalhes, aparentemente inúteis, mas usados propositalmente para retratar de modo fiel a realidade.

10. Não existe o livre-arbítrio. Os personagens se comportam de acordo com forças biológicas, atávicas e sociais.


Realismo no Teatro Brasileiro

11. João Caetano foi o expoente máximo do Romantismo teatral, à frente do Teatro São Pedro de Alcântara, durante 30 anos, de 1833 até 1863. Porém, a partir de 1855, passam a conviver em nossa Corte duas estéticas teatrais antagônicas: a romântica e a realista.

12. No Teatro Ginásio Dramático (antigo Teatro São Francisco de Paula, situado na Rua do Teatro, no Centro, próxima do Largo de São Francisco), estréia em 12 de abril de 1855 a companhia de Joaquim Heliodoro Gomes dos Santos, que se opôs à linha de trabalho adotada por João Caetano, propondo uma ruptura do romantismo teatral. Era um teatro pequeno (256 lugares), cujo nome fora inspirado no Gymnase Dramatique de Paris. A pequena empresa de Joaquim Heliodoro apresenta nos primeiros meses várias comédias, representadas com leveza e bom humor. No Teatro São Pedro, o repertório era formado por tragédias neoclássicas, dramas românticos e melodramas portugueses e franceses.

13. A última novidade que começava a seduzir a intelectualidade brasileira era o realismo teatral francês, que aqui no Brasil recebeu o nome de "dramas de casaca" (prque os atores apareciam vestidos modernamente) - isto é, peças de tese ou de descrição de costumes, onde se discutiam algumas questões sociais de interesse da burguesia, classe com a qual se identificavam e para a qual dirigiam sua produção. Questões relativas à família, ao casamento, ao trabalho, ao dinheiro, à prostituição foram então debatidas no palco, transformando-o em tribuna consagrada a demonstrar a superioridade dos valores éticos da burguesia.

14. As referências negativas ao São Pedro de Alcântara tornaram-se comuns na imprensa. Sem renovar o repertório de sua companhia dramática ele tornou-se alvo de críticas contundentes dos defensores do Ginásio: O Ginásio prossegue no empenho de agradar ao público que o freqüenta; nos dramas do seu repertório não há gritos de maldição, nem punhais, nem envenenamentos; mas, para falar a verdade, há muita coisa que faz rir, e que diverte a gente.

15. Seis meses depois, a pequena empresa, fortalecida pelo apoio da imprensa e pela simpatia do público, deixou de lado o modesto objetivo de montar peças apenas para divertir a platéia e incorporou ao seu repertório a última novidade dos palcos parisienses: o Realismo. A primeira peça foi "As mulheres de mármore", de Barrière e Thiboust. A partir de outubro de 1855, o Ginásio Dramático passa a representar esse novo repertório, inaugurando um novo período na vida teatral do Rio de Janeiro, marcado pelo prestígio da estética realista. Durante dez anos (até 1865), o Realismo transformou a atividade teatral no Rio de Janeiro, pois foi uma maneira nova não só de escrever peças, mas também de interpretá-las e encená-las.

16. O repertório do Teatro Ginásio Dramático foi composto quase que exclusivamente de originais franceses traduzidos; obra de Scribe, Augier, Sardou etc. "A dama das camélias", de Alexandre Dumas Filho, entrou no Brasil pela companhia de Joaquim Heliodoro em 1856, apenas quatro anos depois de sua estréia em Paris.

17. De um modo geral o Ginásio, representando o novo, teve a seu lado a maioria da imprensa, dos intelectuais e dos jovens estudantes. Mas João Caetano era um ator inigualável, de talento superior, como reconheciam até seus adversários, conseguindo manter seu público e admiradores fiéis.

O público desse teatro não quer estudos sociais, nem pintura de caracteres; são-lhe precisas emoções de calibre, choques elétricos, assassinatos, suicídios, envenenamentos, raptos...(Diário do Rio de Janeiro)


A interpretação realista

18. No Ginásio Dramático, as comédias realistas impuseram aos artistas o aprendizado de uma certa naturalidade em cena - nos gestos, na voz, no andar - de modo que as diferenças entre as duas companhias acentuaram-se também no terreno da interpretação.

19. O ator Furtado Coelho, do Ginásio Dramático, torna-se o principal rival de João Caetano, a partir de 1859. Com uma gestualidade contida, a voz bem modulada e os gestos elegantes, Furtado Coelho - o galã da companhia - foi o primeiro ator que realmente poderia ameaçar a glória, até então inabalável, de João caetano.

20. A partir de 1859 surge na imprensa a polêmica envolvendo admiradores dos dois artistas e das duas companhias teatrais que ocupou um grande espaço no Jornal do Comércio. Um dos textos publicados, assinado por "um artista dramático", descreve o estilo de interpretação de Furtado Coelho, em oposição ao de João Caetano. Trata-se de um documento precioso para se compreender as diferenças entre o ator formado nas escolas neoclássica e romântica e o ator do teatro realista:

(...) Os artistas devem procurar representar naturalmente, mas o natural do teatro, que não é o natural de uma conversa particular. (...) O senhor Furtado é sem dúvida um moço inteligente, a quem a natureza dotou de boas qualidades para vir a ser um bom ator, mas a quem falta os estudos preparatórios e a prática indispensável para ser, não diremos um mestre, mas um artista regular. (...)

O senhor Furtado não sustenta a voz, e para quem está colocado no meio da platéia parece ter voz de doente, e não se entende metado do que ele está dizendo, tão fraca é a sua pronúncia e sua voz.

O senhor Furtado afeta de virar as costas ao público ao mais que pode, e quase sempre fala de perfil, de maneira que evita a dificuldade do jogo de fisionomia. Se o senhor Furtado tem uma tirada calorosa, ou a diz com tanta volubilidade que não se percebe, ou tão devagar que se torna fria. Se tem uma declaração amorosa a fazer, ainda a faz friamente porque não estudou e por consegüinte não tem os meios de executá-la satisfatoriamente.

E tudo isso num teatro pequeno, em peças com paixões pequenas e pequeno desenvolvimento; que seria se ele fosse representar no Teatro São Pedro, em peças fortes e paixões com grande desenvolvimento, aonde é preciso dar mais largura à declamação, à voz, à articulação, ao andar em cena?

O ator deve ser um Proteu, que muda de figura conforme a personagem que representa, e o senhor Furtado com seus bigodes, de que usa na rua, apresenta sempre a mesma fisionomia em todos os seus papéis. Pois se é verdade que ele tem uma vocação decidida pela arte, não deve fazer o sacrifício dos seus bigodes à mesma arte?

(...) Tudo que temos dito não deve ofender o senhor Furtado, o futuro é seu: estude muito e muito; procure quem lhe dê conselhos; pratique longos anos; reflexione muito; (...) e provavelmente se tornará um bom ator e regenerará para sempre a maneira defeituosa e errada com a que iniciou a sua carreira dramática.


Reforma cenográfica

21. As peças realistas, reproduzindo a vida verdadeira, a vida íntima, forçaram uma reforma do cenário e dos figurinos. A cena nua é abandonada, surge o cenário de gabinete, e o objeto real passa a ocupar a cena.

22. A partir de 1880, já existe luz elétrica na maioria dos teatros. Os telões que serviram ao teatro por tantas décadas são agora substituídos pelo cenário real, tridimensional.

23. Também os figurinos começam a ser desenhados de acordo com os personagens, classe social, temperamento, com o objetivo cada vez mais acentuado de se aproximar da realidade.


Principais autores do Teatro Realista Brasileiro
1ª fase (1855-1884)

24. A ruptura entre o Roantismo e o Realismo não se deu de forma radical: muitos dramaturgos escreveram comédias realistas e dramas românticos, demonstrando que conviviam sem problemas com as duas tendências estéticas, que dividiam a preferência do público.

Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) - não pertence a nenhuma escola; é realista ou romântico, sem preferência, dependendo da ocasião. Produção dramática variadíssima, em torno de 15 peças. Continuador da obra de Martins Pena. "Luxo e vaidade" (comédia, 1860); "Luzbella" (drama, 1862, de inspiração realista francesa); "A torre em concurso" - sátira aos nossos costumes políticos e à tendência de depreciarmos tudo quanto é nosso.

José de Alencar (1829-1877) - interrompeu sua carreira literária romântica para escrever comédias.
"O Rio de Janeiro, verso e reverso" (1857) - tenta criar uma situação cômica sem os recursos costumeiros da farsa - já rompendo portanto com a tradição iniciada por Martins Pena. Pretendia a alta comédia / lição de moral. A comédia ligeira apenas diverte, não educa.

"Demônio familiar" (vai à cena no Ginásio, uma semana depois de "Verso e reverso") é uma alta comédia - divisor de águas - e marca a ruptura com o romantismo teatral e o início de uma dramaturgia voltada para os problemas sociais. José de Alencar situa a ação dramática no Rio de Janeiro de seu tempo e a construiu baseada em duas questões principais: a presença do escravo no interior da família brasileira e as relações entre amor, dinheiro, casamento. De um lado um problema especificamente nacional, e de outro lado, o aproveitamento de idéias discutidas nas peças francesas.

França Júnior (1838-1890) - outro continuador de Martins Pena, explorou as comédias de costumes. "Como se fazia um deputado", "O defeito de família", "Amor com amor se paga", "Caiu o ministério!".

Machado de Assis (1839-1908) - sua obra teatral é para ser lida. Acreditou no teatro como escola de costumes, moralizante. Escreveu 16 peças, dentre elas "Lição de Botânica", "Antes da missa", "Hoje avental, amanhã" e "Quase ministro".
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Artigo extraído da "Apostila 6", CAL, "História e Dramaturgia do Teatro Brasileiro I", maio de 2001.

terça-feira, 22 de junho de 2010

A semiologia dá um salto de quantidade

(O artigo que se segue exibe a entrevista concedida pelo semiólogo, professor e escritor Umberto Eco a Emílio Pozzi)

Emílio Pozzi - Em semiologia, como demonstrou o Congresso Internacional de Milão, o espetáculo (cinema e teatro) ocupa um lugar de grande relevo. Professor Umberto Eco, como julga o fenômeno? Trata-se de uma instância que nasce estre os estudiosos do espetáculo ou de um fenômeno objetivo de desenvolvimento?

Umberto Eco - Direi que os dois fatos novos do Primeiro Congresso Internacional de Semiótica foram a explosão da música e do teatro. Tratava-se de duas artes em que o desenvolvimento de uma pesquisa semiótica fora muito lento pelas razões expostas. A música parecia um universo no qual não há significação, o teatro um universo no qual há demais. Por motivos opostos hesitava-se em aproximá-los. Nos últimos dois anos tem havido, ao contrário, uma febre de investigações, uma reconstrução de pedigrée (redescoberta de pioneiros, de semiólogos que ignoravam sê-lo).

Deixemos de lado a música e pensemos no teatro. Há dois anos, durante o Festival de Veneza, fez-se uma mesa-redonda sobre os problemas de semiótica teatral: os debates efetivos pareciam muito desordenados, a coisa mais consistente era uma coletânea de textos pioneiros, preparada por Giuseppe Paioni e Luciano Codignola, com uma vasta bibliografia. Entre aquele encontro e o Congresso atual houve muito trabalho. Somente no curso DAMS de Bolonha este ano ocorreram duas iniciativas independentes, um seminário sobre semiótica teatral e uma série de conferências sobre a aplicação de métodos informacionais ao teatro.

Mas havia um nó a superar, a tendência a considerar-se o objeto de uma semiótica teatral num nível simplificado: para alguns o texto escrito, para outros a palavra falada, para outros a gesticulação do ator, e em seguida a operação de direção cênica, a iluminação, ou a cenografia e assim por diante. Pouco a pouco tomou corpo a idéia de que nos encontramos diante de um fenômeno "multinivelar" no qual estão em jogo sistemas sígnicos diferentes, que devem ainda ser analisados antes de se correr o risco de apresentar a definição do objeto integrado daí resultante.

Mas compreendeu-se também que o teatro é em tal sentido uma Terra Prometida da semiótica, porque a capacidade humana para produzir situações sígnicas desde o uso do próprio corpo até a formação, até a realização de imagens visuais, desenvolve-se aí completamente - o teatro é o lugar de condensação e convergência de "semióticas" diversas. E esta consciência toma vulto seja entre os produtores de espetáculo seja entre os teóricos puros (tão puros que até esse momento nunca haviam sido teóricos de teatro, mas lógicos ou matemáticos).

É curioso que o maior número de aplicações matemáticas a uma linguagem (depois da verbal) esteja se verificando com o teatro, e penso no trabalho dos estudiosos rumenos, Solomon Marcus à frente de todos. Justamente devido à dispersividade sígnica que é própria do teatro, devido à necessidade de encontrar algoritmos que estabeleçam ordem entre tantos níveis aparentemente desconexos...

E.P. - Entre cinema e teatro, é o primeiro que ocupa um lugar proeminente em semiologia. Qual a razão?

U.E. - Historicamente falando, a semiologia do cinema precedeu à do teatro em pelo menos dez anos. Antes de mais nada no cinema há uma signicidade dominante, a da filmadora, que restitui o fotograma. Todo o resto, assunto, preparação do ator, a mesma disposição de uma natureza mais ou menos fictícia, de uma realidade mais ou menos ilusória a ser tomada, está "por trás".

No teatro qualquer pessoa pode ainda acreditar encontrar-se diante de uma realidade bruta, sem mediação de signos: no cinema, como na palavra ou na imagem, qualquer pessoa percebe que está se defrontando com um significante visual que remete a qualquer outra coisa. Assim eram eliminados desde o princípio alguns equívocos mais grosseiros.

A segunda razão é que, para fazer semiótica, é preciso saber que se está trabalhando em um texto e qual é esse texto. No cinema, o texto é materialmente "testável": é a "pizza", o filme ou, se quiserem, a imagem sobre a tela. Só se pode começar a partir daí. No teatro, como já foi dito, a definição do texto é mais imprecisa: o texto escrito? O texto representado? E qual, entre todas, as representações possíveis? Entre o mesmo "Seis personagens à procura de um autor" realizado, digamos, por Strehler e por Enriquez, qual é o texto sobre o qual se deve trabalhar? O de Pirandello, independentemente da interpretação do diretor? No cinema um equívoco do gênero não acontece. Ombre rosse é sempre Ombre rosse seja projetado no centro de Milão, ou numa sala paroquial em Val d'Aosta (naturalmente poder-se-ia inserir nele a relação com o público, mas é uma segunda fase, e também aqui o teatro coloca um maior número de problemas).

E.P. - Verifica-se ao contrário escassa atenção à televisão. Por quê?

U.E. - Porque a televisão parece ter a mesma simplicidade textual do cinema e na verdade é mais ambígüa do que o teatro. O que significa o Telejornal a uma transmissão de "Édipo Rei"? Sem dúvida, uma particular dimensão do vídeo, uma granulação da imagem eletrônica, uma situação social de audição. Mas também esta situação de audição é menos controlável no teatro (sem falar no cinema), onde o ritual da participação paga programada, coloca uma série de convenções que podem ser descritas universalmente.

Por isso para fazer uma semiótica completa da televisão creio que seja preciso lidar justamente com a semiótica do cinema e com a do teatro, para depois então ver que variações assumem estas modalidades comunicativas quando se inserem no quadro televisivo. Uma semiótica "pura" da televisão poderia referir-se apenas à filmagem direta e já foi até tentada.

E. P - Se houve algo de novo, que novidade trouxe o congresso para estes setores do espetáculo?

U.E. - Receio que seja cedo para responder. Porque a finalidade do congresso era a de alargar e reforçar a tensão interdisciplinar. Se houve algo de novo para uma semiótica do teatro isto terá acontecido na medida em que os estudiosos de teatro assistiram também às sessões sobre música ou sobre arquitetura e vice-versa.

E.P - Os resultados do congresso permitem afirmar que houve um "salto de qualidade"?

U.E. - Prefiro falar de um salto de quantidade, o que em certos casos é a mesma coisa. O fato de que pela primeira vez filósofos ingleses da linguagem, musicólogos canadenses, lógicos poloneses e arquitetos franceses (para citar alguns exemplos) se tenham persuadido de que existe um objeto comum de pesquisas, mesmo havendo variedade dos métodos, das escolas, dos pressupostos ideológicos. Por salto de quantidade entendo também que o congresso produziu alguns "descolamentos" e algumas recuperações históricas.

Por exemplo, o publicismo corrente identificava semiologia e estruturalismo, o que é verdade só para uma parte destes estudos. O congresso descolou esta imagem por demais simplista e o fez realizando recuperações históricas, reencontrando os nexos com a filosofia analítica da linguagem, com o pragmatismo peirciano, a tradição da lógica formal, com as experiências dos psicólogos e assim por diante. Todas essas coisas que os especialistas já conheciam, mas um congresso serve também para difundir uma imagem pública de uma disciplina.

O mesmo descolamento, que aliás já estava ocorrendo há algum tempo, aconteceu entre lingüística e semiótica: o que não quer dizer que semiótica ainda não tenha muito que aprender com a lingüística, mas o que se alargou foi o campo dos empréstimos, dos débitos e dos créditos. Este fato é muito importante para uma semiótica do teatro, onde o elemento lingüístico entra somente numa porcentagem (que não me atrevo a definir).

E.P. - Pode haver uma relação entre semiologia e prática crítica e entre semiologia e prática produtiva?

U.E. - Que haja uma relação entre semiótica e prática crítica é indubitável. Não que a semiótica seja uma forma de crítica tout court ou que substitua a crítica, mas certamente lhe oferece instrumentos muito refinados. E sobre isto não há discussão. Ao contrário parece arriscado para alguns afirmar que um artista possa tirar vantagem do estudo das condições abstratas do sintema de significação em que trabalha. Devo dizer que sempre soube que os grandes escritores lêem muito o dicionário e a gramática. Para manejar a língua é necessário conhecê-la bem, e profissionalmente, os "primitivos" não existem, e quando são grandes conhecem as leis da língua, quem sabe até pelo faro, mas as conhecem.

O mesmo vale para os outros sistemas sígnicos. É claro que para um artista não basta estudar para ser grande, mas um grande artista que não estuda, não o conheço. Por isso "ó homem de teatro, eu vos exorto ao estudo das semióticas. Mal não lhes fará, exceto àqueles aos quais faria mal de qualquer maneira".
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Artigo extraído do livro "Semiologia do teatro" /Editora Perspectiva/1978. Tradução de Reni Chaves Cardoso.

domingo, 20 de junho de 2010

Teatro/CRÍTICA

"A arte de lidar segundo as mulheres"

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Correção e previsibilidade


Lionel Fischer


Tendo como fonte de inspiração tudo que a atriz Leila Diniz representou no tocante à libertação da mulher de determinados tabus que a aprisionavam, o presente espetáculo gira em torno de quatro mulheres. Joana, 48 anos, vive com suas duas filhas - Flora (30 anos) e Teresa (28) - em uma espécie de equilíbrio delicado, ainda que educado.

Até o momento em que surge Elisabete (28 anos), sobrinha de Henrique (ex-marido de Joana), vinda de São Paulo com o objetivo de atuar em uma peça infantil. A presença desta última, ao menos de acordo com o release, teria o poder de gerar "um súbito desconforto, transformá-lo em crise e finalmente gerar transfomações" - este fragmento do release foi, digamos, um pouco 'editado', mas acredito que sem alterar seu conteúdo.

Em cartaz no Sesc Casa da Gávea, "A arte de lidar segundo as mulheres" tem texto e direção assinados por Manoel Prazeres, estando o elenco formado por Ana Paula Sant'Anna, Ludmila Fidelis, Paola Castilho e Sônia Tinoco.

Como se sabe, esse tipo de situação - um ambiente razoavelmente harmonioso e equilibrado que sofre uma transformação com a chegada de alguém "de fora", ainda que não necessariamente uma pessoa estranha - já foi muito explorada. Mas isso é o que menos importa, já que um mesmo tema sempre é passível de receber um novo olhar.

Aqui, no entanto, as ditas transformações, para serem realmente convincentes, teriam que ser fruto de embates bem mais contundentes do que os exibidos. E para isso as personagens deveriam ter questões pendentes muito mais dolorosas, mesmo que até então conseguissem lidar com elas de forma razoável ou sequer tivessem plena consciência delas. Entretanto, o autor cria um contexto em que todos os problemas são facilmente resolvidos, o que torna coerente um desfecho em que a felicidade é a tônica.

Com relação ao espetáculo, Manoel Prazeres cria uma encenação em sintonia com seu texto - tudo transcorre de forma correta, mas sempre previsível. E a mesma correção se faz presente no trabalho das atrizes, que certamente teriam muito mais a exibir caso as exigências fossem maiores.

Na equipe técnica, novamente estamos diante de trabalhos que jamais ultrapassam os limites da correção - iluminação (Lara Cunha), cenografia (Letícia Ponzi), figurinos (Ticiana Passos) e composição de trecho musical (Regina Lucatto).

A ARTE DE LIDAR SEGUNDO AS MULHERES - Texto e direção de Manoel Prazeres. Com Ana Paula Sant'Anna, Ludmila Fidelis, Paola Castilho e Sônia Tinoco. Sesc Casa da Gávea. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.
Teatro/CRÍTICA

"Alucinadas"

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Delicioso desvario no Leblon


Lionel Fischer


Que as mulheres são, de uma maneira geral, um tanto alucinadas (com todo respeito), disso todos sabemos - e acredito que elas mesmas, inclusive. Mas o grande charme do espetáculo reside no fato de que os autores dos 12 esquetes (Bruno Mazzeo, Elisa Palatinik, Fábio Porchat, Maurício Rizzo, Rosana Ferrão e Luciana Fregolente) levaram ao extremo não apenas situações muito engraçadas, mas em total consonância com os, digamos, eventuais desvarios típicos do universo feminino, por sinal bem mais hilários do que os protagonizados por homens.

Em cartaz no Teatro do Leblon, "Alucinadas" nos mostra, dentre outros quadros, um grupo de auto-ajuda de estressadas anônimas, uma vendedora de cartão de crétido que leva sua cliente à loucura, uma perua que agenda seu próprio sequestro, duas editoras questionando o potencial comercial da Bíblia e assim por diante.

Victor Garcia Peralta assina a direção da montagem, que tem elenco formado por Renata Castro Barbosa e Luciana Fregolente, esta última também autora de alguns esquetes e parceira de Leoni no rock que abre o espetáculo, exibido em vídeo, que conta com as participações de ambos, de Renata Castro Barbosa, Herbert Vianna, Leo Jaime e Roberto Frejat.

Como toda montagem estruturada em torno de esquetes, nada mais natural que alguns sejam superiores a outros. Mas, de uma maneira geral, todos atingem os objetivos propostos, sendo o principal, como já foi dito, exibir comportamentos femininos completamente alucinados.

Com relação ao espetáculo, Victor Garcia Peralta impõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico, para tanto valendo-se de marcas que traduzem com muito humor a essência alucinada das múltiplas personagens, por sinal muito bem interpretadas por Luciana Fregolente e Renata Castro Barbosa, que exibem deliciosos dotes histriônicos e ótima contracena.

Na equipe técnica, destacamos com o mesmo entusiasmo o trabalho de todos os profissionais envolvidos neste divertido e crítico projeto - Leoni e Pedro Mamede (música), Adriana Milhomem (cenografia), Domingos Alcântara e Luciana Cardoso (figurinos) e Djalma Amaral (iluminação).

ALUCINADAS - Textos de Bruno Mazzeo, Elisa Palatinik, Fábio Porchat, Luciana Fregolente, Maurício Rizzo e Rosana Ferrão. Com Luciana Fregolente e Renata Castro Barbosa. Direção de Victor Garcia Peralta. Teatro do Leblon. Sexta e sábado, 21h30.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Teatro/CRÍTICA

"Monólogos da marijuana"

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Maconha e hipocrisia


Lionel Fischer


Descriminalizar ou não as drogas, eis a questão. O tema vem sendo cada vez mais debatido em todo o mundo e dada a sua natureza polêmica, nada mais natural que existam opiniões favoráveis e contrárias. No presente caso, estamos diante de um espetáculo que, numa primeira e superficial leitura, defende o consumo da maconha por considerá-la benéfica para aqueles que a consomem, fazendo também questão de ironizar alguns mitos relativos à dita erva.

No entanto, me parece que o tema central da obra em questão não se prende tanto aos possíveis benefícios ou malefícios decorrentes do consumo da dita erva, mas sobretudo à hipocrisia da sociedade que, se por uma lado, execra a maconha e os maconheiros, por outro acha acha perfeitamente natural e aceitável que as pessoas fumem, bebam, se entupam de tranquilizantes e anabolizantes, apenas para citar alguns exemplos - e todos sabemos que o cigarro, a bebida, os tranquiizantes e anabolizantes têm um poder destruidor infinitamente maior do que a maconha.

Escrita pelos atores/autores norte-americanos Arj Barker, Doug Benson e Tony Camin, "Monólogos da marijuana" chega ao Brasil após fazer muito sucesso na off-Broadway e também em países como a Argentina, Portugal, Chile e Espanha. Em cartaz no Teatro dos Quatro, o texto conta com direção de Emilio Gallo e elenco formado por Felipe Cardoso, Stella Brajterman e Marcos Winter - Aderbal Freire-Filho, Roberto Lopes, Aroeira e Albertina Saboya fazem divertidas participações em vídeo.

Estruturada como uma espécie de conferência, na qual os conferencistas queimam fumo o tempo todo, a peça expõe, como já foi dito, os benefícios da erva, mas sem deixar de ironizar alguns de seus efeitos colaterais, como, por exemplo, eventuais lapsos de memória ou atitudes bizarras quando se está "chapado". E também não deixa de compará-la com as drogas "aceitáveis", exibindo dados estatísticos estarrecedores, assim como enumera uma série de produtos derivados do cânhamo, dos quais toda a humanidade se beneficia.

Em resumo: estamos diante de um divertido e crítico espetáculo, bem dirigido por Emilio Gallo e bem interpretado por Felipe Cardoso, Stella Brajterman e Marcos Winter. A única ressalva que faço diz respeito ao excesso de palavrões, ainda que basicamente os mesmos, que muitas vezes soam completamente desnecessários. Na equipe técnica, são corretos os figurinos de Heitor Werneck e Escola de Divinos/SP, a trilha sonora de Paulo Mendes e a iluminação de Daniela Sanchez.

MONÓLOGOS DA MARIJUANA - Texto de Arj Barker, Doug Benson e Tony Camin. Direção de Emilio Gallo. Com Felipe Cardoso, Stella Brajterman e Marcos Winter. Teatro dos Quatro. Terças e quartas, 21h30.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

"Um dia você aprende"

William Shakespeare


Depois de algum tempo você aprende a diferença, a sutil diferença, entre dar a mão e acorrentar a alma. E você aprende que amar não significa apoiar-se, e que companhia nem sempre significa segurança. E começa a aprender que beijos não são contratos e presentes não são promessas.

E começa a aceitar suas derrotas com a cabeça erguida e olhos adiante, com a graça de um adulto e não com a tristeza de uma criança. E aprende a construir todas as suas estradas no hoje, porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos, e o futuro tem o costume de cair em meio ao vão.

Depois de um tempo você aprende que o sol queima se a ele você ficar exposto por muito tempo. E aprende que não importa o quanto você se importe, algumas pessoas simplesmente não se importam...

E aceita que não importa quão boa seja uma pessoa, ela vai feri-lo de vez em quando e você precisa perdoá-la por isso. Aprende que falar pode aliviar dores emocionais.

Descobre que se leva anos para se construir confiança e apenas segundos para destruí-la, e que você pode fazer coisas em um instante, das quais se arrependerá pelo resto da vida.

Aprende que verdadeiras amizades continuam a crescer mesmo a longas distâncias. E o que importa não é o que você tem na vida, mas quem você é na vida. E que bons amigos são a família que nos permitiram escolher.

Aprende que não temos que mudar de amigos se compreendemos que os amigos mudam. Percebe que seu melhor amigo e você podem fazer qualquer coisa, ou nada, e terem bons momentos juntos.

Descobre que as pessoas com quem você mais se importa na vida são tomadas de você muito depressa. Por isso sempre devemos deixar as pessoas que amamos com palavras amorosas, pode ser a última vez que as vejamos.

Aprende que as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós, mas nós somos responsáveis por nós mesmos. Começa a aprender que não se deve comparar com os outros, mas com o melhor que você mesmo pode ser.

Descobre que se leva muito tempo para se tornar a pessoa que quer ser, e que o tempo é curto. Aprende que não importa onde já chegou, mas onde está indo, mas se você não sabe para onde está indo, qualquer lugar serve.

Aprende que, ou você controla seus atos ou eles o controlarão, e que ser flexível, não significa ser fraco ou não ter personalidade, pois não importa quão delicada e frágil seja uma situação, sempre existem dois lados.

Aprende que heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer, enfrentando as conseqüências. Aprende que paciência requer muita prática. Descobre que algumas vezes a pessoa que você espera que o chute quando você cai é uma das poucas que o ajudam a levantar-se.

Aprende que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência que se teve e o que você aprendeu com elas, do que com quantos aniversários você celebrou. Aprende que há mais dos seus pais em você do que você supunha.

Aprende que nunca se deve dizer a uma criança que sonhos são bobagens, poucas coisas são tão humilhantes e seria uma tragédia se ela acreditasse nisso.

Aprende que quando está com raiva tem o direito de estar com raiva, mas isso não lhe dá o direito de ser cruel. Descobre que só porque alguém não o ama do jeito que você quer que ame, não significa que esse alguém não o ama, pois existem pessoas que amam, mas simplesmente não sabem como demonstrar isso.

Aprende que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém, algumas vezes você tem que aprender a perdoar-se a si mesmo. Aprende que com a mesma severidade com que julga, você será em algum momento condenado.

Aprende que não importa em quantos pedaços seu coração foi partido, o mundo não pára para que você o conserte. Aprende que o tempo não é algo que se possa voltar para trás.

Portanto, plante seu jardim e decore sua alma, ao invés de esperar que alguém lhe traga flores.

E você aprende que realmente pode suportar...que realmente é forte, e que pode ir muito mais longe depois de pensar que não se pode mais.
E que realmente a vida tem valor e que você tem valor diante da vida!

Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o bem que poderíamos conquistar, se não fosse o medo de tentar.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Quem é você?

Eugenio Barba

Eu penso o teatro como um corpo que perde continuamente sangue. Algumas vezes em que ele vai para as ruas e reencontra a realidade, ele recebe golpes, perde sangue através de feridas que não cicatrizam. O corpo do teatro não pode viver de seu próprio sangue. Sua hemofilia exige que ele se alimente do sangue que vem de outros corpos. Ele tem sempre necessidade de novo sangue, ele não pode sobreviver por ele mesmo.

Existe um teatro hemofílico que nega sua condição: de uma beleza diáfana, em sua torre de cristal, ele é cercado de magistrados e exegetas que o proclamam eterno e empreendem operações de revigoramento através de diágnósticos e teorias. Mas existe um teatro consciente de suas hemorragias, que se afasta do círculo protetor dos sábios e parece se perder em uma realidade que o ignora e o degrada, um teatro que não sabe o que fazer, e que, em colisão com a realidade, sangra.

Você perde sangue, mas se você se recusa a ficar estendido em uma maca, você transpõe uma fronteira que conduz a uma espécie de terra-de-ninguém: atrás de você, se estende o território do teatro; diante de você, uma outra fronteira. Você ignora para qual território ela te leva. Você avança prudentemente, mas com obstinação.

Evnetualmente, teus passos te fazem recuar, na direção da fronteira do teatro, e então os sábios e os magistrados sorriem, aliviados. Às vezes, você parece prestes a desaparecer no horizonte e teu destino se afigura como incompreensível. Afinal, quem é você? Um solitário que desaparece no deserto ou alguém que, avançando, e ainda que se perdendo, chega a traçar uma pista?
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Este fragmento foi extraído do livro "L'étranger qui danse" (Maison de la Culture de Rennes et Odin Teatret ApS/1977), e leva a assinatura do diretor do Grupo Odin. A tradução e o título ficaram por minha conta.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Mostra de Esquetes



Lionel Fischer



Neste último final de semana aconteceu no Tablado a 15ª Mostra de Esquetes, com total sucesso, tendo como tema trechos, cenas e adaptações da obra de William Shakespeare. A Mostra foi, como de hábito, dirigida por Lincoln Vargas e teve como apresentador Miguel Thiré. Então, tive a idéia de mostrar para vocês alguns pensamentos do fabuloso bardo, selecionados por Sergio Faraco, extraídos do livro "SHAKESPEARE - de A a Z" (L&PM POCKET). Vamos a eles, cabendo ressaltar que extraí apenas um pensamento de cada verbete.



A


AMBIÇÃO - A verdadeira substância da ambição é a sombra de um sonho. ("Hamlet", Ato II, Cena II, Guildenstern)




B


BEIJO - Entre dois beijos abrimos mão de reinos e províncias. ("Antônio e Cleópatra", Ato III, Cena VIII, Escaro)




C


CALVÍCIE - Quem é calvo por natureza, em tempo nenhum recupera o cabelo. ("A comédia dos erros", Ato II, Cena II, Drômio de Siracusa)


D

DÍVIDAS - Quem morre salda as dívidas. ("A tempestade", Ato III, Cena II, Estéfano)


E

ESPOSA - As queixas venenosas de uma esposa ciumenta são de efeito mais nocivo do que dentada de cachorro louco. ("A comédia dos erros", Ato V, Cena I, Abadessa)


F

FILOSOFIA - Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia. ("Hamlet", Ato I, Cena V, Hamlet)


G

GORDURA - Ventre grande é sinal de espírito oco; quando a gordura é muita, o senso é pouco. ("Trabalhos de amor perdidos", Ato I, Cena I, Longaville)


H

HOMEM - Os homens deveriam ser somente o que parecem. ("Otelo", Ato III, Cena III, Iago)


I

IMPOSSÍVEL - Não creias impossível o que apenas improvável parece. ("Medida por medida", Ato V, Cena I, Isabela)


J

JUÍZES - Quando os juízes roubam, têm licença de roubar os ladrões. ("Medida por medida", Ato II, Cena II, Ângelo)


L

LOUCURA - Os loucos não possuem orelhas. ("Romeu e Julieta", Ato III, Cena III, Frei Lourenço)


M

MÃO - As mãos que trabalham pouco são mais sensíveis. ("Hamlet", Ato V, Cena I, Hamlet)


N

NOME - Que há num simples nome? O que chamamos rosa, com outro nome não teria igual perfume? ("Romeu e Julieta", Ato II, Cena II, Julieta)


O

OURO - Nem tudo que reluz é ouro. ("O mercador de Veneza", Ato II, Cena VII, Marrocos)


P

PALAVRA - Quando poucas as palavras, raramente são desperdiçadas. ("A tragédia do rei Ricardo II", Ato II, Cena I, Gaunt)


R

ROSTO - Não existe arte que ensine a ler no rosto as feições da alma. ("Macbeht", Ato I, Cena IV, Duncan)


S

SER - Ser ou não ser...eis a questão. ("Hamlet", Ato III, Cena I, Hamlet)


T

TRABALHO - É estranho que, sem ser forçado, saia alguém em busca de trabalho. ("Péricles", Ato III, Cena II, Primeiro gentil-homem)


U

USO - As mais belas jóias, sem defeito, com o uso o encanto perdem. ("A comédia dos erros", Ato II, Cena I, Princesa)


V

VERTIGEM - Quem tem vertigens diz que o mundo roda. ("A megera domada", Ato V, Cena II, Catarina)


Z

ZANGA - A zanga é um cavalo fogoso que, podendo seguir por onde queira, cansa-se do próprio fogo. ("A famosa história da vida do rei Henrique VIII", Ato I, Cena I, Norfolk)

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quinta-feira, 10 de junho de 2010

"Pela passagem de uma grande dor"

de Caio Fernando Abreu
Adaptação: André De La Crus

ELA - Lui? Alô? É você, Lui?

LUI - Eu.

ELA - O que é que que você está fazendo? Alô? Você está me ouvindo?

LUI - Oi.

ELA - Perguntei o que você estava fazendo.

LUI - Fazendo? Nada. Por aí, ouvindo música, vendo TV. Agora ia fazer um café. E dormir.

ELA - Hein? Fala mais alto.

LUI - Mas não sei se tem pó.

ELA - O que?

LUI - Nada, bobagem. E você? Que que houve?

ELA - Escuta, você não quer dar uma saída?

LUI - Estou cansado. Não tenho cabeça. E amanhã preciso acordar muito cedo.

ELA - Mas eu passo aí com o carro. Depois deixo você de novo. A gente não demora nada. Podia ir a um bar, a um cinema, a um...

LUI - Sabe o que é..

ELA - Lui? Alô, Lui? Você está aí?

LUI - Eu já estava quase dormindo.

ELA - Que música é essa aí no fundo?

LUI - Chama-se "Por um desespero agradável". Você gosta?

ELA - Não sei. Acho que dá um pouco de sono. Quem é?

LUI - Uma cara aí. Um doido.

ELA - Como ele se chama?

LUI - Erik Satie.

ELA - Lui?

LUI - Digue.

ELA - Estou te enchendo o saco?

LUI - Não.

ELA - Estou te enchendo? Fala. Eu sei que estou.

LUI - Tudo bem, eu não estava mesmo fazendo nada.

ELA - Não consigo dormir.

LUI - Você está deitada?

ELA - Estou, lendo. Aí me deu vontade de falar com você.

LUI - O que é que que você estava lendo?

ELA - Nada, não. Uma matéria numa revista. Um negócio sobre monoculturas e sprays.

LUI - Sabia.

ELA - Horrível, não?

LUI - E os sprays?

ELA - O que?

LUI - Os sprays. O que é que tem os sprays?

ELA - Ah, pois é. Foi na mesma revista. Diz que cada apertada que você dá assim num tubo de desodorante. Não precisa ser desodorante, qualquer tubo, entende? Faz assim...Ah, como é que eu vou dizer? Um furo, sabe? Um rombo, um buraco na camada de como é mesmo que se diz?

LUI - Ozônio.

ELA - Pois é, ozônio. O ar que a gente respira, entende? A biosfera.

LUI - Já deve estar toda furadinha então.

ELA - O que?

LUI - Deve estar toda furada. A camada. A biosfera. O ozônio.

ELA - Acho que fiquei meio horrorizada. E com medo. Você não tem medo, Lui?

LUI - Estou cansado.

ELA - Não estou te alugando? Você sempre diz que eu te alugo. Como se fosse um imóvel, uma casa. Eu, se fosse uma casa, queria uma piscina nos fundos. Um jardim enorme. E ar condicionado. Que tipo de casa você queria ser, Lui?

LUI - Eu não queria ser casa.

ELA - Como?

LUI - Queria ser apartamento.

ELA - Sei, mas que tipo?

LUI - Uma quitinete. Sem telefone.

ELA - O quê? Alô, Lui? Você não ia mesmo fazer nada?

LUI - Um chá, eu ia fazer um chá.

ELA - Não era café? Me lembro que você falou que ia fazer café.

LUI - Não tem mais pó. E acabei de me lembrar que tenho um chá incrível. Tem até uma bula louquíssima, quer ver? Guardei aqui dentro.

ELA - Chá não tem bula. Bula é de remédio.

LUI - Tem sim, esse chá tem. Quer ver só?

ELA - Lui? Você não quer mesmo vir até aqui? Lui? Encontrou o negócio do tal chá?

LUI - Encontrei.

ELA - Você está esquisito. O que é que há?

LUI - Nada. Estou cansado, só isso. Quer ver o que diz a bula? Você entende um pouco de inglês, não é? This excellent for all types of nervous disorders, paranóia, schizophenia, drugs effects, digestive problems, hormonal diseases and other disorders...entendeu?

ELA - Entendi...é um inglês fácil. Qualquer um entende. Porreta esse chá, hein? Inglês?

LUI - Hein?

ELA - Nada. Vai fazer teu chá.

LUI - Tá bom. Aqui diz também que tem vitamina E. Não é essa que é boa para a pele?

ELA - Não sei. Vou desligar.

LUI - Você ligou o rádio?

ELA - Ainda não. Como é mesmo o nome dessa música?

LUI - "Por um desespero agradável". Não, é só "Desespero agradável".

ELA - Agradável?

LUI - Agradável. Por que não?

ELA - Engraçado. Desespero nunca é agradável.

LUI - Às vezes, sim. Cocaína, por exemplo.

ELA - Você só pensa nisso?

LUI - Não...penso em fazer um chá também.

ELA - Uma pena que você não queira mesmo sair. Estou pensando em abrir uma garrafa de vodka.

LUI - Vou fazer meu chá.

ELA - Como é mesmo que se pronuncia? Esquizôfrenia?

LUI - Não, é squizofrênia. Tem acento nesse "e" aí. E se escreve como esse, cê, agá. Depois tem também um pê e outro agá. Tem dois agás.

ELA - Tá bom.

LUI - Tá bom.

ELA - Tchau, até mais, boa-noite, um beijo.

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terça-feira, 1 de junho de 2010

Máximo Górki

Boris Schnaiderman


Ao concluir, em fins de 1901, sua primeira peça, "Pequenos burgueses", Górki na realidade estabelecia um dos marcos de uma vasta reflexão sobre o mesmo tema, e que se desdobra através de toda a sua obra. Nesta, o arrojo, o ímpeto para uma vida mais digna, choca-se com o arranjado, o rotineiro, luta contra esse estado de coisas, debate-se contra o que há de retrógrado e desumano, e semelhante luta constitui uma das caracacterísticas essenciais do humanismo gorkiano. Desde os primeiros contos até o romance derradeiro, "Vida de Klim Ságuin", Górki expõe os diversos planos em que esse entrechoque se dá. Os próprios vagabundos de suas primeiras histórias são também indivíduos que não encontram outro meio de reagir contra uma sociedade baseada na hipocrisia, na sujeição, numa vida medíocre e mesquinha.

Górki se dedicou com muita minúcia à descrição e à análise das forças que ele considerava contrárias à instauração de uma vida mais decente. Às vezes, o autor não se continha, vociferava contra a injustiça, arrebatava-se e interrompia uma narração fluente. Isto lhe foi apontado pela crítica, e é preciso reconhecer que fez um esforço tremendo para sobrepujar este defeito. Em muitas ocasiões, porém, o fluir natural da existência sobrepunha-se nele ao homem apaixonado, e a própria veemência surgia num contexto mais consentâneo com a realização estética.

Deixando as personagens desenvolverem-se numa linha inerente à índole de cada um, abstendo-se de atacá-las apenas pelo que elas eram, e procurando compreendê-las em função de uma realidade social, Górki atingia um estágio bem mais elevado de realização. Basta comparar, neste sentido, o esquematismo de certas personagens do seu famoso romance "A mãe" e a vivência autêntica com que apresentou os seus vagabundos insolentes e, mesmo, um relegado da sociedade como o espião policial de "Vida de um homem inútil" (romance editado no Ocidente sobretudo com o título de "O espião).

Neste sentido, o teatro constituiria para ele uma disciplina. A simples necessidade de deixar as personagens falarem por si já implicava um esforço de autodomínio. Isto não quer dizer que o panfletário, o homem da gesticulação e do discurso, não se imiscua às vezes no teatro de Górki, através de certas personagens. No palco, porém, este defeito se torna por demais evidente, e o próprio autor passaria a considerar detestáveis algumas peças em que isto aparece com freqüência, como é o caso de "Os veranistas" e "Os filhos do sol". E a capacidade de definir um indivíduo em poucos traços, por suas próprias palavras, tão flagrante em Górki, que, neste sentido, foi um verdadeiro discípulo de Tchecov, encontrava no palco um campo adequado à realização.

A luta contra o meio e o espírito pequeno burguês foi um dos objetivos de toda a atividade literária de Górki. Em primeiro lugar, torna-se necessário precisar um pouco o conceito. A palavra russa mieschtchanin vem sendo traduzida no Ocidente como "pequeno burguês", mas ela tem sentido mais lato. A rigor, era o homem que não pertencia nem à nobreza, nem ao campesinato, nem ao clero, isto é: o habitante das cidades. Em suma, na diferenciação entre o conceito expresso por essa palavra e o que nós costumamos expressar por "burguês" aparece a diferenciação entre o sentido mais antigo da palavra no Ocidente e a sua acepção corrente hoje em dia.

Por exemplo: em "Ganhando meu pão", segundo volume da trilogia autobiográfica de Górki, este conta que ia com a avó levar esmolas a mieschtchane (plural de mieschtchanin), e, evidentemente, seria ridículo, numa tradução, escrever que eles davam esmolas a "burgueses". De modo geral, o burguês enriquecido era designado por outros nomes, de acordo com a ocupação profissional. A palavra refere-se ainda a "gosto burguês", e tem igualmente um sentido moral, sendo o mieschtchanin, nesta acepção, o homem mesquinho, inimigo de tudo o que é grande e belo. Evidentemente, na peça "Pequenos burgueses", o vocábulo é empregado num sentido que justifica este título em português. Mas, para que se compreenda a posição de Górki em face do problema em seu conjunto, é preciso levar em conta a existência de outras acepções.

O velho Bessemenov da peça é apenas um dos elementos da realidade que o escritor fustigou sob o nome de mieschtchane. Ao examinar o burguês como indivíduo, Górki apresentava uma realidade em tons cambiantes, rica de matizes, em vez de se deter nos contrastes de branco e preto. Veja-se, por exemplo, a compreensão que tinha da marginalidade em que determinados indivíduos da burguesia são reduzidos a viver dentro de sua própria classe. A personalidade central de "Fomá Gordiéiev", seu primeiro romance, é um indivído exuberante, tolhido em sua expansão e vitalidade, pelo meio mesquinho de uma cidade provinciana.

E a Tatiana de "Pequenos burgueses" é bem a expressão das existências inutilizadas, destruídas pelo meio burguês. A reflexão gorkiana sobre os diferentes caminhos do indivíduo, dentro da classe burguesa, levou-o a examinar até o burguês que se revolta contra sua própria classe: foi o caso de Sava Morozov e outros industriais russos que financiaram o movimento bolchevique, bem como o de Nicolai Schmidt, dono da melhor fábrica de móveis finos de Moscou, preso pela polícia política por ocasião da revolta de dezembro de 1905, sob a acusão de conivência com os revolucionários, e torturado barbaramente, fato que provocou um artigo indignado de Górki.

A análise dos tipos da burguesia permitiu-lhe escrever seu romance mais vigoroso, "O negócio dos Artamonov", verdadeira saga de uma família de industriais, e o mesmo tema lhe inspiraria a peça em que surge a sua personagem teatral mais poderosa: o velho burguês de "Iegor Bulitchóv e Outros", o homem sem escrúpulos e diabolicamente lúcido, cercado de uma chusma de medíocres aproveitadores, e cujo apego à existência, cuja vitalidade torna a sua morte profundamente trágica. E é ainda a análise penetrante do meio burguês um dos elementos que mais contribuem para a solidez do importante documento literário e humano que é a trilogia autobiográfica de Górki.

Em face disso, parece um paradoxo o tom monocórdio da abordagem que ele, tão celebrado como o fundador da literatura proletária, faz do tipo do operário. Se isto é bem evidente no romance "A mãe", conforme já foi apontado inclusive por críticos literários marxistas, entre os quais Lunatchárski, o fato é sobremaneira gritante no teatro. Para Górki, o operário é um ser quase ideal, enquanto o burguês é freqüentemente cheio de altos e baixos, instável, contraditório. Se isto já aparece em certa medida no personagem Nil, de "Pequenos burgueses", será muito mais evidente em "Os inimigos", verdadeira ilustração cênica do princípio marxista da luta de classes.

Ali aparece, entre os burgueses, toda uma gama de tipos psicológicos, desde o burguês liberal, que procura atenuar os rigores da exploração capitalista, sem renunciar às prerrogativas de classe, o que resulta num fracasso completo, até os burgueses que se sentem estranhos em seu próprio meio, e, do outro lado, os exploradores conscientes e coerentes com sua condição.

Górki preocupa-se, e muito, com a situação do intelectual na sociedade burguesa. Esta preocupação apareceu nele desde os primeiros escritos, suscitando então as seguintes palavras de Tchecov, numa carta: "Na descrição que você faz de pessoas da inteliguêntzia, sente-se uma tensão, uma espécie de circunspecção, o que não se deve ao fato de os ter observado pouco; não, você os conhece, mas não sabe seguramente por que lado os abordar".

Esta observação tem fundamento, se levarmos em conta escritos como o romance "Várienka Oliéssova", mas, no desdobramento da obra gorkiana, ulterior à morte de Tchecov, a análise dos tipos intelectuais proporcionaria ao autor alguns dos seus pontos altos, embora, por vezes, descambasse para a caricatura fácil e se deixasse tomar por rancores de momento, por idiossincrasias. Em conjunto, o seu contato com o meio intelectual russo, o conhecimento direto que teve da evolução das idéias e dos movimentos culturais, constituíram elemento de vitalidade.

Numa nota ao conto "O vigia", escreveu: "A sensação alarmante do afastamento espiritual da inteliguêntzia, como princípio racional, em relação à espontaneidade do popular, perseguiu-me toda a vida com alguma insistência. Em meu trabalho literário, abordei mais de uma vez esse tema, e ele suscitou contos como "Meu companheiro de estrada" e outros. Poco a pouco, esta sensação transformou-se num pressentimento de catástrofe. Encerrado, em 1905, na Fortaleza de S. Pedro e S. Paulo, tentei desenvolver o mesmo tema na peça fracassada "Os filhos do sol". Se a separação entre a vontade e a razão representa um difícil drama na existência do indivíduo, na vida do povo esta separação constitui uma tragédia".

"A separação entre a vontade e a razão" - não será esta uma das características da personagem Piotr de "Pequenos buirgueses"?. O próprio Górki escreveu: "Piotr deseja viver sossegado, sem obrigações com as pessoas, mas sente que viver assim é indigno do homem, procura uma justificação para si mesmo, não a encontra e se irrita". Por outro lado, esta personagem constitui a ponte de ligação entre o intelectual que chegou a se revoltar e os pequenos burgueses e eficientes em sua condição.

A abordagem de semelhantes problemas de um indivíduo se entrelaça em Górki com a reflexão sobre os problemas de todo um povo. E a indignação sobre o verdadeiro caráter do "pequeno burguês" levou o escritor a ver traços do mesmo espírito em manifestações do gênio russo, onde provavelmente ninguém mais seria capaz de procurá-los. Assim, constitui clamoroso escândalo, no mundo intelectual, a apresentação, feita por Górki num ensaio, da obra de Dostoiévski e de Tolstói, como manifestações do espírito pequeno burguês.

Ninguém mais do que o próprio estava fascinado pela obra desses gigantes. Mas, na hora em que os melhores homens russos procuravam um meio de luta contra a opressão, contra a canga que pesava sobre um povo inteiro, o primeiro erguia-se para exclamar: "Humilha-te, homem orgulhoso", e o segundo passava a pregar a não-resistência ao mal pela força. Neste sentido, pregando o conformismo, a resignação, eles iam de encontro dos anseios dos "pequenos burgueses" de apoiar o estado de coisas vigente. Para Górki, porém, o problema era de luta e de afirmação, de revolta e desafio, consistia em derrubar o que era mesquinho e sufocante, em afirmar o direito à vida, à alegria.

Górki afirma o amor, mas também a necessidade do ódio. Na peça "Os bárbaros", Lídia diz, referindo-se a uma das personificações gorkianas do espírito pequeno burguês: "Como isto é simples! Ele trocou a filha por um pouco de prata ordinária. E querem obrigar-nos a ter pena dessa gente, amá-la até...isto agrada a vocês? Há de adiantar-lhes a comisaração? E pode-se acaso amá-los?". Também no famoso monólogo de Sátin, na peça "No fundo" (apresentada no Brasil com o título de "Ralé"), a personagem diz: "É preciso respeitar o homem! Não ter pena dele...não o rebaixar com a comiseração...".

Para Górki, nada pode haver de mais contrário à dignidade humana que a aceitação passiva do sofrimento ou a sua glorificação, conforme expressou na peça "O velho". Nesta, um homem vítima de erro judiciário consegue fugir ao degredo na Sibéria e adaptar-se plenamente à sociedade capitalista. É dono de uma empesa de construção, há uma mulher que o ama, tem todos os elementos para ser feliz. Mas, de repente, aparece um velho, de alforje às costas, seguido de uma mocinha abobada. O velho foi companheiro de degredo de Mastakov (assim se chama o homem) e não tolera que ele tenha escapado ao castigo. "Eu cumpri minha pena, você não. Ninguém pode fugir ao castigo, ao sofrimento; cada um temque pagar pelo que fez".

Ele atormenta a tal ponto Mastakov que este acaba suicidando-se. E esta réplica à exaltação dostoievskiana do sofrimento, às suas teorias sobre a aceitação do castigo como necessidade, constitui um dos pontos máximos alcançados por Górki em seu teatro. Nesta peça, a expressão do espírito de "pequeno burguês" é o velho, o santificador do sofrimento, e não o homem adaptado à sociedade capitalista, o realizador, o que é abatido pela perfídia, pela mesquinhez, pela torpeza.

A reflexão de Górki sobre o pequeno burguês relaciona-se claramente com a sua reflexão mais geral, sobre a condição humana, sobre a verdade e a justiça. Assim, quando Tatiana, em "Pequenos burgueses", volta-se contra as verdades que o velho Besssmenov lhe atira ao rosto, e afirma que existem duas verdades, isto é, a verdade do mundo dos opressores, estático, petrificado, e que deseja conservar-se como tal, e a verdade dos que se sentem oprimidos pela primeira, dos que não conseguem mais enquadrar-se nela, a pesonagem expressa uma idéia cara ao autor.

A preocupação com a verdade é uma constante no teatro de Górki, como aliás em toda a sua obra. Assim, ainda no monólogo famoso de "No fundo", Sátin afirma: "O homem - eis a verdade!". Na mesma peça, Luká mostra a inutilidade de uma procura de certas verdades, que podem ser nocivas, sufocantes. Em "Os veranistas", Riúmin retruca a outra personagem, que falava da necessidade de se ser sincero com as crianças, de não esconder delas a verdade: "Ora, isto é arriscado! A verdade é rude e fria, e nela está sempre escondido o veneno sutil do ceticismo". E adiante, num sentido mais geral: "Sou contra esses desnudamentos, essas tolas tentativas de arrancar da vida as belas vestes da poesia. É preciso enfeitar a vida!".

Mas, se esta frase se repete tantas vezes nos escritos de Górki, já a personagem Protassov, em "Os filhos do sol", encontra maneira menos comum de abordar o mesmo tema: "Os velhos têm raramente razão...A verdade está sempre com o recém-nascido".

Também outros argumentos relacionados com o tema do pequeno burguês podem ser encontrados tanto no teatro como na ficção ou nos escritos críticos e polêmicos de Górki. Pode-se dizer que há um verdadeiro entrelaçamento entre o que dizem as suas personagens teatrais e os seus tipos de ficcão. É é inegável que a profunda verdade humana existente em sua obra teve no teatro alguns dos momentos de mais completa realização.
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Prefácio extraído da edição da peça "Pequenos burgueses"/Editora Brasiliense, 1965. Tradução de Fernando Peixoto e José Celso Martinez Corrêa. OBS: mais informações sobre o autor estão colocadas lá no início do blog, também escritas por Boris Schnaiderman, e constam do mesmo volume.