segunda-feira, 13 de junho de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Retorno ao deserto"

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Dilacerante exílio existencial


Lionel Fischer


"Retorno ao deserto investe no tema das colônias, mostrando uma família que volta a reunir-se (e a odiar-se) depois de anos de exílio de uma das partes: depois de muitos anos vividos na Argélia, Mathilde retorna ao seu lar, na França, para a sua casa, que agora está sob o comando de seu irmão Adrien. Ela sai de um país africano, em guerra, e sua volta à terra natal é o seu retorno ao deserto - o lugar que supostamente seria o seu lar é o lugar mais hostil para aportar".

O trecho acima, extraído do release que me foi enviado pelos assessores de imprensa João Pontes e Stella Stephany, sintetiza não apenas o mais essencial no tocante ao enredo, mas também aponta na direção do que me parece ser o tema central da peça: uma espécie de exílio existencial fruto de uma quase que total impossibilidade de entendimento entre as pessoas.

De autoria do francês Bernard-Marie Koltès (1948-1989), "Retorno ao deserto" (Casa de Cultura Laura Alvim) chega à cena com direção de Moacir Chaves, tradução de Ângela Leite Lopes e elenco formado por Ana Barroso (Marie e Marthe), Andy Gercker (Edouard), Catarina Abdalla (Maame Queuleu), Diego Molina (Borny), Edson Cardoso (O grande paraquedista negro), Elisa Pinheiro (Fátima), Fernando Lopes Lima (Aziz s Sablon), Gabriel Gorosito (Plantières e Saífi), José Karini (Adrien), Mônica Biel (Mathilde) e Peter Boos (Mathieu). 

O exílio existencial que mencionei no segundo parágrafo tem como mola propulsora a péssima relação entre os irmãos Adrien e Mathilde. Ela retorna da Argélia com os filhos Edouard e Fátima, certamente em função da guerra travada pela França com sua colônia, esperando encontrar adequado refúgio na tranquilidade de sua casa na província. Ocorre, no entanto, que a mesma, ao longo dos últimos 15 anos, foi administrada por seu irmão, que a ela impôs um conjunto de regras tipicamente pequeno-burguesas, com as quais Mathilde não compactua e tenta subverter.

Estaríamos, então, diante de dois embates básicos: um, de natureza ideológica, e outro de ordem afetiva. Logo se percebe que a possibilidade de entendimento é nula e os conflitos entre os irmãos acabam se estendendo aos demais personagens. No entanto, por tratar-se de uma obra extremamente complexa, é bem possível que comporte leituras mais abrangentes (ou pertinentes) do que aquela que acabo de formular. Seja como for, foi essa a relação que estabeleci com o texto, que recebeu excelente versão cênica de Moacir Chaves.

Valendo-se de uma dinâmica ácida, árida e quase sempre soturna e claustrofóbica, Chaves evidencia aqui uma de suas principais virtudes: a clareza com que expõe os principais conflitos sem lançar mão de recursos facilitadores para o espectador. Ou seja: se as questões abordadas num determinado texto, como ocorre neste, são pesadas, duras, angustiantes e, digamos assim, desagradáveis para alguém que vai ao teatro pensando apenas em entreter-se, Chaves não procura amenizá-las em nenhum momento.

Se os personagem, em termos metafóricos, agem como se portassem afiadas navalhas, o encenador jamais as substitui por pequenos, envelhecidos, enferrujados e praticamente inofensivos canivetes. E a potência de suas imagens não está atrelada à violência dos cortes desferidos, pois imagino que Chaves tenha plena consciência de que o dano causado por uma facada  não depende da força, mas sim do ângulo de incisão da mesma. 

Estamos, portanto, diante de um espetáculo que valoriza ao extremo os principais conteúdos propostos pelo autor - mencionei alguns, outros talvez tenham me escapado. E isto também se dá em função de seu trabalho junto aos atores, que também enveredam por uma chave interpretativa que prioriza a clareza, a potência de suas idéias e sentimentos, ao invés de enfraquecê-las com excessos de sutilezas ou nuances, aqui desnecessárias.

Isto posto, cumpre ressaltar as irretocáveis performances dos protagonistas José Karini e Mônica Biel, que, salvo monumental engano de minha parte, exibem aqui as melhores atuações de suas carreiras. Quanto aos demais, todos os intérpretes extraem de seus personagens o que suponho que o autor pretendeu ao criá-los, daí resultando um conjunto homogêneo que contribui decisivamente para o êxito da presente montagem.

Na equipe técnica, Sérgio Marimba responde por uma cenografia não-realista em total consonância com as propostas da montagem. Inês Salgado assina figurinos em perfeita sintonia com a época e personalidade dos personagens. A mesma eficiência se faz presente na música de Tato Taborda, com Aurélio de Simoni iluminando a cena sempre reforçando os múltiplos climas emocionais em jogo. Finalmente, um destaque todo especial para a excelente tradução de Ângela Leite Lopes.

RETORNO AO DESERTO - Texto de Bernard-Marie Koltès. Direção de Moacir Chaves. Com José Karini, Mônica Biel e grande elenco. Casa de Cultura Laura Alvim. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h.   



   

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