quarta-feira, 8 de junho de 2011

O movimento da Valsa:
entre a fábula e a estrutura

Mariana Oliveira


Ao longo do processo de montagem de Valsa nº 6 pela Cia. Teatro do Pequeno Gesto, na qual trabalhei como atriz, em 2009, sob a direção de Antonio Guedes, fui compreendendo os sentidos de nossa abordagem desse monólogo escrito em 1951. Aos poucos, fui percebendo os aspectos por meio dos quais nossa visão se diferenciava de outras e valorizava determinadas questões latentes no texto, que acredito serem pertinentes às discussões teatrais contemporâneas.

A primeira marca de nossa leitura a evidenciar-se com nitidez foi a recusa à abordagem psicológica da personagem. Não nos interessava construir sua trajetória buscando atribuir coerência psicológica e verossimilhança a seus conflitos. Com isso, nos afastávamos de algumas interpretações consagradas da Valsa, entre elas a do crítico Sábato Magaldi.

Em prefácio ao volume Teatro Completo de Nelson Rodrigues, dedicado às peças do autor classificadas como psicológicas, Sábato discorda de Nelson quanto ao estatuto da personagem Sônia. Para o dramaturgo, a protagonista do monólogo é uma jovem que já morreu. Sábato explica sua atitude:

Ousei discordar da colocação de Nelson, menos por bizantinismo crítico do que por acreditar que a obra de arte muitas vezes escapa dos intentos expressos pelo autor.

Em sua opinião, a personagem do monólogo, assim como Alaíde, de Vestido de Noiva, está todo o tempo em estado de choque e "a ação se passa entre o golpe assassino sofrido por Sônia e sua morte". O crítico interpreta a fragmentação da personagem como desdobramento da personalidade, efeito do estado de choque.

Ao longo da peça, ocorre um processo de "esclarecimento" e de "iluminação da memória" até que a personagem possa elucidar o crime ocorrido. Nesse momento, "configura-se, objetivamente, o itinerário que precedeu a morte, e não a evocação, após o desenlace".

Tal interpretação da Valsa centra-se na história contada, isto é, na fábula e, por isso, busca formas de justificá-la segundo noções clássicas de coerência, causalidade e linearidade narrativas. A personagem Sônia, aqui, existe de maneira sólida, em carne e osso, em suas contradições e em suas angústias.

Para nós, entretanto - eis o que fui descobrindo à medida que ensaiávamos e debatíamos (e quantos debates travamos!) - a fábula e a personagem não estavam em primeiro plano. Em vez disso, interessava-nos trabalhar na direção que o próprio Nelson apontava, ao afirmar:

Coloquei uma morta em cena porque não vejo obrigação para que uma personagem seja viva. Para o efeito dramático, essa premissa não quer dizer nada".

Com essas palavras, o dramaturgo expõe a dimensão de teatralidade e autonomia artística da cena, que prescinde, assim, de explicações coerentes em relação ao mundo real. A cena não é uma cópia da realidade e não necessita de procedimentos que escamoteiem sua condição e que acabem desviando o olhar do espectador. A estrutura cênica, o que "está por trás" pode, então, vir à tona e até mesmo dialogar com a história a ser contada. Este foi o foco principal de nossa montagem.

Tal percepção levou-me a estabelecer paralelos com certas discussões teatrais contemporâneas que exporei aqui. Para tanto, de forma bastante livre, lançarei mão de categorias e instrumentais de análise que não dizem respeito diretamente à obra rodriguiana, mas que, no caso de nossa montagem, monstraram-se importantes para o meu processo de construção atorial.

Estabeleço, portanto, uma analogia entre a visão mais consagrada da Valsa, representada neste artigo pela leitura de Sábato, e traços característicos do conceito de drama elaborado por Peter Szondi. Com tal categoria, este último procurou definir a forma teatral que surgiu e predominou na Europa entre o Renascimento e o fim do século XIX, quando entrou em crise.

Segundo ele, o drama procura reproduzir relações inter-subjetivas, numa dialética fechada em si mesma. O drama "absoluto e primário" se caracteriza por apresentar-se desligado de tudo que lhe é externo - por exemplo, a intervenção explícita do dramaturgo e do espectador - e dar-se como ação originária e integral. Seu tempo é o presente: o drama é uma "sequência de presentes absolutos". Sua estrutura formal se baseia no diálogo e as personagens são construídas com profundidade psicológica.

À medida que trabalhávamos o texto de Valsa, encontrávamos ali latente um verdadeiro diálogo com esta tradição dramática. Nosso gesto de montagem buscou torná-lo ainda mais evidente. Em primeiro lugar, chamaram a nossa atenção algumas contraposições óbvias: trata-se de um monólogo e, por isso, não é reproduzida em cena a relação interpessoal.

Além disso, o que se dá é um  relato de memória, ou seja, não há ação presente. Outros pontos de contraste em relação à forma estrita do drama são a exposição não linear dos acontecimentos, a constante suspeita que paira sobre a veracidade do que é narrado e as lacunas da possível fábula. Muitas coisas não são ditas, exigindo do espectador atitude de decifração: por exemplo, quem é, afinal, Paulo? Noivo, primo, cunhado? Não há confirmação do autor para nenhuma das hipóteses.

A Valsa nº 6, portanto, recusa diversos traços dramáticos tradicionais, mas, ao mesmo tempo, apresenta algumas características que aparecem ao longo do processo de transformação do drama. Jean-Pierre Sarrazac afirma acerca do drama moderno: a "obra dramática encontra-se isenta da obrigação de seguir o encadeamento cronológico dos acontecimentos. Surge, então, um teatro dos possíveis".

Ora, o texto da Valsa, pela interrupção constante do encadeamento da fábula, abre-nos insistentemente um universo de possibilidades. A peça apresenta elementos recorrentes de perturbação que atrapalham a leitura a partir da chave dramática tradicional: há inúmeros cortes, fragmentações e mudanças repentinas de assunto que interrompem o fluxo da recepção.

Por isso, acredito ser oportuna uma leitura do texto que valorize mais sua estrutura que sua fábula. Devemos entender que a esta última sobrepõe-se o gesto exaberbado de enunciação: o autor se revela na composição dramatúrgica e, ao criar "espaçamentos", para usar um termo de Sarrazac, traz sua voz ao primeiro plano.

Em nossa montagem, destacamos a estrutura, utilizando, por exemplo, o recurso da titulação: anunciávamos o início e o fim do primeiro ato, com as rubricas transformadas em fala, assinalando, assim, o recorte ou o quadro, e tornando manifesta a presença do autor e a estrutura de sua obra. Empregando diferentes vozes - colocamos algumas falas em off - sugeríamos a presença de uma operação externa ao acontecimento presente, evidenciando uma construção cênica do dramaturgo e/ou do encenador.

Não que alterássemos a peça: apenas colocávamos uma lente de aumento em certas características do texto, que oferece uma espécie de hibridismo, uma composição mista de elementos dramáticos e narrativos. Ali, a estrutura do drama já está minada. Procuramos, seguindo esta perspectiva, trabalhar com certa ambiguidade, num lugar de atrito entre os princípios narrativo e dramático, entre a estrutura e a fábula, entre formas e conteúdos.

A abordagem de Sônia pela chave exclusiva do dramático talvez reduzisse a alternância de emoções da personagem a um estado mental desequilibrado. Porém, as inúmeras rubricas de Nelson, indicando sentimentos contraditórios ou pedindo que se faça a passagem de um estado a outro "sem transição", também oferecem à atriz uma espécie de desafio cênico. Há um jogo ali, uma brincadeira de "como fazer?"; seria possível fazer do jeito que o autor pede?

Nossa leitura de Valsa nº 6 pergunta-se, então, sobre a própria viabilidade da personagem e da fábula. Recuperamos a afirmação de Nelson da qual Sábato discordou - a de que Sônia está morta - para falar da angústia que cerca a (im) possibilidade do drama hoje. A personagem morreu. Sônia, a rigor, não existe. A construção do personagem, completo em sua profundidade psicológica, já não nos parece viável, não corresponde mais à verdade cênica de nossos tempos.

Sônia está num mundo "em que tudo que resta das pessoas são os nomes...Por toda a parte...Nomes, por todas as partes...". Ora, nomes são personagens. Sônia esbarra nos nomes, tropeça neles e isso se tornará angustiante sempre que se desejar, mais do que personagens-nome, personagens em carne e osso. A aflição de Sônia é a mesma do espectador que, nessa peça, deseje encontrar personagens construídas com solidez, identidade e profundidade psicológica. Aqui, elas são apenas nomes.

Se, para Sábato, o desejo de manter o nome de Sônia corresponderia a um "sintoma da autodestruição tentada na idade", para o diretor Antonio Guedes, Sônia seria (apenas) um nome, um personagem que não existe e que, como Alaíde, de Vestido de Noiva, "brota da cena enquanto a cena se conta". O próprio autor não designa quem fala em cena como Sônia, mas como Mocinha. É ela quem fala e a partir da qual vemos possibilidades de Sônia.

A Mocinha se agonia com a presença exclusiva e abusiva dos nomes, que sobrepujam os verbos, isto é, a ação. Afinal, o que aconteceu com Sônia? O público compartilha do sentimento da Mocinha quando sente falta dos fatos, dos acontecimentos: "Fatos...Bem que eu sentia falta de alguma coisa. Era deles, dos fatos!"

Neste ponto, perguntamo-nos: será possível reconstruir a história? Qual o poder da memória para retomar com precisão acontecimentos passados? Afinal, podemos crer no que a Mocinha diz sobre Sônia? Lança-se dúvida sobre a própria existência dos fatos. Em contrapartida, ainda podemos garantir a existência dos relatos acerca desses fatos. E é isso que realmente nos importa: a narrativa é o acontecimento. Segundo Antonio Guedes: "A rigor, só temos palavras. Palavras que sugerem imagens com as quais tentamos constituir o fato cênico".

Palavras que invariavelmente, aliás, aparecem no texto da Valsa em dimensão mais poética do que informativa ou impulsionadora da ação. Sábato já percebera esse aspecto da peça: "Resultou um poema dramático, em que a conclusão do monólogo é poesia".

Ocorre uma espécie de recreação das palavras, que se libertam do aperto da lógica e promovem imagens que se comunicam ao espectador, proporcionando extrema autonomia à cena. Isso determina as escolhas estéticas do encenador: "A cena rodriguiana deseja ser realidade, não quer se remeter a algo fora dela".

Tal concepção aparece com força no cenário de Doris Rollemberg. Constituído por duas estruturas de forma sinuosa, preenchidas por inúmeros tubos de plástico brancos e translúcidos, permitindo certa transparência, o dispositivo não se apresentava como referência a outra coisa; era objeto concreto, cuja sedução residia na própria presença.

Sua função cênica, além de proporcionar prazer estético, consistia em, junto com o desenho da luz, estabelecer diferentes áreas de atuação e contribuir para a visão múltipla da personagem. Vale comentar, a título de curiosidade, que isso não impediu que alguns espectadores vissem, nele, por sua forma sinuosa, uma alusão ao piano branco que Nelson pede na rubrica inicial.

Em conformidade com o conceito do cenário, não construíamos um lugar fictício a priori. Por isso, enquanto o público entrava na sala, a atriz, já no palco, falava sobre a concepção da montagem. Queríamos que o espetáculo prescindisse de marcas de ruptura com o tempo e o espaço não ritualizado, não teatral, tais como os três sinais ou a imersão da plateia no escuro.

Aproveitávamos também aquele momento inicial para explicitar objetivamente algumas ideias que nortearam a elaboração do espetáculo, como se fosse o texto do programa dito em cena. A bem dizer, quando a Valsa nº 6 começava, a luz e a música emolduravam, sim, esse início, mas, então, o espetáculo já tinha começado havia alguns minutos...

Esses procedimentos indicavam que tudo ali era construção (do autor, do diretor, da atriz). Assim, não havia sentido único a ser perseguido, mas um universo de possibilidades, direção para a qual entendo que convergiu, enfim, nossa proposta de montagem. Afinal, é (apenas) Sônia quem fala em cena? Há uma morte de fato? Ou se trata da morte simbólica de uma menina que se transforma em mulher? Ou, ainda, talvez não haja morte, mas fragmentos de angústia adolescente, temores e fantasias da idade.

Creio que tal diversidade de articulações pôde ser reforçada quando colocamos estrutura e fábula em relação, sem que a segunda apagasse a primeira. Foi essa busca que, por fim, compreendi termos feito em nossa montagem. Em Valsa nº 6, procuramos mostrar o movimento que ali ocorre em registros dramáticos e narrativos, quero dizer, a interlocução que nela se estabelece entre conteúdos/fábulas possíveis e formas/estruturas. Parece-me que a presença desses entrecruzamentos no monólogo faz dele lugar propício a um diálogo que se dá na multiplicação das imagens e vozes de Sônia.
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Extraído da edição 29 da revista Folhetim. Mariana Oliveira é Doutoranda em Teatro pelo PPGAC-Unirio, professora de Teatro do CAp-Uerj e atriz do Teatro do Pequeno gesto.

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