Toda unanimidade é...
Lionel Fischer
Os que conhecem a obra e os pensamentos de Nelson Rodrigues sabem a palavra que encerra o título acima: burra. Com isto nosso maior dramaturgo quis dizer apenas que, para o bem ou para o mal, as divergências são mais salutares do que inquestionáveis concordâncias. E isto será ilustrado a seguir com a opinião de três renomados críticos ingleses a respeito da versão de "Hamlet" feita por Ingmar Bergman, exibida no idioma sueco na Inglaterra, em 1987 - e não custa nada lembrar que Bergman é tido como um gênio, tanto do teatro como do cinema.
* * *
NEW STATESMAN
26/06/87
Victoria Radin
Sem muita vontade, saí para ver Hamlet, de Ingmar Bergman: Bergman mais Hamlet em sueco deve ser igual à melancolia, meia-luz e supra-intelectualização. Absolutamente. A áspera vivacidade de Fanny e Alexander, último filme de Bergman, está presente na peça. Na verdade, sua versão - e é uma versão, pois ele toma grandes liberdades - poderia intitular-se "Ofélia e Hamlet", uma vez que destina o mesmo peso à jovem que, sozinha entre Ofélias, realmente me assustou. Quando não está falando, ela aparece ao fundo da cena, mesmo após sua própria morte, como uma silenciosa testemunha dos acontecimentos a que assistimos. Ela - e não Hamlet - é o centro moral da peça.
Bergman faz uma pequena brincadeira antes de a peça começar. Uma cortina vermelha sobe, seguida por outras duas. A música retinindo vem ganhando espaço e somos lembrados de que o teatro é um jogo sobre a ilusão e que estamos a ponto de assistir a uma peça que trata diretamente deste tema. Depois disso há outros lembretes: Gertrudes veste Ofélia para a cena do convento e muitas vezes o rosto de Hamlet se reveste de uma única expressão. Mas dentro desta concepção a vida é direta, apaixonada, impetuosa, semelhante mesmo a um desenho animado. O palco é esvaziado até a parede do fundo e cercado por um falso arco preto de proscênio.
Nesse retângulo maravilhosamente iluminado e claro - uma moldura de cinema - Bergman faz belas cenas com seus atores, frequentemente colocados de perfil. As conexões entre eles emergem claramente. Embora repleto de idéias e ilusões, o significado básico da peça é tão transparente que uma criança a entenderia. Talvez precisemos assistir a nossos clássicos em sueco para sermos capazes verdadeiramente de comprendê-los. Talvez o que realmente precisemos seja ter falantes de outra língua que não o inglês envolvidos com eles.
Cláudio e Gertrudes, em sua primeira cena, andam de lá para cá no palco vestidos com roupas em tom de açafrão, como dois seguidores (particularmente insossos) do Rajneeh, e passam em seguida a copular em posição de cachorro. Uma fileira de juízes mascarados de vestes vermelhas os apalude. Eles são a inserção sobrenatural de Bergman, um grupo silencioso e pecador de imagens da autoridade cujas feições desintegradas constituem um constante lembrete de que há algo de imensamente podre no reino da Dinamarca. E as coisas vão de podre a pior.
Quando Fortimbrás entra para avaliar a última matança, não vem como salvador mas como soldado de uma tropa de ataque cercado por uma polícia corrupta e por uma equipe de televisão para gravar seu discurso, que é feito em uma linguagem bombástica e insensata ao som de rock pauleira. Diante das confusões, Bergman parece estar dizendo, surge o novo barbarismo. Isso nos faz retornar ao mundo atual e dá o único tom de real pessimismo: a peça é também ousada, animada e - quando alguém se lembra que Bergman agora está próximo dos 70 anos - jovem. Hamlet é sobretudo uma peça de adolescentes em sua quintessência.
Há outras brincadeiras: um coveiro que fala com dois bobos da corte que estão tocando música e acha um verme muito comprido no crânio de Yorick. Menos uma brincadeira para seu próprio bem é a infidelidade bêbada e violenta de Cláudio antes de começar suas orações com uma Rainha-atriz vestida como Gertrudes. A transformação de Oféia, intepretada com extraordinária força por Pernilla Ostergren, é exepcional. Inicialmente uma garota gorducha e despreocupada, obstinadamente apaixonada por Hamlet, ela se transforma em uma Lilith feia, com botas de soldado, que corta seu próprio cabelo com uma tesoura de poda e distribui unhas ao invés de flores antes de se afogar.
Hamlet é violento, braviamente vivo e, sem dúvida, um líder natural entre os estudantes de Wittenberg. Vestido com camisa pólo preta, canos de esgoto e óculos Raiban, Peter Stormare faz sua primeira entrada dando topadas em uma cadeira e então joga-se nela com exagerada raiva. Seu estilo, em meio a trajes que sugerem todas as épocas exceto a atual, coloca-o como profundamente moderno - até mesmo pós-moderno. Você sente que ele ficaria au fait com Lacan e Derrida. Raiva, náusea e uma repulsa total às convenções o levam para a frente; e o Sotmare alto, com pernas de cegonha, é sempre interessante de ser visto: como uma versão melhorada, infinitamente mais sensual, das pessoas do século XX que conhecemos. Achei-o um tanto peocupado consigo mesmo, mas até isso é também familiar. Quando Fortimbrás empurra seu corpo em meio à marcha de seus seguidores, perdemos qualquer resquício que ainda pudesse restar do humanismo ocidental.
PUNCH
24/06/87
Sheridan Morley
O Hamlet de Ingmar Bergman, que veio de Estocolmo para o Teatro Nacional em uma breve visita, foi um nítido lembrete de que, após 70 produções para o teatro em 40 anos, ele continua sendo o mais bombástico e interessante dos diretores, apesar de mais reconhecido neste país por seus filmes do que por suas peças teatrais. Abrindo com um círculo de refletores sobre um palco vazio (em nítido contraste com os escessos cênicos dos últimos visitantes do Teatro Nacional), esta é uma produção de constantes surpresas, algumas mais bem acolhidas do que outras.
Até para aqueles entre os ingleses que não sabem nada de sueco, ficou claro que Bergman fez coisas drásticas com um texto que evidentemente é visto como mais modificável na Escandinávia do que por aqui: falas inteiras desapareceram e os personagens têm o hábito de aparecer em cenas onde nunca foram vistos antes. A própria Ofélia, em uma atuação obsessiva de Pernilla Ostergren, tende a vagar pelo palco como Alice no País das Maravilhas, chegando no meio da cena entre Hamlet e Gertrudes no armário ou atacando seu cabelo com uma tesoura, muito antes de qualquer cena de loucura já escrita por Shakespeare.
Novamente, então, o fantasma do pai de Hamlet reaparece, pensativo, no final da peça, para ajudar seu filho a matar Laertes, enquanto o exército de Fortimbrás, cuja primeira aparição no palco sugeria um regresso vitorioso da Primeira Guerra Mundial, retorna ao final como um moderno grupo de ataque, munido de sua própria unidade de televisão para a gravação do banho de sangue final. O próprio Hamlet é representado por Peter Stormare usando a maior parte do tempo óculos escuros e uma capa de chuva preta, o qual parece ser o que eles têm em Estocolmo em lugar de James Dean, enquanto Ulf Johanson é responsável por uma das mais intrigantes atuações da noite, como um solitário coveiro envolvido com uma tradição de salão de bailes, que aos britânicos lembraria George Robey em sua melhor forma.
Apesar de todas as suas aberrações, essa peça ainda é um Hamlet de constante fascinação: a carne muito, muito sólida, está claramente se derretendo por toda a corte, e, em termos cinematográficos, o que temos aqui é mais um tratamento do original do que uma interpretação fiel dele. Nem todas as liberdades são perdoáveis, e algumas são apenas coerentes, mas há momentos tão brilhantes (Ofélia distribuindo unhas desbotadas para a corte, convencida em sua loucura de que está colhendo rosmarinhos para ser lembrada, ou o tiro fora de cena que revela que Fortimbrás matou Horácio para facilitar sua própria sucessão final ao trono) que ficamos mais do que inclinados a perdoar parte do caos resultante.
INDEPENDENT
12/06/87
Adam Mars-Jones
Assistir a Hamlet representado em sueco dá uma idéia do que um estudante marroquino, por exemplo, pode sentir ao assistir atores enviados pelo Conselho Britânico a representar cenas de Shakespeare: um senso de grandeza e exclusão. Felizmente, a produção de Ingmar Bergman logo dissipa tal impessão. Apesar de Bergman guardar alguns de seus efeitos mais originais para depois do intervalo, e a interferência da língua sueca retardar a descoberta, fica claro que sua visão da peça é de uma impressionante crueldade - crueldade elaborada, crueldade construída camada por camada, mas assim mesmo crueldade.
A noite começa de forma promissora, com apenas uma lâmpada no alto como a única luz, e com uma representação naturalística de Horácio e dos Oficiais. O fantasma faz seu apelo na beira do círculo de luz, lutando para avançar, lutando em vão ao longo da beira do círculo. O público tem a primeira indicação do que está por vir quando Gertrudes e Cláudio entram, ou melhor, jogam-se no chão, no meio de um assalto de uma luta sexual; enquanto o usurpador começa a comer a rainha, as luzes sobem para a corte, representada por figuras vestidas de escarlate no fundo do palco, as quais usam perucas e luvas bermelhas como que para assemelharem-se a juízes e cardeais, com seus rostos cobertos por máscaras desfigurantes sem feições. Os cortesãos avançam ritualisticamente, batendo palmas de uma forma estilizada e uniforme.
É comum para Hamlet ser representado usando trajes modernos (neste caso, capas de chuva pretas, camisas pólo e calças, botas pretas de camurça) enquanto a corte veste-se de acordo com a época, apesar de ser um pouco estranho Hamlet usar óculos escuros e Horário pincenez, considerando serem eles tão amigos. Mas este Hamlet, apesar de entrar com cabelos desgrenhados e assumir uma postura rebelde, logo afasta qualquer sugestão de frieza moderna. Peter Stormare se contorce e tem ânsias e vômito, cuspindo um esguicho de líquido toda a vez que abre a boca (quando ele de fato cospe no rosto de Ofélia, parece um prodígio que ela perceba). Trata-se de uma atuação selvagem, embora ajustada a seu modo e, em certas ocasiões, comovedora.
No primeiro solilóquio, Bergman mantém outros personagens na penumbra enquanto Hamlet declama. É uma maneira eficaz de equilibrar o furor do príncipe, mas à medida que a peça avança. Bergman parece desenvolver um tipo de agorafobia teatral, um temor de palcos vazios. Sua Ofélia (Pernilla Ostergren) é tranquilizadora à primeira vista, troncuda e aparentemente inafogável, mas é tratada como um caso clínico de abuso sexual. Hamlet é mais do que bruto com ela (há estupradores menos brutos), e ela permanece no palco, traumatizada, depois que sua cena acaba. Consequentemente, ela testemunha o assassinato de seu pai; e ainda permanece no palco, cortanto autisticamente seu cabelo com uma tesoura, e puxando seu xale sobre o rosto (para nos lembrar, concluo, dos conventos). Ela faz uma aparição até mesmo após seu enterro.
Polonius é particularmente perdido, posto que Ulf Johanson tem neste papel uma atuação gloriosamente engraçada e minuciosa. Não parece justo que a corte o retire do palco quando ela não tem esse efeito sobre Ofélia. O Fantasma é igualmente um sobrevivente, e fica por aqui tempo suficiente para segurar Cláudio no último ato, para que Hamlet pudesse apunhalá-lo. Johanson fornece um outro sopro de ar fresco como o Coveiro, mas àquela altura, qualquer perspectiva de equilíbrio há muito já se foi. Hamlet pesca a caveira de Yorick com a ponta de um fêmur, coloca-a entre as pernas para imitar Yorick o carregando nas costas, e põe seu boné de mainheiro azul sobre o crânio da caveira.
Ainda é um choque quandoi o exército de Fortimbrás entra ao estilo da SAS, armado com metralhadoras e uma caixa de som borbardeando música de discoteca. Por um momento parece que a festa do elenco invadiu a peça, mas então os soldados atiram em Horácio e começam a ameaçar o público tanto com as armas quanto com a música. Um final adequadamente grotesco para uma produção de prodigiosos erros de cálculo e excessos.
_______________________________
Artigo extraído de London Theatre Record, por cortesia do Conselho Britânico. Tradução de Cláudia Romero. Colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC-RJ. Este artigo está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 126/1991, edição já esgotada.
quinta-feira, 17 de setembro de 2009
terça-feira, 15 de setembro de 2009
Resultado da Seleção de Projetos Artísticos
para a ocupação da Rede Municipal de Teatros
A comissão de Seleção de Projetos Artísticos para Ocupação dos seis teatros da Rede Municipal, formada pela bailarina e coreógrafa Angel Vianna, pelo crítico de teatro Lionel Fischer, pelo diretor de teatro João Artigas, pelo dramaturgo e diretor Flávio Marinho (representantes da sociedade civil) e pelo subsecretário Municipal de Democratização e Difusão, Humberto Araújo; pela gerente de Artes Cênicas, Ana Luísa Lima, e pela gerente da Rede de Teatro, Alessandra Reis, escolheu os seguintes projetos entre as 50 propostas apresentadas.
CARLOS GOMES
Miniatura 9 Produções Artísticas Ltda
Sandro Chaim, Rose Dalney e Nelson Motta
A proposta de Sandro Chaim e Rose Dalney visa à diversidade artística com a realização de grandes eventos contemplando teatro adulto, teatro infantil, dança e música, com programação a preços populares e shows de grandes cantores apresentando novos talentos. O projeto prevê, também, um espaço de mostra permanente para a dança e um projeto de formação de platéia para o público das redondezas.
Verba anual: R$ 250 mil
CAFÉ PEQUENO
Novo Século Produções Artísticas Ltda
Paulo Reis
O plano de proposta apresentado por Paulo Reis é transformar o Teatro Municipal Café Pequeno em um verdadeiro Centro Cultural durante o dia e em um autêntico café-concerto à noite, com novos horários de apresentações, espetáculos de música, números coreográficos, talk-shows, monólogos cômicos, pequenas peças musicais brasileiras e números de cabaré para a juventude.
Verba anual: R$ 100 mil.
TEATRO MUNICIPAL ZIEMBINSKI
Milongas Produções Artísticas e Culturais/ Grupo Milongas
Camile dos Anjos, Breno Sanches e Roberto
O projeto desenvolvido pelo Grupo Milongas visa a desenvolver atividades artísticas e culturais para diferentes segmentos do público carioca, com programação diversificada, mas focada na comédia. Abrigar ações culturais diversas, exposições, oficinas, encontros com artistas de notória representatividade, cinema e espetáculos de qualidade fazem parte da proposta que será desenvolvida para estimular a vida cultural da Tijuca e adjacências.
Verba anual: R$ 100 mil.
SALA MUNICIPAL BADEN POWELL
Orquestra de Bolso Produções Artísticas
Felipe Portinho e Ana Beatriz Correa
A proposta apresentada por Felipe Portinho e Ana Beatriz Correa prevê a criação e apresentação de shows, concertos, oficinas, conferências e exposições, sempre de conteúdo musical, e a realização de festivais de Jazz, Corais e Música Instrumental Brasileira, com sistema de repertório, além de um intercâmbio com a Escola de Música da UFRJ.
Verba anual: R$ 200 mil.
ESPAÇO CULTURAL MUNICIPAL SÉRGIO PORTO
Fomenta Produções Artísticas e Culturais Ltda/ Grupo Coletivo
Daniela Amorim, Joelson Gusson, Enrique Diaz
O projeto de residência apresentado pelo Grupo Coletivo Improviso, sob a supervisão de Enrique Diaz, propõe uma programação de perfil experimental e extremamente dinâmica das artes contemporâneas, pautando espetáculos e performances de teatro, dança, música e exposições de artes visuais/plásticas, além da criação de um espaço real de pesquisa, com a realização de debates, palestras, oficinas e residências artísticas.
Verba anual: R$ 150 mil.
TEATRO MUNICIPAL MARIA CLARA MACHADO (Planetário)
Casa Cinco Produções e Promoções Culturais e Artísticas
Márcio Libar
A proposta apresentada por Márcio Libar é a de realizar uma residência conjunta de dois coletivos artísticos: Ateliê do Riso e Dramadiário.com, através da experiência prática do modelo de gestão criativa aplicado no Teatro Gláucio Gill, intitulado Clube de Teatro, um encontro criativo entre atores, dramaturgos e diretores.
Verba anual: R$ 100 mil.
Cada grupo ocupará os teatros por um período de dois anos.
As inscrições do Edital de Ocupação da Rede Municipal de Teatros foram feitas entre 14 de julho e 21 de agosto. As 50 inscrições foram assim distribuídas:
Carlos Gomes: 5 propostas
Café Pequeno: 5 propostas
Sérgio Porto: 7 propostas
Baden Powell: 9 propostas
Ziembinski: 12 propostas
Maria Clara Machado: 12 propostas
para a ocupação da Rede Municipal de Teatros
A comissão de Seleção de Projetos Artísticos para Ocupação dos seis teatros da Rede Municipal, formada pela bailarina e coreógrafa Angel Vianna, pelo crítico de teatro Lionel Fischer, pelo diretor de teatro João Artigas, pelo dramaturgo e diretor Flávio Marinho (representantes da sociedade civil) e pelo subsecretário Municipal de Democratização e Difusão, Humberto Araújo; pela gerente de Artes Cênicas, Ana Luísa Lima, e pela gerente da Rede de Teatro, Alessandra Reis, escolheu os seguintes projetos entre as 50 propostas apresentadas.
CARLOS GOMES
Miniatura 9 Produções Artísticas Ltda
Sandro Chaim, Rose Dalney e Nelson Motta
A proposta de Sandro Chaim e Rose Dalney visa à diversidade artística com a realização de grandes eventos contemplando teatro adulto, teatro infantil, dança e música, com programação a preços populares e shows de grandes cantores apresentando novos talentos. O projeto prevê, também, um espaço de mostra permanente para a dança e um projeto de formação de platéia para o público das redondezas.
Verba anual: R$ 250 mil
CAFÉ PEQUENO
Novo Século Produções Artísticas Ltda
Paulo Reis
O plano de proposta apresentado por Paulo Reis é transformar o Teatro Municipal Café Pequeno em um verdadeiro Centro Cultural durante o dia e em um autêntico café-concerto à noite, com novos horários de apresentações, espetáculos de música, números coreográficos, talk-shows, monólogos cômicos, pequenas peças musicais brasileiras e números de cabaré para a juventude.
Verba anual: R$ 100 mil.
TEATRO MUNICIPAL ZIEMBINSKI
Milongas Produções Artísticas e Culturais/ Grupo Milongas
Camile dos Anjos, Breno Sanches e Roberto
O projeto desenvolvido pelo Grupo Milongas visa a desenvolver atividades artísticas e culturais para diferentes segmentos do público carioca, com programação diversificada, mas focada na comédia. Abrigar ações culturais diversas, exposições, oficinas, encontros com artistas de notória representatividade, cinema e espetáculos de qualidade fazem parte da proposta que será desenvolvida para estimular a vida cultural da Tijuca e adjacências.
Verba anual: R$ 100 mil.
SALA MUNICIPAL BADEN POWELL
Orquestra de Bolso Produções Artísticas
Felipe Portinho e Ana Beatriz Correa
A proposta apresentada por Felipe Portinho e Ana Beatriz Correa prevê a criação e apresentação de shows, concertos, oficinas, conferências e exposições, sempre de conteúdo musical, e a realização de festivais de Jazz, Corais e Música Instrumental Brasileira, com sistema de repertório, além de um intercâmbio com a Escola de Música da UFRJ.
Verba anual: R$ 200 mil.
ESPAÇO CULTURAL MUNICIPAL SÉRGIO PORTO
Fomenta Produções Artísticas e Culturais Ltda/ Grupo Coletivo
Daniela Amorim, Joelson Gusson, Enrique Diaz
O projeto de residência apresentado pelo Grupo Coletivo Improviso, sob a supervisão de Enrique Diaz, propõe uma programação de perfil experimental e extremamente dinâmica das artes contemporâneas, pautando espetáculos e performances de teatro, dança, música e exposições de artes visuais/plásticas, além da criação de um espaço real de pesquisa, com a realização de debates, palestras, oficinas e residências artísticas.
Verba anual: R$ 150 mil.
TEATRO MUNICIPAL MARIA CLARA MACHADO (Planetário)
Casa Cinco Produções e Promoções Culturais e Artísticas
Márcio Libar
A proposta apresentada por Márcio Libar é a de realizar uma residência conjunta de dois coletivos artísticos: Ateliê do Riso e Dramadiário.com, através da experiência prática do modelo de gestão criativa aplicado no Teatro Gláucio Gill, intitulado Clube de Teatro, um encontro criativo entre atores, dramaturgos e diretores.
Verba anual: R$ 100 mil.
Cada grupo ocupará os teatros por um período de dois anos.
As inscrições do Edital de Ocupação da Rede Municipal de Teatros foram feitas entre 14 de julho e 21 de agosto. As 50 inscrições foram assim distribuídas:
Carlos Gomes: 5 propostas
Café Pequeno: 5 propostas
Sérgio Porto: 7 propostas
Baden Powell: 9 propostas
Ziembinski: 12 propostas
Maria Clara Machado: 12 propostas
Regras de representação
Jean Louis Barrault
O que se segue não é uma lição sobre arte dramática, mas apenas uma recapitulação de algumas regras necessárias ao ator. O envolvimento prolongado em um mesmo trabalho leva não somente a dar-se demasiada importância a detalhes secundários como também a ignorar-se as leis fundamentais que regem a verdadeira representação. Tentemos então relembrar algumas dessas regras óbvias que tendem a ser esquecidas com demasiada facilidade.
A primeira regra que um ator deve obedecer é a de se fazer ouvir e entender. Na verdade, essa não é uma regra, mas sim uma questão elementar de polidez, e deixar de segui-la é um insulto ao espectador. Fazer-se ouvir está dentro da capacidade de todos; é simplesmente uma questão de aprendizagem, excluindo-se, é claro, os casos de incapacidade fisiológica.
A segunda regra baseia-se na observação e na imitação, e neste caso os dons naturais desempenham seu papel; contudo, deve-se ter em mente o fato de que a capacidade de observação pode ser desenvolvida com a prática e o exercício. Existem pelo menos dois métodos de observação: o método objetivo e o subjetivo. Como um exemplo, pegue uma caixa de fósforo e observe-a analiticamente; concentre sua atenção no conteúdo, na qualidade da madeira, na parte escrita, nos desenhos etc. Após alguns minutos desse tipo de observação, coloque a caixa de lado e descreva-a objetivamente. Pratique esse método de observação com qualquer objeto e logo você perceberá que sua percepção visual torna-se mais rápida e aguçada. Posteriormente, aplique o mesmo método utilizado com objetos na observação de seus semelhantes; observe-os minuciosamente, analise-os por partes, e verá que esse tipo de observação vai lhe fornecer dados preciosos em caracrterizações futuras.
Passemos ao método subjetivo de observação. Desta vez, pegue somente um fósforo, mas não apenas olhe para ele, sinta-o, e diga para si mesmo: "Agora tornei-me madeira ou uma reminiscência da madeira de uma floresta na Suécia. O que resta deste corpo? Sou magro, muito magro, e afilado, e a menor pressão iria me esmagar, partir-me em pedaços; eu iria rachar, ficaria todo partido; mas as pessoas que me usam não me esmagam, mas sim riscam-me na caixa e minha cabeça fica em chamas, já que todo meu fogo localiza-se na cabeça. Vivo em estado de congestão, minha testa queima, as orelhas ficam rubras. Vivo à sombra de uma hemorragia cerebral, meu destino é morrer no instante em que gerar vida, calor e luz. Minha existência me consome; sou o símbolo da vida e da morte ao mesmo tempo. Talvez seja por isso que já esteja deitado no túmulo, lado a lado com meus irmãos e sem o mínimo espaço para esticar os pés. Não há espaço em nossa caixa, mas talvez as pessoas que as fabricam estejam certas, pois me disseram que em casos sérios de doenças cardíacas deve-se permanecer imóvel, ou então o resultado será uma hemorragia cerebral. É isso que nos espera, etc. etc.""
Essa espécie de observação subjetiva desenvolve a arte da imitação. Para conseguir observar e imitar deve-se possuir determinados dons, mas apesar destes dons, pode-se não saber como observar e imitar, e é neste ponto que entra a prática. Saber observar e imitar é a segunda regra do ator; é a regra da autenticidade. A questão da produção de efeitos só vem posteriormente. Qualquer tentativa de produzir um efeito no teatro evoca, inevitavelmente, uma das últimas frases de um vendedor: "E então, já posso embrulhar?". Mas deve-se lembrar que estas não são as palavras que ele usará na abordagem, mas são suas últimas palavras, proferidas com o intuito de produzir o efeito desejado, se ele for um bom vendedor.
Depois que o ator tenha conseguido fazer-se ouvir e entender, tenha feito uma observação global do personagem escolhido, tenha-o apreendido totalmente, e que possa imitá-lo com facilidade, incorporá-lo e dar-lhe vida, o ator se defronta com a regra que pode ser resumida a três perguntas fundamentais: "De onde venho, para onde vou e como estou me sentindo?"
Há várias opiniões quanto à forma com que se deveria responder a essas perguntas, mas o ator deve ter uma opinião bem definida sobre elas ainda nos bastidores. Tomemos Escapino como exemplo. Estamos em Nápoles; Nápoles é um lugar quente; estamos no Mediterrâneo, uma região onde se pratica a sesta. Escapino, com certeza, deve estar acostumado a fazer a sesta; pode até mesmo ser o rei da sesta. Escapino, como qualquer outro animal, come, dorme, faz amor e se diverte. Ele pode estar descansando ou em atividade. É um mestre do descanso. De onde ele vem? A resposta é fácil: ele acaba de ter em seu sono no orvalho interrompido pelas lamentações de Otávio e Silvestre.
Para onde ele vai? Para lugar nenhum, é claro. Por que deveria ir para algum lugar? Ele renunciou a tudo, diz que as coisas devem vir a ele por conta própria. Como ele está se sentindo? Sonolento, vai acordar aos poucos. Sua primeira fala surge em meio a vestígios de sono e vinho e cheira a alho. Ele, em geral tão falante, deixa os outros falarem. Sem esforços inúteis (ele sabe que precisará de toda a sua energia mais tarde).
Quando os outros acabam de tagarelar, ele boceja, e espreguiçando-se, diz: "Aí estão vocês, quase do tamanho de seus pais, e ainda não conseguiram descobrir que têm cérebros ou sequer que podem usar o juízo...etc.". Espreguiça-se novamente, e após fazer isso, sua mente fica mais clara. Jacinta o faz despertar por completo. Escapino tem sentimentos, e uma fraqueza por mulheres jovens, e pensa consigo mesmo: "Ela não é nada mal", joga então um pouco de charme sobre ela, e com isso ele está pronto. "Tudo bem, quero ajudar vocês dois", diz ele, e assim Escapino dá início e somente irá parar no final da famosa cena com o "sac".
A terceira regra, que acabamos de descobrir, é vital: é a regra da verossimilhança. A quarta regra poderia ser resumida na pergunta: "O que estou fazendo aqui?". Trata-se de uma regra sobre o contexto. O enredo é evolutivo, os personagens representam suas respectivas partes. Agripina ralha com Nero, que escuta, fica aborrecido, pensa em Júlia, acaba ficando com raiva e se fecha ignorando completamente a presença da mãe. Quanto maior o aprofundamento nas regras, mais complexas tornam-se elas.
A pergunta "O que estou fazendo aqui?" implica em pelo menos duas alternativas. Uma, o que determinaram que eu mostraria e o que determinaram que eu esconderia. Esta regra é muito complexa para um pesonagem, pois, embora ele pense que conhece a si mesmo, é possívl que ele se conheça de maneira superficial e que às vezes possa confundir boa fé com má fé. Ele dá importância a coisas que não têm, e é subitamente atingido por coisas das quais sentia-se protegido. Um personagem pode achar que está andando no claro e estar no escuro, e então a paixão contra a qual reluta pode perturbar seu equilíbrio, deturpar suas reações e arrastá-lo para o erro.
Ele pode achar que caminha a passos firmes e tropeçar; pode achar que enxerga com clareza e estar cego. Mas os cegos encontram ajuda nas bengalas. Quando um personagem fica sem saber o que fazer, poderia ser bastante útil encontrar um objeto no qual pudesse se apoiar. Durante o sermão de Agripina, Nero entretem-se com o seu casaco, que se torna seu apoio, seu refúgio e também seu meio de expressão. O ator que encontra um objeto que o ligue à cena que representa confere veracidade ao seu comportamento. Encontrar o objeto certo foi a regra de ouro de Stanislavsky; é uma regra extremamente valiosa, que produz efeitos inumeráveis e é uma das regras mais importantes da arte realista.
A quinta é a regra do controle, e também é muito importante; ela trata da sinceridade e da correção. Existe uma crença generalizada de que a sinceridade é automaticamente correta; isso nem sempre é verdade. O ator pode estar sendo sincero enquanto, ao mesmo tempo, o personagem que interpreta não é completamente correto dentro da representação. Isto porque o ator nunca se identifica totalmente com o personagem que interpreta, e isso é um fato normal visto que estamos no teatro, um lugar onde a vida é recriada através da arte.
O ponto é que o personagem é quem deve ser sincero, independente do fato do ator ser ou não. A representação será correta se o personagem for sincero de modo constante. Quanto maior a identificação entre o ator e o personagem, mais sinceros eles serão. Mas há situações em que a identificação total dos dois pode ser desastrosa. A morte de um personagem obriga o ator que o representa a desligar-se de seu papel e simplesmente projetar a imagem da morte para fora de si mesmo, com o máximo de sinceridade possível. A morte é um caso extremo; contudo, nunca há uma completa identificação entre ator e personagem.
O ator deve trabalhar dentro do contexto da peça, lembrar-se continuamente de seu relacionamento com os outros personagens, manter-se ciente de que está num teatro, e de que deve fazer-se ouvir, manter-se fiel ao enredo, ficar sempre atento à iluminação etc. A sopreposição do ator enquanto pessoa ao personagem assemelha-se àqueles desenhos coloridos de má qualidade, nos quais as cores ultrapassam os contornos do desenho. A correção da representação depende da sinceridade do personagem e da capacidade de controle do ator que deve constantemente questionar: "A despeito de minha sinceridade, será que meu personagem está sendo verdadeiramente sincero?".
Essas são as cinco regras para o aprendizado básico do ator. Elas são a base de seus estudos e de sua arte, e o talento só poderá florescer graças a elas. Da mesma forma que no primeiro e segundo graus e na uiniversidade, dispendemos uma boa parte de nosso tempo passando pelo mesmo ciclo ou desaprendendo o que aprendemos com tanta dificuldade; parece que neste ponto corremos o risco de voltar-nos contra as regras que podem parecer contradizer as anteriores. Contudo, na realidade elas não o fazem. Na infância, podemos ter aprendido que dois e dois são quatro, e mais tarde podemos ter sido induzidos a concluir que esta não é uma verdade absoluta; contudo, essa regra não perde seu valaor nem sua eficácia. Na verdade, regras mais abrangentes não revogam regras eficazes, elas apenas as aprimoram. Da mesma maneira, o teatro poético não invalida o teatro realista; pelo contrário, ele coloca-o em um nível mais elevado.
Após essas cinco regras básicas que são o elemento fundamental da arte dramática mais comum e realista, existem concepções mais práticas. Primeiro, a regra da transposição. Uma vez estabelecidos cuidadosamente os fundamentos do trabalho baseado na veracidade, pode-se tomar a liberdade de esquecer tudo e recomeçar sob nova forma. E assim, acontece que às vezes guiando-se pela inspiração, descobre-se uma maneira de fazer as coisas que, mesmo que à primeira vista não pareça fundamentada na verdade, contém aspectos que são a mais absoluta essência da verdade. Esta é a interpretação verdadeiramente poética.
E para encerrar, gostaria de abordar algo que considero de extrema importância no que diz respeito ao trabalho do ator: a tensão. Parece-me que uma das maiores causas da tensão é a timidez. É possível desejar entrar na pele de outra pessoa, e possuir o dom de mudar a personalidade para poder se transformar no personagem, mas somente quando se está sozinho e não diante dos espectadores. A timidez torna esta operação impossível. Na presença da platéia certos atores ficam nervosos, tensos e perdem a maior parte de seus recursos. Como não conseguem relaxar, eles tendem a tornar-se incapazes de infundir no personagem que representam a sinceridade, autenticidade e espontaneidade que ele necessita. Para evitar essas ciladas, deve-se concentrar na regra mais importante de todas: a da concentração e controle da vontade. Esta é a base da disciplina global da representação. Há muitos exercícios excelentes para o desenvolvimento da arte da concentração e controle da vontade que são os princípios básicos da representação. O resto é silêncio, o que é, em minha opinião, verdadeiro para as representações teatrais assim como para os espetáculos musicais, que existem apenas para fazer o silêncio vibrar.
_____________________________
O presente artigo, aqui reduzido, foi extraído de Actors on Acting, ed. por T. Cole e H. C. Chinoy, Crownpub, inc. 1970, N. Y. A tradução ficou a cargo de Betina Bastos Fernandes. Uma colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC-Rio. Este artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 129/1992, edição já esgotada.
Ator e diretor francês, Jean Louis Barrault (1910-1994) foi discípulo de Dullin - em cujo Théâtre de l'Atelier trabalhou de 1931 a 1935 - e do mímico Decroux. Criou seu próprio teatro, o Grenier des Augustins (1935), teve contato com os surrealistas e coloborou com Artaud em seu Teatro da Crueldade. Nessa época, dirigiu Numancia (1937), Hamlet (1938), A fome (1939).
Em 1940, casou-se com a atriz Madeleine Renaud e entrou para a Comédie Française como ator e diretor, convidado por Copeau. A partir deste ano, constituiu sua própria companhia, a Renaud-Barrault, levando à cena um extenso repertório, aí incluíndo-se autores clássicos e modernos.
Em 1955, assume a direção do Théâtre de l'Odeon, que passou a se chamar Théâtre de France, onde encena basicamente autores modernos, como Ionesco, Beckett e Genet. Em maio de 68 é destituído de seu cargo pelo então Ministro da Cultura, André Malraux, passando a encenar peças inicialmente num ringue de boxe, adiante na estação d'Orsay e finalmente, em 1981, no Théâtre Rond Point, atualmente rebatizado de Renaud Marrault.
Adepto de um "teatro total", Barrault realizou encenações memoráveis, como Rabelais (1969), Assim falava Zarathustra (1974), As noites de Paris (1976) e Zadig (1979). Trabalhou em vários filmes, dentre eles Les enfants du paradis (1944) e La nuit de varennes (1981)
Jean Louis Barrault
O que se segue não é uma lição sobre arte dramática, mas apenas uma recapitulação de algumas regras necessárias ao ator. O envolvimento prolongado em um mesmo trabalho leva não somente a dar-se demasiada importância a detalhes secundários como também a ignorar-se as leis fundamentais que regem a verdadeira representação. Tentemos então relembrar algumas dessas regras óbvias que tendem a ser esquecidas com demasiada facilidade.
A primeira regra que um ator deve obedecer é a de se fazer ouvir e entender. Na verdade, essa não é uma regra, mas sim uma questão elementar de polidez, e deixar de segui-la é um insulto ao espectador. Fazer-se ouvir está dentro da capacidade de todos; é simplesmente uma questão de aprendizagem, excluindo-se, é claro, os casos de incapacidade fisiológica.
A segunda regra baseia-se na observação e na imitação, e neste caso os dons naturais desempenham seu papel; contudo, deve-se ter em mente o fato de que a capacidade de observação pode ser desenvolvida com a prática e o exercício. Existem pelo menos dois métodos de observação: o método objetivo e o subjetivo. Como um exemplo, pegue uma caixa de fósforo e observe-a analiticamente; concentre sua atenção no conteúdo, na qualidade da madeira, na parte escrita, nos desenhos etc. Após alguns minutos desse tipo de observação, coloque a caixa de lado e descreva-a objetivamente. Pratique esse método de observação com qualquer objeto e logo você perceberá que sua percepção visual torna-se mais rápida e aguçada. Posteriormente, aplique o mesmo método utilizado com objetos na observação de seus semelhantes; observe-os minuciosamente, analise-os por partes, e verá que esse tipo de observação vai lhe fornecer dados preciosos em caracrterizações futuras.
Passemos ao método subjetivo de observação. Desta vez, pegue somente um fósforo, mas não apenas olhe para ele, sinta-o, e diga para si mesmo: "Agora tornei-me madeira ou uma reminiscência da madeira de uma floresta na Suécia. O que resta deste corpo? Sou magro, muito magro, e afilado, e a menor pressão iria me esmagar, partir-me em pedaços; eu iria rachar, ficaria todo partido; mas as pessoas que me usam não me esmagam, mas sim riscam-me na caixa e minha cabeça fica em chamas, já que todo meu fogo localiza-se na cabeça. Vivo em estado de congestão, minha testa queima, as orelhas ficam rubras. Vivo à sombra de uma hemorragia cerebral, meu destino é morrer no instante em que gerar vida, calor e luz. Minha existência me consome; sou o símbolo da vida e da morte ao mesmo tempo. Talvez seja por isso que já esteja deitado no túmulo, lado a lado com meus irmãos e sem o mínimo espaço para esticar os pés. Não há espaço em nossa caixa, mas talvez as pessoas que as fabricam estejam certas, pois me disseram que em casos sérios de doenças cardíacas deve-se permanecer imóvel, ou então o resultado será uma hemorragia cerebral. É isso que nos espera, etc. etc.""
Essa espécie de observação subjetiva desenvolve a arte da imitação. Para conseguir observar e imitar deve-se possuir determinados dons, mas apesar destes dons, pode-se não saber como observar e imitar, e é neste ponto que entra a prática. Saber observar e imitar é a segunda regra do ator; é a regra da autenticidade. A questão da produção de efeitos só vem posteriormente. Qualquer tentativa de produzir um efeito no teatro evoca, inevitavelmente, uma das últimas frases de um vendedor: "E então, já posso embrulhar?". Mas deve-se lembrar que estas não são as palavras que ele usará na abordagem, mas são suas últimas palavras, proferidas com o intuito de produzir o efeito desejado, se ele for um bom vendedor.
Depois que o ator tenha conseguido fazer-se ouvir e entender, tenha feito uma observação global do personagem escolhido, tenha-o apreendido totalmente, e que possa imitá-lo com facilidade, incorporá-lo e dar-lhe vida, o ator se defronta com a regra que pode ser resumida a três perguntas fundamentais: "De onde venho, para onde vou e como estou me sentindo?"
Há várias opiniões quanto à forma com que se deveria responder a essas perguntas, mas o ator deve ter uma opinião bem definida sobre elas ainda nos bastidores. Tomemos Escapino como exemplo. Estamos em Nápoles; Nápoles é um lugar quente; estamos no Mediterrâneo, uma região onde se pratica a sesta. Escapino, com certeza, deve estar acostumado a fazer a sesta; pode até mesmo ser o rei da sesta. Escapino, como qualquer outro animal, come, dorme, faz amor e se diverte. Ele pode estar descansando ou em atividade. É um mestre do descanso. De onde ele vem? A resposta é fácil: ele acaba de ter em seu sono no orvalho interrompido pelas lamentações de Otávio e Silvestre.
Para onde ele vai? Para lugar nenhum, é claro. Por que deveria ir para algum lugar? Ele renunciou a tudo, diz que as coisas devem vir a ele por conta própria. Como ele está se sentindo? Sonolento, vai acordar aos poucos. Sua primeira fala surge em meio a vestígios de sono e vinho e cheira a alho. Ele, em geral tão falante, deixa os outros falarem. Sem esforços inúteis (ele sabe que precisará de toda a sua energia mais tarde).
Quando os outros acabam de tagarelar, ele boceja, e espreguiçando-se, diz: "Aí estão vocês, quase do tamanho de seus pais, e ainda não conseguiram descobrir que têm cérebros ou sequer que podem usar o juízo...etc.". Espreguiça-se novamente, e após fazer isso, sua mente fica mais clara. Jacinta o faz despertar por completo. Escapino tem sentimentos, e uma fraqueza por mulheres jovens, e pensa consigo mesmo: "Ela não é nada mal", joga então um pouco de charme sobre ela, e com isso ele está pronto. "Tudo bem, quero ajudar vocês dois", diz ele, e assim Escapino dá início e somente irá parar no final da famosa cena com o "sac".
A terceira regra, que acabamos de descobrir, é vital: é a regra da verossimilhança. A quarta regra poderia ser resumida na pergunta: "O que estou fazendo aqui?". Trata-se de uma regra sobre o contexto. O enredo é evolutivo, os personagens representam suas respectivas partes. Agripina ralha com Nero, que escuta, fica aborrecido, pensa em Júlia, acaba ficando com raiva e se fecha ignorando completamente a presença da mãe. Quanto maior o aprofundamento nas regras, mais complexas tornam-se elas.
A pergunta "O que estou fazendo aqui?" implica em pelo menos duas alternativas. Uma, o que determinaram que eu mostraria e o que determinaram que eu esconderia. Esta regra é muito complexa para um pesonagem, pois, embora ele pense que conhece a si mesmo, é possívl que ele se conheça de maneira superficial e que às vezes possa confundir boa fé com má fé. Ele dá importância a coisas que não têm, e é subitamente atingido por coisas das quais sentia-se protegido. Um personagem pode achar que está andando no claro e estar no escuro, e então a paixão contra a qual reluta pode perturbar seu equilíbrio, deturpar suas reações e arrastá-lo para o erro.
Ele pode achar que caminha a passos firmes e tropeçar; pode achar que enxerga com clareza e estar cego. Mas os cegos encontram ajuda nas bengalas. Quando um personagem fica sem saber o que fazer, poderia ser bastante útil encontrar um objeto no qual pudesse se apoiar. Durante o sermão de Agripina, Nero entretem-se com o seu casaco, que se torna seu apoio, seu refúgio e também seu meio de expressão. O ator que encontra um objeto que o ligue à cena que representa confere veracidade ao seu comportamento. Encontrar o objeto certo foi a regra de ouro de Stanislavsky; é uma regra extremamente valiosa, que produz efeitos inumeráveis e é uma das regras mais importantes da arte realista.
A quinta é a regra do controle, e também é muito importante; ela trata da sinceridade e da correção. Existe uma crença generalizada de que a sinceridade é automaticamente correta; isso nem sempre é verdade. O ator pode estar sendo sincero enquanto, ao mesmo tempo, o personagem que interpreta não é completamente correto dentro da representação. Isto porque o ator nunca se identifica totalmente com o personagem que interpreta, e isso é um fato normal visto que estamos no teatro, um lugar onde a vida é recriada através da arte.
O ponto é que o personagem é quem deve ser sincero, independente do fato do ator ser ou não. A representação será correta se o personagem for sincero de modo constante. Quanto maior a identificação entre o ator e o personagem, mais sinceros eles serão. Mas há situações em que a identificação total dos dois pode ser desastrosa. A morte de um personagem obriga o ator que o representa a desligar-se de seu papel e simplesmente projetar a imagem da morte para fora de si mesmo, com o máximo de sinceridade possível. A morte é um caso extremo; contudo, nunca há uma completa identificação entre ator e personagem.
O ator deve trabalhar dentro do contexto da peça, lembrar-se continuamente de seu relacionamento com os outros personagens, manter-se ciente de que está num teatro, e de que deve fazer-se ouvir, manter-se fiel ao enredo, ficar sempre atento à iluminação etc. A sopreposição do ator enquanto pessoa ao personagem assemelha-se àqueles desenhos coloridos de má qualidade, nos quais as cores ultrapassam os contornos do desenho. A correção da representação depende da sinceridade do personagem e da capacidade de controle do ator que deve constantemente questionar: "A despeito de minha sinceridade, será que meu personagem está sendo verdadeiramente sincero?".
Essas são as cinco regras para o aprendizado básico do ator. Elas são a base de seus estudos e de sua arte, e o talento só poderá florescer graças a elas. Da mesma forma que no primeiro e segundo graus e na uiniversidade, dispendemos uma boa parte de nosso tempo passando pelo mesmo ciclo ou desaprendendo o que aprendemos com tanta dificuldade; parece que neste ponto corremos o risco de voltar-nos contra as regras que podem parecer contradizer as anteriores. Contudo, na realidade elas não o fazem. Na infância, podemos ter aprendido que dois e dois são quatro, e mais tarde podemos ter sido induzidos a concluir que esta não é uma verdade absoluta; contudo, essa regra não perde seu valaor nem sua eficácia. Na verdade, regras mais abrangentes não revogam regras eficazes, elas apenas as aprimoram. Da mesma maneira, o teatro poético não invalida o teatro realista; pelo contrário, ele coloca-o em um nível mais elevado.
Após essas cinco regras básicas que são o elemento fundamental da arte dramática mais comum e realista, existem concepções mais práticas. Primeiro, a regra da transposição. Uma vez estabelecidos cuidadosamente os fundamentos do trabalho baseado na veracidade, pode-se tomar a liberdade de esquecer tudo e recomeçar sob nova forma. E assim, acontece que às vezes guiando-se pela inspiração, descobre-se uma maneira de fazer as coisas que, mesmo que à primeira vista não pareça fundamentada na verdade, contém aspectos que são a mais absoluta essência da verdade. Esta é a interpretação verdadeiramente poética.
E para encerrar, gostaria de abordar algo que considero de extrema importância no que diz respeito ao trabalho do ator: a tensão. Parece-me que uma das maiores causas da tensão é a timidez. É possível desejar entrar na pele de outra pessoa, e possuir o dom de mudar a personalidade para poder se transformar no personagem, mas somente quando se está sozinho e não diante dos espectadores. A timidez torna esta operação impossível. Na presença da platéia certos atores ficam nervosos, tensos e perdem a maior parte de seus recursos. Como não conseguem relaxar, eles tendem a tornar-se incapazes de infundir no personagem que representam a sinceridade, autenticidade e espontaneidade que ele necessita. Para evitar essas ciladas, deve-se concentrar na regra mais importante de todas: a da concentração e controle da vontade. Esta é a base da disciplina global da representação. Há muitos exercícios excelentes para o desenvolvimento da arte da concentração e controle da vontade que são os princípios básicos da representação. O resto é silêncio, o que é, em minha opinião, verdadeiro para as representações teatrais assim como para os espetáculos musicais, que existem apenas para fazer o silêncio vibrar.
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O presente artigo, aqui reduzido, foi extraído de Actors on Acting, ed. por T. Cole e H. C. Chinoy, Crownpub, inc. 1970, N. Y. A tradução ficou a cargo de Betina Bastos Fernandes. Uma colaboração do Curso de Tradução do Departamento de Letras da PUC-Rio. Este artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 129/1992, edição já esgotada.
Ator e diretor francês, Jean Louis Barrault (1910-1994) foi discípulo de Dullin - em cujo Théâtre de l'Atelier trabalhou de 1931 a 1935 - e do mímico Decroux. Criou seu próprio teatro, o Grenier des Augustins (1935), teve contato com os surrealistas e coloborou com Artaud em seu Teatro da Crueldade. Nessa época, dirigiu Numancia (1937), Hamlet (1938), A fome (1939).
Em 1940, casou-se com a atriz Madeleine Renaud e entrou para a Comédie Française como ator e diretor, convidado por Copeau. A partir deste ano, constituiu sua própria companhia, a Renaud-Barrault, levando à cena um extenso repertório, aí incluíndo-se autores clássicos e modernos.
Em 1955, assume a direção do Théâtre de l'Odeon, que passou a se chamar Théâtre de France, onde encena basicamente autores modernos, como Ionesco, Beckett e Genet. Em maio de 68 é destituído de seu cargo pelo então Ministro da Cultura, André Malraux, passando a encenar peças inicialmente num ringue de boxe, adiante na estação d'Orsay e finalmente, em 1981, no Théâtre Rond Point, atualmente rebatizado de Renaud Marrault.
Adepto de um "teatro total", Barrault realizou encenações memoráveis, como Rabelais (1969), Assim falava Zarathustra (1974), As noites de Paris (1976) e Zadig (1979). Trabalhou em vários filmes, dentre eles Les enfants du paradis (1944) e La nuit de varennes (1981)
segunda-feira, 14 de setembro de 2009
Teatro/CRÍTICA
"Sutura"
.....................................
O amor em dois planos
Lionel Fischer
Segundo o release que nos foi enviado, o escocês Anthony Neilson seria um dos dramaturgos de língua inglesa de maior relevância na atualidade. E nada nos autoriza a negá-lo, até em função de seu currículo. No entanto, se nos baseamos apenas no presente texto, este em nada justifica tal fama., embora não careça totalmente de qualidade. A partir de uma gravidez inesperada, um jovem casal começa a discutir não apenas o que fazer diante da novidade, mas também sua relação. Isto num plano, digamos, real.
Num outro, supostamente fictício - quem sabe fruto de mútuas fantasias do jovem par - vemos o casal numa espécie de conjugado, empreendendo virulentas relações sexuais, ela na pele de uma prostituta, ele vivendo um cliente. Pode-se especular que o casal do conjugado não seria o mesmo, mas optamos por acreditar que sim. Eis, em resumo, o enredo de "Sutura", em cartaz no Oi Futro. Felipe Vidal assina a direção e a tradução, estando o elenco formado por Cristina Flores e Lucas Gouvêa.
Como sabemos, atualmente no Rio de Janeiro existem inúmeras montagens abordando relacionamentos amorosos, algumas mais bem sucedidas do que outras. No presente caso, as discussões do casal não deixam de ter alguma pertinência, mas tudo fica em um nível muito superficial - tal deficiencia, no entanto, é parcialmente minimizada pelo humor de algumas passagens. Mas quando a ação se transfere para o citado conjugado, aí entramos em uma esfera bem mais interessante e densa, pois tudo que é dito e feito revela com muito mais profundidade aspectos um tanto obscuros da natureza humana.
Quanto ao espetáculo, Felipe Vidal ipõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o texto, mas a teatralidade torna-se muito mais visceral nas passagens ambientadas no conjugado, pois aí o diretor cria marcas não apenas muito expressivas, mas sobretudo imprevistas e contundentes.
Com relação ao elenco, Cristina Flores - sem dúvida uma das melhores atrizes de sua geração - consegue estabelecer nítido e sensível contraste entre as duas personagens que interpreta - ou a mesma em diferentes facetas, dependendo do olhar do espectador. O mesmo se dá com Lucas Gouvêa, ainda que em escala menor - em nossa opinião, o ator poderia tentar variar um pouco mais o ritmo, assim como utilizar a voz num registro menos potente, que é o que prevalece na maior parte do espetáculo.
Na equipe técnica, consideramos de excelente nível o trabalho de todos os profissionais envolvidos - Felipe Vidal (tradução e trilha sonora), Joelson Gusson (cenografia), Joana Lima Silva (figurinos), Tomás Ribas (iluminação) e Denise Stuz (preparação corporal).
SUTURA - Texto de Anthony Neilson. Direção e tradução de Felipe Vidal. Com Cristina Flores e Lucas Gouvêa. Oi Futuro. Sexta a domingo, 19h30.
"Sutura"
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O amor em dois planos
Lionel Fischer
Segundo o release que nos foi enviado, o escocês Anthony Neilson seria um dos dramaturgos de língua inglesa de maior relevância na atualidade. E nada nos autoriza a negá-lo, até em função de seu currículo. No entanto, se nos baseamos apenas no presente texto, este em nada justifica tal fama., embora não careça totalmente de qualidade. A partir de uma gravidez inesperada, um jovem casal começa a discutir não apenas o que fazer diante da novidade, mas também sua relação. Isto num plano, digamos, real.
Num outro, supostamente fictício - quem sabe fruto de mútuas fantasias do jovem par - vemos o casal numa espécie de conjugado, empreendendo virulentas relações sexuais, ela na pele de uma prostituta, ele vivendo um cliente. Pode-se especular que o casal do conjugado não seria o mesmo, mas optamos por acreditar que sim. Eis, em resumo, o enredo de "Sutura", em cartaz no Oi Futro. Felipe Vidal assina a direção e a tradução, estando o elenco formado por Cristina Flores e Lucas Gouvêa.
Como sabemos, atualmente no Rio de Janeiro existem inúmeras montagens abordando relacionamentos amorosos, algumas mais bem sucedidas do que outras. No presente caso, as discussões do casal não deixam de ter alguma pertinência, mas tudo fica em um nível muito superficial - tal deficiencia, no entanto, é parcialmente minimizada pelo humor de algumas passagens. Mas quando a ação se transfere para o citado conjugado, aí entramos em uma esfera bem mais interessante e densa, pois tudo que é dito e feito revela com muito mais profundidade aspectos um tanto obscuros da natureza humana.
Quanto ao espetáculo, Felipe Vidal ipõe à cena uma dinâmica em total sintonia com o texto, mas a teatralidade torna-se muito mais visceral nas passagens ambientadas no conjugado, pois aí o diretor cria marcas não apenas muito expressivas, mas sobretudo imprevistas e contundentes.
Com relação ao elenco, Cristina Flores - sem dúvida uma das melhores atrizes de sua geração - consegue estabelecer nítido e sensível contraste entre as duas personagens que interpreta - ou a mesma em diferentes facetas, dependendo do olhar do espectador. O mesmo se dá com Lucas Gouvêa, ainda que em escala menor - em nossa opinião, o ator poderia tentar variar um pouco mais o ritmo, assim como utilizar a voz num registro menos potente, que é o que prevalece na maior parte do espetáculo.
Na equipe técnica, consideramos de excelente nível o trabalho de todos os profissionais envolvidos - Felipe Vidal (tradução e trilha sonora), Joelson Gusson (cenografia), Joana Lima Silva (figurinos), Tomás Ribas (iluminação) e Denise Stuz (preparação corporal).
SUTURA - Texto de Anthony Neilson. Direção e tradução de Felipe Vidal. Com Cristina Flores e Lucas Gouvêa. Oi Futuro. Sexta a domingo, 19h30.
Teatro/CRÍTICA
"A tartaruga de Darwin"
................................................
Um novo olhar sobre a História
Lionel Fischer
O presente espetáculo comemora duas datas importantes. A primeira, relativa à ciência: os 200 anos do nascimento de Charles Darwin, autor de "A origem das espécies". A segunda: os 40 anos de carreira de Cristina Pereira, uma de nossas melhores atrizes. E o texto escolhido, "A tartaruga de Darwin", do espanhol Juan Mayorga, empreende uma espécie de fábula que, protagonizada pela dita tartaruga - que existiu de verdade, mas aqui evoluiu até tornar-se uma mulher, ainda que com resíduos de sua antiga condição - ambiciona lançar um novo olhar sobre a História da humanidade nos últimos 200 anos. Com direção de Paulo Betti e Rafael Ponzi, que também atuam no espetáculo ao lado de Cristina Pereira e Vera Fajardo, "A tartaruga de Darwin" acaba de estrear no Teatro Sesi.
A idéia central do texto não deixa de ser interessante, pois a tartaruga Harriet (Cristina Pereira) invade a casa do historiador (Paulo Betti) e começa a contrariar uma série de informações contidas no trabalho que ele está escrevendo. Ao mesmo tempo, o cientista (Rafael Ponzi) decide fazer várias experiências com a inusitada criatura, o que leva ambos - historiador e cientista - a entrarem em permanente conflito. E em meio a revelações e disputas, presenciamos os ciúmes de Bete, mulher do historiador, que passa a se dedicar inteiramente ao seu relacionamento com a mulher-tartaruga.
Tendo vivido tanto tempo, Harriet presenciou acontecimentos fundamentais da História, como a revolução russa, os campos de concentração nazistas e o bombardeio de Guernica, entre outros. E como já foi dito, fornece sempre informações que deixam atônito o historiador, pois nunca constaram dos livros que lemos sobre tais temas.
Diante do acima exposto, e ao longo do texto, torna-se claro que a premissa fundamental do autor é a de demonstrar que, no fundo, a espécie humana, supostamente tão evoluída, na realidade estaria involuindo, num processo aparentemente irreversível de autodestruição. Ocorre, porém, que para materilizar um tema tão pertinente o autor criou uma obra por demais didática, repleta de informações mas carente de maior teatralidade.
E o espetáculo acaba sendo exatamente isto: uma espécie de aula, com pouquíssimas passagens realmente teatrais. Mas torna-se imperioso ressaltar que os diretores só por milagre conseguiriam criar uma dinâmica cênica mais interessante, dada a forma como o texto é estruturado.
No que concerne ao elenco, apenas o personagem de Cristina Pereira oferece alguma possibilidade de criação e a ótima atriz aproveita todas as oportunidades que lhe são oferecidas. Quanto aos demais, Paulo Betti, Vera Fajardo e Rafael Ponzi exibem trabalhos corretos, o máximo que deles poderia se esperar em tais circunstâncias.
Na equipe técnica, Rafael Ponzi assina uma ótima tradução, sendo irrepreensíveis o cenário e figurinos de Letícia Ponzi e a iluminação de Aurélio de Simoni.
A TARTARUGA DE DARWIN - Texto de Juan Mayorga. Tradução de Rafael Ponzi. Direção de Ponzi e Paulo Betti. Com Cristina Pereira, Vera Fajardo, Paulo Betti e Rafael Ponzi. Teatro Sesi. Sexta a domingo, 19h30.
"A tartaruga de Darwin"
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Um novo olhar sobre a História
Lionel Fischer
O presente espetáculo comemora duas datas importantes. A primeira, relativa à ciência: os 200 anos do nascimento de Charles Darwin, autor de "A origem das espécies". A segunda: os 40 anos de carreira de Cristina Pereira, uma de nossas melhores atrizes. E o texto escolhido, "A tartaruga de Darwin", do espanhol Juan Mayorga, empreende uma espécie de fábula que, protagonizada pela dita tartaruga - que existiu de verdade, mas aqui evoluiu até tornar-se uma mulher, ainda que com resíduos de sua antiga condição - ambiciona lançar um novo olhar sobre a História da humanidade nos últimos 200 anos. Com direção de Paulo Betti e Rafael Ponzi, que também atuam no espetáculo ao lado de Cristina Pereira e Vera Fajardo, "A tartaruga de Darwin" acaba de estrear no Teatro Sesi.
A idéia central do texto não deixa de ser interessante, pois a tartaruga Harriet (Cristina Pereira) invade a casa do historiador (Paulo Betti) e começa a contrariar uma série de informações contidas no trabalho que ele está escrevendo. Ao mesmo tempo, o cientista (Rafael Ponzi) decide fazer várias experiências com a inusitada criatura, o que leva ambos - historiador e cientista - a entrarem em permanente conflito. E em meio a revelações e disputas, presenciamos os ciúmes de Bete, mulher do historiador, que passa a se dedicar inteiramente ao seu relacionamento com a mulher-tartaruga.
Tendo vivido tanto tempo, Harriet presenciou acontecimentos fundamentais da História, como a revolução russa, os campos de concentração nazistas e o bombardeio de Guernica, entre outros. E como já foi dito, fornece sempre informações que deixam atônito o historiador, pois nunca constaram dos livros que lemos sobre tais temas.
Diante do acima exposto, e ao longo do texto, torna-se claro que a premissa fundamental do autor é a de demonstrar que, no fundo, a espécie humana, supostamente tão evoluída, na realidade estaria involuindo, num processo aparentemente irreversível de autodestruição. Ocorre, porém, que para materilizar um tema tão pertinente o autor criou uma obra por demais didática, repleta de informações mas carente de maior teatralidade.
E o espetáculo acaba sendo exatamente isto: uma espécie de aula, com pouquíssimas passagens realmente teatrais. Mas torna-se imperioso ressaltar que os diretores só por milagre conseguiriam criar uma dinâmica cênica mais interessante, dada a forma como o texto é estruturado.
No que concerne ao elenco, apenas o personagem de Cristina Pereira oferece alguma possibilidade de criação e a ótima atriz aproveita todas as oportunidades que lhe são oferecidas. Quanto aos demais, Paulo Betti, Vera Fajardo e Rafael Ponzi exibem trabalhos corretos, o máximo que deles poderia se esperar em tais circunstâncias.
Na equipe técnica, Rafael Ponzi assina uma ótima tradução, sendo irrepreensíveis o cenário e figurinos de Letícia Ponzi e a iluminação de Aurélio de Simoni.
A TARTARUGA DE DARWIN - Texto de Juan Mayorga. Tradução de Rafael Ponzi. Direção de Ponzi e Paulo Betti. Com Cristina Pereira, Vera Fajardo, Paulo Betti e Rafael Ponzi. Teatro Sesi. Sexta a domingo, 19h30.
sexta-feira, 11 de setembro de 2009
Richard Boleslavsky
(1889-1937)
(1889-1937)
T. Cole e H. K. Chitnoy
Richard Boleslavsky foi o primeiro a ensinar aos atores americanos, de maneira formal, as técnicas de Stanislavsky e do Teatro de Arte de Moscou. Poucos eram mais qualificados que este artista polonês para transmitir o sistema do modo como Stanislavsky o havia desenvolvido nas primeiras décadas deste século.
Boleslavsky tornou-se membro do Teatro de Arte de Moscou em 1906 e durante três anos frequentou a escola do Teatro de Arte. Ele participou de algumas das primeiras produções em que Stanislavsky testou sua nova abordagem: A month in the country, de Turguenev, e The living corpse, de Tolstoi. Em 1911, era um dos assistentes de Gordon Craig na famosa produção de Hamlet para o Teatro de Arte de Moscou.
Naquele mesmo ano, Boleslavsky passou a integrar o First Studio, organizado por Stanislavsky para experimentar os novos princípios que se tornariam mais tarde o seu Sistema de interpretação, e foi o responsável pela direção de sua primeira produção, The good hope, de Hejerman. Stanislavsky disse que essa produção "revelou em todos que dela participaram uma simplicidade especial, até então desconhecida, e uma profundidade na interpretação da vida do espírito humano". Boleslavsky trabalhou com o First Studio até 1920, quando ele dexou a Rússia.
Ele veio para os Estados Unidos em 1922, e recebeu Stanislavsky e os membros do Teatro de Arte, em sua turnê de 1923. Com Maria Ouspenskaya, que ficou nos Estados Unidos depois que o restante da trupe retornou à Rússia, fundou o American Lab Theatre. Aqui, atores e diretores norte-americanos tiveram a oportunidade de estudar pela primeira vez o Sistema de Stanislavsky.
Boleslavsky deu uma série de palestras sobre interpretação teatral no Teatro Princess, de Nova York, em 1923, e no mesmo ano começou a publicar suas aulas na Thatre Arts Magazine, através das quais muitos puderam conhecer a "concentação", a "memória das emoções" e outras facetas do Sistema. Ao apresentar estes conceitos numa série de aulas práticas, ele fez com que novos estudantes de teatro tivessem acesso à nova abordagem.
Boleslavsky e seus colegas planejaram para o American Lab Theatre um currículo que treinaria tanto o que ele chamava de "meios externos de expressão" do ator - seu corpo e sua voz - quanto seus "meios internos de expressão" - sua imaginação, suas emoções e seu potencial cultural e intelectual, em termos gerais. Após alguns anos a escola já possuía um teatro de repertório, ao qual Boleslavsky dedicou-se muito, como também ao trabalho de estudantes mais adiantados.
Seu laboratório atraiu muitos professores e estudantes interessantes: entre os primeiros estavam John Mason Brow, Mikhail Mordkin, Douglas Moore (o compositor), e Francis Fergusson; e entre os segundos, alguns viriam a dominar o ensino do teatro nos 40 anos seguintes - Lee Strasberg, Harold Clurman e Stella Adler. o "Método" desenvolvido por estes professores deve muito a Boleslavsky, que, diretamente e através de seus alunos, transformou a interpretação teatral americana.
Após a crise de 1929, Boleslavsky mudou-se para Hollywood, onde trabalhou como roteirista de cinema e diretor. Em 1933, a Theatre Arts publicou seus artigos sob o título de "Interpretação: as seis primeiras lições", o primeiro texto na América sobre o sistema de Stanislavsky.
(Agora vou omitir uma parte significativa deste artigo e dele extrair dois tópicos - escritos por Boleslavsky - que ainda tiram o sono de muita gente) - Lionel Fischer
O que é Memória espiritual ou afetiva?
Foi o psicólogo francês Ribot quem a mencionou pela primeira vez, há cerca de 40 anos. De acordo com a sua terminologia, "memória afetiva" é a capacidade que o organismo humano tem de armazenar, inconscientemente, diversas emoções e choques psicológicos vivenciados e de revivê-los em situações exteriores, fisicamente idênticas.
Por exemplo: uma moça, ao voltar para casa carregando um buquê de lírios que acabara de colher, fica sabendo da morte trágica de seu noivo. No momento em que soube da notícia ela estava sentindo o perfume das flores. Muitos anos se passaram depois daqueles momentos, mas a moça, apesar de casada e feliz, experimentava o mesmo nervosismo do dia da tragédia cada vez que sentia o cheiro de lírios, sem se dar conta do fato. Além disso, cada vez que ela via aquelas flores, seus olhos, inconscientemente, enchiam-se de lágrimas, formando-se um hábito do qual ela nunca conseguiu se livrar.
Como usar a memória afetiva
na preparação de um papel?
O ator, após decidir qual o sentimento necessário ao seu papel, tenta achar em sua "memória afetiva", recordações que o lembrem daquele sentimento. Ele pode utilizar todos os meios para revivê-lo, começando pelo próprio texto e terminando por sua própria existência de vida, pela lembrança de livros e, finalmente, usando a sua própria imaginação. Depois, através de uma série de ensaios e exercícios graduais, o ator chega ao ponto em que basta só pensar no sentimento para conseguir senti-lo ao máximo e por quanto tempo for necessário.
Um ator que vai interpretar Othelo, por exemplo, chega à conclusão de que o ciúme faz parte de seu personagem. Então ele procura em seu "cofre dourado de sentimentos" algumas lembranças relacionadas ao ciúme e descobre possuir várias que, direta ou indiretamente, têm a ver com ele; por exemplo, ao ler no jornal uma crítica excelente sobre um colega seu, ele havia se sentido muito enciumado de modo parecido com o ciúme do personagem. Ficou excessivamente irritado e ao mesmo tempo foi muito amável com seu colega.
Outra lembrança foi a da ocasião em que sua esposa recebeu uma carta cujo envelope vinha escrito com uma letra muito estranha. Por alguma razão ela não lhe disse o teor da carta e ele, por sua vez, não quis lhe fazer perguntas sobre o assunto. O incidente despertou nele vários sentimentos: uma luta interna entre o desejo de ler a carta e descobrir o que ela dizia, e o respeito pela vontade da mulher de que ele não e lesse.
A simples lembrança de um sentimento pode, às vezes, levar o ator a revivê-lo inteiramente, como nos casos narrados, e seu coração começa a bater mais rápido . Neste caso, a única coisa que ele tem a fazer é desenvolver aquele sentimento através de repetidos vivenciamentos daquela lembrança até familiarizar-se com ela a ponto de controlá-la a qualquer momento, segundo sua vontade.
Mas há casos em que a simples lembrança não basta para acionar a "memória afetiva", e o ator tem que lançar mão de recursos puramente físicos. Por exemplo: ver sua esposa ler qualquer coisa o levaria a ter o sentimento que experimentou ao vê-la ler a carta misteriosa.
Em outras palavras, este trabalho consiste em achar e desenvolver os sentimentos internamente, e não, na sua reprodução externa. Podemos chamá-lo de "dever de casa" do ator - preparo da paleta e o fornecimento das cores a serem utilizadas.
No decorrer de seu trabalho, ele não deve pensar em como vai reproduzir um certo sentimento - mas somente como vai achá-lo, senti-lo em todo o seu corpo, acostumar-se a ele, e deixar que a própria natureza encontre meios de expressá-lo.
A próxima fase do trabalho de ator é quando, após ter descoberto e desenvolvido os sentimentos necessários, ele começa a aplicá-los ao texto do autor. Este é um dos momentos mais bonitos de nosso trabalho. Após colecionar todas as cores conhecidas de ciúmes, e desenvolvê-las a ponto de torná-las mais próximas e reais, o ator que até então não ousasse tocar no texto de Shakespeare pode começar a fazê-lo agora.
O ator, elevando-se ao nível da exaltação e controlando totalmente as nuances de seu novo sentimento, começa a proferir, na solidão de seu estúdio, as palavras imortais do autor. Tímido no começo, como se não ousasse tocá-las, ele começa a dar às palavras novas formas, pontuadas não pelas regras de elocução, mas pela grande mente criativa do autor em comunhão com seu próprio espírito criativo.
A esta altura o ator sabe perfeitamente o seu papel e as palavras vêm a ele facilmente, como se fossem fruto dos sentimentos. Ele nunca toca nas palavras sem estar movido por seus sentimentos. Nunca lê ou repete suas falas - ele as vivencia...
Se o autor tiver se expressado de modo correto, o ator não pode mudar ou adicionar uma só palavra ao texto, pois seus sentimentos devem estar em harmonia e seus corações devem bater no mesmo compasso. Se isto não acontecer, é dever do diretor percebê-lo e corrigir a um ou outro, de acordo com o sentimento que for mais valioso.
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Artigo extraído - e aqui reduzido, como já foi dito - da revista Cadernos de Teatro nº 130/1992, edição já esgotada.
quarta-feira, 9 de setembro de 2009
O tao do corpo
Maria Pia
O homem deste fim de século caminha rumo à sua essência, resgatando verdades simples e universais como a harmonização com a vida através do respeito a todos os seres vivos e a si próprio, e o despertar de uma consciência da Unidade, para compreender que tudo está ligado, pulsando no ritmo da sincronia universal. A dualidade cartesiana dá lugar à Unidade, ao entendimento de que não existe a energia do Bem e do Mal com ses desmembramentos, mas sim Energia Una, Toda, Total, Indivisível, porém Mutável. A constante mutação desta Energia única gera movimento, gera vida, em todas as suas formas e facetas. O Tao, na concepção chinesa é o próprio movimento da vida - "O desenho do Caos Maravilhoso e do caminho, o trajeto do nascimento, crescimento, amadurecimento, decrepitude, morte, vazio, recomeço perpétuo, alternância de Yin e Yang" (Tao te King, livro milenar de sabedoria chinesa).
Seguindo o trilho do pensamento da Unidade, somos levados a pensar no corpo como uma entidade composta de matéria, sentimentos, sensações e alma, que deve ser trabalhado em todos estes aspectos que o envolvem; um treinamento corporal somente físico gera "Rambos", corpos trabalhados somente no exterior, porém afastados do ser interno. Os treinamentos excessivamente teóricos e psicológicos, por sua vez, geram mentes enormes, sem um alicerce físico que as sustentem. O trabalho no corpo deve ampliar o potencial humano de um ser como um todo; sua forma física, sua beleza estética e interior, seu potencial criativo orgânico, sua capacidade de amar e de iluminar-se. Em última análise, devemos aprender as leis que regem o Tao universal, as mesmas leis do Tao do Corpo, porque somos um Microcosmos que funciona igual ao Macrocosmos no qual estamos inseridos.
Deus é Musculatura
Kasuo Ohno, o velho mestre da dança Butoh japonesa diz que nosso corpo é composto de cinco musculaturas, que devem ser conscientizadas e trabalhadas. Cada musculatura tem suas regras e leis próprias, embora se interdependam.
1ª Musculatura - é o corpo físico propriamente dito, o corpo que pode ser visto, tocado, o limiar entre o nosso interior e o nosso exterior.
2ª Musculatura - é o corpo físico da pele para dentro; nossos órgãos, sangue, células, e todos os movimentos que se processam no interior físico do nosso corpo.
3ª Musculatura - é uma musculatura abstrata; é o corpo emocional, psíquico, vibratório, mental, sensível, mediúnico.
4ª Musculatura - é a energia única que contém o Tudo, a força da vida que circula em nós e que nos mantêm vivos. É a musculatura Essencial.
5ª Musculatura - é a musculatura do contato, é o outro, o mundo que nos cerca, o meio ambiente, a sociedade, a troca.
O processo de trabalho do corpo deve começar portanto pela quarta musculatura, para contactar com aquela energia essencial, divina, que reina no interior de cada um de nós. Este trabalho é chamado Meditação.
Meditação
Na concepção taoísta, meditação significa "concentração perfeita em um ponto perfeito". O ponto perfeito é o próprio alento vital, e a concentração perfeita neste ponto é talvez a grande tarefa a ser desenvolvida durante o tempo de vida que temos. A meditação gera, a nível de sentimentos e emoções, um estado de humildade e rendição a um poder superior, esvaziando nossa mente de nossas próprias idéias, gostos, afinidades, pessoalidade, mergulhando nosso ser no silêncio. Este esvaziamento é condição fundamental para que possamos aprender o novo, porque quando estamos cheios de algo, não há espaço para aprender nada. Einstein dizia "eu penso 99 vezes e nada descubro; deixo de pensar, eis que a verdade se me revela. Tudo começa no silêncio e na intuição".
A nível físico, a prática da meditação produz uma oxigenação profunda em todo o corpo, desbloqueando tensões, eliminando toxinas e ativando a circulação de energia. É uma fonte de saúde física, psicológica e anímica. Para praticar meditação, devemos corrigir certos vícios de pensamento e imagens distorcidas que nos impedem de praticá-la. Não podemos confundir meditação com "não pensar em nada", ou criar a ilusão de que meditação retira todo o sofrimento humano. Conheci um mestre no Oriente que dizia a seus discípulos: "Pratiquem meditação diariamente e não se preocupem com seus problemas; eles estarão todos te esperando assim que você sair da meditação". Não se trata, portanto, de um remédio milagroso, mas de um estado de consciência que deve ser incorporado lentamente em nosso cotidiano.
Da mesma maneira, meditar não significa parar de pensar. A mente pensa constantemente, esta é a sua função; com a prática da meditação, aprendemos a discriminar e separar duas energias que existem dentro de nós. A primeira é um fluxo interminável de pensamentos, a segunda é o alento vital, algo mais sutil do que a própria respiração. Aos poucos, aprendemos a concentrar nossa atenção, é a prática do simples e óbvio. Jesus Cristo dizia "não lutem contra o mal", ou seja, não dar trela ao curso de nossos pensamentos, deixando-os livres, e eles nos deixarão livres também.
Einstein dizia que existem duas mentes, a inferior e a superior. A primeira é a mente intoxicada de dúvida, confusão, dever, culpa, descrença, vícios etc. É a mente cotidiana, banal e chata. Esta camada de pensamentos é paulatinamente suavisada com a prática da meditação, para que a mente superior possa se manifestar com mais freqüência dentro de nós. A mente superior é aquela que produz grandes idéias, invenções, arte, que conduz à sabedoria, e à luz. Quando a mente banal se cala, contactamos esta freqüência mais alta de pensamentos, abrindo espaço para que eles desçam ao nosso consciente.
Desta maneira, antes de começar qualquer trabalho de corpo, entre em estado de meditação, e procure se livrar de todos os pensamentos que te assolam. Eles estão em você, mas não são você, lembre disso. E deixe espaço para que as idéias superiores possam descer até o seu consciente, e guiá-lo rumo a um trabalho com mais qualidade. Isto é válido para pessoas que trabalham com o corpo, e tambémpara atores; esvazie-se antes de entrar em cena, esta é a condição fundamental para a qualidade do trabalho dramático.
Exercício para meditação
Este exercício deve ser praticado diarimente por 15 minutos. Ele não corresponde à meditação propriamente dita, pois este é um contato espiritual. O exercício prepara o corpo e a mente, facilitando a entrada na consciência de meditação. Se ao decorrer dos 15 minutos você percebe que se acalmou inteiramente e fisicamente, estenda este estado de tranquilidade ao seu dia-a-dia.
Sentado, coluna ereta, respire silenciosamente pelo nariz, colocando sua atenção no trajeto do ar em seu corpo. Sinta o ar sendo puxado das regiões viscerais na inspiração precisamente no ponto Tantien. O ar sobe num tubo energético que percorre umbigo, esterno, glote, terceiro olho, cucuruto da cabeça e desce no mesmo percurso na expiração. Não brigue com sua mente; cada vez que você seguir um pensamento, volte a se concentrar no trajeto do ar e no silêncio.
3ª Musculatura - atitude interior do guerreiro:
As escolas chenesas de artes marciais dividem o trabalho corporal em duas etapas; a primeira é a etapa interior, que começa com meditação, e desenvolve uma atitude interior correta a nível mental, sentimental e emocional, que possibilita o aprendizado do guerreiro. Ser um guerreiro, para o taoísmo, é ser um sábio que controla suas forças internas e externas. A verdadeira postura começa pela postura do interior; o Tao Te King ensina os dez mandamentos básicos para desenvolver esta postura interior do guerreiro.
10 mandamentos básicos para
a boa postura e alinhamento
1º - Ser vazio interiormente, e levar a força do "Tantien" ao cucuruto da cabeça.
O Tantien é o ponto de força que sustenta nossa estutura física, e que deve ser forte e ativado. Situa-se a três dedos abaixo do umbigo, numa linha reta. A cada inspiração, pressione o Tantien para dento de você, repetidamente. Este exercício deve ser feito sempre que você estiver sem energia.
O ar é bombeado do ponto do Tantien, e sobe passando pelo umbigo que deve estar todo aberto como um sol; se alguma parte do umbigo estiver fechada, ou colada, é sinal de que você está sentado em sua cintura. Abra o umbigo todo, para isso você terá que subir seu corpo para cima, e se descolar na cintura. Sinta uma força que lhe puxa para cima a partir do Tantien, e outra que crava seus pés no chão, dando apoio para a subida.
2º - "Encolher ligeiramente o peito, esticando as costas para trás. O cucuruto da cabeça deve estar paralelo ao céu". Sinta as costas; normalmente a tensão faz dois montes em torno da coluna vertebral. Inspire e mande ar para os montes das costas, apague-os, cresça por trás. Deixe o pescoço ereto; o cucuruto quer o céu.
3º - Afrouxar a cintura - gire repetidamente seu corpo de um lado para o outro, sem travar o movimento. Sinta que seu corpo pode dobrar e girar.
4º - Distinguir cheio de vazio - esta é uma lei muito importante a ser observada em nosso cotidiano. É a transferência total do peso do corpo de um pé para o outro a cada passo. Observe seu caminhar, e transfira seu peso todo a cada passo. Não deixe parte de seu peso na perna de trás quando o movimento de impulso é com a perna da frente.
5º - "Baixar os ombros, deixar cair os cotovelos". Quando o ponto Tantien não é forte o suficiente, a tensão sobe para os ombros e o pescoço. Insconscientemente, tentamos manter a postura ereta colocando força na área superior do corpo, quando na verdade, o movimento é exatamente oposto. Os chineses dizem que "o corpo é ferro sob algodão". A parte inferior, região visceral, deve ser o alicerce de ferro, e da cintura para cima devemos ser leves e fluidos como o algodão.
6º - "Em lugar de força muscular, usar sabedoria para comandar os movimentos". Esta frase é bastante abstrata, mas fala de uma atitude interna que devemos desenvolver em nós. Esta atitude começa na apreensão das regras corporais, e na vigilância cotidiana desta postura harmônica. Não adianta ficar ereto somente quando fazemos exercícios. Esta consciência deve ser constante em nosso cotidiano para que haja uma mudança real em nossas atitudes corporais. Jesus Cristo dizia "orai e vigiai" em referência a esta atitude interior de "serenidade com atenção", a atitude do guerreiro marcial, do sábio, do homem consciente.
7º "Ligar alto e baixo" - os pés movem-se junto com as mãos e os olhos, a parte de cima do corpo move-se junto com a parte de baixo. A tensão social, o pensamento facetado, a separação corpo-mente-espírito nos levou a ter atitudes corporais também divididas. É necessário imprimir fisicamente este conceito da Unidade, para estarmos também inteiros no corpo. Muitas vezes olhamos só com os olhos para uma direção, enquanto que nossos joelhos e pernas vão na direção oposta, nossa mente divaga em outra situação que não é aquela que estamos vivendo, e assim nos tornamos um circo louco de impulsos desconexos. Estar aqui e agora totalmente, com todas as partes do ser e do corpo. Se olho para o lado, todo o meu ser olha para o lado, e assim por diante. Procurar levar todo o corpo em cada ação física que desempenhamos.
8º - "Unir interior a exterior - abertura e fechamento dos pés e mãos correspondem à abertura e fechamento do espírito". Corpos fechados correspondem a espíritos fechados. Quando existe o trabalho interior de fluir com a vida, ser maleável e aberto interiormente, automaticamente esta atitude começa a se imprimir no corpo físico, de dentro para fora.
9º - "Ligar movimentos sem interrupção - novamente uma atitude de fluidez, não viver aos trancos e barrancos, mas soltar-se e transformar-se de acordo com as situações que a vida nos apresentar; ser macio.
10º - "Manter a calma interna durante o movimento". Ao praticar exercícios físicos devemos ser capazer de reter o calor interno que o exercício provoca, acalmando os batimentos cardíacos para que não ocorra stress muscular.
A 1ª e 2ª Musculaturas
Neste ponto do processo estamos aptos para o trabalho físico propriamente dito, na 1ª e 2ª musculaturas. Estas são musculaturas de repetição, que devem ser exercitadas diariamente, com constância e disciplina. Se queremos um abdômem forte, não podemos apenas mentalizar os músculos abdominais, pretendendo que estes se enrijeçam. Falamos de um trabalho físico, repetitivo, disciplinado, que envolve suor. Não pretendo me estender nas práticas físicas, pois estas são experiências na ação, e não de leitura. Aconselho aos atores que exercitem seu físico diariamente, incorporando as atitudes internas que tratamos neste artigo.
A 5ª Musculatura - o corpo dramático.
A 5ª musculatura fala de sincronia, comunicação, do outro, aquilo que está fora de nós, mas passa a ser um desmembramento nosso quando existe o elo da comunicação. Comunicar é vibrar igual, no momento presente. O chão que pisamos é a nossa quinta musculatura, assim como a roupa que vestimos. Outra pessoa passa a ser parte de nós quando existe uma troca entre dois "Eus" que se afinam e reconhecem no outro os mesmos sentimentos que existem no próprio "Eu".
Esta musculatura de sincronia é fundamental para o drama, o ofício do ator; a platéia é a 5ª musculatura do ator. É comum ver atores em cena "fazendo força" para prender a atenção, na ilusão de que a platéia é algo fora dele. Geralmente esta "força" não possui o carisma de reter a atenção sobre o ator. Quando o "Eu" do ator está totalmente entregue ao personagem, com seu físico, mente, emoções e alma, não existe força. A verdade flui naturalmente de cada gesto, de cada olhar, e comunica algo, vibra com o "Eu" coletivo da platéia. O ator deve ser um camaleão integral, e realmente "entrar na pele" do personagem, em corpo, mente e espírito.
Para realizar esta tarefa, o ator deve começar por esvaziar-se, buscando a neutralidade. Retire seu próprio personagem na vida, utilizando o estado meditativo, e a postura interior do guerreiro. Feita esta primeira "faxina", aproxime-se do eu do personagem sem julgamentos nem preconceitos. Entre nele pelas primeiras duas musculaturas, o seu físico. Ande como o personagem, olhe como ele, sinta a sua temperatura interna, as batidas de seu coração, seus gestos, a forma como ele ocupa o espaço, seu "timing", sua voz. Quando o físico do personagem estiver entranhando em seu físico, aproxime-se de sua mente, emoções e sentimentos e assuma-os todos, sem julgamento.
Seja outra pessoa nas ações mais banais e cotidianas. Pague uma conta no banco como ele pagaria, ande de ônibus como ele andaria, vá ao banheiro como ele iria. Vai chegar o momento que esta fusão se dá sem o uso da força, aquele momento em que o ator já não precisa mais se convencer, nem aos outros, de que é o personagem. Quando esta naturalidade flui das ações mais simples, o trabalho está pronto. As grandes verdades da existência são simples, sem sofisticação de qualquer espécie. Quando o ator é simples, é porque existe um ser inteiro, íntegro e total, no momento presente, dsempenhando cada ação. Nestes momentos, algo belo e de grande qualidade acontece em cena.
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Maria Pia é coreógrafa e terapeuta corporal. O presente artigo foi extraído da revista Cadernos de Teatro nº131/1992, edição já esgotada.
Maria Pia
O homem deste fim de século caminha rumo à sua essência, resgatando verdades simples e universais como a harmonização com a vida através do respeito a todos os seres vivos e a si próprio, e o despertar de uma consciência da Unidade, para compreender que tudo está ligado, pulsando no ritmo da sincronia universal. A dualidade cartesiana dá lugar à Unidade, ao entendimento de que não existe a energia do Bem e do Mal com ses desmembramentos, mas sim Energia Una, Toda, Total, Indivisível, porém Mutável. A constante mutação desta Energia única gera movimento, gera vida, em todas as suas formas e facetas. O Tao, na concepção chinesa é o próprio movimento da vida - "O desenho do Caos Maravilhoso e do caminho, o trajeto do nascimento, crescimento, amadurecimento, decrepitude, morte, vazio, recomeço perpétuo, alternância de Yin e Yang" (Tao te King, livro milenar de sabedoria chinesa).
Seguindo o trilho do pensamento da Unidade, somos levados a pensar no corpo como uma entidade composta de matéria, sentimentos, sensações e alma, que deve ser trabalhado em todos estes aspectos que o envolvem; um treinamento corporal somente físico gera "Rambos", corpos trabalhados somente no exterior, porém afastados do ser interno. Os treinamentos excessivamente teóricos e psicológicos, por sua vez, geram mentes enormes, sem um alicerce físico que as sustentem. O trabalho no corpo deve ampliar o potencial humano de um ser como um todo; sua forma física, sua beleza estética e interior, seu potencial criativo orgânico, sua capacidade de amar e de iluminar-se. Em última análise, devemos aprender as leis que regem o Tao universal, as mesmas leis do Tao do Corpo, porque somos um Microcosmos que funciona igual ao Macrocosmos no qual estamos inseridos.
Deus é Musculatura
Kasuo Ohno, o velho mestre da dança Butoh japonesa diz que nosso corpo é composto de cinco musculaturas, que devem ser conscientizadas e trabalhadas. Cada musculatura tem suas regras e leis próprias, embora se interdependam.
1ª Musculatura - é o corpo físico propriamente dito, o corpo que pode ser visto, tocado, o limiar entre o nosso interior e o nosso exterior.
2ª Musculatura - é o corpo físico da pele para dentro; nossos órgãos, sangue, células, e todos os movimentos que se processam no interior físico do nosso corpo.
3ª Musculatura - é uma musculatura abstrata; é o corpo emocional, psíquico, vibratório, mental, sensível, mediúnico.
4ª Musculatura - é a energia única que contém o Tudo, a força da vida que circula em nós e que nos mantêm vivos. É a musculatura Essencial.
5ª Musculatura - é a musculatura do contato, é o outro, o mundo que nos cerca, o meio ambiente, a sociedade, a troca.
O processo de trabalho do corpo deve começar portanto pela quarta musculatura, para contactar com aquela energia essencial, divina, que reina no interior de cada um de nós. Este trabalho é chamado Meditação.
Meditação
Na concepção taoísta, meditação significa "concentração perfeita em um ponto perfeito". O ponto perfeito é o próprio alento vital, e a concentração perfeita neste ponto é talvez a grande tarefa a ser desenvolvida durante o tempo de vida que temos. A meditação gera, a nível de sentimentos e emoções, um estado de humildade e rendição a um poder superior, esvaziando nossa mente de nossas próprias idéias, gostos, afinidades, pessoalidade, mergulhando nosso ser no silêncio. Este esvaziamento é condição fundamental para que possamos aprender o novo, porque quando estamos cheios de algo, não há espaço para aprender nada. Einstein dizia "eu penso 99 vezes e nada descubro; deixo de pensar, eis que a verdade se me revela. Tudo começa no silêncio e na intuição".
A nível físico, a prática da meditação produz uma oxigenação profunda em todo o corpo, desbloqueando tensões, eliminando toxinas e ativando a circulação de energia. É uma fonte de saúde física, psicológica e anímica. Para praticar meditação, devemos corrigir certos vícios de pensamento e imagens distorcidas que nos impedem de praticá-la. Não podemos confundir meditação com "não pensar em nada", ou criar a ilusão de que meditação retira todo o sofrimento humano. Conheci um mestre no Oriente que dizia a seus discípulos: "Pratiquem meditação diariamente e não se preocupem com seus problemas; eles estarão todos te esperando assim que você sair da meditação". Não se trata, portanto, de um remédio milagroso, mas de um estado de consciência que deve ser incorporado lentamente em nosso cotidiano.
Da mesma maneira, meditar não significa parar de pensar. A mente pensa constantemente, esta é a sua função; com a prática da meditação, aprendemos a discriminar e separar duas energias que existem dentro de nós. A primeira é um fluxo interminável de pensamentos, a segunda é o alento vital, algo mais sutil do que a própria respiração. Aos poucos, aprendemos a concentrar nossa atenção, é a prática do simples e óbvio. Jesus Cristo dizia "não lutem contra o mal", ou seja, não dar trela ao curso de nossos pensamentos, deixando-os livres, e eles nos deixarão livres também.
Einstein dizia que existem duas mentes, a inferior e a superior. A primeira é a mente intoxicada de dúvida, confusão, dever, culpa, descrença, vícios etc. É a mente cotidiana, banal e chata. Esta camada de pensamentos é paulatinamente suavisada com a prática da meditação, para que a mente superior possa se manifestar com mais freqüência dentro de nós. A mente superior é aquela que produz grandes idéias, invenções, arte, que conduz à sabedoria, e à luz. Quando a mente banal se cala, contactamos esta freqüência mais alta de pensamentos, abrindo espaço para que eles desçam ao nosso consciente.
Desta maneira, antes de começar qualquer trabalho de corpo, entre em estado de meditação, e procure se livrar de todos os pensamentos que te assolam. Eles estão em você, mas não são você, lembre disso. E deixe espaço para que as idéias superiores possam descer até o seu consciente, e guiá-lo rumo a um trabalho com mais qualidade. Isto é válido para pessoas que trabalham com o corpo, e tambémpara atores; esvazie-se antes de entrar em cena, esta é a condição fundamental para a qualidade do trabalho dramático.
Exercício para meditação
Este exercício deve ser praticado diarimente por 15 minutos. Ele não corresponde à meditação propriamente dita, pois este é um contato espiritual. O exercício prepara o corpo e a mente, facilitando a entrada na consciência de meditação. Se ao decorrer dos 15 minutos você percebe que se acalmou inteiramente e fisicamente, estenda este estado de tranquilidade ao seu dia-a-dia.
Sentado, coluna ereta, respire silenciosamente pelo nariz, colocando sua atenção no trajeto do ar em seu corpo. Sinta o ar sendo puxado das regiões viscerais na inspiração precisamente no ponto Tantien. O ar sobe num tubo energético que percorre umbigo, esterno, glote, terceiro olho, cucuruto da cabeça e desce no mesmo percurso na expiração. Não brigue com sua mente; cada vez que você seguir um pensamento, volte a se concentrar no trajeto do ar e no silêncio.
3ª Musculatura - atitude interior do guerreiro:
As escolas chenesas de artes marciais dividem o trabalho corporal em duas etapas; a primeira é a etapa interior, que começa com meditação, e desenvolve uma atitude interior correta a nível mental, sentimental e emocional, que possibilita o aprendizado do guerreiro. Ser um guerreiro, para o taoísmo, é ser um sábio que controla suas forças internas e externas. A verdadeira postura começa pela postura do interior; o Tao Te King ensina os dez mandamentos básicos para desenvolver esta postura interior do guerreiro.
10 mandamentos básicos para
a boa postura e alinhamento
1º - Ser vazio interiormente, e levar a força do "Tantien" ao cucuruto da cabeça.
O Tantien é o ponto de força que sustenta nossa estutura física, e que deve ser forte e ativado. Situa-se a três dedos abaixo do umbigo, numa linha reta. A cada inspiração, pressione o Tantien para dento de você, repetidamente. Este exercício deve ser feito sempre que você estiver sem energia.
O ar é bombeado do ponto do Tantien, e sobe passando pelo umbigo que deve estar todo aberto como um sol; se alguma parte do umbigo estiver fechada, ou colada, é sinal de que você está sentado em sua cintura. Abra o umbigo todo, para isso você terá que subir seu corpo para cima, e se descolar na cintura. Sinta uma força que lhe puxa para cima a partir do Tantien, e outra que crava seus pés no chão, dando apoio para a subida.
2º - "Encolher ligeiramente o peito, esticando as costas para trás. O cucuruto da cabeça deve estar paralelo ao céu". Sinta as costas; normalmente a tensão faz dois montes em torno da coluna vertebral. Inspire e mande ar para os montes das costas, apague-os, cresça por trás. Deixe o pescoço ereto; o cucuruto quer o céu.
3º - Afrouxar a cintura - gire repetidamente seu corpo de um lado para o outro, sem travar o movimento. Sinta que seu corpo pode dobrar e girar.
4º - Distinguir cheio de vazio - esta é uma lei muito importante a ser observada em nosso cotidiano. É a transferência total do peso do corpo de um pé para o outro a cada passo. Observe seu caminhar, e transfira seu peso todo a cada passo. Não deixe parte de seu peso na perna de trás quando o movimento de impulso é com a perna da frente.
5º - "Baixar os ombros, deixar cair os cotovelos". Quando o ponto Tantien não é forte o suficiente, a tensão sobe para os ombros e o pescoço. Insconscientemente, tentamos manter a postura ereta colocando força na área superior do corpo, quando na verdade, o movimento é exatamente oposto. Os chineses dizem que "o corpo é ferro sob algodão". A parte inferior, região visceral, deve ser o alicerce de ferro, e da cintura para cima devemos ser leves e fluidos como o algodão.
6º - "Em lugar de força muscular, usar sabedoria para comandar os movimentos". Esta frase é bastante abstrata, mas fala de uma atitude interna que devemos desenvolver em nós. Esta atitude começa na apreensão das regras corporais, e na vigilância cotidiana desta postura harmônica. Não adianta ficar ereto somente quando fazemos exercícios. Esta consciência deve ser constante em nosso cotidiano para que haja uma mudança real em nossas atitudes corporais. Jesus Cristo dizia "orai e vigiai" em referência a esta atitude interior de "serenidade com atenção", a atitude do guerreiro marcial, do sábio, do homem consciente.
7º "Ligar alto e baixo" - os pés movem-se junto com as mãos e os olhos, a parte de cima do corpo move-se junto com a parte de baixo. A tensão social, o pensamento facetado, a separação corpo-mente-espírito nos levou a ter atitudes corporais também divididas. É necessário imprimir fisicamente este conceito da Unidade, para estarmos também inteiros no corpo. Muitas vezes olhamos só com os olhos para uma direção, enquanto que nossos joelhos e pernas vão na direção oposta, nossa mente divaga em outra situação que não é aquela que estamos vivendo, e assim nos tornamos um circo louco de impulsos desconexos. Estar aqui e agora totalmente, com todas as partes do ser e do corpo. Se olho para o lado, todo o meu ser olha para o lado, e assim por diante. Procurar levar todo o corpo em cada ação física que desempenhamos.
8º - "Unir interior a exterior - abertura e fechamento dos pés e mãos correspondem à abertura e fechamento do espírito". Corpos fechados correspondem a espíritos fechados. Quando existe o trabalho interior de fluir com a vida, ser maleável e aberto interiormente, automaticamente esta atitude começa a se imprimir no corpo físico, de dentro para fora.
9º - "Ligar movimentos sem interrupção - novamente uma atitude de fluidez, não viver aos trancos e barrancos, mas soltar-se e transformar-se de acordo com as situações que a vida nos apresentar; ser macio.
10º - "Manter a calma interna durante o movimento". Ao praticar exercícios físicos devemos ser capazer de reter o calor interno que o exercício provoca, acalmando os batimentos cardíacos para que não ocorra stress muscular.
A 1ª e 2ª Musculaturas
Neste ponto do processo estamos aptos para o trabalho físico propriamente dito, na 1ª e 2ª musculaturas. Estas são musculaturas de repetição, que devem ser exercitadas diariamente, com constância e disciplina. Se queremos um abdômem forte, não podemos apenas mentalizar os músculos abdominais, pretendendo que estes se enrijeçam. Falamos de um trabalho físico, repetitivo, disciplinado, que envolve suor. Não pretendo me estender nas práticas físicas, pois estas são experiências na ação, e não de leitura. Aconselho aos atores que exercitem seu físico diariamente, incorporando as atitudes internas que tratamos neste artigo.
A 5ª Musculatura - o corpo dramático.
A 5ª musculatura fala de sincronia, comunicação, do outro, aquilo que está fora de nós, mas passa a ser um desmembramento nosso quando existe o elo da comunicação. Comunicar é vibrar igual, no momento presente. O chão que pisamos é a nossa quinta musculatura, assim como a roupa que vestimos. Outra pessoa passa a ser parte de nós quando existe uma troca entre dois "Eus" que se afinam e reconhecem no outro os mesmos sentimentos que existem no próprio "Eu".
Esta musculatura de sincronia é fundamental para o drama, o ofício do ator; a platéia é a 5ª musculatura do ator. É comum ver atores em cena "fazendo força" para prender a atenção, na ilusão de que a platéia é algo fora dele. Geralmente esta "força" não possui o carisma de reter a atenção sobre o ator. Quando o "Eu" do ator está totalmente entregue ao personagem, com seu físico, mente, emoções e alma, não existe força. A verdade flui naturalmente de cada gesto, de cada olhar, e comunica algo, vibra com o "Eu" coletivo da platéia. O ator deve ser um camaleão integral, e realmente "entrar na pele" do personagem, em corpo, mente e espírito.
Para realizar esta tarefa, o ator deve começar por esvaziar-se, buscando a neutralidade. Retire seu próprio personagem na vida, utilizando o estado meditativo, e a postura interior do guerreiro. Feita esta primeira "faxina", aproxime-se do eu do personagem sem julgamentos nem preconceitos. Entre nele pelas primeiras duas musculaturas, o seu físico. Ande como o personagem, olhe como ele, sinta a sua temperatura interna, as batidas de seu coração, seus gestos, a forma como ele ocupa o espaço, seu "timing", sua voz. Quando o físico do personagem estiver entranhando em seu físico, aproxime-se de sua mente, emoções e sentimentos e assuma-os todos, sem julgamento.
Seja outra pessoa nas ações mais banais e cotidianas. Pague uma conta no banco como ele pagaria, ande de ônibus como ele andaria, vá ao banheiro como ele iria. Vai chegar o momento que esta fusão se dá sem o uso da força, aquele momento em que o ator já não precisa mais se convencer, nem aos outros, de que é o personagem. Quando esta naturalidade flui das ações mais simples, o trabalho está pronto. As grandes verdades da existência são simples, sem sofisticação de qualquer espécie. Quando o ator é simples, é porque existe um ser inteiro, íntegro e total, no momento presente, dsempenhando cada ação. Nestes momentos, algo belo e de grande qualidade acontece em cena.
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Maria Pia é coreógrafa e terapeuta corporal. O presente artigo foi extraído da revista Cadernos de Teatro nº131/1992, edição já esgotada.
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