segunda-feira, 31 de maio de 2010

"Atendimento ao consumidor"
de Fabio Porchat
PERSONAGENS:
Deucimara
Cliente
Argeli
Doris
Máquina
Sueli
Bernardete
(Este esquete foi concebido para dois atores. Um deles interpreta o Cliente, o outro os demais presonagens)
DEUCIMARA - Lojas Bernardo Franco Deucimara boa tarde em que posso ajudá-lo um momento por favor...
CLIENTE - Alô?
DEUCIMARA - Lojas Bernardo Franco Deucimara boa tarde um momento, por favor...
CLIENTE - Está bem........................Alô? Alô!
DEUCIMARA - Alô Deucimara boa tarde...
CLIENTE - Eu sei quem você é!
DEUCIMARA - Em que posso ajudá-lo, um momento por...
CLIENTE - Espera!
DEUCIMARA - Por favor.
CLIENTE - Alô, Deucimara? Eu só queria...
DEUCIMARA - Alô, Deucimara, boa tarde.
CLIENTE - Oi, boa tarde. Eu gostaria de uma informação...
DEUCIMARA - Informações é no setor nove vou transferi-lo obrigado sua ligação é muito importante para nós um momento, por favor.
CLIENTE - Não, eu só queria saber como...Alô? Alô? Alô, Deucimara?
ARGELI - Não, aqui quem fala é Argeli, Deucimara é no setor quatro, atendimento vou transferi-lo...
CLIENTE - Não!!!
ARGELI - Um momento, por favor.
CLIENTE - Eu quero falar com qualquer um!!!
DEUCIMARA - Lojas Bernardo Franco Deucimara...
CLIENTE - Deucimara, fala comigo!
DEUCIMARA - Pois não, em que posso ajudá-l0?
CLIENTE - Pelo amor de Deus, não desliga!
DEUCIMARA - Pois não.
CLIENTE - Nem me transfere.
DEUCIMARA - Pois não, senhor.
CLIENTE - Deucimara...
DEUCIMARA - Pois não.
CLIENTE - Eu gostaria de saber...
DEUCIMARA - Pois não.
CLIENTE - Pare de falar "pois não" e me deixe falar!
DEUCIMARA - Pois não, senhor.
CLIENTE - Eu comprei uma televisão e...
DEUCIMARA - Televisão é no setor sete, eletrodomésticos vou transferi-lo...
CLIENTE - Não, Deucimara! Eu quero falar com você!
DORIS - Pois não.
CLIENTE - Obrigado Deucimara.
DORIS - Não, aqui quem fala é Doris, Deucimara é no setor quatro, atendimento...
CLIENTE - AHHH!!!!
DORIS - Vou transferi-lo, um momento por favor.
CLIENTE - Deucimara, é você?
DEUCIMARA - Lojas Bernardo Franco Deucimara...
CLIENTE - Por que, meu Deus?
DEUCIMARA - Boa tarde em que posso ajudá-lo?
CLIENTE - Deucimara?
DEUCIMARA - Pois não, senhor.
CLIENTE - Eu só quero saber se...
MÁQUINA - Bem vindo a nossa central de atendimento. Nesse momento todos os nossos atendentes estão ocupados.
CLIENTE - Não!!!
MÁQUINA - Aguarde e dentro de instantes você será atendido.
CLIENTE - Cadê a Deucimara?
MÁQUINA - Sua ligação é muito importante para nós.
CLIENTE - Socorro!!!
MÁQUINA - Para facilitar o atendimento digite o número do seu CPF, para confirmar tecle estrela.
CLIENTE - Meu Deus, pera aí.
MÁQUINA - CPF inválido, por favor digite pausadamente o número do seu CPF, para confirmar tecle estrela.
CLIENTE - Mas meu CPF é esse!!!
MÁQUINA - CPF inválido, por favor, digite pausadamente o número do seu CPF, para confirmar teche estrela.
CLIENTE - Mas eu nem digitei.
MÁQUINA - Por favor, digite pausadamente o número do seu CPF, para confirmar tecle estrela. CPF inválido, por favor...
CLIENTE - Eu não vou digitar mais porra nenhuma! Deucimara!!!!!!!
DEUCIMARA - Lojas Bernardo Franco Deucimara boa tarde em que posso ajudá-lo?
CLIENTE - Deucimara, que saudades!
DEUCIMARA - Boa tarde, senhor.
CLIENTE - Boa tarde Deucimara, tudo bem?
DEUCIMARA - Tudo ótimo, senhor.
CLIENTE - Me ajuda, Deucimara.
DEUCIMARA - Pois não, senhor.
CLIENTE - Eu quero saber como é que eu faço para poder instalar o cabo do áudio que liga na televisão para eu poder gravar...Deucimara você tá aí?
MÁQUINA - CPF inválido.
CLIENTE - Não!!!
MÁQUINA - Por favor, digite pausadamente o número do seu CPF, para confirmar tecle estrela.
CLIENTE - Cadê a Deucimara? Agora que a gente tava se entendendo. Deucimara, volta!
MÁQUINA - Se você deseja adquirir o nosso cartão Bernardo Franco, tecle 1.
CLIENTE - Não, não, tá tudo errado...
MÁQUINA - Para dúvidas em relação a pagamentos, tecle 2.
CLIENTE - Cadê a opção Deucimara?
MÁQUINA - Para saber sobre novidades, tecle 3. Ou aguarde na linha para falar com um de nossos atendentes.
BERNADETE - Lojas Bernardo Franco Bernadete boa tarde em que posso ajudá-lo?
CLIENTE - Bernadete?
BERNADETE - Sim, senhor.
CLIENTE - Me passa pro setor quatro atendimento Lojas Bernardo Franco Deucimara boa tarde em que posso ajudá-lo.
DEUCIMARA - Lojas Bernardo Franco deucimara boa tarde em que posso ajudá-lo?
CLIENTE - Deucimara, nesse tempo todo que eu fiquei que nem um babaca segurando esse telefone, falando com cem pessoas diferentes, inclusive com uma máquina...
DEUCIMARA - Pois não.
CLIENTE - Eu decidi que...
DEUCIMARA - Pois não.
CLIENTE - Que eu vou me matar.
DEUCIMARA - Suicídios é no setor dez vou transferi-lo obrigada, sua ligação é muito importante para nós, um momento por favor.
SUELI - Sueli suicídios em que posso ajudálo? Alô? Alô? Xi, acho que a linha caiu...
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quinta-feira, 27 de maio de 2010

"Variações sobre a morte de Trotsky"

Texto de David Ives
Tradução de Ana Bernstein


PERSONAGENS:

Trotsky
Sra. Trotsky
Ramon

(Escritório de Trotsky em Coyacan, México. Uma escrivaninha, coberta com livros e papéis. Um espelho pendurado na parede. Uma porta à esquerda. Janelas com venezianas ao fundo, através das quais podemos vislumbrar viçosas copas de árvores e plantas tropicais. Um grande calendário de parede marca que hoje é dia 21 de agosto de 1940. Luzes em Trotsky sentado à sua escrevaninha, escrevendo furiosamente. Ele tem cabelos bastos e cavanhaque, pequenos óculos, um terno escruto. O cabo de uma picareta está saindo da parte de trás de sua cabeça)

VARIAÇÃO I

Trotsky (escrevendo) - "O proletariado está certo. O proletariado deve estar sempre certo. E a revolução do proletariado contra a opressão precisa continuar...para sempre!" (entra a Sra. Trotsky, maternal e doce, trajando um vestido comprido até o calcanhar e botinas abotoadas. Ela está segurando um enorme livro)

Sra. Trotsky - Leon.

Trotsky - "E sempre e sempre...!"

Sra. Trotsky - Leon, eu estava agora há pouco lendo a enciclopédia.

Trotsky - O verbete?

Sra. Trotsky - "Trotsky, Leon".

Trotsky - Ótimo. É sobre mim.

Sra. Trotsky - Escute isso. (Lê) "No dia 20 de agosto de 1940, um comunista espanhol chamado Ramon Mercader golpeou com uma picareta o crânio de Trotsky em Coyoacan, subúrbio da cidade do México. Trotsky morreu no dia seguinte".

Trotsky - Qual é o ano desta enciclopédia?

Sra. Trotsky - 1997.

Trotsky - Estranho.

Sra. Trotsky - Sim.

Trotsky - Mas interessante. Eu sou Trotsky.

Sra. Trotsky - Sim, querido.

Trotsky - E esta é a nossa casa em Coyoacan.

Sra. Trotsky - Sim.

Trotsky - E temos um jardineiro espanhol chamado Ramon...

Sra. Trotsky - Mercader. Sim.

Trotsky - Não há nenhuma outra família Trotsky vivendo em Coyoacan, há?

Sra. Trotsky - Acho que não. Não sob este nome.

Trotsky - Que dia é hoje?

Sra. Trotsky - 21 de agosto de 1940.

Trotsky - Então eu estou salvo! Este artigo diz que aconteceu no dia 20, o que significa que teria acontecido ontem.

Sra. Trotsky - Mas Leon...

Trotsky - Será que a imprensa capitalista nunca vai escrever as coisas certas? (Volta a escrever)

Sra. Trotsky - Mas Leon, não é o cabo de uma picareta que está saindo da sua cabeça?

Trotsky (Olha no espelho) - Com certeza parece com uma...E você sabe, Ramon esteve aqui ontem, me contando sobre sua escalada. E agora que eu estou pensando no assunto, ele estava carregando sua picareta. Não consigo lembrar se ele ainda a tinha quando deixou a sala...Ramon veio trabalhar hoje? (Trotsky morre. Uma campainha toca)


VARIAÇÃO II

Trotsky (Escrevendo) - "Ninguém está a salvo. O uso da força é necessário. E a revolução do proletariado contra a opressão deve continuar para sempre e sempre..."

Sra. Trotsky - Leon...

Trotsky - "E para sempre!"

Sra. Trotsky - Leon, eu estava agora há pouco lendo a enciclopédia.

Trotsky - É a Britãnica?

Sra. Trotsky - Escute isso.

Trotsky (Para o público) - O universo visto pelos vencedores.

Sra. Trotsky - "No dia 20 de agosto de 1940, um comunista espanhol chamado Ramon Mercader golpeou com uma picareta o crânio de Trotsky em Coyoacan, subúrbio da cidade do México. Trotsky morreu no dia seguinte".

Trotsky - Sim, e...?

Sra. Trotsky - Eu acho que há uma picareta no seu crânio neste exato momento.

Trotsky - Eu sabia disso! Quando eu estava me barbeando esta manhã, notei um cabo saindo por trás da minha cabeça. Por um momento eu pensei que era um furador de gelo, então a princípio eu fiquei preocupado.

Sra. Trotsky - Não, não é um furador de gelo.

Trotsky - Nem mesmo pronuncie a palavra, por favor. Você sabe do meu pesadelo recorrente.

Sra. Trotsky - Sim, querido.

Trotsky - Sobre o furador de gelo que se enterra em meu crânio.

Sra. Trotsky - Mas Leon...

Trotsky - Ninguém pode ser visto com um furador de gelo nesta casa. Especialmente comunistas espanhóis.

Sra. Trotsky - Mas Leon...

Trotsky - Podemos nos virar sem gelo. Beberemos nosso licor puro e nossa Coca-Cola quente. Quem se importa se estamos em Coyacan e é agosto? Não é um mau título para uma canção: "Coyacan em agosto". (Anota) Ou nós teremos gelo mas apenas não o partiremos. Gelo será permitido nesta casa em blocos, mas não deverá ser picado ou lascado sob nenhuma circunstância - pelo menos, não com um furador de gelo. Bandejas de gelo também seriam permitidas, se já tivessem sido inventadas. Aposto como este artigo não diz nada sobre uma bandeja de gelo no meu crânio, diz?

Sra. Trotsky - Não...

Trotsky - Diz?

Sra. Trotsky - Não.

Trotsky - HA! Fui mais esperto do que o destino! (Para o público) O que é apenas uma explicação capitalista para o status quo!

Sra. Trotsky - Leon...

Trotsky - Também, olhe para isso. (Abre uma gaveta e tira um crânio) Você sabe o que é isso?

Sra. Trotsky - Não.

Trotsky - É um crânio.

Sra. Trotsky - Bem, isso eu sabia, mas...

Trotsky - Eu comprei este crânio. Eu possuo este crânio. Então o que isto o torna?

Sra. Trotsky e Trotsky - O crânio de Trotsky.

Trotsky - Se algum comunista espanhol disfarçado de jardineiro quiser enterrar alguma coisa em meu crânio ou qualquer outra coisa, isto estará aqui como uma isca. Ele verá esse crânio, enterra alguma coisa nele, e seguirá o seu caminho enquanto eu sigo o meu. Não é engenhoso?

Sra. Trotsky - Até certo ponto.

Trotsky - Mais 50 anos de Trotsky!

Sra. Trotsky - Tenho más notícias para você, Leon. (Mostra a ele a enciclopédia)

Trotsky - Uma picareta? Engenhoso! (Trotsky morre. Campainha)


VARIAÇÃO III

Trotsky - Engraçado. Sempre pensei que fosse um furador de gelo.

Sra. Trotsky - Uma picareta! Uma picareta! Será que eu não consigo enfiar isso na sua cabeça? (Trotsky morre. Campainha)


VARIAÇÃO IV

Trotsky - Essa é uma péssima notícia. Isso é sério.

Sra. Trotsky - O que é sério, Leon?

Trotsky - Eu tenho uma picareta enterrada no meu crânio!

Sra. Trotsky - Na verdade, ele está esmagado. Aqui diz que Mercader esmagou o seu crânio com a picareta, não diz "enterrou"...

Trotsky - Certo, certo. O que eu vou fazer?

Sra. Trotsky - Talvez um chapéu possa cobrir o cabo. Você sabe. Um daqueles lindos chapéuzinhos Alpinos, com uma ponta e uma pena...?

Trotsky - A encicloplédia diz que eu morro hoje?

Sra. Trotsky - Dia 21. É hoje.

Trotsky - Diz a que horas?

Sra. Trotsky - Não.

Trotsky - Bem se vê a inutilidade dessa enciclopédia. Certo, então eu tenho até a meia-noite o mais tardar.

Sra. Trotsky - O que eu devo dizer à cozinheira sobre o jantar?

Trotsky - Bem...ela pode esquecer a sopa de entrada.

Sra. Trotsky - Nyet, nyet, nyet! (Campainha)


VARIAÇÃO V

Trotsky - Mas este homem é um jardineiro.

Sra. Trotsky - Sim.

Trotsky - Pelo menos ele tem posado de jardineiro.

Sra. Trotsky - Sim.

Trotsky - Isso não o torna um membro do proletariado?

Sra. Trotsky - Eu diria que sim.

Trotsky - Então o que ele está fazendo enterrando uma picareta no meu crânio?

Sra. Trotsky - Eu não sei. Você andou oprimindo ele?

Trotsky - Por que Ramon faria isso comigo? (Ele segura o crânio, tipo Hamlet)

Sra. Trotsky - Talvez ele seja um literalista.

Trotsky - O que?

Sra. Trotsky - Um literalista. Talvez Ramon tenha encontrado com Manuel ontem. Você sabe...Manuel? O jardineiro chefe?

Trotsky - Eu sei quem é Manuel.

Sra. Trotsky - Eu sei que você sabe quem Manuel é. Mas talvez Ramon tenha perguntado a ele, "O Sr. Trotsky terá tempo de olhar os nasturtiums hoje?" E talvez Manuel tenha dito, "O Sr. Trotsky? Só morto". Ha, ha, ha...

Trotsky - Muito engraçado.

Sra. Trotsky - Ou talvez ele estivesse apenas querendo pregar um Trotsky.

Trotsky - Ah muito, muito engraçado.

Sra. Trotsky - Ou talvez ele apenas quisesse cultivar seus miolos!

Trotsky - Pare com isso! Pare com isso! (Ele morre)

Sra. Trotsky - Ha, ha, ha...(Campainha)


VARIAÇÃO VI

Trotsky - Chame Ramon aqui.

Sra. Trotsky - Ramon!

Trotsky - Melhor você achá-lo depressa. Eu tenho uma picareta em meu crânio!

Sra. Trotsky - Ramon! Venha rápido! (Entra Ramon: sombrero, serape, huaraches e violão)

Trotsky - Bom dia, Ramon.

Ramon - Bom dia, señor.

Trotsky - Sente-se, por favor (Para a Sra. Trotsky) Você vê? Nós temos aqui uma ótima relação patrão-empregado. Ramon, você enterrou essa picareta em meu crânio?

Ramon - Eu não enterrei, señor. Eu esmaguei seu crânio com ela.

Trotsky - Perdão?

Ramon - Entende? Você ainda pode ver o cabo.

Sra. Trotsky - É verdade, Leon. A picareta não está totalmente fora de vista.

Ramon - Então nós não poemos dizer "enterrada", podemos apenas dizer "enfiada" ou talvez "entalada".

Trotsky - Certo, certo. Mas por que você fez isso?

Ramon - Eu acho que li sobre isso numa enciclopédia.

Trotsky (Para o público) - O poder da palavra impressa!

Ramon - Eu queria usar um furador de gelo, mas não havia nenhum aqui na casa.

Trotsky - Mas por que? Você sabe quem eu sou? Você se dá conta de que você esmagou essa picareta no crânio de uma grande figura histórica? Eu ajudei a Revolução Russa! Eu combati Stalin! Eu era um grande teórico político! Por que você fez isso? Foi discordância política? Recuo anti-contra-revolucionário?

Ramon - Na verdade, foi amor, señor.

Sra. Trotsky - É verdade, Leon. (Ela e Ramon dão-se as mãos) Apenas lamento que você tenha sabido dessa forma.

Trotsky - Oh, Deus! Que tolo eu tenho sido! (Ele morre. Campainha)


VARIAÇÃO VII

Trotsky - Por que você fez isso realmente, Ramon?

Ramon - Você nunca saberá, señor Trotsky.

Trotsky - Isso é um pesadelo!

Ramon - Mas felizmente para você, sua noite acabará logo. (Trotsky morre. Campainha)


VARIAÇÃO VIII

Trotsky - Certo, Ramon. Obrigado. Você pode ir. (Ramon começa a sair. Pára)

Ramon - Señor Trotsky?

Trotsky - Sim?

Ramon - O sr. acha que terá tempo de olhar para os nasturtiums hoje? Eles estão realmente lindos.

Trotsky - Acho que não, Ramon. Mas eu vou tentar.

Ramon - Obrigado, señor. Hasta la vista. Ou deveria dizer, buenas noches. (Sai)

Trotsky - Bem...está bem então. O vigésimo primeiro dia de agosto de 1940. O dia que eu vou morrer. Interessante. E pensar que eu passei por tantos vinte e um de agosto em minha vida, como um homem andando sobre sua própria cova.

Sra. Trotsky - Tem sido maravilhoso ser casada com você, Leon.

Trotsky - Obrigado, sra. Trotsky.

Sra. Trotsky - Embora tenha sido um fardo algumas vezes, ser casada com uma importante figura histórica.

Trotsky - Eu lamento ter ficado ausente de casa com freqüência, cuidando da revolução.

Sra. Trotsky - Eu comprendo.

Trotsky - Eu sinto muito se eu não demonstrei mais meus sentimentos.

Sra. Trotsky - Não...por favor...

Trotsky - E se me foi sempre tão difícil expressar minhas emoções.

Sra. Trotsky - Oh, eu não tenho sido tudo que eu deveria.

Trotsky - Bem...é um pouco tarde para lamentar, com uma picareta enterrada no cérebro de alguém.

Sra. Trotsky - Enfiada, na verdade.

Trotsky - Então não foi a velhice, ou câncer, ou mesmo o furador de gelo que eu temi por tantos anos. Foi uma picareta brandida por um comunista espanhol disfarçado de jardineiro.

Sra. Trotsky - Você realmente não poderia ter imaginado isso, Leon.

Trotsky - Então mesmo assassinos podem cultivar flores. O jardineiro era falso e ainda assim o jardim que ele cuidou era real. Como poderia saber que ele era meu assassino quando eu passava por ele todo dia? Como poderia saber que o homem que cuidava dos nasturtiums me privaria de saber como será o tempo amanhã? Como poderia saber que eu jamais veria "Casablanca", que não seria feito até 1942 e que eu desprezaria, de qualquer forma? Como eu poderia saber que jamais saberia sobre a bomba ou sobre os 80 mil mortos de Hiroshima? Ou rock and roll, ou Gorbachev, ou o Estado de Israel? Como eu poderia saber que eu seria apagado dos livros de História da minha própria terra?

Sra. Trotsky - Mas reintegrado, ao menos parcialmente, um dia.

Trotsky - Um dia, para todo mundo, há um aposento em que você entra, e este é o quarto que você nunca deixa. Ou então você sai de um aposento e é o último aposento que você jamais deixará. Este é meu último aposento.

Sra. Trotsky - Mas você nem mesmo está aqui, Leon.

Trotsky - Esta escrivaninha, estes livros, este calendário...

Sra. Trotsky - Você nem mesmo está aqui, meu amor.

Trotsky - O sol entrando por estas persianas...

Sra. Trotsky - Isso foi ontem. Você está num hospital, inconsciente.

Trotsky - As flores no jardim. Você em pé aí...

Sra. Trotsky - O que você está vendo é ontem.

Trotsky - O que a entrada diz? Você leria de novo?

Sra. Trotsky - "No dia 20 de agosto de 1940, um comunista espanhol chamado Ramon Mercader golpeou com uma picareta o crânio de Trotsky em Coyacan, subúrbio da cidade do México. Trotsky morreu no dia seguinte".

Trotsky - Isso lhe dá um pouco de esperança em relação ao mundo, não é? Que um homem tenha uma picareta esmagada em seu crânio e ainda assim viva por um dia inteiro...? Talvez eu vá olhar os nasturtiums. (Trotsky morre. O jardim do lado de fora da janela com persianas começa a se iluminar. As luzes diminuem até se apagarem)

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quarta-feira, 26 de maio de 2010

Quem???
Lionel Fischer
Outro dia, uma jovem aluna me pediu que lhe recomendasse alguns livros. Imaginando tratar-se de leitura voltada para o teatro, sendo ela minha aluna de teatro, comecei a citar alguns autores básicos e imprescindíveis. Mas logo ela me interrompeu, dizendo que isso eu já havia feito - em outras palavras, a jovem aluna estava como que insinuando que, dada a minha avançadíssima idade, minha memória já dava sinais de lamentável desgaste.
Mas, enfim...O que ela queria era ler romances importantes. Então, só para vingar-me, comecei a enumerar alguns de Dostoiévski - o autor que mais amo - e que supunha que ela não os tivesse lido. Mas antes de chegar ao terceiro romance, ela me interrompeu e, após erguer de forma extremamente curiosa a sobrancelha esquerda, me fez a desconcertante pergunta: "Desculpe, mestre, mas esse Dostoiévski...é quem mesmo?"
Pálido de espanto, como um personagem de soneto, recuei dois passos, só não dando um terceiro porque minhas costas se chocaram com uma pilastra. E assim permaneci por alguns segundos, tentando me refazer do impacto de constatar que alguém, ainda que jovem, jamais tivesse ouvido falar do genial escritor russo.
Mas finalmente a coloração de minhas faces voltou e eu, com a infinita paciência que me caracteriza (ao menos em algumas ocasiões), dei à tal aluna um breve seminário, de uns três minutos, sobre o dito autor. Como ela me pareceu interessada (ou simulou interesse, quem sabe para evitar uma morte que talvez tenha lhe parecido iminente), recomendei-lhe a leitura de "Notas do subsolo", uma novela curta que considero absoltamente fascinante e que venho relendo, de tempos em tempos, desde os 15 anos - e cada vez mais me maravilhando com a inteligência e sensibilidade deste artista maior, a meu ver insuperável no que concerne à compreensão da alma humana e de todas as suas contradições.
Não sei se minha aluna lerá essa obra. Não sei se todos os parceiros deste blog a leram. Mas na hipótese de que alguns a desconheçam, recomendo com total entusiasmo que a adquiram na banca mais próxima de suas residências - acho que já disse aqui que, de uns tempos para cá, as bancas de jornal (ao menos algumas) estão publicando obras de autores célebres, como Dostoiévski, Tolstói, Maquiavel, Neruda etc., em formato de bolso, por um preço médio equivalente a duas cocas e um desses sanduíches gigantes que antecipam a morte a cada dentada.
Então, à guisa de aperitivo e estímulo, transcrevo a seguir o primeiro capítulo de "Notas do subsolo". A obra tem um caráter confessional e está dividida em duas partes: 'O subsolo' e 'A propósito da neve úmida', sendo este segundo título extraído de um poema de Nekrássov.
* * *
O subsolo
1
Sou um homem doente...Sou mau. Não tenho atrativos. Acho que sofro do fígado. Aliás, não entendo bulhufas da minha doença e não sei com certeza o que é que me dói. Não me trato, nunca me tratei, embora respeite os médicos e a medicina. Além de tudo, sou supersticioso ao extremo; bem, o bastante para respeitar a medicina. (Tenho instrução suficiente para não ser supersticioso, mas sou). Não, senhores, se não me quero tratar é de raiva. Isso os senhores provavelmente não compreendem. Que assim seja, mas eu compreendo. Certamente, não poderia explicar a quem exatamente eu atinjo, neste caso, com a minha raiva; sei perfeitamente que, não me tratando, não posso prejudicar os médicos; sei perfeitamente bem que, com isso, prejudico somente a mim e a mais ninguém. Mesmo assim, se não me trato, é de raiva. Se o fígado dói, que doa ainda mais.
Faz muito tempo que vivo assim - uns vinte anos. Agora estou com quarenta. Antes eu trabalhava no serviço público, mas agora não trabalho mais. Fui um funcionário cruel. Era grosseiro e encontrava prazer nisso. Já que não aceitava propinas, devia me recompensar ao menos dessa maneira. (Isso foi um gracejo infeliz, mas não vou apagá-lo. Eu o escrevi pensando que ia sair algo muito espirituoso, mas agora, quando constatei que, de maneira infame, estava apenas querendo me vangloriar, de propósito não vou apagar).
Quando os solicitantes se aproximavam da minha mesa para pedir uma informação, eu rangia os dentes para eles e sentia um prazer infinito quando conseguia contrariar alguém. Quase sempre conseguia. Na maior parte, era gente tímida, como são de hábito os solicitantes. Mas, entre os almofadinhas, particularmente eu não podia suportar um certo oficial. Ele não queria de modo algum submeter-se e fazia tinir seu sabre de maneira asquerosa. Por causa desse sabre, nós estivemos em guerra durante um ano e meio. Ganhei, finalmente. Ele parou com os tinidos.
Aliás, isso se passou ainda na minha mocidade. Mas sabem os senhores em que consistia o ponto principal de minha raiva? A questão toda, a minha maior canalhice, se resumia a que a todo momento, até no instante do ódio mais intenso, eu percebia, envergonhado, que não só não era mau, como não era nem mesmo uma pessoa enfurecida, apenas assustava pardais sem nenhum propósito e com isso me divertia. Minha boca espumava, mas se me trouxessem um brinquedinho ou um chazinho com açúcar, na certa eu me acalmaria. Ficaria até enternecido, embora depois, provavelmente, rangeria os dentes para mim mesmo e, de vergonha, passaria alguns meses com insônia. Esse é o meu jeito de ser.
Eu menti antes, quando disse que era um funcionário cruel. Menti de raiva. Apenas me divertia com os solicitantes e o oficial, mas no fundo nunca me tornei mau. Constantemente observava em mim uma enorme quantidade de elementos contrários a isso. Sentia-os fervilhar dentro de mim. Sabia que em toda a minha vida eles fervilharam dentro de mim e ansiavam por sair, mas eu não deixava. Não deixava, de propósito não os soltava. Eles me torturavam a ponto de me dar vergonha; até convulsões eu tive por causa deles - e finalmente fiquei farto. Como fiquei farto! Não lhes parece que agora estou me arrependendo de alguma coisa diante dos senhores, que estou a lhes pedir perdão? Estou certo de que parece...Aliás, asseguro-lhes que para mim tanto faz, se isso assim lhes parece...
Não apenas não consegui tornar-me cruel, como também não consegui me tornar nada; nem mau, nem bom, nem canalha, nem homem honrado, nem herói, nem inseto. Agora vivo no meu canto, provocando a mim mesmo com a desculpa rancorosa e inútil de que o homem inteligente não pode seriamente se tornar nada, apenas o tolo o faz. Sim, senhores, o homem do século XIX que possui inteligência tem obrigação moral de ser uma pessoa sem caráter; já um homem com caráter, um homem de ação, é de preferência um ser limitado. Essa é a minha convicção aos quarenta anos. Tenho agora quarenta.
E quarenta anos é toda uma vida, é a velhice mais avançada. Depois dos quarenta é indecoroso viver, é vulgar, imoral! Quem vive além dos quarenta? Respondam-me sincera e honestamente. Pois vou lhes dizer quem vive: os tolos e os canalhas. Direi isso na cara de todos os anciãos, dos anciãos respeitáveis, perfumados e de cabelos brancos! Direi isso na cara de todo mundo! Tenho direito de dizer isso porque eu mesmo vou viver até os sessenta. Até os setenta! Até os oitenta! Esperem! Deixem-me tomar fôlego!
Acaso os senhores estão pensando que quero fazê-los rir? Enganaram-se também quanto a isso. Não sou absolutamente esse sujeito brincalhão que os senhores imaginam, ou que talvez os senhores imaginem. Aliás, se os senhores, irritados com toda essa tagarelice (eu já senti que estão irritados), inventarem de me perguntar: quem é o senhor, exatamente? - eu lhes responderei: sou um assessor colegial. Eu tinha esse emprego para ter alguma coisa para comer (mas somente para isso) e quando, no ano passado, um dos meus parentes distantes deixou-me seis mil rublos no seu testamento, imediatamente me aposentei e mudei para este canto.
Meu quarto é detestável, nojento e fica quase fora da cidade. Já vivia aqui antes, mas agora me instalei definitivamente. Minha criada é uma mulher da aldeia, velha, raivosa devido à ignorância e, além de tudo, tem um fedor insuportável. Dizem que o clima de Petersburgo está se tornando prejudicial para mim e que, com os recursos insignificantes de que disponho, é muito caro viver aqui. Sei de tudo isso melhor do que esses conselheiros e protetores experientes e sábios. Mas permaneço em Petersburgo; não vou sair de Petersburgo! Não vou sair porque...Ora! Não faz diferença nenhuma se vou sair ou não.
Mas sobre o que um homem de bem pode falar com mais satisfação?
Resposta: sobre si mesmo.
Então, vou falar sobre mim.
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Teatro/CRÍTICA

"A carpa"
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Temperando o entendimento
Lionel Fischer
Duas épocas, dois países (Rússia e Brasil), duas personagens que se revezam em quatro papéis. Como eixo central da ação, a preparação do peixe tradicional a ser saboreado no dia seguinte, a páscoa judaica (Pessach). Enquanto temperam a carpa, mãe e filha se destemperam, pois a primeira defende ardorosamente a preservação das tradições e a segunda as contesta, tendo inclusive se casado com um goy (um não judeu).
No entanto, mais do que os embates entre duas diferenciadas visões de mundo, o que parece estar em jogo é o resgate de adormecidos afetos, quem sabe estremecidos por pontos de vista aparentemente inconciliáveis. Em cartaz no Teatro do Leblon (Sala Marília Pêra), "A carpa", de autoria de Denise Crispun e Melanie Dimantas, chega à cena com direção de Ary Coslov e elenco formado por Ivone Hoffmann e Carolyna Aguiar.
Se por um lado me parece correto afirmar que um povo - qualquer que seja ele - não pode sobreviver sem suas tradições, por outro julgo um tanto perigoso a ferrenha prática de uma ortodoxia com relação a elas, pois isso pressupõe uma imobilidade contrária à dialética da vida. Ao mesmo tempo, trata-se de uma questão delicada: até que ponto as tradições podem ou devem ser mudadas, sem serem descaracterizadas em sua essência?
Mas a peça, como já foi dito, gira mais em torno do encontro afetivo entre mãe e filha - é evidente que ambas sempre se amaram, mas tal amor fora constantemente abalado por suas diferentes posturas. E aqui reside o principal: o que as autoras deste belo, irônico, amargo e finalmente otimista texto sustentam, em última instância, é a possibilidade de entendimento, desde que as partes envolvidas consigam perceber que não existe uma verdade absoluta, que todos os conceitos são passíveis de alguma maleabilidade. Quando a ortodoxia prevalece, o abismo torna-se intransponível.
Com relação ao espetáculo, Ary Coslov impõe à cena uma dinâmica simples e eficiente, totalmente centrada nas relações entre as personagens. E estas são interpretadas de forma irretocável por Ivone Hoffmann (Mãe) e Carolyna Aguiar (Filha), cabendo ressaltar a forte contracena que estabelecem e a verdade com que defendem seus pontos de vista, quase sempre diametralmente opostos.
Na equipe técnica, são de excelente nível a cenografia de Marcos Flaksman, a iluminação de Aurélio de Simoni, os figurinos de Kalma Murtinho e a trilha sonora do diretor.
A CARPA - Texto de Denise Crispun e Malanie Dimantas. Direção de Ary Coslov. Com Ivone Hoffmann e Carolyna Aguiar. Teatro do Leblon. Terça e quarta, 21h.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Esclarecimento

Devido ao meu formidável domínio no que diz respeito a este abominável senhor chamado Computador, por razões misteriosíssimas consegui deletar do blog a crítica de "Corte seco", enquanto me empenhava em enviá-la a uma amiga, a seu pedido. Então, como a mesma está publicada no jornal Folha Zona Sul (Dezembro de 2009), não encontrei outra alternativa a não ser redigitá-la. (LF)


Teatro/CRÍTICA

"Corte seco"
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Qual é o meu lugar?
Lionel Fischer
Como todos sabemos, um dos aspectos mais fascinantes do teatro é sua infinita capacidade de nos surpreender, de nos gerar dúvidas, inquietações, eventuais reflexões passíveis de serem convertidas em atos que transformam nossas vidas, nos facultam um novo olhar sobre nós mesmos e o mundo que nos cerca. No presente caso, estamos diante de um espetáculo que, se por um lado, talvez não preencha todos os quesitos acima mencionados, por outro já seria imperdível "apenas" por nos colocar diante da seguinte e fundamental questão: qual é o meu lugar?
Sim, pois numa época em que as fronteiras entre o público e o privado praticamente desapareceram, em que certezas da véspera se convertem em dúvidas no dia seguinte, em que incidentes de toda a espécie interferem no nosso cotidiano - para o bem ou para o mal, pouco importa - e as relações se tornaram cada vez mais confusas, imprecisas e fugazes, e todas as histórias sofrem imprevistas interferências e não raro se desviam de seu curso natural, como se sentir minimamente confortável em um tal contexto? Qual poderia ser, afinal, o lugar de cada um de nós?
Encerrando a trilogia iniciada com "Conjugado" e "A falta que nos move", agora Christina Jatahy e a Cia. Vértice de Teatro nos mostram "Corte seco", em cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto. Christiane assina a direção e dramaturgia, estando o elenco formado por Cristina Amadeo e Daniela Fortes (integrantes da companhia) e mais os atores convidados Eduardo Moscovis, Thereza Piffer, Felipe Abib, Ricardo Santos, Stella Rabello, Branca Messina, Paulo Dantas e Leonardo Netto.
Tendo como referências o livro "Passagens", de Walter Benjamim, e o filme "Short Cuts", de Robert Altman, além do trabalho de improvisação e construção dramatúrgica do espanhol José Sanchis Sinisterra, Christiane Jatahy oferece ao público uma espécie de mosaico, de furtivos olhares sobre múltiplos aspectos da ralidade, cabendo destacar que os atores decoraram todos os papéis e a ordem das cenas pode ser alterada a cada novo espetáculo, que também possibilita uma grande margem de improvisação, embora a improvisação não seja a principal linha adotada, conforme consta do release que nos foi enviado.
E embora o espetáculo conte com recursos tecnológicos, por sinal muito bem utilizados, como câmeras que mostram as adjacências do teatro ou alguns de seus espaços internos, o que cabe destacar é a unidade conseguida entre forma e conteúdo, e também a progressiva desconstrução de algumas expectativas iniciais. Por exemplo: logo no início da montagem, vemos várias cadeiras nas quais constam informações sobre o papel a ser exercido por aqueles que as ocuparem. Mas logo torna-se evidente a impossibilidade de "papéis fixos", como também a inutilidade de se marcar o chão com fitas adesivas, como se fossem fronteiras a serem preservadas. Nada é fixo, nada pode ser preservado.
E essa sensação, inicialmente apenas um tanto desconfortável, assume conotações cada vez mais inquietantes, pois torna-se literalmente impossível não se identificar com os personagens e seus descaminhos e desencontros - falando apenas em meu nome, devo confessar que, embora tenha amado o espetáculo, quando saí do Sérgio Porto estava tão desnorteado que esqueci onde havia estacionado meu carro, ou por outra, onde havia estacionado o carro de minha namorada, já que no momento não possuo este precioso meio de locomoção.
Quanto aos atores, e mesmo correndo o risco de ser (ou parecer) monótono, vou repetir pela enésima vez: como são bons os nossos intérpretes! Como é comovente ver um grupo de profissionais se entregar com tanta paixão e inteligência cênica à árdua tarefa de materializar na cena conteúdos tão dolorosos, ainda que os mesmos, eventualmente, sejam expressos através do humor. A todos, portanto, agradeço o privilégio de tê-los visto em uma montagem que só desinformados ou invejosos de plantão deixarão de assistir.
Com elação à equipe técnica, Marcelo Lipiani assina uma cenografia tão brilhante como original, com Paulo César Medeiros iluminando a cena com sua habitual competência e sensibilidade. Destacamos ainda as músicas de Rodrigo Marçal e a orientação corporal de Dani Lima, sem dúvida também responsáveis pelo êxito indiscutível do presente espetáculo.
CORTE SECO - Texto e direção de Christiane Jatahy. Com a Cia. Vértice de Teatro. Espaço Cultural Sérgio Porto. Sexta e sábado, 21h. Domingo, 20h.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Teatro/CRÍTICA



"Sade em Sodoma"



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Sarcasmo, virulência e nervosismo




Lionel Fischer




Aristocrata e escritor libertino, Donatien Alphonse François de Sade (1740-1814), mais conhecido como Marquês de Sade, conseguiu o prodígio de desagradar a todos que detiveram o poder em sua época. A monarquia (Antigo Regime) o perseguiu, os revolucionários vitoriosos de 1789 também e mais ainda Napoleão Bonaparte, que o mandou encarcerar várias vezes, sendo uma delas por ter se ofendido com uma sátira que Sade lhe escrevera. Esteve confinado nas prisões de Vincennes e da Bastilha, tendo falecido no hospício de Charenton, onde encenou várias de suas obras tendo os loucos como atores.


Mais conhecido do grande público por sua obra de maior repercussão, "120 dias de Sodoma", Donatien Alphonse escreveu muitas outras, tais como: "Justine", "Juliette de Sade", "Zaloa e suas amantes", "Os estratagemas do amor", "Os crimes do amor", "A filosofia na alcova", "Contos libertinos", "Diálogo entre um padre e um moribundo" e "A crueldade fraternal". Por muitos considerado precursor do surrealismo, até mesmo a psicanálise extraiu de Sade o termo "sadismo", definido como perversão sexual de ter prazer na dor física ou moral dos parceiros ou parceiras.


Mas por que será que um homem, aparentemente só interessado em desvios e perversões, continua sendo tão lido, estudado e muitas de suas obras adaptadas para o teatro e o cinema? Trata-se, sem dúvida, de uma questão de difícil resposta. Em todo caso, estamos aqui diante de "Sade em Sodoma" (Caixa Cultural), adaptação teatral do livro homônimo de Flávio Braga, que fez uma releitura do romance "120 dias de Sodoma". Contando com direção e dramaturgia de Ivan Sugahara, o texto chega à cena com intepretação a cargo de Guta Stresser (Madame Duclos), Tárik Puggina (soldado Mathieu) e dois personagens de apoio, vividos por Edson Santos e Mayara Travassos.

Convertendo a platéia no próprio Marquês de Sade, tudo que aconteceu nos tais "120 dias" é para ele narrado pelos protagonistas, o que não chegamos a entender por quê, já que ele fora o autor da história e portanto a conhecia em seus mínimos detalhes. Seja como for, os espectadores são informados das inimagináveis perversões, crueldades, escatologias, estupros, torturas, assassinatos etc. de que são vítimas jovens sequestrados (de ambos os sexos), todos pertencentes à mais alta aristocracia parisiense. Além deles, uma imensa horda de prostitutas, cafetões e outros representantes da escória são também convocados por quatro amigos poderosos, que objetivam promover, ao longo de quatro meses, algo que faria de um Nero uma criança inocente.

E aqui voltamos à questão formulada acima: qual seria o interesse do leitor nesta bizarra e dantesca sucessão de horrores? E também, como já foi dito, por que tantos estudiosos se dedicaram (e ainda se dedicam) à análise desta obra? Em minha opinião - e, como toda opinião, sujeita a todos os enganos - Sade elegeu a perversão como uma espécie de metáfora das perversões de sua época, por sinal as mesmas de todas as épocas, já que o mundo sempre foi e, ao que parece, continuará sendo dominado pelos que detêm o poder.

Neste sentido, as atrocidades perpetradas no contexto da obra não me parecem muito diferentes, em sua essência, das que são cometidas atualmente com todas as minorias - num passado nem tão remoto, Hitler, por exemplo, decidiu exterminar judeus, ciganos e homossexuais. E se ao invés de orgias optou por câmaras de gás, isto me parece irrelevante, posto que sua finalidade era o exercício de um poder que julgava ilimitado e legítimo. Mas Hitler, naturalmente, era um psicótico, enquanto Sade era um artista. E aqui reside toda a diferença entre ambos.

Com relação ao texto, e apesar da ressalva feita acima no que tange à sua estrutura narrativa, ele é de excelente qualidade, tendo o autor criado dois ótimos personagens, interpretados com apropriadas doses de sarcasmo e virulência por Guta Stresser e Tárik Puggina, sendo corretas as participações de Edson Santos e Mayara Travassos.

Quanto ao espetáculo, Ivan Sugahara prioriza a narrativa, eventualmente enriquecendo-a com passagens dançadas e outras em que os protagonistas comem, bebem e simulam estar a ponto de transar diante da platéia - esta, por sinal, alterna risos com estupefação, afora um nervosismo mais do que justificado.

Na equipe técnica, a correção é a tônica dos trabalhos de todos os profissionais envolvidos neste curioso projeto - Olívia Teixeira (coreografia), Rose Gonçalves (preparação vocal), Nello Marrese (cenografia), Paulo César Medeiros (iluminação), Patrícia Muniz (figurinos) e Nervoso (?) direção musical.

SADE EM SODOMA - Texto de Flávio Braga. Direção e dramaturgia de Ivan Sugahara. Com Guta Stresser, Tárik Puggina, Edson Santos e Mayara Travassos. Caixa Cultural. Quinta, sexta e domingo, 20h. Sábado, 18h e 20h.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Aprendizagem de Memória

Richard Courtney


Lembrar que "William, o Conquistador, venceu a Batalha de Hastings em 1066" ou que "12 x 12 = 144" é um ato de memória. O processo envolvido tem três fases: experiência, retenção e recordação.

Primeira fase: Experenciar (memorizar)

Confiar um fato à memória deve envolver alguma experiência ou atividade. Eu ouço uma nota; eu presencio um acontecimento; eu dirijo um carro. Meus sentidos devem ser ativados de um modo ou de outro antes que o ato de memorização possa se dar. O menino aprendendo a tabuada ou decorando um trecho de um poema irá ler e reler o item, irá recitá-lo e repetí-lo (dominá-lo). Isto não é algo simples ou passivo. Exige tempo e envolve um complexo de atividades resultantes do aprendizado anterior.


Segunda fase: Reter

Devemos reter o item que estamos tentando memorizar durante o intervalo de tempo ocupado com muitas outras atividades, talvez por dias, meses ou anos. Pouco sabemos sobre os métodos de retenção, mas as experiências são retidas provavelmente pela modificação no sistema nervoso (que podem ser de caráter estrutural, quando a retenção visa um tempo maior que apenas uns poucos minutos).


Terceira fase: Recordar (rememorar)

Quando recordamos alguma experiência, nós, efetivamente, estamos atuando. O processo de recordação é uma atividade. Estamos reexperienciando. Se fôssemos incapazes de evocar nossa experiência original (esquecimento) isso se deveria a: (1) memorização inadequada; (2) malogro na retenção - embora isso não seja considerado um aspecto comum; e (3) esquecimento sem malogro de retenção, porque todos experimentamos a súbita recordação de um fato (geralmente anos mais tarde) que julgávamos esquecido.

Devemos observar, de passagem, que há uma correspondência entre o processo envolvido na memória e o processo envolvido na identificação e personificação imaginativas. A memorização baseia-se na experiência sensível, sendo afetada diretamente por dois fatores: significado e repetição. James afirmou:

A maioria dos homens tem boa memória para os fatos vinculados a suas próprias atividades. O colegial atleta que se mantém relapso frente a seus livros poderia nos surpreender com seu conhecimento sobre "recordes" em variados feitos e competições, e pode chegar a ser um dicionário ambulante de estatísticas desportivas. A razão está em que ele, constantemente, revolve essas proezas em sua cabeça, comparando e acumulando-as. Elas compõem para ele não apenas curiosidades, mas um sistema de conceitos - e assim, se impõe. Da mesma maneira o comerciante recorda os preços, o político os discursos e votos de outros políticos, com uma prolixidade que diverte aos de fora, mas que é facilmente explicado pela intensidade com que se dedicam a tais assuntos.

Um fato deve ser significativo para que seja memorizado. Todos nós já experimentamos períodos de "falta de interesse" em guardar qualquer coisa na memória, e isto se deve basicamente a que o material não tinha interesse, valor ou relevância para nós. O jogo e a atividade dramática têm importância direta para nós: são coisas que realmente queremos fazer. A utilização deles, portanto, ajuda consideravelmente o desenvolvimento da memória. Isto é revelado pelo que acontece quando tentamos memorizar algo que não apresenta nenhum interesse para nós (como material non sense ou jogos de palavras desconexos): tratamos de traduzir tal material para termos familiares - relacionando-o com nossa experiência prévia. O jogo dramático é apenas um exercício desse tipo. William James demonstrou que a memorização é mais fácil quando o material a ser apreendido pode relacionar-se com material que já nos é familiar.

Ainda que concordemos com as teorias Conexionista ou Cognitiva, não há dúvidas de que a repetição exerce um importante papel em nossa habilidade de retenção. Mas, para ser realmente eficiente, a repetição deve ser ativa, de algum modo: aquele que aprende deve fazer algo com relação à informação - usando-a de alguma maneira. Por exemplo: ler-recitando auxilia uma memorização mais rápida que a simples leitura, e Hunter afirma que as razões disso são: (1) a necessidade de antever trechos sucessivos da lição assegura que aquele que memoriza está ativamente envolvido na tarefa e não recai em releitura desatenta; (2) deve empenhar-se na recordação do material, isto é, começar a praticar exatamente aquela atividade que é seu objetivo máximo a realizar; (3) a recitação dá àquele que memoriza um conhecimento imediato dos resultados, dando-lhe uma idéia de seu progresso e estimulando-o para um progresso constante.

Este é, naturalmente, um outro nível de "aprender fazendo"; o estudante está exteriorizando o material e fazendo-o "funcionar". Não apenas é mais efetivo recitar o que deve ser aprendido, ao invés de simplesmente lê-lo, mas é mesmo mais efetivo atuá-lo - a prova disto está em que resulta mais fácil aprender o texto de uma peça que textos de poesia lírica.

Mas, a atuação em si ilustra um outro fator importante na memorização efetiva: aprender pelo todo. A psicologia da Gestalt demonstrou que há uma tendência geral da mente de aprender as coisas em relação a outras, e que a habilidade para apender desse modo é geralmente aceita como um sinal de comportamento inteligente. Um ator, memorizando um papel, a princípio, se familiariza com a peça como um todo; ele lê toda a peça primeiro buscando compreender os elementos básicos do enredo, construção, caracterização, e assim por diante. Chega, então, à compreensão de seu próprio papel e a relação deste com as outras personagens, com a situação etc.

No primeiro ensaio, ele "tateia" seu papel, com o texto nas mãos, agarrando-se aos traços mais salientes de seu papel. Principalmente, relaciona o que diz com o que faz: ele poderá dizer um trecho sentado e no seguinte pôr-se de pé - a relação entre a palavra e a ação é a chave do processo de memorização. Essencialmente, a compreensão e a familiaridade com o contorno do todo fornece um contexto de significado para cada uma das partes; propicia, também, uma lembrança imediata do que vem a seguir.

Enquanto que a memorização é bastante auxiliada pelo significado e pela repetição, um fator importante no processo de recordar é a imagem. Quando os órgãos dos sentidos são acionados pelos estímulos apropriados, são conduzidos à percepção. Mais tarde, quando desejamos recordar a percepção "através dos olhos da nossa mente" nos dizem para imaginar, ou formar imagens. Isto é também uma atividade, não algo estático, e há diferenças consideráveis na habilidade das pessoas em compor essas imagens.

A formação visual de imagens parece ser o processo mais comum e mais vívido (como quando nos recordamos de um amigo, pensando na imagem de seu rosto); em ordem de freqüência, viria a formação de imagem auditiva, tátil, cinestésica, gustativa, orgânica e olfativa. Embora cada um de nós utilize todos esses métodos na formação de imagens, não usamos o mesmo método para cada imagem específica (e isso pode, casualmente, criar dificuldades para professores que, com uma classe, utilizam um tipo de imagem quando alguns alunos podem necessitar o uso de outro método de formação de imagem).

Uma ou duas outras diferenças individuais são importantes. É quase certo, por exemplo, que nossa habilidade na formação de imagens varie de acordo com aquilo que estamos tentando recordar: funciona melhor quando estamos tentando recordar um objeto concreto (um rosto, uma cidade) do que de idéias abstratas, argumentos ou decisões. Isto pode estar relacionado com o fato de que a conformação de imagens parece ser mais vívida com crianças do que com adultos. E, também, pessoas que estão muito empenhadas, em seu cotidiano, com o pensamento abstrato, parecem apresentar uma habilidade média inferior na formação de imagens. Mas, há tantas exceções que isso está longe de ser uma regra.

Não há dúvida quanto à importância da formação de imagens para o processo de memorização. A eficácia de bons recursos visuais no ensino é uma evidência; facilita o aprendizado e fornece um referencial que pode ser recomposto em imagens posteriormente. Idéias tais como pensar no passado, no futuro, ou possíveis objetos e eventos necessitam do amparo de imagens. Muitas pessoas empregam, também, imagens de palavras, números e outros símbolos no pensamento matemático ou outro tipo de pensamento abstrato.

Não sabemos ao certo se a capacidade de formação de imagens pode ser incrementada, mas sabemos que a habilidade em recordar imagens pode ser estimulada por vários fatores: objetivo e interesse; freqüência com que se prolonga a recordação; a força com que a experiência original criou a imagem. Esta última, naturalmente, pode ser afetada de forma direta pelo jogo dramático: de certo modo, "viver um fato é conhecer o fato". Mas o jogo imaginativo é calcado na formação de imagens e, assim, a freqüência de tal experiência se relaciona com a freqüência da recordação; se, como professores, dirigimos e canalizamos o jogo das crianças de modo a que se relacionem com uma experiência valiosa, as crianças recordarão imagens valiosas.

Com propósito e interesse retornamos mais uma vez à motivação, que, na medida em que o jogo é um fator muito importante na atitude da criança, é a razão mais poderosa para o uso da imaginação dramática no aprendizado.
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O presente artigo, aqui um pouco resumido, foi extraído do livro "Jogo, teatro e pensamento", de Richard Courtney/ Editora Perspectiva/1968.