El
dia que me quieras
de José
Ignácio Cabrujas
Tradução e adaptação
de Antonio Mercado
PERSONAGENS:
(por ordem de entrada em cena)
Luíza Ancízar
Pio Miranda
Elvira Anzízar
Matilde Ancízar
Plácido Ancízar
Alfredo Le Pera
Carlos Gardel
1º ATO
(A sala e o pátio das Ancízar ao meio-
dia. Um relógio soa e é a única exatidão do local. O resto é árabe e
fantasioso: jarrões dourados, borboletas de louça, pastorzinhos pálidos, lótus,
bambus e quinquilharias. Maria Luíza está sentada num sofá austríaco. A seu
lado, Pio Miranda observa o ralo do pátio)
Maria Luíza - E Stalin?
Pio - Stalin reúne todos eles no grande salão de conferências, à esquerda da
porta principal, como quem vai para a sala de jantar de Ivan, o Terrível.
Stalin aguarda e entra Bukárin, entra Zinoviev, entra Kamenev e Trotski e os
velhos bolcheviques, tensos, compenetrados, solenes. Rakovski tosse.
Maria Luíza - Quem é Rakovski, Pio?
Pio - Rakovski é o comissário da Armênia, conhecido como o “Grande Urso”.
Rakovski tosse. Stalin olha para ele. Rakovski não tosse. Stalin se levanta,
sombrio, essencial, profundo. E é aquele momento de angústia. E Stalin diz:
“Camaradas: Vladimir Ilich Lênin acaba de falecer”. “O quê?”, diz Kamenev, um
quê sufocado, terrível. E a cabeça se move...
Maria Luíza - A cabeça de quem?
Pio - A cabeça de Kamenev. Bukárin se levanta e vai até a famosa janela da
czarina, como era chamada no tempo da opressão. Zinoviev olha para ele. Stalin
olha para ele e Trotski pergunta: “O que o camarada Bukárin está fazendo na
famosa janela da czarina?”
Maria Luíza - Estava chorando.
Pio - Estava chorando. Os grandes olhos de Bukárin repletos de lágrimas.
Lênin partira para sempre naquele dia 21 de janeiro de 1924. Então Stalin
baixou a cabeça, pela única vez até hoje, e disse: “Camaradas, como é que se
preenche um vazio?”
Maria Luíza - Como é
que se preenche um vazio?
Pio - Aí entra Alliluyeva, a mulher de Stalin, com o samovar da tarde.
Maria Luíza - Ah, nada como um chá de samovar! Será que um dia
vamos ter um, Pio?
Pio - Acho que sim. Senão, eles deixam a gente usar o samovar do colcós.
Maria Luíza - Tem neve lá, não é, Pio? Deve ser tão frio...
Pio - No começo. Depois a gente acostuma.
Maria Luíza - Vou falar com a Elvira hoje.
Pio - Por que não esperamos a resposta de Romain Rolland?
Maria Luíza - Ela não sabe quem é Romain Rolland. A gente chega em
Moscou e fala a verdade. Para que precisamos de uma carta de Romain Rolland? Em
Moscou é diferente, não é? Não tem tanta burocracia como aqui. A gente vai ao
Kremlin e fica lá junto ao túmulo de Lênin. Acaba chegando alguém. Chega o
Rakovski, o Zinoviev, o Kameniev, alguém. Quem sabe o próprio Stalin. Então a
gente bota as cartas na mesa: “Olha, Stalin, nós viemos de Caracas, Pio Miranda
e Maria Luíza Ancízar, muito prazer”. O que pode acontecer, Pio?
Pio - Ele não vai entender.
Maria Luíza - Por que não?
Pio - Porque o camarada Stalin não fala espanhol.
Maria Luíza - Talvez o Zinoviev ou o Kameniev.
Pio - São pessoas muito ocupadas, Maria Luíza. Você não pode ir atrás deles
assim, sem mais nem menos, e dizer que está chegando de Caracas.
Maria Luíza - Por que? Eles não sabem onde é Caracas?
Pio - Claro que sabem. O camarada Stalin tem uma visão global do planeta!
Não é esse o problema. E além do mais, é impossível entrar num país desse
jeito. Existem alfândegas. Se existem aqui, neste equívoco da História, como
não vão existir na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas? Foi justamente
por isso que escrevi a Romain Rolland. Porque é um humanista, unha e carne com
o camarada Stalin e fala grosso na Internacional Socialista. Entrar no Kremlin
como quem entra na casa da sogra, não é a mesma coisa que levar uma carta de
Romain Rolland dizendo: “Apresento-lhes Pio Miranda e Maria Luíza Ancízar, de
Caracas, que aí vão com a intenção de participar da vida colcosiana, dentro do
plano quinquenal, etc, etc. (Entra Elvira
Ancízar. Chega da rua)
Elvira - Matilde já chegou?
Maria Luíza - Ainda não.
Elvira - Você viram as faixas? Meu Deus, é ver todas aquelas faixas e bandeiras e depois morrer!
Não há mais uma flor na cidade inteira. Esta noite o Municipal vai ser puro
perfume de magnólia. E ele veio de preto, imaginem! Mas nem uma gota de suor no
corpo inteiro. Aquela testa limpa e todo mundo comentando: “Ele não sua, ela
não sua!”
Pio - Lênin também não suava.
Elvira - Lênin está embalsamado. (Entra Matilde)
Matilde - Já sabem?
Elvira - Que ele não sua?
Matilde - Não sua!
Elvira - Acabei de contar.
Matilde - E a história do trem?
Elvira - O que é que houve no trem?
Maria Luíza - Matilde, depois você conta. Agora eu tenho que
conversar com a Elvira.
Elvira - O que é que houve no trem?
Matilde - Ele subiu no trem. Era um vagão só para ele. O povo
apinhado, assim de gente, pedindo uma canção.
Elvira - Selvagens.
Matilde - Então ele sorri, mostra a garganta e diz: “Esta
noite, esta noite”. Aliás, aquela história de ouro no dente é mentira. Os
dentes são perfeitos, uma dentadura impecável.
Pio - Quem viu a dentadura dele?
Matilde - Vox populi.
Elvira - É que esta gentinha não cansa de inventar bobagens.
Faz anos que eu repito: é mentira isso do dente, como é mentira a história do
bordel da mãe dele, é calúnia que o pai era maricas, como é mentira isso do Uruguai,
a pior mentira de todas!
Pio - E por que ele não pode ser uruguaio?
Elvira - Porque está na cara que não é uruguaio. Ele irradia o
Mediterrâneo, Toulouse, no tom da voz, no vinco das calças, no talhe do paletó,
e você logo vê: isso não é uruguaio.
Pio - O Uruguai é um país culto.
Elvira - Mas a duras penas. Tem muito pampa. E além disso, o
nome: Gardel, que em francês arcaico quer dizer “guardião”.
Matilde - Queriam
arrancá-lo pela janela do vagão. E ele dizia: “Acabei de chegar de uma longa
viagem e gostaria de me transformar em dez mil pessoas para apertar a mão de
todos vocês e abraçar o general Gómez”.
Maria Luíza - Matilde, eu vou embora.
Pio - Quanto é que estão pagando a ele?
Elvira - E que interessa quanto estão pagando? Não estão
pagando nada. Quanto é que estão pagando àquele russo de bigode, o Stalin?
Pio - Trezentos rublos. E ele
devolde duzentos ao comitê central. O dinheiro não é fundamental na União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Elvira - Meus parabéns.
Matilde - Daí a
locomotiva se pôs em moviento, então ele fechou os olhos e cantou “Amores de
estudiante” e quando disse “amores”,
ele olhou para mim!
Maria Luíza e Elvira -
Como é?
Matilde - Eu sei que olhou para mim. Ele, na sua janela do
trem, e eu ali. Mas eu senti que “Amores” era para mim!
Elvira - Ele veio sozinho?
Matilde - Com o sr. Le Pera.
Elvira - E como é esse Le Pera?
Matilde - Não vi direito. Era tanta gente.
Elvira - E eu na agência do correio, vendendo selos como um
judeu errante. Vinte anos destacando os selos no picote exato, sem faltar um só
dia ao trabalho. (A Pio) E você falando de marxismo. Marxismo é botar
uma bomba no correio e ficar na esquina vendo cair do céu aquela chuva de
tijolos com pedaços de carne do superintendente Bartorelli.
Pio - E quem disse que não?
Elvira - Você e a sua Internacional Comunista! Onde está essa
Internacional? Não a vejo em lugar nenhum. Vejo é o Bartorelli me negando a
licença para ir à estação. Isso é que é a exploração do homem pelo homem, no
guichê do correio! Gardel chega, “Mi Buenos Aires Querido”, “Mano a Mano”,
“Melodía de Arrabal”, “Volver”, “El Día Que me Quieras”, o supra-sumo do tango,
presidentes que dançam tango, reis que dançam tango, gente de verdade lá do
exterior, Gardel, Le Pera, a Broadway, e eu picontando selos na agência do
correio. O mundo é uma merda.
Maria Luíza - Elvira!
Elvira - É hoje o dia. Disseram: Gardel vai chegar! E eu
disse: é mentira. Vai chegar pra que? Por que ele precisa vir? E agora ele está
aqui. A gente quer ver a História e acaba sempre ouvindo.
Maria Luíza - Mas o que é que o Pio tem a ver com...
Elvira - E o Pio já teve alguma coisa a ver com o quê? Eu
gostaria muito que um dia você me explicasse com o que é que o Pio tem a ver.
Quando mamãe estava agonizando, na cama, antes de dar o último suspiro, me
disse, como irmã mais velha: “Elvira, ou esse homem se define de uma vez por
todas com Maria Luíza, de véu e grinalda na Santa Madre Igueja, ou eu não vou
ter sossego no túmulo”.
Pio - Elvira, acho que já expliquei mais de mil vezes as razões de minha
conduta nesta casa.
Elvira - Você é o rei da explicação. É capaz de explicar até
uma valsa a um surdo, da introdução ao tcha-tcha-bum do último compasso.
Maria Luíza - Elvira...Pio e eu vamos embora hoje.
Matilde - Para onde, tia Maria Luíza?
Maria Luíza - Para um colcós na Ucrânia.
Matilde - O que é um colcós na Ucrânia?
Maria Luíza - É um lugar no campo, uma espécie de fazenda coletiva.
Matilde - Um lugar russo?
Maria Luíza - Pio e eu estamos esperando uma carta de Romain
Rolland, o autor de “Jean-Christophe”.
Elvira - Mas quem é Romain Rolland?
Pio - Há um mês escrevemos para ele, um famoso escritor francês, muito
admirado não só pelas suas obras, mas também por sua luta em favor da paz e da
amizade entre os povos.
Elvira - E o que é que um escritor francês tem a ver com a
vida da minha irmã?
Maria Luíza - Elvira...eu quero vender a casa.
Elvira - Vender nossa casa? A casa dos Ancízar? A quem? Ao
Romain Rolland?
Pio - Não. Romain Rolland mora em Paris e não tem o menor interesse nesta
casa.
Maria Luíza - Vender a casa a quem pague um preço justo.
Elvira - E quem vai pagar um preço justo por esta casa? E o
que vamos fazer com Matilde?
Matilde - Tia Maria Luíza, por que você tem que ir para tão
longe, com tanta agricultura por aqui?
Elvira - Essa é a terrível conseqüência dos namoros longos. As
pessoas ficam ociosas e onanistas de tanto pensar e cismam de acabar a vida na
Ucrânia ou em qualquer país de camelos. Dez anos dessa baboseira comunista e
você já não tem lei, nem respeito, nem família! Vender a casa! É a única coisa
que lhe vem à cabeça!
Maria Luíza - Acho bom te lembrar, Elvira, que na mesma cama e na
mesma agonia, mamãe falou que a casa seria vendida quando uma de nós
precisasse. E não admito mais nenhuma ofensa à pessoa do meu noivo. Porque se
eu quiser passar o resto da minha vida com este homem nas estepes soviéticas, é
uma decisão que me pertence, como pertence a vida a quem já tem trinta e quatro
anos.
Pio - Maria Luíza...
Maria Luíza (À Elvira) - Não
estou botando você para fora de casa.
Elvira - Era só o que me faltava.
Maria Luíza - Mas decidi tentar a vida em outro lugar e ninguém vai
me impedir!
Pio - Quero esclarecer que essa
é uma decisão de Maria Luíza e que de forma alguma penso em tocar num único
rublo de sua herança!
Elvira - Não acredito numa única
palavra do que você diz. Porque, pra começo de conversa, a idéia de ir para a
Ucrânia é sua. Faz trinta e quatro anos que conheço minha irmã, desde a água
fervendo na hora do parto até hoje e ela nunca me falou de colcós na Ucrânia,
nem de bolcheviques, nem da revolução de outubro. Esse interesse pelo
estrangeiro só começou depois que você chegou com essa lenga-lenga de
materialismo.
Pio - Lenga-lenga? Eu partilho as minhas idéias com a minha camarada!
Acredito num mundo onde se partilham as idéias com a camara mulher! E me oponho
às braguilhas solitárias e ao macho quinzenal, em nome da humanidade nova! O
dinheiro de Maria Luíza não tem nada a ver com este assunto. Planejei com ela a
possibilidade de irmos para a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
porque quero que meus filhos nasçam dentro da verdade proletária e não nesta
lata de lixo do imperialismo. Mas em nenhum momento - juro pela foice e o
martelo e pela imaculada Rosa de Luxemburgo - me passou pela cabeça aceitar um
único rublo de propriedade de Maria Luíza!
Matilde - Mas por que não falamos disso amanhã?
Elvira - Matilde, já para o quarto.
Matilde - Gardel chegou! Vai cantar no Municipal esta noite!
Será que vocês não entendem? (Entra
Plácido Ancízar)
Plácido - Já chegou ao Hotel Majestic!
Elvira - Quando?
Plácido - Onze malas! Há uma multidão no lobby do hotel: o
governador, o reitor, a Academia de História e até o arcebispo, furioso porque
levou um beliscão na bunda. E o pessoal explicando: “Não senhor, foi sem
querer, não estamos em Sodoma”.
Matilde - E o Gardel?
Plácido - No banheiro, com Le Pera. Quando nós entramos no
hotel, o sr. Pimentel e eu, representando a empresa, a polícia não queria nos
deixar passar. Aí o Pimentel disse: “O senhor Gardel vai cantar no ‘meu’ teatro
esta noite. O sr. Gardel está me esperando”.
Maria Luíza - Pio, vamos lá fora.
Plácido - Que é que houve?
Maria Luíza - Nada.
Plácido - Mas eu trouxe as entradas!
Maria Luíza - Esta noite eu não vou.
Plácido - Por que?
Elvira - Maria Luíza!
Maria Luíza - Não vou e pronto!
Pio - Faço constar que não influí na decisão dela!
Matilde - Tia Maria Luíza!
Maria Luíza - Venda a
minha entrada. Não estou com vontade de ir.
Plácido - Mas eu tive que suplicar ao seu Pimentel para
conseguir as três entradas!? O que é que eu vou dizer a ele?
Maria Luíza - Nada. Dê a um pobre. Ou então venda. Vamos, Pio.
Pio - Pelo menos você pode
ganhar a mais valia. Boa tarde. (Saem
Maria Luíza e Pio)
Plácido - Tia Maria Luíza! O que é que eu faço com a entrada?
Elvira - Deixa ela. Levantou de ovo virado. Coisas de mulher.
Plácido (Saindo) - Tia Maria Líza! Consegui para você na sexta fila! Você tem que ir!
Matilde - Tia Elvira.
Elvira - Melhor não se meter.
Matilde - Podíamos ir ao Majestic.
Elvira - Para quê?
Matilde - Para ver.
Elvira - Vender a casa...você ouviu?
Matilde - Tia, por que você não fala com ela?
Elvira - E ela vai me responder o quê? Ucrânia! União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas! Nada mais interessa, porque agora ela é
comunista. Como se soubesse o que é um pobre, como se tivesse trabalhado algum
dia! Hipócrita!
Matilde - Tia Elvira...
Elvira - Mil vezes hipócrita!
Matilde - Mas não é a felicidade dela? Porque eu a vejo tão
leve, como se flutuasse no ar.
Elvira - Eu conheço a felicidade das mulheres. Ela não
continua virgem? Então que besteira de felicidade é essa? A felicidade da Santa
Rosa de Lima, que ficava contente quando via um canário?
Matilde - Mas como tem certeza de que ela é virgem, tia?
Elvira - Porque esse sujeitinho é incapaz de ser macho em
território nacional. Até a biologia dele só funciona na União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas. Pois ele não falou da imaculada Rosa de Luxemburgo?
Quem garante que essa tal de Rosa de Luxemburgo queria mesmo ser imaculada?
Matilde - Quem é Rosa de Luxemburgo?
Elvira - Sei lá! Felicidade...Quando me casei com Raimundo
Galarraga, tive pelo menos uma alegria que foi um pouco além dos canários de
Santa Rosa. Era químico, o Raimundo. Ou pelo menos dizia que era químico. Na
verdade, fabricava um perfume horrendo, enjoativo, que as mulheres da zona
compravam aos litros.
Matilde - E fugiu para Trinidad.
Elvira - Com uma negra chamada Jenniffer. Inventou que o
governo o perseguia e durante uns três anos eu fiquei mandando dinheiro para
ele, lá para o número 18 da Caimán Street. Quando descobri a verdade, tive
vontade de me deitar para sempre com um círio nas mãos, de tão santa e tão
burra. Felicidade...um mínimo de decência. Isso é felicidade.
Matilde - Como naquele filme do Gardel, “Em día que me
quieras”, quando Rosita Moreno pega tuberculose galopante e o lenço se enxarca
de sangue cada vez que ela tosse, e a amiga dela se preocupa e diz: “Aura, o
que é que você tem? O que está acontecendo com você” e Rosita Moreno responde:
“Nada, nada”, com uma voz de navio que se afasta e de horizonte que se desfaz.
“Nada, nada” e a amiga de Rosita Moreno, desesperada porque o lenço está
molhado de sangue, implora que ela conte a verdade e diga ao Gardel que é
sangue, sim; que é agonia e cruz e calvário...lembra, tia Elvira?
Elvira - Sim.
Matilde - E a Rosita Moreno faz de tudo para que ele não
perceba.
Elvira - É, era assim mesmo. Mas por que?
Matilde - Um ano depois, Gardel volta àquela casa. E vê os
móveis cheios de pó e o colchão enrolado no canto.
Elvira - Nunca reparei no colchão.
Matilde - É que nessa hora ele cantava “Sus ojos se cerraron”.
Elvira - “Por que tus alas...” Com
que vestido você vai hoje à noite?
Matilde - O branco de lacinhos azuis. Era um sacrifício tão
grande...como se Rosita Moreno fosse uma pomba que vai virar canja...
Elvira - Você devia ir de preto. Que mania de usar lacinho e
bolinha o tempo todo! Você já tem 25 anos!
Matilde (Cantando) - “...quise olvidarla y más pudo la
muerte”.
Elvira (Chorando) - É “obrigarla, não olvidarla”. Taí o
disco! (Sai para o quarto. Matilde aciona o gramofone e se escuta “Sus ojos se
cerraron”. Entra Plácido)
Plácido - Ele está aqui, Matilde.
Matilde - Já deve ter saído do banheiro, não é?
Plácido - Que banheiro?
Matilde - Você não disse que ele tinha se trancado num banheiro
com o Le Pera?
Plácido - Sim, mas depois saiu.
Matilde - E o que eles foram fazer lá? Mijar?
Plácido - Falei
com ele, Matilde.
Matilde - Onde?
Plácido - Na cozinha do Majestic. O seu Pimentel e eu entramos.
Ele ficou me olhando e disse: “Como as pessoas daqui são estranhas”.
Matilde - Assim mesmo, Plácido?
Plácido - Desse jeito.
Matilde - “Como as pessoas daqui são estranhas”. E que mais?
Plácido - Aí eu disse: “Olhe, Gardel, o sr. Pimentel aqui, como
empresário, e este seu servidor, queremos lhe perguntar se está bem acomodado”.
Matilde - Ele é alto, Plácido?
Plácido - Matilde: quando o vi, minha virilidade teve um
choque. Ele é como nos filmes e tem uma espécie de luz que se irradia dele.
Matilde - E o le Pera?
Plácido - Le Pera no meio das panelas, vigiando, provando o
molho, mordiscando. Foi aí que eu lhe disse: “Olhe, Gardel, já que está bem
acomodado, talvez queira verificar as instalações do teatro, o camarim, as
coxias, as cortinas, o telão pintado, a táboa que range, o microfone, os
alto-falantes. Porque me deu uma bruta vergonha de tudo, Matilde. Pimentel,
mudo. As cozinheiras do Majestic, como se estivessem vendo um fantasma! Aí o
Gardel me disse: “Como é o seu nome?” E eu respondi: “Plácido Ancízar, neto do
general Ancízar”. “Plácido Ancízar”, respondeu ele, “se você acha que está tudo
bem, para mim está tudo bem”. E eu senti a História Universal do ser humano,
Matilde, desde o massacre de Tróia até a chegada de Colombo. Era como se ele
devolvesse o meu nome embrulhado em cultura!
Matilde - “Se você
acha que está tudo bem, para mim está tudo bem”. (Entra Pio)
Pio - Matilde, onde está Elvira?
Matilde - Ela sentiu-se mal e foi para o quarto, Pio. Por que
você não deixa para falar com ela amanhã, depois do espetáculo?
Pio - Para mim, Gardel não é um divisor de águas da História.
Plácido - Mas é um homem de idéias avançadas, um homem do povo.
Com oito anos já vendia mate nas ruas de Montevidéu. Tenho certeza que ele
simpatiza com a Internacional Comunista.
Pio - Matilde, diga a Elvira que preciso falar com ela e que Maria Luiza
está lá na calçada me esperando.
Matilde - Chegou a carta de Romain Rolland? Já vou, já vou. (E sai. Plácido guarda o disco de Gardel)
Plácido - Vai mesmo levá-la embora, Pio?
Pio - Já me viu alguma vez forçando
sua tia nesta casa?
Plácido - Eu compreendo os ideais, Pio. Entendo que o pobre
sofre e se fode. E sei que existe gente que tem demais e gente que tem de menos
e que a humanidade precisa de uma reviravolta, de umas cabeças cortadas, uma
revolução geral! Tudo isso está gravado na minha cabeça, Pio, e também a mais
valia desse negócio do Pimentel, que bota o capital e me rouba o trabalho, e
mais as cinco leis da dialética e o desvio de Trotsky, o imperialismo e a luta
de classes. Eu não era nada, Pio, antes de você me dar essa luz. Hoje, vejo o
Pimentel no escritório e penso: Ah, Pimentel, e me preparo, na moita, para o
dia da coisa. Quando Pimentel me vir entrando no escritório, em 1947, com a
metralhadora na mão.
Pio - Como é que você sabe que vai ser em 1947?
Plácido - Sei lá. Sempre achei que ia ser em 1947.
Pio - Vamos colocar a bandeira vermelha no capitólio.
Plácido - Coma foice e o martelo. Stalin também virá, não é?
Pio - O camarada Stalin virá nos visitar.
Plácido - Como Gardel.
Pio - Nunca se verá tanta gente em Caracas. Nessa manhã, vamos nos encontrar
em frente ao congresso e se me for dada a honra, vou te entregar o cordel da
bandeira vermelha para que você mesmo a hasteie no mastro.
Plácido - Sério? (Entra
Elvira)
Elvira - Matilde está te chamando
na cozinha, quer mais detalhes do Gardel.
Plácido - Elvira, diga a ele para te explicar o dia da
bandeira, para falar de 1947. (E sai)
Pio - Desculpe ter discutido e peço desculpas.
Elvira - Não há porquê.
Pio - Pedi a Maria Luíza para vir comigo hoje mesmo. Vamos procurar um lugar
para ficar e depois vamos embora.
Elvira - Me avise para onde devo mandar a cama dela!
Pio - Não me interessa a cama de Maria Luíza, nem seus pertences.
Elvira - Muito me alegra.
Pio - Agora faça o favor de me ouvir, porque vou falar deste assunto pela
última vez. Neste meus quarenta e tantos anos de vida já fui professor
primário, tipógrafo, secretário de um comprador de esmeraldas, espírita,
seminarista, rosacruz, maçon, ateu, livre-prensador e comunista. E agora vou
lhe explicar porque sou comunista! Quando era menino, minha santa mãe,
Ernestina, viúva e enfermeira aposentada do Hospital dos Leprosos, se enforcou
no quarto. E sabe como ela se enforcou? Empilhou no chão Os Miseráveis, O Conde de
Monte Cristo, A Dama das Camélias, O Crime do Padre Amaro e uma edição ilustrada da Bíblia. A
desgraçada pulou da pilha de livros e não me deixou nem uma merda de bilhete
explicando por quê. Simplesmente se atirou do alto do melodrama romântico com
uma fúria inexplicável. Hoje até parece piada e eu mesmo já me peguei rindo, às
vezes, ao contar o caso. Mas desde esse dia passei a ter medo! Fazia xixi na
cama de puro medo! Não conseguia atravessar o pátio depois das onze, de medo de
encontrá-la debaixo do limoeiro! Você vai perguntar: medo de quê, porra? Medo
de que ela me explicasse por quê tinha feito aquilo. Medo de acabar na mesma
viga, debaixo do mesmo teto. Li todos os livros daquele patíbulo, procurando
uma explicação qualquer! Páginas e páginas...e nada! Entrei para o seminário
arquidiocesano e comecei a me masturbar todas as noites. Um dia me pegaram com
a imagem de Santa Rita. E me tacharam de louco e de pocesso! Então deixei de
acreditar em Deus. Casto, como é que eu podia acreditar em Deus, se a imagem de
Santa Rita me provocava? Você não percebe que me expulsaram da vida?
Elvira - Bendito seja o Misericordioso.
Pio - Não existe um Senhor Misericordioso! Você está no mundo com suas mãos,
com sua língua! Eu podia lhe dizer que sou comunista pelo fígado de Marx e pela
cabeça de Engels! Mas não: sou comunista por causa do que disse a cozinheira da
pensão onde mamãe morreu! Sabe por que mamãe se enforcou? Porque cortaram o
orçamento do Ministério da Saúde e houve um erro na lista dos pensionistas! Um
mês e meio sem dinheiro! Morreu de vergonha! E então eu me perguntei: onde
estão os incendiários desta sagrada merda?
Elvira - Acho que estou com enxaqueca. Diga a Maria Luíza para
entrar. Não tem nada o que fazer na calçada.
Pio - Às vezes me dá vontade de sair correndo e não voltar nunca mais.
Fundar um colcós na Guiana e ficar mudo para sempre.
Elvira - Quer terminar o noivado com Maria Luíza?
Pio - Não sei. Honestamente, não sei.
Elvira - E a carta do Romain Rolland?
Pio - Ele não vai responder.
Elvira - Como é que você sabe?
Pio - Nunca mandei a carta.
Elvira - Judas.
Pio - Não sei nem onde mora Romain Rolland. E mesmo que soubesse, que
interesse ele pode ter nisso?
Elvira - E minha irmã?
Pio - Venho buscá-la esta noite.
Elvira - E vão para onde? Para a pensão Bolívar?
Pio - Acho que nasci cinquenta anos antes do que devia. Ou quem sabe me
extraviei do mundo. Às vezes olho o mapa da Austrália só porque é longe como o
diabo. E fico pensando que lá deve existir um outro como eu, um vendedor de
soluções, um falsificador. Me aproximo de estranhos e cinco minutos depois
estou explicando alguma coisa. Como se tivesse pena deles. As pessoas ficam sem
graça e em vez de falarem, eu mesmo respondo, explico e reparto pedaços de
mundo. Com a única intenção de que me perdoem. E tenho vontade de gritar: que
merda de vida vocês levam, só porque não nasceram um pouquinho mais para lá!
Ninguém está me pedindo explicações! Ninguém se interessa por elas, e eu peço
perdão por ser testemunha dessa imbecilidade toda! Foi assim também com Maria
Luíza. “O que vamos fazer, Pio? Quando partimos, Pio? Quando vamos casar, Pio?”
E eu fechei os olhos e me vi num beco sem saída. Então disse que ía escrever
uma carta ao Romain Rolland, para que ela pensasse que ele era a saída do beco
sem saída. Romain Rolland falaria com Stalin e Stalin era o colcós de beterrabas
na Ucrânia. Ridículo, não é?
Elvira - Vivemos tão mal, Pio, com as samambaias e os
canários, e o crucifixo atrás da porta. Vivemos tão mal...(Entra Matilde. Pôs o vestido branco com lacinhos azuis)
Matilde - Que tal?
Elvira - Está um doce.
Matilde - E a tia Maria Luíza?
Pio - Vou chamá-la. (E sai)
Elvira - Maria Luíza vai, sim, e vamos ter uma grande noite.
Daqui a cinquenta anos, quando eu estiver morta, continuará sendo uma grande
noite...(Elvira começa a cantar o refrão
de “Cuesta abajo”. Matilde junta sua voz à dela. A voz de Gardel faz-se ouvir
na primeira estrofe. Maria Luíza e Pio entram, juntando-se ao coro)
Matilde - Nós três juntas, hoje à noite, na sexta fila do
Municipal, ouvindo Gardel cantar “Cuesta abajo” ao vivo! Eu não acredito! (Da rua vem o som de foguetes que anunciam a
chegada de Gardel) Foguetes! Plácido, Plácido! (Sai para a rua)
Elvira - Por que não vai ver os fogos, Pio? Quem sabe a
revolução não é também um som? Enfim, esta noite você vai com a Passionária
para a pensão Bolívar. Não esqueça de me dar o endereço, para quando chegar a
carta de Romain Rolland.
Pio - Às vezes o correio demora.
Elvira - A culpa é do Bartorelli. Mas tudo isso vai mudar
quando hastearem a bandeira vermelha no capitólio.
Pio - Em 1947.
Elvira - Pois é.
Maria Luíza - Que é que há com vocês dois?
Elvira - Nada. Conversamos e nos desculpamos. Todos nós temos
os nossos problemas.
Pio - Volto à noite, Maria Luíza. Depois do show. (Pio sai)
Maria Luíza - Tinha que ser hoje.
Elvira - Não diga nada e me dê um abraço.
Maria Luíza - Minha irmãzinha querida. Bom...não vai ser por muito
tempo. Uns sete, oito anos, só.
Elvira - É.
Maria Luíza - E quem sabe você...
Elvira - O que?
Maria Luíza - Dá uma jeito de ir.
Elvira - Tão longe?
Maria Luíza - Eu economizo e te mando a passagem.
Elvira - Vamos ver.
Maria Luíza - É bonito lá. Tem campos de beterraba e programas
culturais. Uma vez por ano Stalin
distribui a medalha do trabalho e as pessoas se reúnem na sede do colcós.
Elvira - Maria Luíza: como é que você vai fazer para cultivar
campos de beterraba? Você nunca plantou um nabo!?
Maria Luíza - Eu aprendo. Também não é tão difíícil assim. Eles dão
as sementes e a gente enfia na terra. Com o tempo elas crescem.
Elvira - Bem, afinal...é a sua vida, não é?
Maria Luíza - Que é que eu vou fazer, se ficar aqui? Visitar o Pio
na cadeia?
Elvira - Nem pensar.
Maria Luíza - Aprendi a escutar a voz dele, seus rompantes, sua
ternura, quando quero saber alguma coisa, ele me explica. E já houve tantos
silêncios depois de suas palavras...
Elvira - Eu sei como é.
Maria Luíza - Sentamos sempre neste sofá.
Elvira - Você tem que levar um sobretudo. Faz um frio danado,
lá.
Maria Luíza - Não sei da revolução, Elvira. Sei de mim. E às vezes
é maravilhoso saber de mim. É incrível como fui me descobrindo, a cada dia. Às
vezes penso que ele não vai voltar e me dá um medo. Mas ele vem todos os dias,
às onze e meia, sempre como um intruso, envergonhado pelo almoço, dizendo que
não quer incomodar. Ele nunca me tocou. Você acredita? Na verdade, não temos
nada para recordar. Vivemos para o dia em que haverá justiça e o mundo
pertencerá a todos. (Entra Le Pera)
Le Pera - Desculpem. A porta estava aberta.
Elvira - O que é que o senhor deseja?
Le Pera - É aqui que mora o sr. Plácido Ancízar?
Elvira - Sim.
Le Pera - Carlos! Chegamos! É aqui! (Entra Gardel)
Elvira - Desculpe, mas quem é o senhor?
Gardel - Boa tarde. Meu nome é Gardel.
FIM DO 1º ATO
* * *
SEGUNDO ATO
(A sala e o pátio das Ancízar à meia-noite. Elvira acende a luz da
sala. Maria Luíza e Matilde entram junto com ela. Vêm do Municipal)
Matilde - É que não existem palavras para contar como foi! Que
apoteose! (Canta alto) “Barrio,
barrio, que tenés el alma inquieta de un gorrión sentimental”.
Maria Luíza - Matilde, cante mais baixo.
Matilde - Por quê? Quero que o mundo inteiro ouça! Quero que
todos acordem! (A berros) “Viejo
barrio, perdoná si al evocarte, si me planta un lacrimón, que al rodar en tu
empedrao, es um beso prolongao, que te dá mi corazón”. Gente, que exagero de
homem!
Maria Luíza - Ficou maluca.
Elvira - Agora é que eu quero ver a cara do Bartorelli! Amanhã
só vou chegar no guichê às onze. E quando aquela cavalgadura me perguntar por
que me atrasei, vou dizer: lamento muito, Bartorelli, mas ontem Carlos Gardel
esteve em minha casa, e há certos compromissos que nos obrigam a um pequeno
atraso! Não creio que este acidente burocrático prejudique a eficiência das
comunicações nacionais!
Maria Luíza - Acho que não temos taças suficientes.
Elvira - Por que? Só vem ele e o Le Pera.
Maria Luíza - E se ele convidar mais alguém?
Matilde - Ele foi claro e límpido quando entrou por esta porta
às dua e meia da tarde, antes do meu desmaio. (Citando Gardel) “Dona Elvira”.
Elvira - “Dona Elvira, distinta
senhora”.
Matilde - “Poderia eu ter a honra”.
Maria Luíza - “De
visitá-las hoje à noite, depois de minha apresentação no Municipal?”
Matilde - Não é possível! Não acredito!
Elvira - Vamos celebrar esta noite de sonho com champanhe.
Queria tanto que ao menos uma vez você erguesse a cabeça e olhasse para o céu.
Às vezes há estrelas.
Maria Luíza - Pio deve estar quase chegando.
Matilde - Me deu uma vontade de fazer xixi.
Elvira - Vai, menina.
Matilde - E se o Gardel chegar? Jure que não vai deizer nada a
ele.
Elvira - Juro.
Matilde - Fale de flores. Se ele chegar, fale de flores. (Sai)
Elvira - Você vai mesmo esta noite?
Maria Luíza - Vou.
Elvira - E sua roupa?
Maria Luíza - Depois venho buscar.
Elvira - Maria Luíza.
Maria Luíza - Elvira, pelo que há de mais sagrado, não diga que não
tenho razão. Há dez anos pressinto o perfume deste dia. É hoje. Vamos para uma
pensão, por enquanto, depois...
Elvira - E agora? O que é que você vai fazer agora? Faz dez
anos que só ouço o Pio falar de depois. Quero saber é agora.
Maria Luíza - Não sei. Vou ficar por aí. Mas esta noite, são dez
anos que vão terminar esta noite. E vai ser como todo mundo. Como você com
Galarraga, não é mesmo?
Elvira - Galarraga tomou um porre, ficoui recitando poemas e
falando de uma fábrica de essências. No dia seguinte foi embora. E quando ele
saiu, pensei: não vou aguentar...porque era uma dor terrível. Mas no fundo
tinha alguma coisa que eu nunca soube exatamente o que...Eu tinha vinte
anos...como é que vou me lembrar? (Volta
Matilde)
Matilde - Vocês repararam o cabelo dele? Tem um brilho
incrível, como se fosse o reflexo do sol na cabeça. Aquele brilho latino do
meio dia. Quem sabe se a história do Uruguai não é verdadeira?
Elvira - Esta noite todos os mistérios serão desvendados.
Matilde - Esta noite!
Maria Luíza - Será que a mãe dele não era índia?
Elvira - Branca e loira como a duquesa de Alba. Esse homem não
pertence a nós.
Matilde - Quero ouvir de novo o que ele disse da casa!
Maria Luíza - Matilde, não precisa gritar!
Elvira - Mordeu uma folha de samambaia, olhou para mim e
disse: “Dona Elvira, a senhora há de estranhar meu pedido, mas gostaria de
partilhar esta noite com vocês”.
Maria Luíza - “Seria
uma honra, cavalheiro”.
Elvira - “Porque esta casa se
parece com a da minha mãe em Buenos Aires, quando chegamos de Montevidéu”.
Matilde - Como é que a gente faz para não gritar? Ao pisar
neste assoalho, o primeiro latino-americano transcendental desde Anchieta,
declara que esta casa se parece com a de sua mãe!
Maria Luíza - Foi tão bonito no teatro.
Matilde - Ver Gardel e depois morrer!
Maria Luíza - Quando nos dedicou “Yira, Yira” me deu vontade de
chorar.
Elvira - E ninguém sabia para quem era. Mas todos se roendo de
inveja.
Maria Luíza - Ele olhou bem para nós e disse: “esta tarde conheci
três criaturinhas de quem vou levar a melhor lembrança”.
Matilde - “E elas são tão doces, tão gentis, quero dedicar um
tango carinhoso: “Yira, Yira”. (Ouve-se a
voz de Gardel cantando “Yira, Yira”. As três juntam suas vozes à dele)
Elvira - Ainda não pusemos a toalha.
Maria Luíza - Vocês vão até a cozinha buscar as taças. Eu coloco a
toalha.
Matilde - Será que ele vem, Elvira?
Elvira - Vai chegar a qualquer momento. Eu sei. Pressinto. (Saem Elvira e Matilde. Maria Luíza procura
a toalha e com milimétrica competência cobre a mesa que puseram ali para a
transcendental ocasião. Entra Gardel)
Gardel - Com licença? (Maria
Luíza se volta. Gardel cheira a toalha) Patchouli.
Maria Luíza - A casa
toda tem sachês de Patchouli.
Gardel - Você é Maria Luíza?
Maria Luíza - Ancízar.
Gardel - Pega-se o centro da toalha, fazendo-se coincidir com o centro da mesa.
Depois é fácil. (A toalha fica posta com
incrível rigor) Aprendi isso na Holanda, com a pequena Guilhermina.
Maria Luíza - Quem é Guilhermina?
Gardel - A rainha, é claro. Guilhermina e suas toalhas de
renda. Guilhermina e seus caprichos. Onde estão os guardanapos?
Maria Luíza - Na cristaleira. Não se incomode.
Gardel - Não é incômodo. É um modo de viver. (Gardel pega os guardanapos) Minha mãe
sempre diz que os guardanapos devem ser o dobro do número de convidados. Não é
incrível essa minha mãe?
Maria Luíza - Ela é argentina?
Gardel - Não sei. Você acredita que não sei? (Coloca os guardanapos nos lugares) Le
Pera e Plácido vão trazer o vinho. E seu noivo?
Maria Luíza - Como sabe do meu...
Gardel - Plácido me falou dele. Um intelectual, pelo que
entendi.
Maria Luíza - Acha mesmo?
Gardel - Por que não? Há uns três meses, em Paris, Romain
Rolland me dizia...conhecem Romain Rolland por aqui?
Maria Luíza - Não. Sim.
Gardel - Bom, o velho Rolland me dizia, debaixo de uma
marquise de Montparnasse: “Cher Gardel...” “Querido Gardel, há dois mil anos que
confiamos no futuro. Não é muito chato?”
Maria Luíza - Quem? Romain Rolland?
Gardel - Não, o futuro. Rolland e suas manias. Ah, adoro os dias chuvosos de Paris.
Nunca esteve lá?
Maria Luíza - Não.
Gardel - Que pena...Desculpe, não perguntei pela Elvira e pela
Matilde. Se a minha mãe estivesse aqui me dava um puxão de orelha...
Maria Luíza - Meu Deus! Nem lembrei! Elas estão na cozinha! Quer
que eu chame?
Gardel - Não devemos perturbar a intimidade culinária de duas
damas. Vamos sentir a
noite. Está abafado, não?
Maria Luíza - Se o sr. me permite...acho que é por causa do
cachecol.
Gardel - Tem razão. (Tira
o cachecol). Guarde. É seu. (Observa)
Por que está tremendo?
Maria Luíza - Meu?
Gardel - Não se fazem perguntas quando se recebe um presente,
dizia Mahatma Ghandi. (Ri) Conhecem
Mahatma Ghandi por aqui?
Maria Luíza - Não. Nunca esteve em Caracas.
Gardel - Ah, que pena.
Maria Luíza - Se importa se eu fizer uma pergunta? Uma só? Por que
veio aqui? Por que esta noite? Por que nós?
Gardel - Coisas técnicas do le Pera. Sei lá, um microfone, o
som do violão. Havia um bando de gente no hall do Majestic e de repente eu o vi
sair. Ele estava procurando o Plácido. Então eu disse: vou com você. Quando
chegamos aqui, a porta estava aberta e lá da rua vi as samambaias...(Entra Pio com uma maleta)
Pio - Você está pronta?
Maria Luíza - Este é Gardel.
Pio - Gardel?
Gardel - Mas nós já nos conhecemos! Há meia hora que ela só
fala em você! (Aperta a mão de Pio) Gardel, enchanté (Corrige) Meu deus, a Babel dos idiomas:
muito prazer!
Pio - Pio Miranda. Maria Luíza, o que ele está fazendo aqui?
Maria Luíza - Estávamos no pátio e de repente nós o vimos. Não me
pergunte como, não sei. Ele queria uma muda de samambaia, não foi?
Gardel - Está de partida, meu caro
Pio? Mas que romântico! Antes de enfrentar a dura estrada, veio despedir-se da
noiva. Isso é que é galanteria!
Maria Luíza - Ainda não pude avisar a Elvira e Matilde! Elas não
vão me perdoar nunca! (A Gardel) Com
licença. Volto já. (E sai)
Gardel - Deixe-me olhá-lo bem, Pio Miranda, homem feliz! Que
linda noiva você arranjou. Existe um certo ar de urgência neste país que me
impressiona: é como se tudo acontecesse num instante. Como se algo importante
estivesse prestes a acontecer e as pessoas ficassem em silêncio. E então,
querido, como vai a vida?
Pio - Bem, obrigado.
Gardel - Onde é que você trabalha?
Pio - Numa escola noturna.
Gardel - Ah, um mestre! Sócrates! A dialética! Às vezes, na
cama, quando não há damas nas proximidades, fico pensando...Para que serve o
homem, meu caro Pio? Ou dá uma de macho e os penduricalhos endurecem, ou pensa
e os penduricalhos se ausentam .Tudo o mais é fantasia. Então penso, num
sentido assim meio cartesiano, que existem homens como você, e me vejo cantando
“Volver”, “Mi Buenos Aires Querida”, “Mano a mano”, sem o menor pudor. Então
digo aos meus botões: para que você vive, Gardel, essa vida de prazeres que o
sufoca? Mas depois acabo dormindo, porque ganho cem mil dólares por ano e sei
que existem pessoas como você, no Paraguai, na Nicarágua e principalmente na
república de El Salvador. Do contrário eu não dormiria, grande Pio,
porque...como é que se pode dormir sabendo que existe a república de El
Salvador?
Pio - O senhor acha, mesmo?
Gardel - De coração! Eu cantei bem, Pio?
Pio - Infelizmente não pude ir ao teatro.
Gardel - Às vezes eu fico em dúvida quanto à minha voz. Por
que você não foi?
Pio - Tinha meus motivos. (Ouve-se uma
hecatombe de taças e pratos quebrados)
Gardel - É sorte, Matilde! Elvira, estou aqui! (Entram Elvira, Matilde e Maria Luíza)
Elvira - Eu sempre soube que viria. E hoje, 11 de julho de
1935, posso afirmar que valeu a pena ter vivido quarenta e seis longos anos e
uma traição, para ver esta noite de glória. Desculpe a humildade de nossa casa.
Matilde e eu ensaiamos uma reverência em sua homenagem, porque não é possível
recebê-lo com um simples e corriqueiro “boa noite”. (Elvira e Matilde fazem uma reverência que acaba de joelhos no chão)
Matilde (Se aproxima de
Gardel com uma espiga) - Em nome
desta família e de meu avô, o general Ancízar, herói da guerra da
Independência, queremos dar-lhe as boas vindas e dizer que vimos todos os seus
filmes e ouvimos todas as canções que você gravou, milhares de vezes, até
decorar todas as letras, palavra por palavra. Sentimos, como se fosse nossa, a
dor de cada personagem que você interpretou. Em nome dessas recordações, queremos
lhe oferecer esta espiga, símbolo da fertilidade do nosso solo.
Gardel (Beija a espiga) - Eu a recebo, beijo, devolvo-a à terra
e proíbo que nela se toque, porque será minha forma de permanecer nesta casa.
Pio - Acho que já está na hora,
Maria Luíza. O último ônibus passa à meia-noite e meia.
Maria Luíza - Sim, Pio.
Gardel - Mas como? Essa flor deslumbrante vai embora?
Maria Luíza - Eu?
Pio - Sr.Gardel, fico satisfeito de saber que sua apresentação foi bem
sucedida.
Gardel - Obrigado.
Pio - Sua presença nesta casa é um belo gesto, digno de um grande artista
popular. No entanto, permita-me dizer-lhe que há vinte e sete anos somos
vítimas de uma ditadura brutal e que nosso povo está morrendo de fome, enquanto
os donos do poder esbanjam o dinheiro em negociatas e obras faraônicas. Mas por
toda a parte existe um espírito de resistência que em breve há de triunfar,
quando as massas alcançarem um nível de consciência histórica definitiva, sob a
liderança do glorioso proletariado nacional. No dia em que isso acontecer, e há
de acontecer, o governo popular vai convidá-lo para vir novamente a Caracas, a
fim de que sua arte possa ser apreciada pelo povo, e não pelo bando de
criminosos que hoje eram maioria no Municipal.
Matilde - Amém.
Gardel - Quando chegar esse dia, por favor, escreva para mim
em Buenos Aires.
Maria Luíza - Qual é o endereço?
Gardel - Escreva na carta simplesmente Carlos Gardel. Buenos
Aires. Em mãos. É que todo mundo me conhece e mamãe sempre guarda minha
correspondência.
Matilde - Tia Maria Luíza, por que você não deixa para ir
amanhã?
Elvira - Não se meta.
Matilde - Pio, não dá no mesmo? Afinal, vocês esperaram dez
anos. E quem sabe amanhã chega a carta daquele senhor francês!?
Gardel - Vou esperar o Plácido e o le Pera lá no portão. Já
devem estar chegando.
Elvira - Fique em seu lugar, no centro desta casa. Acontece
que depois de dez anos de namoro, minha irmã e o noivo resolveram partir esta
noite, pela estrada que vai de Caracas à Ucrânia, com uma provável parada no
limbo para o café da manhã. Como vê, é uma longa viagem, e não há tempo para
despedidas.
Maria Luíza - Por que é que você tem que falar desse jeito?
Elvira - Por nada. Só falei por falar.
Maria Luíza (A Gardel) - Bom...pelo menos eu coloquei a
toalha, não foi?
Gardel - Por favor!
Maria Luíza - Existe
um dia, não é? E tem que ser neste dia.
Não pode ser amanhã. Entende que não pode ser amanhã? (Aponta Pio) Olhe bem para ele. Não
tenho razão?
Pio - Maria Luíza, a troco de quê?
Maria Luíza - Eu sei que ele vai entender. Não é, Gardel?
Elvira - Claro que vai entender! Vocês ainda não notaram que
ele vem sempre aqui à meia-noite? E não repararam que ele sai todos os dias
antes do padeiro das cinco e meia? Pode contar a ele sua vida toda, batendo
papo de camisola e chinelos. Não é ninguém. É só Carlos Gardel. Você devia ter
vergonha.
Gardel - Desculpem, mas se o problema é transporte, posso
resolver. Le Pera já está chegando, com a limousine do Pimentel, e pode
levá-los onde quiserem.
Maria Luíza - Pio.
Pio -
Bom, nesse caso...
Gardel - Mas esse é o caso, Pio santíssimo! Eu estou aqui!
Vamos comemorar! (Entram Plácido e Le
Pera com cestas de bebidas, cantando “Volver”, sendo logo acompanhados pelo coro dos presentes, à
exceção de Gardel)
Plácido - Declaro a todos
os presentes que esta é a maior noite já vivida por este histórico solar dos
Ancízar!
Le Pera - Champanhe e vinho...vão ter que acrescentar um novo
marco à História de Caracas! Como você cantou! (Le Pera coloca as cestas na mesa)
Plácido - Pio! Eu tinha
arranjado um banquinho na cabine de luz para você escutar esta dialética! Onde
é que você estava quando o cidadão Gardel cantou “Volver”, explicando o
materialismo a um sapateiro? Pio, quando é que você vai relaxar um pouco?
Quando é que vai deixar para lá as contrariedades do planeta? Le Perinha, cumpra a sua promessa!
Atenção, todo mundo! Quantos somos? (Começa
a contar) Elvira, a abandonada...
Gardel - Quem abandonou Elvira?
Elvira - Isso foi no tempo em que se amarrava cachorro com
lingüiça.
Plácido - Elvira, a abandonada.
Matilde, a futura, e o meu amigo Pio Miranda. Eu não era ninguém antes de
conhecer o grande Pio aqui. Carlos - posso lhe chamar de Carlos? - Eu era uma titica, uma excrescência, antes da
mensagem dele...é verdade ou não é?
Gardel - E o que foi que o le Pera prometeu?
Le Pera - Que você ía cantar um tango.
Plácido - Que ía cantar
“El día que me quieras”, dedicado ao nosso marxista-leninista aqui presente, a
quem dou permissão para que leve minha tia esta noite e tome o poder.
Gardel - Mais tarde, talvez. Agora estou cansado.
Elvira - Agora chega. (A
Plácido) Ou você modera os tragos que andou tomando ou vai já para a cama!
Le Pera - Quem me ajuda com a champanhe?
Maria Luíza - Com licença. (Abre
uma garrafa. Elvira sente o perfume de Gardel)
Matilde - Perfume de quê?
Elvira - De universo. De Rei Mago.
Matilde - Deixe ver...(E
cheira Gardel)
Le Pera - Saúde!
Maria Luíza - Saúde!
Plácido - Só uma taça,
Elvira!
Elvira - Saúde!
Le Pera
- O que vocês não sabem é que
o rapaz aqui tinha esta noite uma audiência com o ditador local, o tal de
Gómez, e mais o crème-de-la-crème de tout Caracas. E aqui está ele, tranquilo,
aproveitando a noitada. Não por muito tempo, é claro, porque cada amanhecer
deste rouxinol custa doze mil pesos...
Maria Luíza - Carlos, posso chamá-lo assim?
Gardel - Claro, Maria Luíza. Estamos em família (Brinda) Saúde!
Maria Luíza - É que eu fico tão sem jeito... Acontece que o Carlos
estava me falando há pouco de...
Gardel - De quem?
Maria Luíza - De Romain Rolland. É assim que se pronuncia, não é?
Gardel - Bravo! (A Le
Pera) Você se lembra, Alfredo, do Romain Rolland?
Le Pera - Quem é Romain Rolland?
Gardel - O velhinho de cabelo cacheado.
Le Pera - Qual velhinho? Aquele de Amsterdã?
Gardel - Não, o de Paris. O chato. Aquele de Montparnasse e da
chuva. Esqueceu?
Le Pera - Ah, sei! Aquele que estragou nossa noite debaixo da
marquise! O que tem ele?
Pio -Maria Luíza...
Gardel - O que há com ele?
Maria Luíza - Pio, é agora ou nunca. Já que ele está aqui, podíamos
pedir-lhe o favor...
Pio -É que...
Elvira - Saúde, Pio!
Gardel - Pra que tanta cerimônia? Qual é o favor?
Maria Luíza - O caso é muito simples. Por coincidência, há um mês
escrevemos uma carta a Romain Rolland, um famoso escritor. Bom, não é preciso
explicar, você fica debaixo da marquise com ele. Escrevemos a Romain Rolland
porque ele é...explique você, Pio...
Pio -Porque ele é simpatizante da Terceira Internacional.
Maria Luíza - Isso é muito confidencial, ninguém pode saber. Pio e
eu pertencemos à Internacional Socialista. E achamos que podia ser uma boa
idéia...
Elvira - Você não sabe explicar, Maria Luíza. (A Gardel) Não repare. Escreveram uma
carta ao tal senhor Rolland para que, por sua vez, o camarada Rolland
transmitisse ao camarada Stalin o desejo de minha irmã e seu noivo de se
radicarem na Ucrânia. E o sr. Rolland, por alguma petulante razão, não se
dignou a responder à missiva, ocasionando uma verdadeira hecatombe na paz
familiar dos Ancízar.
Maria Luíza - E, abusando de sua confiança, queria pedir-lhe, em
nome de meu noivo e no meu, se pudesse fazer a gentileza de enviar ao sr.
Rolland um cartãozinho, recomendando o nosso pedido...
Gardel - Com o maior prazer. Amanhã mesmo vou mandar um telegrama
ao Rolland. O Le Pera vê isso logo de manhã.
Maria Luíza - Pio!
Agora eu sei que é verdade! Agora sei que vamos mesmo!
Matilde - Estão vendo como tudo se arranja?
Plácido - Pio, na Ucrânia, não se esqueça de mim! Fale com
eles! Diga que estou aqui! Que...qualquer coisa, estou às ordens!
Le Pera (Brinda) - À felicidade dos noivos! Saúde,
Carlos!
Gardel -
Para mim está sendo uma noite deliciosa. Mas daqui a pouco tenho que ir embora
com a muda de samambaia que Elvira vai me dar de presente. É curioso. Acho que
não sei quase nada de mim. Sei desta noite, e de outras noites como esta. Abro
os olhos e acordo em Tacuarembu, com fome e querendo fugir para Buenos Aires.
Abro a voz e a voz soa. E o som desta noite, o som de vocês, gente de verdade.
Elvira, o som é Elvira. Talvez porque queira dizer alguma coisa e não consiga.
Elvira - Que todo dia acordo e vou à cozinha. Contando sempre
os mesmos passos. Faço o café, a água ferve enquanto troco a água dos canários.
E penso em Raimundo Galarraga, o químico dos perfumes. Que eu odeio e amo.
Porque parecia com a glória deste mundo. Depois dele foi o nada, como se alguma
coisa tivesse emudecido até esta tarde, quando você entrou por aquela porta. Eu
disse a elas que esta noite tudo seria revelado por sua própria boca, que
desvendaríamos todos os seus mistérios. Mas o único mistério é você. E não
quero desvendá-lo. Para mim, basta sentir que está aqui...mais nada.
Gardel - Então você era assim, Elvira! Eu sabia.
Matilde - Como é que você vai fazer na Rússia, tia Maria Luíza?
Você chega lá e...
Maria Luíza - Não sei, o Pio é que entende disso.
Matilde (A Pio) - É verdade que na Rússia todo mundo é
feliz?
Pio -Digamos que é diferente.
Plácido - Absolutamente diferente. Em primeiro lugar, há quatro
estações: primavera, outono, inverno e verão. E lá tudo é de todos. Você vai
andando pela rua e lhe dá na veneta, sei lá, queijo, costeleta, um capricho
qualquer. Aí você entra no mercado, na maior tranquilidade e pede: me dá isso,
me dá aquilo também. E por que é que eu vou dar a você? Porque sou um homem,
pertenço ao gênero humano. E estou com fome. Ah, então toma! Não é assim, Pio?
Já sei de cor. Vai, Pio, pergunte, pra todos verem...
Pio -Agora não, Plácido, não é hora.
Plácido - Pergunte, Pio. Tia Maria Luíza também sabe responder.
Maria Luíza - O que?
Plácido -
Carlinhos, preste atenção: Pio pergunta, eu e Maria Luíza respondemos.
Gardel - Ah, um jogo!
Plácido - Um jogo. Quer ver? O que notamos quando analisamos a
sociedade atual? Pergunte, Pio, o que notamos?
Pio -Não.
Maria Luíza - Anda, Pio. Pergunte. Você começa e nós continuamos. O
que notamos quando analisamos...
Pio -A sociedade atual?
Maria Luíza e Plácido - Uma profunda desigualdade entre os homens.
Gardel - Extraordinário!
Le Pera - Bravo!
Pio -E como se manifesta essa desigualdade?
Maria Luíza e Plácido - Pela existência de dois tipos de homens: o proletário
e o burguês.
Gardel - Fantástico! Genial!
Le Pera - Na mosca!
Pio -Quem é o proletário?
Maria Luíza e Plácido - O pobre. Aquele que não tem nada.
Gardel - Excelente resposta!
Le Pera - E o que mais?
Pio -E quem é o burguês?
Maria Luíza e Plácido - O rico, aquele que possui tudo.
Gardel - Incrível!
Le Pera - Perfeito!
Pio -O que é o proletariado?
Maria Luíza e Plácido - O conjunto de todos os proletários.
Pio -O que é a burguesia?
Maria Luíza e Plácido - O conjunto de todos os burgueses.
Pio -A sociedade atual está bem constituída?
Maria Luíza e Plácido - Não. Porque existem duas classes sociais: o
proletariado e a burguesia.
Gardel - Profundo! Brilhante! Matemático!
Le Pera - Ahá!
Pio -Existe harmonia entre o proletariado e a burguesia?
Matilde e Le Pera -
Ahá! Ahá!
Maria Luíza e Plácido - Não. A burguesia combate o proletariado. E o
proletariado combate a burguesia. Estão em luta contínua. A luta...de...classes!!!
(Todos aplaudem, com exceção de Elvira e
Pio)
Pio -Está bem, senhores. Chega. Vão gozar a mãe! Faz dez anos que venho a
esta casa, todo santo dia, na hora do almoço. E tudo porque, digamos, vejo um
cão, assim, com as costelas de fora. Uma fome de cão. E fico pensando: que
merda! Como se o responsável fosse eu. Desculpem. Não é verdade. Não é problema
meu. A culpa não é minha. O país não me pertence. Não tenho porquê responder.
Sou um guerreiro ensangüentado. Desculpem. Não fui eu. Lavo minhas mãos. (À Maria Luíza) Não existe nada na Ucrânia. Nem sei onde fica a Ucrânia. Não
existe a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Não existe Kamenev, nem
Zinoviev. Não sei nem pronunciar isso. Não existe Trostsky, não existe samovar.
Não existe Stalin. Não existe janela da czarina. Não existe Lênis. Não existe
nada!?
Maria Luíza - Pio!
Pio -Pergunte à Elvira. Ela sabe. É a única que sabe. Eu tenho que explicar
a um cão o porquê das costelas de fora. Eu...estou me sentindo mal. Vou embora
e nunca mais volto a esta casa. Não me espere. Não existe nada. Eu menti! Essa
era a palavra esperada, a palavra profética! Menti! Não existe Romain
Rolland! Nunca escrevi a Romain Rolland! Foda-se Romain Rolland! Caguei para a paz e a amizade entre os povos! Chega!
Acabou! Fim! Obrigado pelos almoços. O cão me espera. E tenho que explicar por
que o sol vai nascer amanhã. Adeus. Perdão. (Sai)
Le Pera - Carlos, acho que já é hora. Temos que viajar amanhã.
Gardel - Tem razão. Boa noite, Elvira. Boa noite, Matilde. O
melhor dos mundos para você, camarada Maria Luíza.
Matilde - E “El día que me quieras”?
Le Pera - Não sei. Acho que o rouxinol hoje não vai poder...
Matilde - E se fechássemos os olhos? Porque vai ser horrível
ver você sair. Nós ficamos parados, aqui. Você canta “El día que me quieras” e
vai embora.
Plácido - Assim a gente pode contar aos outros: ele esteve aqui
e cantou.
Elvira - E quem vai acreditar?
Plácido - Não importa. A gente mesmo acredita. Faça isso,
Gardel.
Matilde - Por favor! (Gardel
canta e depois sai com Le Pera. Longa pausa)
Elvira - É hora de dormir. Vamos, Maria Luíza?
Maria Luíza - Plácido...feche o portão.
Plácido - Sim. (E sai)
Maria Luíza - Será que ainda tem café? Quer dizer, para amanhã...
Elvira - Comprei hoje. (Volta
Plácido) Que horas são, Plácido?
Plácido - Meia-noite e meia. A visita foi curta.
Matilde - Boa noite, Plácido. Boa noite, tia Maria Luíza. A
benção, tia Elvira.
Elvira - Deus te abençoe. E troque os lençois. Hoje é dia de
trocar os lençois.
Matilde - Não é amanhã?
Elvira - Não. É hoje.
Matilde - Ninguém vai tirar isso da gente, vai? Acho que agora
não podemos mais vender a casa. Vender como, depois desta noite?
Elvira - É. (Matilde
sai)
Plácido - Boa noite, tia Elvira. Boa noite, tia Maria Luíza. ( E sai)
Elvira - Ele deixou a mala. Talvez volte amanhã.
Maria Luíza - É, talvez.
Elvira - Já passou. Depois amanhece e as coisas mudam.
Maria Luíza - Você não se importa de fazer um café?
Elvira - Claro que não.
(E vai para a cozinha)
Maria Luíza - Não muito forte. Senão não durmo. (Maria Luíza vai até a maleta de Pio. Abre-a. Procura entre camisas
remendadas e calças gastas. E encontra uma bandeira vermelha com a foice e o
martelo. Coloca- a no espaldar do sofá. Elvira volta) Quero que ela fique
aqui. Ate amanhã. pelo menos, até amanhã.
Elvira - A casa é sua, Maria Luíza. Você é quem manda.
FIM