quarta-feira, 2 de março de 2016

TEXTO PARA ESTUDO

No momento não estou
de Elisa Lucinda


Olhando a cara dos dias, vejo como é sórdida tua secretária eletrônica: Ela mente pra mim na mesma tônica: doublé de seu medo...Vou te contar um segredo: Eles venceram. Venceu a mesquinharia, a pequeneza, a teoria rasa, a safadeza...No meio da luta, você preferiu ser o nêgo filho da puta da história que escreveram pra você encenar, da promessa que fizeram pra você cumprir, pra você pagar. Essa noite, sua covardia repete o açoite: aceita a mesma escravidão pra te enganar. Ai, como é mórbida tua secretária eletrônica, roubou meu batom e no mesmo tom me diz que você não está. Como uma armadilha de sonora trilha, pede um recado após o sinal...Não dou! Antes disso terá um longo curto-circuito entre as pernas, essa tua secretária calhorda, essa tua secretária moderna, tão sonsa, tão palerma. Ligada por ti pra te sacanear! Acionada por ti pra te carear os dentes da alma e depois te pede pra sorrir pra sua própria demência. Uma ridícula dona de casa chamada Ausência!

*     *     *
Sugestão para estudo:
        
Talvez seja correto afirmar que Elisa Lucinda escreve poesias para serem ouvidas, tamanha é a teatralidade nelas contida - isto não significa, bem entendido, que não possam ser apreciadas quando apenas lidas. Assim, quase todas elas oferecem excelentes oportunidades para um ótimo trabalho de interpretação. Esta focaliza com sensibilidade uma série de queixas amorosas e, de quebra, investe contra esse abominável aparelho denominado secretária eletrônica, permanente fonte de desgostos e frustrações.     
        
Vamos, portanto, fazer com que a poesia aconteça, imaginando quem seria a mulher que se lamenta e acusa; em seguida, uma circunstância que confira credibilidade ao desabafo - a personagem está sozinha, fala na secretária eletrônica, está escrevendo uma carta?. E finalmente, trabalhar as idéias e sentimentos com a maior carga possível de verdade e emoção. Quem sabe a pessoa do outro lado desliga a secretária e atende? (LF)

*     *     *  



MULHERES

           Entediado, o Senhor vaga pelo universo na esperança de que algo o surpreenda, mesmo sabendo que nada pode surpreendê-lo, já que tudo que existe é obra da sua vontade e segue o inexorável destino que ele próprio traçou.
          Mas, ainda assim, ele vaga.
Amaldiçoando sua onipotência, desejando ardentemente o impossível, ou seja, se deparar com algo que, por qualquer razão, possa ter escapado ao seu rígido controle.
          Sim, Deus vaga desesperado.
À procura de algo que o negue, de uma centelha de revolta, mesmo que partindo da mais ínfima criatura, do menor dos átomos, da mais insignificante das moléculas!
Mas é tudo inútil...
          Então, sentindo-se uma espécie de náufrago de si mesmo, Deus chora de raiva de seu monumental engano: o de imaginar que poderia ser feliz em um universo isento de espantos!
          Mas até as lágrimas de Deus acabam por secar.
          E quando isso aconteceu, Ele teve o insite
          Sim, seria preciso inventar uma criatura inteiramente diferente de todas as outras. Uma criatura ao mesmo tempo divertida e trágica, insolente e delicada, frágil e transgressora. Uma criatura que jamais poderia ser totalmente apreendida, já que estaria sempre em permanente processo de mutação.
          E foi nesse momento que Deus concebeu e deu forma à sua mais esplêndida criação: a mulher!!!   (Lionel Fischer, aos 17 anos)
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Para os homens que
amam suas mulheres

Mulher
(Woman)

Mulher
eu posso com dificuldade expressar minhas emoções
confusas, em meus atordoamentos. Afinal de contas,
estou eternamente em dívida para com você.

Mulher
eu tentarei expressar os meus sentimentos mais
íntimos e a minha gratidão, por você ter me mostrado
o significado do sucesso.

Mulher
eu sei que você compreende a criança que existe
dentro de mim. Por favor, lembre-se: minha vida está em suas mãos.

Mulher
Segure-me bem junto do seu coração, para que mesmo longe não nos afastemos. Afinal, está escrito nas estrelas...

Mulher
Por favor, deixe-me explicar, nunca tive a intenção de lhe causar tristeza ou dor. E então, deixe-me dizer outra vez, outra vez e outra vez:

Eu te amo, sim, sim
Agora e para sempre.
         (John Lennon)




                                     A última gravação

de Samuel Beckett

Noite, sobre a tarde, de aqui a algum tempo. No proscênio ao centro, uma mesinha de duas gavetas que abrem para o lado da sala. Sentado à mesa, de rosto para o público, quer dizer: do lado oposto às gavetas, um velho de aspecto relaxado. Krapp.

Calças estreitas, demasiado curtas, de um negro duvidoso. Colete sem mangas de um negro não menos duvidoso e com quatro grandes bolsos. Relógio de prata, pesado e de corrente. Camisa branca sebenta, desabotoada no pescoço, sem colarinho. Surpreendente par de botas, de um branco encardido, remontando pelo menos a 48, muito estreitas e bicudas.

Rosto branco. Nariz violáceo. Cabeleira cinzenta em desordem. Mal barbeado. Muito míope (mas sem óculos). Duro de ouvido. Voz de cana rachada muito particular. Andar laborioso.

Em cima da mesa, um magneto fone mais o respectivo microfone e numerosas caixas de cartão com bobinas de fita impressionada dentro.
A mesa e as imediações banhadas em luz crua. O resto da cena na obscuridade. Krapp permanece um momento imóvel, solta um enorme suspiro, olha para o relógio, vasculha os bolsos, tira um sobrescrito de um deles. Torna a escondê-lo, vasculha de novo, tira um minúsculo molho de chaves, ergue-o a altura dos olhos, escolhe uma chave, levanta- se e caminha para a frente da mesa. Baixa- se, abre a fechadura da primeira gaveta, espreita para dentro, mete- a na mão, tira uma bobina, examina- a de perto, torna a escondê-la, volta a fechar a gaveta. A chave, abre e fecha na segunda gaveta, espreita pra dentro, mete a mão, tira de lá uma grande banana. Examina- a de perto, torna a fechar a gaveta a chave e volta a por as chaves no bolso. Volta, avança até a beira da cena, detém- se, acaricia a banana, descasca- a, deixa cair as casas ao seus pés, mete a ponta da banana na boca e permanece imóvel, os olhos fixos no vazio. Por fim morde a extremidade da banana volta- se e põe- se a andar de cá para lá à beira da cena, isto é: à razão de quatro ou cinco passos no Maximo em cada sentido, mastigando ao mesmo tempo meditativamente a banana. Pisa a casca, tropeça, por pouco não cai, equilibra- se, inclina- se, contempla a casca e por fim, sempre curvado, empurra-a com a ponts do pé para o fosso da orquestra. Retoma o seu vaivém, acaba de comer a banana, volta para a esa, senta- se, fica um momento imóvel, solta um enorme suspiro, tira as chaves do bolso, levanta- se a altura dos olhos, escolhe uma chave, levanta- se e caminha para a frente da mesa, abre a fechadura da segunda gaveta, tira dela uma segunda grande banana, examina- a de perto, torna a fechar a gaveta à chave, torna a por as chaves no bolso, volta- se, avança até a beira da cena, detém- se, acaricia a banana, descasca- a, atira a casca para o fosso da orquestra, mete a ponta da banana na boca e fica imóvel, os olhos fixos no vazio. Por fim, tem uma idéia, Põe a banana num dos bolsos do colete onde fica com a ponta de fora e com toda a velocidade de que é capaz corre para o fundo da cena, que esta na obscuridade. Dez segundos. Ruído de um tirar de tampo. Quinze segundos. Volta para a luz, carregando um registro velho, e senta- se à mesa. Pousa o registro em cima da mesa, enxuga os lábios, limpa as mãos ao colete, bate palmas e esfrega- as.

KRAPP- (com vivacidade) Ah! (inclina- se sobre os registros, vira as páginas, encontra a ficha que procura, lê). Caixa...três...bobina..(levanta a cabeça e olha fixamente diante de si, com prazer).Bobiña! (Pausa) Bobiña. (Debruça- se sonre a mesa feliz, ecomeçaa vasculhar as caixas examinando- as de perto) Caixa...três...três...quarto...dois... (Surpresa)... Nove! Santo nome de Deus!.. Sete...ah! Magana! (Agarra uma caixa, examina-a de muito perto) Caixa- três. (Pousa- a sobre a mesa, abre-a e inclina- a sobre as bobinas que tem dentro). Bobina... (curva- se sobre o registro) Cinco...cinco..ah! Sua farroupilha! (Tira uma bobina, examina- a de perto) Bobina cinco. (Poe- na em cima da mesa, fecha a caixa três, arruma- a junto das outras, torna a pegar a bobina). Caixa três, bobina cinco. (Inclina- se sobre o aparelho, levanta a cabeça. Com prazer). Bobina!! (Sorriso feliz. Inclina- se, coloca a bobina no aparelho, esfrega as mãos). Ah! (Debruça- se sobre o arquivo, lê a nota em baixo da página). Mamã finalmente em paz...hm... A bola negra..(Ergue a cabeça, olhos fitos no vazio diante de si) Bola negra?.. (Inclina- se de novo sobre o arquivo, lê) A sopeira trigueira.. (Levanta a cabeça, devaneia, inclina- se outra vez sobre o arquivo, lê). Ligeiras melhoras do estado intestinal...hm... Memorável ...o que? (Olha mais de perto, lê). Equinócio, memorável equinócio. (Ergue a cabeça, os olhos fitos no vazio. Intrigado) memorável equinócio? (Pausa. Encolhe os ombros, inclina- se de novo sobre o arquivo, lê). Adeus ao a... (volta a página) mor.

Levanta- se a cabeça, devaneia, debruça- se sobre o aparelho, liga-o e poe- se em posição de escuta, quer dizer o busto inclinado para frente, os cotovelos sobre a mesa, a mão em pose de corneta acústica na direção do aparelho, de rosto para a sala.

A FITA: (Voz forte, um tanto solene, manifestando a voz de Krapp em época muito anterior)

Trinta e nove anos hoje, sólido como uma...

(Ao querer instalou- se mais confortavelmente, faz cair uma das caixa, pragueja, desliga o aparelho, atira com um gesto violento caixas e arquivo para o chão. Torna a por a fita no ponto de partida , volta e liga o aparelho, retoma- a a posição anterior).

Trinta e nove anos hoje, sólido como uma ponte, à parte do meu velho ponto fraco, e quando a intelectualidade, tenho agora razões, para me suspeitar, no.. (Hesita) no píncaro da vaga- ou pouco falta, na verdade. Celebrada a solene ocasião, como todos esses anos, tranquilissimamente, na Taverne. Nem vivalma. Para ali me deixar estar diante do fogo, os olhos fechados, a separar o trigo do joio cá da minha vida. Rabisquei algumas notas nas costas de um sobrescrito. Feliz por estar de volta à minha mansarda, aos meus trastes. Acabo de comer, lamento dizê-lo, três bananas e abstive-me de comer a quarta sabe Deus com que custo. Autêntico veneno para um homem no meu estado. (Com veêmencia). A eliminar. (Pausa). A nova iluminação mesmo por cima da minha mesa constitui um grande melhoramento. Com toda essa obscuridade à minha volta sinto- me menos só. (Pausa) Em certo sentido. (Pausa). Adoro levantar-me para lhe dar uma volta, depois voltar aqui a.. (Hesita) mim. (Pausa) Krapp.

Pausa.

O trigo vejamos, pergunto a mim mesmo que entendo eu por tal. Entendo... (Hesita) suponho que entendo por trigo todas essas coisas que ainda hão- de valer a pena quando toda a poeira te ver - quando toa a minha poeira se tiver depositado. Fecho os olhos e faço força para (?)..

Pausa. Krapp fecha os olhos, um breve instante.

Extraordinário silencio essa noite, bem aguço os ouvidos, não se move um suspiro. A velha Miss McGlone canta sempre a esta hora. Mas esta noite não. Canções do tempo em que era rapariga, diz ela. Difícil imaginá-la rapariga. Maravilhosa velha apesar de tudo. Uma Connaught, tenho a impressão. (Pausa). Eu cantarei quando tiver a idade dela, se chegar a idade dela! Não. Cantava acaso quando era capaz? Não. Cantei alguma vez? Não.

Pausa.

Acabei agora mesmo de ouvir um ano antigo, passagens ao acaso. Não verifiquei no livro, mas a coisa deve remontar a uns dez ou doze anos atrás- pelo menos. Julgo que nessa altura vivia ainda com Blanca em Kedar Street, enfim, quando a Deus prazia. Escapei de boa, oh, se escapei! Era um caso perdido (Pausa). Nada a respeito dela, à parte uma homenagem aos meus olhos. Entusiástica. Tornei a vê-los de repente. (Pausa). Incomparáveis! (Pausa). Enfim... (Pausa). Sinistras essas exumações, mas acho-as as mais das vezes- (Krapp desliga o aparelho, devaneia, torna a ligar o aparelho) úteis antes de me lançar a um novo... (Hesita) volta atrás. Difícil acreditar que alguma vez eu tenha sido alguma vez aquele cretinóide. Aquela voz!

Jesus! E aquelas aspirações! (Risada breve a que se junta Krapp). E aquelas resoluções! (Risada breve a que se junta a Krapp). Beber menos, nomeadamente. (Risada breve de Krapp sozinho). Estatísticas. Mil e setecentas horas em oito mil e alguns precedentes volatilizados apenas em tascas rascas. Mais de 20%, digamos 40%, da sua vida acordada. (Pausa). Planos par uma vida sexual menos... (Hesita) absorvente. Ultima doença de seu pal. Procura cada vez mais frouxa da felicidade. Flasco dos laxativos. Sarcasmos sobre o que ela chama a sua juventude e ação de graça por ela ter acabado. (Pausa) Falta nota neste sítio. (Pausa) Sombra do opus..magnum. E para acabar uma - (risada breve)- casquinada em intenção da Providência. (Risada prolongada a que se junta Krapp). Que coisa resta de todas essas misérias? Uma moça de capa verde em uma estação? Ou não?

Pausa.

Quando contemplo- (Krapp desliga o aparelho, devaneia, olha para o relógio, levanta- se e vai até ao fundo da cena que está na obscuridade. Dez segundos ruído de um tirar de tampa. Dez segundos segunda tampa. Dez segundos. Terceira tampa. Súbita cantiga, “ entre- cortada” e trêmula.)

KRAPP (cantando)- À sombra desce das nossas montanhas.
                               O azul do céu vai não vai empalidece. 
                               O barulho extingue- se
Acesso de tosse. Volta a luz, senta- se, limpa a boca. Torna a ligar o aparelho, retoma a posição de escuta.

A FITA-  volta- atrás ao ano do passado, com possivelmente- espero- alguma cois do meu velho olhar por vir, existe naturalmente a casa do canal onde a mamã se extinguia. No outono moribundo, após uma longa viuvez (Krapp estremece). E o- (Krapp desliga o aparelho, poe a fita um pouco mais atrás, aproxima o ouido do aparelho, torna a ligá-lo)- se extinguia, no Outono moribundo, após uma longa viuvez, e o- (Krapp desliga o aparelho, põe a fita um pouco mais atrás, aproxima o ouvido do aparelho, torna a liga-lo) se extinguia, no Outono moribundo, após uma longa viuvez, e o -

 (Krapp desliga o aparelho, levanta a cabeça, olhos fixos no vazio. Mexe os lábios sem ruídos formando as sílabas de viuvez. Levanta- se, vai para o fundo da cena que está na obscuridade. Volta, com um dicionário enorme, senta- se, pousa- o sobre a mesa, e procura as palavras.)

KRAPP- (Lendo o dicionário) Estado- ou condição- de quem é- ou permanece - viúvo- ou viúva. (Levanta a cabeça indignado) Quem é- ou permanece?- (Pausa. Inclina- se de novo sobre o dicionário. Volta as páginas) Viúvo... Viúvo... Viuvez (Lendo) Os véus espessos da viuvez... Diz- se de um animal, particularmente de um pássaro... Viuvinha ou viúva... A plumagem negra dos machos... (Levanta a cabeça. Com deleite) A viuvinha.

Pausa. Fecha o dicionário, liga outra vez o aparelho, retoma a posição de escuta.

A FITA-   Banco perto da levada de onde podia ver os vidros da janela dela. Ali ficava eu, sentado ao vento desabrido, desejando que ela acabasse. (Pausa). Quase ninguém, alguns crônicos apenas, sopeiras, garotos, velhos, cães. Acabei por conhecê-los bem- oh, quero dizer de vista, bem entendido! Lembro- me sobretudo de uma tenra beldade morena, muito branca do pó de arroz, com um peito incomparável, que empurrava um carrinho de capota negra, de um fúnebre, só visto! Todas as vezes que olhava na direção dela, tinha os olhos em cima de mim. Pois quando tive a coragem de lhe dirigir a palavra - sem lhe ter sido apresentado- ameaçou-me de chamar a policia. Como se eu tramasse contra a sua virtude! (Riso) A carinha que ela tinha! Que olhos! Tal qual... (Hesita)  crisólitos! (Pausa) Enfim... (Pausa). Eu estava lá quando - (Krapp desliga o aparelho, devaneia...torna a ligar o aparelho) Levantei a cabeça, e já estava... Um caso, finalmente. Fiquei onde estava ainda alguns instantes, sentado no banco, com uma bola na mão e um cão a latir atrás dela e a mendiga- la com a pata. (Pausa) Instantes... (Pausa) os seus, dela, instantes, os meus, muito meus, instantes. (Pausa) Os instantes do cão. (Pausa) Por fim, ele a abocanhou com o focinho, meigamente, meigamente. Uma bola de borracha pequena, velha, negra, plena, dura. (Pausa) Sentirei na mão, até o dia da minha morte. (Pausa). Podia tão bem tê- la guardado. (Pausa). Mas dei-a ao cão.

Pausa.

Enfim..

Pausa.

- Espiritualmente um ano não se pode conceber mais negro e mais pobre até essa memorável noite de Março, na extremidade do pontão, à ventania, nunca me esquecerei, em que tudo se me  tornou claro. A visão, finalmente. Eis, suponho, o que tenho sobretudo que registrar esta noite, na previsão do dia em que os meus trabalhos estiveram... (Hesita) acabados e em que eu não terei, quem sabe, mais nenhuma recordação, nem boa nem má, do milagre que... (Hesita) do fogo que a abrasara. O que de súbito vi então, era que a criança que tinha guiado toda a minha vida, a saber- (Krapp desliga o aparelho com impaciência, faz avançar a fita, ...torna a ligar o aparelho)- grandes rochedos de granito e a espuma que jorrava sob a luz do farol e o anemômetro que turbilhonava como uma hélice, claro para mim, enfim, que a obscuridade que me encarniçara sempre por reclacar em mim e na realidade o meu melhor- (Krapp desliga o aparelho com impaciência, faz avançar a foto. Torna a ligar o aparelho)- indestrutível associação até o último suspiro da tempestade e da noite mais a luz do entendimento e o fogo- (Krapp pragueja, desliga o aparelho, faz avançar a fita, torna a desligar o aparelho) - o rosto entre os seus seios e a mão por cima dela. Ali ficamos, deitados, sem nos mexermos. Mas debaixo de nós, tudo estremecia, e nos fazia estremecer, docemente, de alto a baixo, e de lá pra cá.

Pausa.

- Passa da meia- noite. Jamais ouvi tamanho silêncio. A terra podia ser desabitada.

Pausa.

Aqui termino- (Krapp desliga o aparelho, volta com a fita, atrás torna a ligar o aparelho).- no alto do lago, mais o barco, nadei perto da margem, depois levei o barco até o lago e deixei-o andar sem governo. Ela estava deitada sobre as tábuas do fundo, as mãos debaixo da cabeça, e os olhos fechados. Sol, fulgurante, uma bisca de brisa, a água um tudo nada marulhante- como eu gosto dela. Notei-lhe um arranhão nas coxas e perguntei-lhe como o tinha feito. À  colher groselhas verdes, respondeu-me ela. Disse-lhe ainda que tudo aquilo parecia sem esperança e não valia a pena continuar e ela fez que sim sem abrir os olhos. (Pausa). Pedi-lhe que olhasse para mim e após alguns instantes - pausa- após alguns instantes, ela olhou. Os olhos porém como fendas por causa do sol. Inclinei-me sobre ela para os pôs à sombra e eles abriram- se. (Pausa). Deixaram- me entrar. (Pausa) Derivávamos por entre os caniços e o barco encalhou. Como eles se dobravam, suspirando diante da proa. (Pausa) Vim-me sobre ela, o rosto entre os seus seios e a mão por cima dela. Ali ficamos deitados, sem nos mexermos. Mas debaixo de nós, tudo estremecia, e nos fazia estremecer, docemente, de alto a baixo e de lá para cá.

Pausa.

- Passa da meia noite. Jamais ouvi-

Krapp desliga o aparelho. Devaneia. Por fim, vasculha os bolsos, encontra a banana, tira-a, examina- a de perto, e torna a meter no bolso, vasculha outra vez, tira o sobrescrito, vasculha outra vez, torna a meter o sobrescrito no bolso, levanta- se e vai para o fundo da cena, que está na obscuridade. Dez segundos. Ruído de garrafa contra o vidro. Depois breve ruído de sifão. Dez segundo. De novo a garrafa contra o vídeo, mais nada. dez segundos. Volta com o passo mal seguro para a luz, dirige- se para a frente da mesa, tira do bolso as suas chaves, levanta- as à altura dos olhos, escolhe uma, abre a fechadura da primeira gaveta, olha pra dentro, mete a mão, tira uma bobina, examina- a de perto, torna a fechar a gaveta à chave, volta a por as chaves no bolso, vai sentar- se, tira a bobina do aparelho, coloca-a sobre o dicionário, coloca a bobina virgem no aparelho, tira o sobrescrito do bolso, consulta o anverso, pousa-o sobre a mesa, devaneia, liga o aparelho, aclara a voz e começa a gravar.

KRAPP- Acabei de ouvir esse cretinóide por quem me tomava há trinta anos, custa a acreditar que eu já tenha sido...Ao menos, isso acabou, graças a Deus. (Pausa). Os olhos que ela tinha! (Divaga, se percebe, que está gravando o silencio, desliga o aparelho, divaga. Por fim). Tudo ali estava, toda a- (Percebe que o aparelho não está ligado, torna a ligá-lo) Tudo ali estava, toda a velha carcaça do planeta, toda a luz e a obscuridade, a fome e as comezainas dos séculos! (Pausa. Em um grito) Sim, senhor! (Pausa. Amargo). Deixar fugir uma coisa daquelas!Jesus! Uma coisa que podia, Tê-lo distraído dos seus quadris! Jesus! (Com cansaço) Enfim, talvez ele tivesse razão. (Divaga, apercebe- se . Desliga o aparelho. Consulta o sobrescrito) Bah! (Torna a lidar o aparelho) Nada a dizer, que chatice! Que raio vem a ser isso hoje, outro ano? Merda mastigada e rolha no cu. (Pausa) Saboreei a palavra bobina. (Com deleite) Bobiina! O instante mais feliz dos últimos quinhentos mil. Dezessete exemplares vendidos, dos quais onze a preço de grossista às bibliotecas municipais do ultramar. Em riscos de me tornar alguém. Uma libra, seis xelins e alguns dinheiros, oito provavelmente. Arrastei-me lá por fora uma vez ou duas antes de o Verão gelar. Fiquei sentado a tiritar no parque, mergulhado em sonhos e ardendo por acabar. Ninguém. Derradeiras quimeras. (Com veemência). A recalcar! Queimei os olhos a ler Effie mais uma vez, uma página por dia, de lágrimas nos olhos ainda, Effie...(Pausa) Teria podido ser feliz com ela no mar Báltico, entre pinheiros e dunas. (Pausa) Não? (Pausa) E ela? (Pausa) Bah! (Pausa) Fanny veio uma ou duas vezes. Velha sombra de prostituta esquelética. Não consegui fazer grande coisa, mas sem dúvida melhor do que um pontapé entre as pernas. A última vez, não foi tão mal quanto isso. Como consegues a tua conta, disse-me ela, com essa idade? Respondi-lhe que me reservara para a ela toda a vida. (Pausa) Lá fui às Vésperas uma vez como quando usavam calções. (Pausa, canta).

Cantando- A sombra desce das nossas montanhas
                 O azul do céu vai não vai empalidece,
                 O barulho extingue- se (Acesso de tosse quase inaudível)
                 Em breve tudo vai dormir em paz.

(Ofegante) - Adormeci e cai do banco abaixo. (Pausa) Muitas vezes me perguntei a meio da noite se um ultimo esforço me não seria talvez...(Pausa) Basta! Emborca a garrafa e deita- te a dormir. Continua as bandalheiras amanhã. Ou fica por aí. (Pausa) Fica por aí, pois. (Pausa) Instala- te no escuro, agarrado aos travesseiros- e vadia. Vai outra vez até ao vale em vésperas de Natal colher azevinho, azevinho de bagas vermelho. (Pausa) Vai mais uma vez até à beira do Croghan um domingo de manhã, entre a bruma, e leva a cadela, pára e escuta os sinos. (Pausa) E assim sucessivamente. (Pausa). Toda essa velha miséria. (Pausa). Uma vez não te bastou. (Pausa) Vem- te sobre ela.

Longa pausa. Inclina- se bruscamente sobre o aparelho, desliga-o, arranca a fita, atira-a para longe, coloca a outra no aparelho, fá- la avançar até a passagem que procura, torna a ligar o aparelho, escuta de olhos fitos.

A FITA- Groselhas verdes, respondeu-me ela. Disse-lhe ainda que tudo aquilo me parecia sem esperança e não valia a pena continuar e ela fez que sim sem abrir os olhos. (Pausa) Pedi-lhe que olhasse para mim e após alguns instantes- (pausa)- após alguns instantes ela olhou, os olhos porém como fendas por causa do sol. Inclinei-me sobre ela para os pôs à sombra e eles abriram- se. (Pausa) Deixaram- me entrar. (Pausa) Derivávamos por entre os caniços e o barco encalhou. Como eles se dobravam, suspirando, diante de .. (Pausa) Vim- me sobre ela, o rosto entre os seus seios e a mão por cima dela. Ali ficamos, deitados, sem nos mexermos. Mas, debaixo de nós, tudo estremecia, e nos fazia estremecer, docemente de alto a baixo, e de lá pra cá.

Pausa. (Os lábios de Krapp murmuram sem ruído)

- Passa da meia- noite. Jamais ouvi tamanho silencio. A Terra podia ser desabitada,

Pausa.

Aqui termino esta fita. Caixa- (pausa)- três bobinas- (pausa). Possivelmente os meus melhores anos já passaram. Quando havia ainda uma oportunidade de felicidade! Mas agora já não quero. Agora que tenho esse fogo dentro de mim. Não, agora já não quero.

Krapp fica imóvel, olhos fitos no vazio. A fita continua a desenrolar- se em silêncio.

_________________________
El dia que me quieras

                                                                           de José Ignácio Cabrujas

Tradução e adaptação
de Antonio Mercado




PERSONAGENS:
(por ordem de entrada em cena)
Luíza Ancízar
Pio Miranda
Elvira Anzízar
Matilde Ancízar
Plácido Ancízar
Alfredo Le Pera
Carlos Gardel

1º ATO

(A sala e o pátio das Ancízar ao meio- dia. Um relógio soa e é a única exatidão do local. O resto é árabe e fantasioso: jarrões dourados, borboletas de louça, pastorzinhos pálidos, lótus, bambus e quinquilharias. Maria Luíza está sentada num sofá austríaco. A seu lado, Pio Miranda observa o ralo do pátio)

Maria Luíza - E Stalin?

Pio - Stalin reúne todos eles no grande salão de conferências, à esquerda da porta principal, como quem vai para a sala de jantar de Ivan, o Terrível. Stalin aguarda e entra Bukárin, entra Zinoviev, entra Kamenev e Trotski e os velhos bolcheviques, tensos, compenetrados, solenes. Rakovski tosse.

Maria Luíza - Quem é Rakovski, Pio?

Pio - Rakovski é o comissário da Armênia, conhecido como o “Grande Urso”. Rakovski tosse. Stalin olha para ele. Rakovski não tosse. Stalin se levanta, sombrio, essencial, profundo. E é aquele momento de angústia. E Stalin diz: “Camaradas: Vladimir Ilich Lênin acaba de falecer”. “O quê?”, diz Kamenev, um quê sufocado, terrível. E a cabeça se move...

Maria Luíza - A cabeça de quem?

Pio - A cabeça de Kamenev. Bukárin se levanta e vai até a famosa janela da czarina, como era chamada no tempo da opressão. Zinoviev olha para ele. Stalin olha para ele e Trotski pergunta: “O que o camarada Bukárin está fazendo na famosa janela da czarina?”

Maria Luíza - Estava chorando.

Pio - Estava chorando. Os grandes olhos de Bukárin repletos de lágrimas. Lênin partira para sempre naquele dia 21 de janeiro de 1924. Então Stalin baixou a cabeça, pela única vez até hoje, e disse: “Camaradas, como é que se preenche um vazio?”

Maria Luíza - Como é que se preenche um vazio?

Pio - Aí entra Alliluyeva, a mulher de Stalin, com o  samovar da tarde.

Maria Luíza - Ah, nada como um chá de samovar! Será que um dia vamos ter um, Pio?

Pio - Acho que sim. Senão, eles deixam a gente usar o samovar do colcós.

Maria Luíza - Tem neve lá, não é, Pio? Deve ser tão frio...

Pio - No começo. Depois a gente acostuma.

Maria Luíza - Vou falar com a Elvira hoje.

Pio - Por que não esperamos a resposta de Romain Rolland?

Maria Luíza - Ela não sabe quem é Romain Rolland. A gente chega em Moscou e fala a verdade. Para que precisamos de uma carta de Romain Rolland? Em Moscou é diferente, não é? Não tem tanta burocracia como aqui. A gente vai ao Kremlin e fica lá junto ao túmulo de Lênin. Acaba chegando alguém. Chega o Rakovski, o Zinoviev, o Kameniev, alguém. Quem sabe o próprio Stalin. Então a gente bota as cartas na mesa: “Olha, Stalin, nós viemos de Caracas, Pio Miranda e Maria Luíza Ancízar, muito prazer”. O que pode acontecer, Pio?

Pio - Ele não vai entender.

Maria Luíza - Por que não?

Pio - Porque o camarada Stalin não fala espanhol.

Maria Luíza - Talvez o Zinoviev ou o Kameniev.

Pio - São pessoas muito ocupadas, Maria Luíza. Você não pode ir atrás deles assim, sem mais nem menos, e dizer que está chegando de Caracas.

Maria Luíza - Por que? Eles não sabem onde é Caracas?

Pio - Claro que sabem. O camarada Stalin tem uma visão global do planeta! Não é esse o problema. E além do mais, é impossível entrar num país desse jeito. Existem alfândegas. Se existem aqui, neste equívoco da História, como não vão existir na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas? Foi justamente por isso que escrevi a Romain Rolland. Porque é um humanista, unha e carne com o camarada Stalin e fala grosso na Internacional Socialista. Entrar no Kremlin como quem entra na casa da sogra, não é a mesma coisa que levar uma carta de Romain Rolland dizendo: “Apresento-lhes Pio Miranda e Maria Luíza Ancízar, de Caracas, que aí vão com a intenção de participar da vida colcosiana, dentro do plano quinquenal, etc, etc. (Entra Elvira Ancízar. Chega da rua)

Elvira - Matilde já chegou?

Maria Luíza - Ainda não.

Elvira - Você viram as faixas? Meu Deus, é ver todas aquelas faixas e bandeiras e depois morrer! Não há mais uma flor na cidade inteira. Esta noite o Municipal vai ser puro perfume de magnólia. E ele veio de preto, imaginem! Mas nem uma gota de suor no corpo inteiro. Aquela testa limpa e todo mundo comentando: “Ele não sua, ela não sua!”

Pio - Lênin também não suava.

Elvira - Lênin está embalsamado. (Entra Matilde)

Matilde - Já sabem?

Elvira - Que ele não sua?

Matilde - Não sua!

Elvira - Acabei de contar.

Matilde - E a história do trem?

Elvira - O que é que houve no trem?

Maria Luíza - Matilde, depois você conta. Agora eu tenho que conversar com a Elvira.

Elvira - O que é que houve no trem?

Matilde - Ele subiu no trem. Era um vagão só para ele. O povo apinhado, assim de gente, pedindo uma canção.

Elvira - Selvagens.

Matilde - Então ele sorri, mostra a garganta e diz: “Esta noite, esta noite”. Aliás, aquela história de ouro no dente é mentira. Os dentes são perfeitos, uma dentadura impecável.

Pio - Quem viu a dentadura dele?

Matilde - Vox populi.

Elvira - É que esta gentinha não cansa de inventar bobagens. Faz anos que eu repito: é mentira isso do dente, como é mentira a história do bordel da mãe dele, é calúnia que o pai era maricas, como é mentira isso do Uruguai, a pior mentira de todas!

Pio - E por que ele não pode ser uruguaio?

Elvira - Porque está na cara que não é uruguaio. Ele irradia o Mediterrâneo, Toulouse, no tom da voz, no vinco das calças, no talhe do paletó, e você logo vê: isso não é uruguaio.

Pio - O Uruguai é um país culto.

Elvira - Mas a duras penas. Tem muito pampa. E além disso, o nome: Gardel, que em francês arcaico quer dizer “guardião”.

Matilde - Queriam arrancá-lo pela janela do vagão. E ele dizia: “Acabei de chegar de uma longa viagem e gostaria de me transformar em dez mil pessoas para apertar a mão de todos vocês e abraçar o general Gómez”.

Maria Luíza - Matilde, eu vou embora.

Pio - Quanto é que estão pagando a ele?

Elvira - E que interessa quanto estão pagando? Não estão pagando nada. Quanto é que estão pagando àquele russo de bigode, o Stalin?

Pio - Trezentos rublos. E ele devolde duzentos ao comitê central. O dinheiro não é fundamental na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Elvira - Meus parabéns.

Matilde - Daí a locomotiva se pôs em moviento, então ele fechou os olhos e cantou “Amores de estudiante” e quando disse “amores”, ele olhou para mim!

Maria Luíza e Elvira - Como é?

Matilde - Eu sei que olhou para mim. Ele, na sua janela do trem, e eu ali. Mas eu senti que “Amores” era para mim!

Elvira - Ele veio sozinho?

Matilde - Com o sr. Le Pera.

Elvira - E como é esse Le Pera?

Matilde - Não vi direito. Era tanta gente.

Elvira - E eu na agência do correio, vendendo selos como um judeu errante. Vinte anos destacando os selos no picote exato, sem faltar um só dia ao trabalho. (A Pio)  E você falando de marxismo. Marxismo é botar uma bomba no correio e ficar na esquina vendo cair do céu aquela chuva de tijolos com pedaços de carne do superintendente Bartorelli.

Pio - E quem disse que não?

Elvira - Você e a sua Internacional Comunista! Onde está essa Internacional? Não a vejo em lugar nenhum. Vejo é o Bartorelli me negando a licença para ir à estação. Isso é que é a exploração do homem pelo homem, no guichê do correio! Gardel chega, “Mi Buenos Aires Querido”, “Mano a Mano”, “Melodía de Arrabal”, “Volver”, “El Día Que me Quieras”, o supra-sumo do tango, presidentes que dançam tango, reis que dançam tango, gente de verdade lá do exterior, Gardel, Le Pera, a Broadway, e eu picontando selos na agência do correio. O mundo é uma merda.

Maria Luíza - Elvira!

Elvira - É hoje o dia. Disseram: Gardel vai chegar! E eu disse: é mentira. Vai chegar pra que? Por que ele precisa vir? E agora ele está aqui. A gente quer ver a História e acaba sempre ouvindo.

Maria Luíza - Mas o que é que o Pio tem a ver com...

Elvira - E o Pio já teve alguma coisa a ver com o quê? Eu gostaria muito que um dia você me explicasse com o que é que o Pio tem a ver. Quando mamãe estava agonizando, na cama, antes de dar o último suspiro, me disse, como irmã mais velha: “Elvira, ou esse homem se define de uma vez por todas com Maria Luíza, de véu e grinalda na Santa Madre Igueja, ou eu não vou ter sossego no túmulo”.

Pio - Elvira, acho que já expliquei mais de mil vezes as razões de minha conduta nesta casa.

Elvira - Você é o rei da explicação. É capaz de explicar até uma valsa a um surdo, da introdução ao tcha-tcha-bum do último compasso.

Maria Luíza - Elvira...Pio e eu vamos embora hoje.

Matilde - Para onde, tia Maria Luíza?

Maria Luíza - Para um colcós na Ucrânia.

Matilde - O que é um colcós na Ucrânia?

Maria Luíza - É um lugar no campo, uma espécie de fazenda coletiva.

Matilde - Um lugar russo?

Maria Luíza - Pio e eu estamos esperando uma carta de Romain Rolland, o autor de “Jean-Christophe”.

Elvira - Mas quem é Romain Rolland?

Pio - Há um mês escrevemos para ele, um famoso escritor francês, muito admirado não só pelas suas obras, mas também por sua luta em favor da paz e da amizade entre os povos.

Elvira - E o que é que um escritor francês tem a ver com a vida da minha irmã?

Maria Luíza - Elvira...eu quero vender a casa.

Elvira - Vender nossa casa? A casa dos Ancízar? A quem? Ao Romain Rolland?

Pio - Não. Romain Rolland mora em Paris e não tem o menor interesse nesta casa.

Maria Luíza - Vender a casa a quem pague um preço justo.

Elvira - E quem vai pagar um preço justo por esta casa? E o que vamos fazer com Matilde?

Matilde - Tia Maria Luíza, por que você tem que ir para tão longe, com tanta agricultura por aqui?

Elvira - Essa é a terrível conseqüência dos namoros longos. As pessoas ficam ociosas e onanistas de tanto pensar e cismam de acabar a vida na Ucrânia ou em qualquer país de camelos. Dez anos dessa baboseira comunista e você já não tem lei, nem respeito, nem família! Vender a casa! É a única coisa que lhe vem à cabeça!

Maria Luíza - Acho bom te lembrar, Elvira, que na mesma cama e na mesma agonia, mamãe falou que a casa seria vendida quando uma de nós precisasse. E não admito mais nenhuma ofensa à pessoa do meu noivo. Porque se eu quiser passar o resto da minha vida com este homem nas estepes soviéticas, é uma decisão que me pertence, como pertence a vida a quem já tem trinta e quatro anos.  

Pio - Maria Luíza...

Maria Luíza  (À Elvira) - Não estou botando você para fora de casa.

Elvira - Era só o que me faltava.

Maria Luíza - Mas decidi tentar a vida em outro lugar e ninguém vai me impedir!

Pio - Quero esclarecer que essa é uma decisão de Maria Luíza e que de forma alguma penso em tocar num único rublo de sua herança!

Elvira - Não acredito numa única palavra do que você diz. Porque, pra começo de conversa, a idéia de ir para a Ucrânia é sua. Faz trinta e quatro anos que conheço minha irmã, desde a água fervendo na hora do parto até hoje e ela nunca me falou de colcós na Ucrânia, nem de bolcheviques, nem da revolução de outubro. Esse interesse pelo estrangeiro só começou depois que você chegou com essa lenga-lenga de materialismo.

Pio - Lenga-lenga? Eu partilho as minhas idéias com a minha camarada! Acredito num mundo onde se partilham as idéias com a camara mulher! E me oponho às braguilhas solitárias e ao macho quinzenal, em nome da humanidade nova! O dinheiro de Maria Luíza não tem nada a ver com este assunto. Planejei com ela a possibilidade de irmos para a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas porque quero que meus filhos nasçam dentro da verdade proletária e não nesta lata de lixo do imperialismo. Mas em nenhum momento - juro pela foice e o martelo e pela imaculada Rosa de Luxemburgo - me passou pela cabeça aceitar um único rublo de propriedade de Maria Luíza!

Matilde - Mas por que não falamos disso amanhã?

Elvira - Matilde, já para o quarto.

Matilde - Gardel chegou! Vai cantar no Municipal esta noite! Será que vocês não entendem? (Entra Plácido Ancízar)

Plácido - Já chegou ao Hotel Majestic!

Elvira - Quando?

Plácido - Onze malas! Há uma multidão no lobby do hotel: o governador, o reitor, a Academia de História e até o arcebispo, furioso porque levou um beliscão na bunda. E o pessoal explicando: “Não senhor, foi sem querer, não estamos em Sodoma”.

Matilde - E o Gardel?

Plácido - No banheiro, com Le Pera. Quando nós entramos no hotel, o sr. Pimentel e eu, representando a empresa, a polícia não queria nos deixar passar. Aí o Pimentel disse: “O senhor Gardel vai cantar no ‘meu’ teatro esta noite. O sr. Gardel está me esperando”.

Maria Luíza - Pio, vamos lá fora.

Plácido - Que é que houve?

Maria Luíza - Nada.

Plácido - Mas eu trouxe as entradas!

Maria Luíza - Esta noite eu não vou.

Plácido - Por que?

Elvira - Maria Luíza!

Maria Luíza - Não vou e pronto!

Pio - Faço constar que não influí na decisão dela!

Matilde - Tia Maria Luíza!

Maria Luíza - Venda a minha entrada. Não estou com vontade de ir.

Plácido - Mas eu tive que suplicar ao seu Pimentel para conseguir as três entradas!? O que é que eu vou dizer a ele?

Maria Luíza - Nada. Dê a um pobre. Ou então venda. Vamos, Pio.

Pio - Pelo menos você pode ganhar a mais valia. Boa tarde. (Saem Maria Luíza e Pio)

Plácido - Tia Maria Luíza! O que é que eu faço com a entrada?

Elvira - Deixa ela. Levantou de ovo virado. Coisas de mulher.

Plácido (Saindo) - Tia Maria Líza! Consegui para você na sexta fila! Você tem que ir!

Matilde - Tia Elvira.

Elvira - Melhor não se meter.

Matilde - Podíamos ir ao Majestic.

Elvira - Para quê?

Matilde - Para ver.

Elvira - Vender a casa...você ouviu?

Matilde - Tia, por que você não fala com ela?

Elvira - E ela vai me responder o quê? Ucrânia! União das Repúblicas Socialistas Soviéticas! Nada mais interessa, porque agora ela é comunista. Como se soubesse o que é um pobre, como se tivesse trabalhado algum dia! Hipócrita!

Matilde - Tia Elvira...

Elvira - Mil vezes hipócrita!

Matilde - Mas não é a felicidade dela? Porque eu a vejo tão leve, como se flutuasse no ar.
Elvira - Eu conheço a felicidade das mulheres. Ela não continua virgem? Então que besteira de felicidade é essa? A felicidade da Santa Rosa de Lima, que ficava contente quando via um canário?

Matilde - Mas como tem certeza de que ela é virgem, tia?

Elvira - Porque esse sujeitinho é incapaz de ser macho em território nacional. Até a biologia dele só funciona na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Pois ele não falou da imaculada Rosa de Luxemburgo? Quem garante que essa tal de Rosa de Luxemburgo queria mesmo ser imaculada?

Matilde - Quem é Rosa de Luxemburgo?

Elvira - Sei lá! Felicidade...Quando me casei com Raimundo Galarraga, tive pelo menos uma alegria que foi um pouco além dos canários de Santa Rosa. Era químico, o Raimundo. Ou pelo menos dizia que era químico. Na verdade, fabricava um perfume horrendo, enjoativo, que as mulheres da zona compravam aos litros.

Matilde - E fugiu para Trinidad.

Elvira - Com uma negra chamada Jenniffer. Inventou que o governo o perseguia e durante uns três anos eu fiquei mandando dinheiro para ele, lá para o número 18 da Caimán Street. Quando descobri a verdade, tive vontade de me deitar para sempre com um círio nas mãos, de tão santa e tão burra. Felicidade...um mínimo de decência. Isso é felicidade.

Matilde - Como naquele filme do Gardel, “Em día que me quieras”, quando Rosita Moreno pega tuberculose galopante e o lenço se enxarca de sangue cada vez que ela tosse, e a amiga dela se preocupa e diz: “Aura, o que é que você tem? O que está acontecendo com você” e Rosita Moreno responde: “Nada, nada”, com uma voz de navio que se afasta e de horizonte que se desfaz. “Nada, nada” e a amiga de Rosita Moreno, desesperada porque o lenço está molhado de sangue, implora que ela conte a verdade e diga ao Gardel que é sangue, sim; que é agonia e cruz e calvário...lembra, tia Elvira?

Elvira - Sim.

Matilde - E a Rosita Moreno faz de tudo para que ele não perceba.

Elvira - É, era assim mesmo. Mas por que?

Matilde - Um ano depois, Gardel volta àquela casa. E vê os móveis cheios de pó e o colchão enrolado no canto.

Elvira - Nunca reparei no colchão.

Matilde - É que nessa hora ele cantava “Sus ojos se cerraron”.

Elvira - “Por que tus alas...” Com que vestido você vai hoje à noite?

Matilde - O branco de lacinhos azuis. Era um sacrifício tão grande...como se Rosita Moreno fosse uma pomba que vai virar canja...

Elvira - Você devia ir de preto. Que mania de usar lacinho e bolinha o tempo todo! Você já tem 25 anos!

Matilde (Cantando) - “...quise olvidarla y más pudo la muerte”.

Elvira (Chorando) - É “obrigarla, não olvidarla”. Taí o disco! (Sai para o quarto. Matilde aciona o gramofone e se escuta “Sus ojos se cerraron”. Entra Plácido)

Plácido - Ele está aqui, Matilde.

Matilde - Já deve ter saído do banheiro, não é?

Plácido - Que banheiro?

Matilde - Você não disse que ele tinha se trancado num banheiro com o Le Pera?

Plácido - Sim, mas depois saiu.

Matilde - E o que eles foram fazer lá? Mijar?

Plácido - Falei com ele, Matilde.

Matilde - Onde?

Plácido - Na cozinha do Majestic. O seu Pimentel e eu entramos. Ele ficou me olhando e disse: “Como as pessoas daqui são estranhas”.

Matilde - Assim mesmo, Plácido?

Plácido - Desse jeito.

Matilde - “Como as pessoas daqui são estranhas”. E que mais?

Plácido - Aí eu disse: “Olhe, Gardel, o sr. Pimentel aqui, como empresário, e este seu servidor, queremos lhe perguntar se está bem acomodado”.

Matilde - Ele é alto, Plácido?

Plácido - Matilde: quando o vi, minha virilidade teve um choque. Ele é como nos filmes e tem uma espécie de luz que se irradia dele.

Matilde - E o le Pera?

Plácido - Le Pera no meio das panelas, vigiando, provando o molho, mordiscando. Foi aí que eu lhe disse: “Olhe, Gardel, já que está bem acomodado, talvez queira verificar as instalações do teatro, o camarim, as coxias, as cortinas, o telão pintado, a táboa que range, o microfone, os alto-falantes. Porque me deu uma bruta vergonha de tudo, Matilde. Pimentel, mudo. As cozinheiras do Majestic, como se estivessem vendo um fantasma! Aí o Gardel me disse: “Como é o seu nome?” E eu respondi: “Plácido Ancízar, neto do general Ancízar”. “Plácido Ancízar”, respondeu ele, “se você acha que está tudo bem, para mim está tudo bem”. E eu senti a História Universal do ser humano, Matilde, desde o massacre de Tróia até a chegada de Colombo. Era como se ele devolvesse o meu nome embrulhado em cultura!

Matilde - “Se você acha que está tudo bem, para mim está tudo bem”. (Entra Pio)

Pio - Matilde, onde está Elvira?

Matilde - Ela sentiu-se mal e foi para o quarto, Pio. Por que você não deixa para falar com ela amanhã, depois do espetáculo?

Pio - Para mim, Gardel não é um divisor de águas da História.

Plácido - Mas é um homem de idéias avançadas, um homem do povo. Com oito anos já vendia mate nas ruas de Montevidéu. Tenho certeza que ele simpatiza com a Internacional Comunista.

Pio - Matilde, diga a Elvira que preciso falar com ela e que Maria Luiza está lá na calçada me esperando.

Matilde - Chegou a carta de Romain Rolland? Já vou, já vou. (E sai. Plácido guarda  o disco de Gardel)

Plácido - Vai mesmo levá-la embora, Pio?

Pio - Já me viu alguma vez  forçando sua tia nesta casa?

Plácido - Eu compreendo os ideais, Pio. Entendo que o pobre sofre e se fode. E sei que existe gente que tem demais e gente que tem de menos e que a humanidade precisa de uma reviravolta, de umas cabeças cortadas, uma revolução geral! Tudo isso está gravado na minha cabeça, Pio, e também a mais valia desse negócio do Pimentel, que bota o capital e me rouba o trabalho, e mais as cinco leis da dialética e o desvio de Trotsky, o imperialismo e a luta de classes. Eu não era nada, Pio, antes de você me dar essa luz. Hoje, vejo o Pimentel no escritório e penso: Ah, Pimentel, e me preparo, na moita, para o dia da coisa. Quando Pimentel me vir entrando no escritório, em 1947, com a metralhadora na mão.

Pio - Como é que você sabe que vai ser em 1947?

Plácido - Sei lá. Sempre achei que ia ser em 1947.

Pio - Vamos colocar a bandeira vermelha no capitólio.

Plácido - Coma foice e o martelo. Stalin também virá, não é?

Pio - O camarada Stalin virá nos visitar.

Plácido - Como Gardel.

Pio - Nunca se verá tanta gente em Caracas. Nessa manhã, vamos nos encontrar em frente ao congresso e se me for dada a honra, vou te entregar o cordel da bandeira vermelha para que você mesmo a hasteie no mastro.

Plácido - Sério? (Entra Elvira)

Elvira - Matilde está te chamando na cozinha, quer mais detalhes do Gardel.

Plácido - Elvira, diga a ele para te explicar o dia da bandeira, para falar de 1947. (E sai)

Pio - Desculpe ter discutido e peço desculpas.

Elvira - Não há porquê.

Pio - Pedi a Maria Luíza para vir comigo hoje mesmo. Vamos procurar um lugar para ficar e depois vamos embora.

Elvira - Me avise para onde devo mandar a cama dela!

Pio - Não me interessa a cama de Maria Luíza, nem seus pertences.

Elvira - Muito me alegra.

Pio - Agora faça o favor de me ouvir, porque vou falar deste assunto pela última vez. Neste meus quarenta e tantos anos de vida já fui professor primário, tipógrafo, secretário de um comprador de esmeraldas, espírita, seminarista, rosacruz, maçon, ateu, livre-prensador e comunista. E agora vou lhe explicar porque sou comunista! Quando era menino, minha santa mãe, Ernestina, viúva e enfermeira aposentada do Hospital dos Leprosos, se enforcou no quarto. E sabe como ela se enforcou? Empilhou no chão Os Miseráveis, O Conde de Monte Cristo,  A Dama das Camélias, O Crime do Padre Amaro e uma edição ilustrada da Bíblia. A desgraçada pulou da pilha de livros e não me deixou nem uma merda de bilhete explicando por quê. Simplesmente se atirou do alto do melodrama romântico com uma fúria inexplicável. Hoje até parece piada e eu mesmo já me peguei rindo, às vezes, ao contar o caso. Mas desde esse dia passei a ter medo! Fazia xixi na cama de puro medo! Não conseguia atravessar o pátio depois das onze, de medo de encontrá-la debaixo do limoeiro! Você vai perguntar: medo de quê, porra? Medo de que ela me explicasse por quê tinha feito aquilo. Medo de acabar na mesma viga, debaixo do mesmo teto. Li todos os livros daquele patíbulo, procurando uma explicação qualquer! Páginas e páginas...e nada! Entrei para o seminário arquidiocesano e comecei a me masturbar todas as noites. Um dia me pegaram com a imagem de Santa Rita. E me tacharam de louco e de pocesso! Então deixei de acreditar em Deus. Casto, como é que eu podia acreditar em Deus, se a imagem de Santa Rita me provocava? Você não percebe que me expulsaram da vida?

Elvira - Bendito seja o Misericordioso.

Pio - Não existe um Senhor Misericordioso! Você está no mundo com suas mãos, com sua língua! Eu podia lhe dizer que sou comunista pelo fígado de Marx e pela cabeça de Engels! Mas não: sou comunista por causa do que disse a cozinheira da pensão onde mamãe morreu! Sabe por que mamãe se enforcou? Porque cortaram o orçamento do Ministério da Saúde e houve um erro na lista dos pensionistas! Um mês e meio sem dinheiro! Morreu de vergonha! E então eu me perguntei: onde estão os incendiários desta sagrada merda?

Elvira - Acho que estou com enxaqueca. Diga a Maria Luíza para entrar. Não tem nada o que fazer na calçada.

Pio - Às vezes me dá vontade de sair correndo e não voltar nunca mais. Fundar um colcós na Guiana e ficar mudo para sempre.

Elvira - Quer terminar o noivado com Maria Luíza?

Pio - Não sei. Honestamente, não sei.

Elvira - E a carta do Romain Rolland?

Pio - Ele não vai responder.

Elvira - Como é que você sabe?

Pio - Nunca mandei a carta.

Elvira - Judas.

Pio - Não sei nem onde mora Romain Rolland. E mesmo que soubesse, que interesse ele pode ter nisso?

Elvira - E minha irmã?

Pio - Venho buscá-la esta noite.

Elvira - E vão para onde? Para a pensão Bolívar?

Pio - Acho que nasci cinquenta anos antes do que devia. Ou quem sabe me extraviei do mundo. Às vezes olho o mapa da Austrália só porque é longe como o diabo. E fico pensando que lá deve existir um outro como eu, um vendedor de soluções, um falsificador. Me aproximo de estranhos e cinco minutos depois estou explicando alguma coisa. Como se tivesse pena deles. As pessoas ficam sem graça e em vez de falarem, eu mesmo respondo, explico e reparto pedaços de mundo. Com a única intenção de que me perdoem. E tenho vontade de gritar: que merda de vida vocês levam, só porque não nasceram um pouquinho mais para lá! Ninguém está me pedindo explicações! Ninguém se interessa por elas, e eu peço perdão por ser testemunha dessa imbecilidade toda! Foi assim também com Maria Luíza. “O que vamos fazer, Pio? Quando partimos, Pio? Quando vamos casar, Pio?” E eu fechei os olhos e me vi num beco sem saída. Então disse que ía escrever uma carta ao Romain Rolland, para que ela pensasse que ele era a saída do beco sem saída. Romain Rolland falaria com Stalin e Stalin era o colcós de beterrabas na Ucrânia. Ridículo, não é?

Elvira - Vivemos tão mal, Pio, com as samambaias e os canários, e o crucifixo atrás da porta. Vivemos tão mal...(Entra Matilde. Pôs o vestido branco com lacinhos azuis)

Matilde - Que tal?

Elvira - Está um doce.

Matilde - E a tia Maria Luíza?

Pio - Vou chamá-la. (E sai)

Elvira - Maria Luíza vai, sim, e vamos ter uma grande noite. Daqui a cinquenta anos, quando eu estiver morta, continuará sendo uma grande noite...(Elvira começa a cantar o refrão de “Cuesta abajo”. Matilde junta sua voz à dela. A voz de Gardel faz-se ouvir na primeira estrofe. Maria Luíza e Pio entram, juntando-se ao coro)

Matilde - Nós três juntas, hoje à noite, na sexta fila do Municipal, ouvindo Gardel cantar “Cuesta abajo” ao vivo! Eu não acredito! (Da rua vem o som de foguetes que anunciam a chegada de Gardel) Foguetes! Plácido, Plácido! (Sai para a rua)

Elvira - Por que não vai ver os fogos, Pio? Quem sabe a revolução não é também um som? Enfim, esta noite você vai com a Passionária para a pensão Bolívar. Não esqueça de me dar o endereço, para quando chegar a carta de Romain Rolland.

Pio - Às vezes o correio demora.

Elvira - A culpa é do Bartorelli. Mas tudo isso vai mudar quando hastearem a bandeira vermelha no capitólio.

Pio - Em 1947.

Elvira - Pois é.

Maria Luíza - Que é que há com vocês dois?

Elvira - Nada. Conversamos e nos desculpamos. Todos nós temos os nossos problemas.

Pio - Volto à noite, Maria Luíza. Depois do show. (Pio sai)

Maria Luíza - Tinha que ser hoje.

Elvira - Não diga nada e me dê um abraço.

Maria Luíza - Minha irmãzinha querida. Bom...não vai ser por muito tempo. Uns sete, oito anos, só.

Elvira - É.

Maria Luíza - E quem sabe você...

Elvira - O que?

Maria Luíza - Dá uma jeito de ir.

Elvira - Tão longe?

Maria Luíza - Eu economizo e te mando a passagem.

Elvira - Vamos ver.

Maria Luíza - É bonito lá. Tem campos de beterraba e programas culturais. Uma vez  por ano Stalin distribui a medalha do trabalho e as pessoas se reúnem na sede do colcós.

Elvira - Maria Luíza: como é que você vai fazer para cultivar campos de beterraba? Você nunca plantou um nabo!?

Maria Luíza - Eu aprendo. Também não é tão difíícil assim. Eles dão as sementes e a gente enfia na terra. Com o tempo elas crescem.

Elvira - Bem, afinal...é a sua vida, não é?

Maria Luíza - Que é que eu vou fazer, se ficar aqui? Visitar o Pio na cadeia?

Elvira - Nem pensar.

Maria Luíza - Aprendi a escutar a voz dele, seus rompantes, sua ternura, quando quero saber alguma coisa, ele me explica. E já houve tantos silêncios depois de suas palavras...

Elvira - Eu sei como é.

Maria Luíza - Sentamos sempre neste sofá.

Elvira - Você tem que levar um sobretudo. Faz um frio danado, lá.

Maria Luíza - Não sei da revolução, Elvira. Sei de mim. E às vezes é maravilhoso saber de mim. É incrível como fui me descobrindo, a cada dia. Às vezes penso que ele não vai voltar e me dá um medo. Mas ele vem todos os dias, às onze e meia, sempre como um intruso, envergonhado pelo almoço, dizendo que não quer incomodar. Ele nunca me tocou. Você acredita? Na verdade, não temos nada para recordar. Vivemos para o dia em que haverá justiça e o mundo pertencerá a todos. (Entra Le Pera)

Le Pera - Desculpem. A porta estava aberta.

Elvira - O que é que o senhor deseja?

Le Pera - É aqui que mora o sr. Plácido Ancízar?

Elvira - Sim.

Le Pera - Carlos! Chegamos! É aqui! (Entra Gardel)

Elvira - Desculpe, mas quem é o senhor?

Gardel - Boa tarde. Meu nome é Gardel.

FIM DO 1º ATO

*     *     *

SEGUNDO ATO

  (A sala e o pátio das Ancízar à meia-noite. Elvira acende a luz da sala. Maria Luíza e Matilde entram junto com ela. Vêm do Municipal)

Matilde - É que não existem palavras para contar como foi! Que apoteose! (Canta alto) “Barrio, barrio, que tenés el alma inquieta de un gorrión sentimental”.

Maria Luíza - Matilde, cante mais baixo.

Matilde - Por quê? Quero que o mundo inteiro ouça! Quero que todos acordem! (A berros) “Viejo barrio, perdoná si al evocarte, si me planta un lacrimón, que al rodar en tu empedrao, es um beso prolongao, que te dá mi corazón”. Gente, que exagero de homem!

Maria Luíza - Ficou maluca.

Elvira - Agora é que eu quero ver a cara do Bartorelli! Amanhã só vou chegar no guichê às onze. E quando aquela cavalgadura me perguntar por que me atrasei, vou dizer: lamento muito, Bartorelli, mas ontem Carlos Gardel esteve em minha casa, e há certos compromissos que nos obrigam a um pequeno atraso! Não creio que este acidente burocrático prejudique a eficiência das comunicações nacionais!

Maria Luíza - Acho que não temos taças suficientes.

Elvira - Por que? Só vem ele e o Le Pera.

Maria Luíza - E se ele convidar mais alguém?

Matilde - Ele foi claro e límpido quando entrou por esta porta às dua e meia da tarde, antes do meu desmaio. (Citando Gardel) “Dona Elvira”.

Elvira - “Dona Elvira, distinta senhora”.

Matilde - “Poderia eu ter a honra”.

Maria Luíza - “De visitá-las hoje à noite, depois de minha apresentação no Municipal?”

Matilde - Não é possível! Não acredito!

Elvira - Vamos celebrar esta noite de sonho com champanhe. Queria tanto que ao menos uma vez você erguesse a cabeça e olhasse para o céu. Às vezes há estrelas.

Maria Luíza - Pio deve estar quase chegando.

Matilde - Me deu uma vontade de fazer xixi.

Elvira - Vai, menina.

Matilde - E se o Gardel chegar? Jure que não vai deizer nada a ele.

Elvira - Juro.

Matilde - Fale de flores. Se ele chegar, fale de flores. (Sai)

Elvira - Você vai mesmo esta noite?

Maria Luíza - Vou.

Elvira - E sua roupa?

Maria Luíza - Depois venho buscar.

Elvira - Maria Luíza.

Maria Luíza - Elvira, pelo que há de mais sagrado, não diga que não tenho razão. Há dez anos pressinto o perfume deste dia. É hoje. Vamos para uma pensão, por enquanto, depois...

Elvira - E agora? O que é que você vai fazer agora? Faz dez anos que só ouço o Pio falar de depois. Quero saber é agora.

Maria Luíza - Não sei. Vou ficar por aí. Mas esta noite, são dez anos que vão terminar esta noite. E vai ser como todo mundo. Como você com Galarraga, não é mesmo?

Elvira - Galarraga tomou um porre, ficoui recitando poemas e falando de uma fábrica de essências. No dia seguinte foi embora. E quando ele saiu, pensei: não vou aguentar...porque era uma dor terrível. Mas no fundo tinha alguma coisa que eu nunca soube exatamente o que...Eu tinha vinte anos...como é que vou me lembrar? (Volta Matilde)

Matilde - Vocês repararam o cabelo dele? Tem um brilho incrível, como se fosse o reflexo do sol na cabeça. Aquele brilho latino do meio dia. Quem sabe se a história do Uruguai não é verdadeira?

Elvira - Esta noite todos os mistérios serão desvendados.

Matilde - Esta noite!

Maria Luíza - Será que a mãe dele não era índia?

Elvira - Branca e loira como a duquesa de Alba. Esse homem não pertence a nós.

Matilde - Quero ouvir de novo o que ele disse da casa!

Maria Luíza - Matilde, não precisa gritar!

Elvira - Mordeu uma folha de samambaia, olhou para mim e disse: “Dona Elvira, a senhora há de estranhar meu pedido, mas gostaria de partilhar esta noite com vocês”.

Maria Luíza - “Seria uma honra, cavalheiro”.

Elvira - “Porque esta casa se parece com a da minha mãe em Buenos Aires, quando chegamos de Montevidéu”.

Matilde - Como é que a gente faz para não gritar? Ao pisar neste assoalho, o primeiro latino-americano transcendental desde Anchieta, declara que esta casa se parece com a de sua mãe!

Maria Luíza - Foi tão bonito no teatro.

Matilde - Ver Gardel e depois morrer!

Maria Luíza - Quando nos dedicou “Yira, Yira” me deu vontade de chorar.

Elvira - E ninguém sabia para quem era. Mas todos se roendo de inveja.

Maria Luíza - Ele olhou bem para nós e disse: “esta tarde conheci três criaturinhas de quem vou levar a melhor lembrança”.

Matilde - “E elas são tão doces, tão gentis, quero dedicar um tango carinhoso: “Yira, Yira”. (Ouve-se a voz de Gardel cantando “Yira, Yira”. As três juntam suas vozes à dele)

Elvira - Ainda não pusemos a toalha.

Maria Luíza - Vocês vão até a cozinha buscar as taças. Eu coloco a toalha.

Matilde - Será que ele vem, Elvira?

Elvira - Vai chegar a qualquer momento. Eu sei. Pressinto. (Saem Elvira e Matilde. Maria Luíza procura a toalha e com milimétrica competência cobre a mesa que puseram ali para a transcendental ocasião. Entra Gardel)

Gardel - Com licença? (Maria Luíza se volta. Gardel cheira a toalha) Patchouli.

Maria Luíza - A casa toda tem sachês de Patchouli.

Gardel - Você é Maria Luíza?

Maria Luíza - Ancízar.

Gardel - Pega-se o centro da toalha, fazendo-se coincidir com o centro da mesa. Depois é fácil. (A toalha fica posta com incrível rigor) Aprendi isso na Holanda, com a pequena Guilhermina.

Maria Luíza - Quem é Guilhermina?

Gardel - A rainha, é claro. Guilhermina e suas toalhas de renda. Guilhermina e seus caprichos. Onde estão os guardanapos?

Maria Luíza - Na cristaleira. Não se incomode.

Gardel - Não é incômodo. É um modo de viver. (Gardel pega os guardanapos) Minha mãe sempre diz que os guardanapos devem ser o dobro do número de convidados. Não é incrível essa minha mãe?

Maria Luíza - Ela é argentina?

Gardel - Não sei. Você acredita que não sei? (Coloca os guardanapos nos lugares) Le Pera e Plácido vão trazer o vinho. E seu noivo?

Maria Luíza - Como sabe do meu...

Gardel - Plácido me falou dele. Um intelectual, pelo que entendi.

Maria Luíza - Acha mesmo?

Gardel - Por que não? Há uns três meses, em Paris, Romain Rolland me dizia...conhecem Romain Rolland por aqui?

Maria Luíza - Não. Sim.

Gardel - Bom, o velho Rolland me dizia, debaixo de uma marquise de Montparnasse: “Cher Gardel...” “Querido Gardel, há dois mil anos que confiamos no futuro. Não é muito chato?”

Maria Luíza - Quem? Romain Rolland?

Gardel - Não, o futuro. Rolland e suas manias. Ah, adoro os dias chuvosos de Paris. Nunca esteve lá?

Maria Luíza - Não.

Gardel - Que pena...Desculpe, não perguntei pela Elvira e pela Matilde. Se a minha mãe estivesse aqui me dava um puxão de orelha...

Maria Luíza - Meu Deus! Nem lembrei! Elas estão na cozinha! Quer que eu chame?

Gardel - Não devemos perturbar a intimidade culinária de duas damas. Vamos sentir a 
noite. Está abafado, não?

Maria Luíza - Se o sr. me permite...acho que é por causa do cachecol.

Gardel - Tem razão. (Tira o cachecol). Guarde. É seu. (Observa) Por que está tremendo?

Maria Luíza - Meu?    

Gardel - Não se fazem perguntas quando se recebe um presente, dizia Mahatma Ghandi. (Ri) Conhecem Mahatma Ghandi por aqui?

Maria Luíza - Não. Nunca esteve em Caracas.

Gardel - Ah, que pena.

Maria Luíza - Se importa se eu fizer uma pergunta? Uma só? Por que veio aqui? Por que esta noite? Por que nós?

Gardel - Coisas técnicas do le Pera. Sei lá, um microfone, o som do violão. Havia um bando de gente no hall do Majestic e de repente eu o vi sair. Ele estava procurando o Plácido. Então eu disse: vou com você. Quando chegamos aqui, a porta estava aberta e lá da rua vi as samambaias...(Entra Pio com uma maleta)

Pio - Você está pronta?

Maria Luíza - Este é Gardel.

Pio - Gardel?

Gardel - Mas nós já nos conhecemos! Há meia hora que ela só fala em você! (Aperta a mão de Pio) Gardel, enchanté (Corrige) Meu deus, a Babel dos idiomas: muito prazer!

Pio - Pio Miranda. Maria Luíza, o que ele está fazendo aqui?

Maria Luíza - Estávamos no pátio e de repente nós o vimos. Não me pergunte como, não sei. Ele queria uma muda de samambaia, não foi?


Gardel - Está de partida, meu caro Pio? Mas que romântico! Antes de enfrentar a dura estrada, veio despedir-se da noiva. Isso é que é galanteria!

Maria Luíza - Ainda não pude avisar a Elvira e Matilde! Elas não vão me perdoar nunca! (A Gardel) Com licença. Volto já. (E sai)

Gardel - Deixe-me olhá-lo bem, Pio Miranda, homem feliz! Que linda noiva você arranjou. Existe um certo ar de urgência neste país que me impressiona: é como se tudo acontecesse num instante. Como se algo importante estivesse prestes a acontecer e as pessoas ficassem em silêncio. E então, querido, como vai a vida?

Pio - Bem, obrigado.

Gardel - Onde é que você trabalha?

Pio - Numa escola noturna.

Gardel - Ah, um mestre! Sócrates! A dialética! Às vezes, na cama, quando não há damas nas proximidades, fico pensando...Para que serve o homem, meu caro Pio? Ou dá uma de macho e os penduricalhos endurecem, ou pensa e os penduricalhos se ausentam .Tudo o mais é fantasia. Então penso, num sentido assim meio cartesiano, que existem homens como você, e me vejo cantando “Volver”, “Mi Buenos Aires Querida”, “Mano a mano”, sem o menor pudor. Então digo aos meus botões: para que você vive, Gardel, essa vida de prazeres que o sufoca? Mas depois acabo dormindo, porque ganho cem mil dólares por ano e sei que existem pessoas como você, no Paraguai, na Nicarágua e principalmente na república de El Salvador. Do contrário eu não dormiria, grande Pio, porque...como é que se pode dormir sabendo que existe a república de El Salvador?

Pio - O senhor acha, mesmo?

Gardel - De coração! Eu cantei bem, Pio?

Pio - Infelizmente não pude ir ao teatro.

Gardel - Às vezes eu fico em dúvida quanto à minha voz. Por que você não foi?

Pio - Tinha meus motivos. (Ouve-se uma hecatombe de taças e pratos quebrados)

Gardel - É sorte, Matilde! Elvira, estou aqui! (Entram Elvira, Matilde e Maria Luíza)

Elvira - Eu sempre soube que viria. E hoje, 11 de julho de 1935, posso afirmar que valeu a pena ter vivido quarenta e seis longos anos e uma traição, para ver esta noite de glória. Desculpe a humildade de nossa casa. Matilde e eu ensaiamos uma reverência em sua homenagem, porque não é possível recebê-lo com um simples e corriqueiro “boa noite”. (Elvira e Matilde fazem uma reverência que acaba de joelhos no chão)

Matilde (Se aproxima de Gardel com uma espiga) - Em nome desta família e de meu avô, o general Ancízar, herói da guerra da Independência, queremos dar-lhe as boas vindas e dizer que vimos todos os seus filmes e ouvimos todas as canções que você gravou, milhares de vezes, até decorar todas as letras, palavra por palavra. Sentimos, como se fosse nossa, a dor de cada personagem que você interpretou. Em nome dessas recordações, queremos lhe oferecer esta espiga, símbolo da fertilidade do nosso solo.

Gardel (Beija a espiga) - Eu a recebo, beijo, devolvo-a à terra e proíbo que nela se toque, porque será minha forma de permanecer nesta casa.


Pio - Acho que já está na hora, Maria Luíza. O último ônibus passa à meia-noite e meia.

Maria Luíza - Sim, Pio.

Gardel - Mas como? Essa flor deslumbrante vai embora?

Maria Luíza - Eu?

Pio - Sr.Gardel, fico satisfeito de saber que sua apresentação foi bem sucedida.

Gardel - Obrigado.

Pio - Sua presença nesta casa é um belo gesto, digno de um grande artista popular. No entanto, permita-me dizer-lhe que há vinte e sete anos somos vítimas de uma ditadura brutal e que nosso povo está morrendo de fome, enquanto os donos do poder esbanjam o dinheiro em negociatas e obras faraônicas. Mas por toda a parte existe um espírito de resistência que em breve há de triunfar, quando as massas alcançarem um nível de consciência histórica definitiva, sob a liderança do glorioso proletariado nacional. No dia em que isso acontecer, e há de acontecer, o governo popular vai convidá-lo para vir novamente a Caracas, a fim de que sua arte possa ser apreciada pelo povo, e não pelo bando de criminosos que hoje eram maioria no Municipal.

Matilde - Amém.

Gardel - Quando chegar esse dia, por favor, escreva para mim em Buenos Aires.

Maria Luíza - Qual é o endereço?

Gardel - Escreva na carta simplesmente Carlos Gardel. Buenos Aires. Em mãos. É que todo mundo me conhece e mamãe sempre guarda minha correspondência.

Matilde - Tia Maria Luíza, por que você não deixa para ir amanhã?

Elvira - Não se meta.

Matilde - Pio, não dá no mesmo? Afinal, vocês esperaram dez anos. E quem sabe amanhã chega a carta daquele senhor francês!?

Gardel - Vou esperar o Plácido e o le Pera lá no portão. Já devem estar chegando.

Elvira - Fique em seu lugar, no centro desta casa. Acontece que depois de dez anos de namoro, minha irmã e o noivo resolveram partir esta noite, pela estrada que vai de Caracas à Ucrânia, com uma provável parada no limbo para o café da manhã. Como vê, é uma longa viagem, e não há tempo para despedidas.

Maria Luíza - Por que é que você tem que falar desse jeito?

Elvira - Por nada. Só falei por falar.

Maria Luíza (A Gardel) - Bom...pelo menos eu coloquei a toalha, não foi?

Gardel - Por favor!

Maria Luíza - Existe um dia, não é? E tem que ser neste dia.  Não pode ser amanhã. Entende que não pode ser amanhã? (Aponta Pio) Olhe bem para ele. Não tenho razão?

Pio - Maria Luíza, a troco de quê?

Maria Luíza - Eu sei que ele vai entender. Não é, Gardel?

Elvira - Claro que vai entender! Vocês ainda não notaram que ele vem sempre aqui à meia-noite? E não repararam que ele sai todos os dias antes do padeiro das cinco e meia? Pode contar a ele sua vida toda, batendo papo de camisola e chinelos. Não é ninguém. É só Carlos Gardel. Você devia ter vergonha.  

Gardel - Desculpem, mas se o problema é transporte, posso resolver. Le Pera já está chegando, com a limousine do Pimentel, e pode levá-los onde quiserem.

Maria Luíza - Pio.

Pio - Bom, nesse caso...

Gardel - Mas esse é o caso, Pio santíssimo! Eu estou aqui! Vamos comemorar! (Entram Plácido e Le Pera com cestas de bebidas, cantando “Volver”, sendo logo acompanhados pelo coro dos presentes, à exceção de Gardel)

Plácido -  Declaro a todos os presentes que esta é a maior noite já vivida por este histórico solar dos Ancízar!

Le Pera - Champanhe e vinho...vão ter que acrescentar um novo marco à História de Caracas! Como você cantou! (Le Pera coloca as cestas na mesa)

Plácido -  Pio! Eu tinha arranjado um banquinho na cabine de luz para você escutar esta dialética! Onde é que você estava quando o cidadão Gardel cantou “Volver”, explicando o materialismo a um sapateiro? Pio, quando é que você vai relaxar um pouco? Quando é que vai deixar para lá as contrariedades do planeta? Le Perinha, cumpra a sua promessa! Atenção, todo mundo! Quantos somos? (Começa a contar) Elvira, a abandonada...

Gardel - Quem abandonou Elvira?

Elvira - Isso foi no tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça.

Plácido -  Elvira, a abandonada. Matilde, a futura, e o meu amigo Pio Miranda. Eu não era ninguém antes de conhecer o grande Pio aqui. Carlos - posso lhe chamar de Carlos? - Eu era  uma titica, uma excrescência, antes da mensagem dele...é verdade ou não é?

Gardel - E o que foi que o le Pera prometeu?

Le Pera - Que você ía cantar um tango.

Plácido -  Que ía cantar “El día que me quieras”, dedicado ao nosso marxista-leninista aqui presente, a quem dou permissão para que leve minha tia esta noite e tome o poder.

Gardel - Mais tarde, talvez. Agora estou cansado.

Elvira - Agora chega. (A Plácido) Ou você modera os tragos que andou tomando ou vai já para a cama!

Le Pera - Quem me ajuda com a champanhe?

Maria Luíza - Com licença. (Abre uma garrafa. Elvira sente o perfume de Gardel)

Matilde - Perfume de quê?

Elvira - De universo. De Rei Mago.

Matilde - Deixe ver...(E cheira Gardel)

Le Pera - Saúde! 

Maria Luíza - Saúde! 

Plácido -  Só uma taça, Elvira!

Elvira - Saúde!

Le Pera  - O que vocês não sabem é que o rapaz aqui tinha esta noite uma audiência com o ditador local, o tal de Gómez, e mais o crème-de-la-crème de tout Caracas. E aqui está ele, tranquilo, aproveitando a noitada. Não por muito tempo, é claro, porque cada amanhecer deste rouxinol custa doze mil pesos...

Maria Luíza - Carlos, posso chamá-lo assim?

Gardel - Claro, Maria Luíza. Estamos em família (Brinda) Saúde!

Maria Luíza - É que eu fico tão sem jeito... Acontece que o Carlos estava me falando há pouco de...

Gardel - De quem?

Maria Luíza - De Romain Rolland. É assim que se pronuncia, não é?

Gardel - Bravo! (A Le Pera) Você se lembra, Alfredo, do Romain Rolland?

Le Pera - Quem é Romain Rolland?

Gardel - O velhinho de cabelo cacheado.

Le Pera - Qual velhinho? Aquele de Amsterdã?

Gardel - Não, o de Paris. O chato. Aquele de Montparnasse e da chuva. Esqueceu?

Le Pera - Ah, sei! Aquele que estragou nossa noite debaixo da marquise! O que tem ele?

Pio -Maria Luíza...

Gardel - O que há com ele?

Maria Luíza - Pio, é agora ou nunca. Já que ele está aqui, podíamos pedir-lhe o favor...

Pio -É que...

Elvira - Saúde, Pio!

Gardel - Pra que tanta cerimônia? Qual é o favor?

Maria Luíza - O caso é muito simples. Por coincidência, há um mês escrevemos uma carta a Romain Rolland, um famoso escritor. Bom, não é preciso explicar, você fica debaixo da marquise com ele. Escrevemos a Romain Rolland porque ele é...explique você, Pio...

Pio -Porque ele é simpatizante da Terceira Internacional.

Maria Luíza - Isso é muito confidencial, ninguém pode saber. Pio e eu pertencemos à Internacional Socialista. E achamos que podia ser uma boa idéia...

Elvira - Você não sabe explicar, Maria Luíza. (A Gardel) Não repare. Escreveram uma carta ao tal senhor Rolland para que, por sua vez, o camarada Rolland transmitisse ao camarada Stalin o desejo de minha irmã e seu noivo de se radicarem na Ucrânia. E o sr. Rolland, por alguma petulante razão, não se dignou a responder à missiva, ocasionando uma verdadeira hecatombe na paz familiar dos Ancízar.

Maria Luíza - E, abusando de sua confiança, queria pedir-lhe, em nome de meu noivo e no meu, se pudesse fazer a gentileza de enviar ao sr. Rolland um cartãozinho, recomendando o nosso pedido...

Gardel - Com o maior prazer. Amanhã mesmo vou mandar um telegrama ao Rolland. O Le Pera vê isso logo de manhã.

Maria Luíza - Pio! Agora eu sei que é verdade! Agora sei que vamos mesmo!

Matilde - Estão vendo como tudo se arranja?

Plácido - Pio, na Ucrânia, não se esqueça de mim! Fale com eles! Diga que estou aqui! Que...qualquer coisa, estou às ordens!

Le Pera (Brinda) - À felicidade dos noivos! Saúde, Carlos!

Gardel - Para mim está sendo uma noite deliciosa. Mas daqui a pouco tenho que ir embora com a muda de samambaia que Elvira vai me dar de presente. É curioso. Acho que não sei quase nada de mim. Sei desta noite, e de outras noites como esta. Abro os olhos e acordo em Tacuarembu, com fome e querendo fugir para Buenos Aires. Abro a voz e a voz soa. E o som desta noite, o som de vocês, gente de verdade. Elvira, o som é Elvira. Talvez porque queira dizer alguma coisa e não consiga.

Elvira - Que todo dia acordo e vou à cozinha. Contando sempre os mesmos passos. Faço o café, a água ferve enquanto troco a água dos canários. E penso em Raimundo Galarraga, o químico dos perfumes. Que eu odeio e amo. Porque parecia com a glória deste mundo. Depois dele foi o nada, como se alguma coisa tivesse emudecido até esta tarde, quando você entrou por aquela porta. Eu disse a elas que esta noite tudo seria revelado por sua própria boca, que desvendaríamos todos os seus mistérios. Mas o único mistério é você. E não quero desvendá-lo. Para mim, basta sentir que está aqui...mais nada.

Gardel - Então você era assim, Elvira! Eu sabia.

Matilde - Como é que você vai fazer na Rússia, tia Maria Luíza? Você chega lá e...

Maria Luíza - Não sei, o Pio é que entende disso.

Matilde (A Pio) - É verdade que na Rússia todo mundo é feliz?

Pio -Digamos que é diferente.

Plácido - Absolutamente diferente. Em primeiro lugar, há quatro estações: primavera, outono, inverno e verão. E lá tudo é de todos. Você vai andando pela rua e lhe dá na veneta, sei lá, queijo, costeleta, um capricho qualquer. Aí você entra no mercado, na maior tranquilidade e pede: me dá isso, me dá aquilo também. E por que é que eu vou dar a você? Porque sou um homem, pertenço ao gênero humano. E estou com fome. Ah, então toma! Não é assim, Pio? Já sei de cor. Vai, Pio, pergunte, pra todos verem...

Pio -Agora não, Plácido, não é hora.

Plácido - Pergunte, Pio. Tia Maria Luíza também sabe responder.

Maria Luíza - O que?

Plácido - Carlinhos, preste atenção: Pio pergunta, eu e Maria Luíza respondemos.

Gardel - Ah, um jogo!

Plácido - Um jogo. Quer ver? O que notamos quando analisamos a sociedade atual? Pergunte, Pio, o que notamos?

Pio -Não.

Maria Luíza - Anda, Pio. Pergunte. Você começa e nós continuamos. O que notamos quando analisamos...

Pio -A sociedade atual?

Maria Luíza e Plácido - Uma profunda desigualdade entre os homens.

Gardel - Extraordinário!

Le Pera - Bravo!

Pio -E como se manifesta essa desigualdade?

Maria Luíza e Plácido - Pela existência de dois tipos de homens: o proletário e o burguês.

Gardel - Fantástico! Genial!

Le Pera - Na mosca!

Pio -Quem é o proletário?

Maria Luíza e Plácido - O pobre. Aquele que não tem nada.

Gardel - Excelente resposta!

Le Pera - E o que mais?

Pio -E quem é o burguês?

Maria Luíza e Plácido - O rico, aquele que possui tudo.

Gardel - Incrível!

Le Pera - Perfeito!

Pio -O que é o proletariado?

Maria Luíza e Plácido - O conjunto de todos os proletários.

Pio -O que é a burguesia?

Maria Luíza e Plácido - O conjunto de todos os burgueses.

Pio -A sociedade atual está bem constituída?

Maria Luíza e Plácido - Não. Porque existem duas classes sociais: o proletariado e a burguesia.

Gardel - Profundo! Brilhante! Matemático!

Le Pera - Ahá!

Pio -Existe harmonia entre o proletariado e a burguesia?

Matilde e Le Pera - Ahá! Ahá!

Maria Luíza e Plácido - Não. A burguesia combate o proletariado. E o proletariado combate a burguesia. Estão em luta contínua. A luta...de...classes!!! (Todos aplaudem, com exceção de Elvira e Pio)

Pio -Está bem, senhores. Chega. Vão gozar a mãe! Faz dez anos que venho a esta casa, todo santo dia, na hora do almoço. E tudo porque, digamos, vejo um cão, assim, com as costelas de fora. Uma fome de cão. E fico pensando: que merda! Como se o responsável fosse eu. Desculpem. Não é verdade. Não é problema meu. A culpa não é minha. O país não me pertence. Não tenho porquê responder. Sou um guerreiro ensangüentado. Desculpem. Não fui eu. Lavo minhas mãos. (À Maria Luíza) Não existe nada na Ucrânia. Nem sei onde fica a Ucrânia. Não existe a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Não existe Kamenev, nem Zinoviev. Não sei nem pronunciar isso. Não existe Trostsky, não existe samovar. Não existe Stalin. Não existe janela da czarina. Não existe Lênis. Não existe nada!?

Maria Luíza - Pio!

Pio -Pergunte à Elvira. Ela sabe. É a única que sabe. Eu tenho que explicar a um cão o porquê das costelas de fora. Eu...estou me sentindo mal. Vou embora e nunca mais volto a esta casa. Não me espere. Não existe nada. Eu menti! Essa era a palavra esperada, a palavra profética! Menti! Não existe Romain Rolland! Nunca escrevi a Romain Rolland! Foda-se Romain Rolland! Caguei para a paz e a amizade entre os povos! Chega! Acabou! Fim! Obrigado pelos almoços. O cão me espera. E tenho que explicar por que o sol vai nascer amanhã. Adeus. Perdão. (Sai)

Le Pera - Carlos, acho que já é hora. Temos que viajar amanhã.

Gardel - Tem razão. Boa noite, Elvira. Boa noite, Matilde. O melhor dos mundos para você, camarada Maria Luíza.

Matilde - E “El día que me quieras”?

Le Pera - Não sei. Acho que o rouxinol hoje não vai poder...

Matilde - E se fechássemos os olhos? Porque vai ser horrível ver você sair. Nós ficamos parados, aqui. Você canta “El día que me quieras” e vai embora.

Plácido - Assim a gente pode contar aos outros: ele esteve aqui e cantou.

Elvira - E quem vai acreditar?

Plácido - Não importa. A gente mesmo acredita. Faça isso, Gardel.

Matilde - Por favor! (Gardel canta e depois sai com Le Pera. Longa pausa)

Elvira - É hora de dormir. Vamos, Maria Luíza?

Maria Luíza - Plácido...feche o portão.

Plácido - Sim. (E sai)

Maria Luíza - Será que ainda tem café? Quer dizer, para amanhã...

Elvira - Comprei hoje. (Volta Plácido) Que horas são, Plácido?

Plácido - Meia-noite e meia. A visita foi curta.

Matilde - Boa noite, Plácido. Boa noite, tia Maria Luíza. A benção, tia Elvira.

Elvira - Deus te abençoe. E troque os lençois. Hoje é dia de trocar os lençois.

Matilde - Não é amanhã?

Elvira - Não. É hoje.

Matilde - Ninguém vai tirar isso da gente, vai? Acho que agora não podemos mais vender a casa. Vender como, depois desta noite?

Elvira - É. (Matilde sai)

Plácido - Boa noite, tia Elvira. Boa noite, tia Maria Luíza. ( E sai)

Elvira - Ele deixou a mala. Talvez volte amanhã.

Maria Luíza - É, talvez.

Elvira - Já passou. Depois amanhece e as coisas mudam.

Maria Luíza - Você não se importa de fazer um café?

Elvira - Claro que não. (E vai para a cozinha)

Maria Luíza - Não muito forte. Senão não durmo. (Maria Luíza vai até a maleta de Pio. Abre-a. Procura entre camisas remendadas e calças gastas. E encontra uma bandeira vermelha com a foice e o martelo. Coloca- a no espaldar do sofá. Elvira volta) Quero que ela fique aqui. Ate amanhã. pelo menos, até amanhã.

Elvira - A casa é sua, Maria Luíza. Você é quem manda.

FIM