Píramo e Tisbe
Já houve um tempo em que o vermelho profundo das bagas da amoreira era branco como a neve. A mudança de cor resultou de um fato muito estranho e triste: a morte de dois jovens apaixonados.
Píramo e Tisbe, ele o mais belo dos jovens e ela a mais bela virgem de todo o Oriente, viviam na Babilônia, a cidade da rainha Semíramis, em casas tão próximas que apenas uma parede comum
as separava. Crescendo assim, lado a lado, aprenderam a amar-se mutuamente. Queriam muito casar-se, mas não havia como vencer a proibição dos pais. O amor, porém, não pode ser proibido. Quanto
mais se cobre a chama, mais forte ficam as labaredas. Além disso, o amor sempre acaba encontrando suas soluções. Não era possível manter separados esses dois jovens cujos corações explodiam de
amor.
Na parede que separava as duas casas havia uma pequena fenda da qual até então ninguém se dera conta. A quem ama, porém, não há nada que passe despercebido. Nossos dois jovens
descobriram-na, e através dela começaram, então, a sussurrar doces palavras de amor, Tisbe de um lado e Píramo de outro. A odiosa parede que os separava transformara-se em sua única forma de
contacto. "Não fosse tua existência, poderíamos estar juntos e beijar-nos", costumavam dizer, referindo-se a parede. "Mas, pelo menos, podemos falar através de ti. Permites que doces palavras de amor cheguem aos nossos ouvidos apaixonados. Não somos ingratos." Assim falavam e, quando a noite chegava e tinham de separar-se, era na parede que davam os beijos que não tinham como chegar aos lábios do outro lado.
Todas as manhãs, quando o alvorecer já expulsara do céu as estrelas e os raios do Sol já haviam secado a geada que endurecia a relva, iam furtivamente até a fenda e ali ficavam, às vezes trocando
as mais doces juras de amor, outras vezes lamentando o triste destino a que pareciam condenados. Suas palavras, porém, eram sempre trocadas em forma de sussurros quase inaudíveis. Por fim
chegou o dia em que não tinham mais condições de continuar suportando aquela situação. Decidiram que, naquela mesma noite, iriam tentar fugir e atravessar a cidade em direcção ao campo, onde
finalmente poderiam ficar juntos em liberdade. Combinaram encontrar-se em um lugar bastante conhecido – o Túmulo do Nilo -, sob uma árvore que ali havia, uma grande amoreira cheia de bagas
brancas como a neve, e perto da qual murmuravam as águas frescas de uma fonte. O plano lhes pareceu perfeito, e para eles aquele foi o mais longo dia de suas vidas.
Por fim, o Sol mergulhou no oceano e a noite chegou. Na escuridão, Tisbe saiu furtivamente de casa e, fazendo o possível para não ser vista, dirigiu-se para o túmulo onde haviam combinado
encontrar-se. Píramo ainda não tinha chegado, a ela ficou a esperá-lo com a coragem fortalecida pelo amor. De repente, porém, a luz da lua permitiu-lhe divisar o vulto de uma leoa que se aproximava. A
fera selvagem tinha acabado de matar uma presa; tinha as mandíbulas ensanguentadas, e vinha saciar a sede na fonte. Estava ainda a uma distância que permitia a fuga de Tisbe; mas, ao correr em busca de um abrigo seguro, a jovem deixou cair a capa que trazia aos ombros. Ao voltar para o seu covil, a leoa viu a capa e, antes de desaparecer na floresta, abocanhou-a e fez dela apenas um monte de
trapos. Ao chegar, poucos minutos depois, foi com essa cena que Píramo se deparou. Diante dele estavam os farrapos ensanguentados da capa e, visíveis na obscuridade, as pegadas da leoa. A conclusão era inevitável: Tisbe estava morta. Ele permitira que seu amor, uma jovem tão delicada, viesse sozinha para um lugar tão cheio de perigos, e ali não estivera para protegê-la. "fui eu que te matei", exclamou. Do solo espezinhado, levantou o que restava da capa e, beijando-a muitas vezes, levou-a consigo para perto da amoreira. "Agora", disse ele, "beberás também do meu sangue." Desembainhou a espada e cravou-a no coração. O sangue, lançado em borbotões, atingiu em cheio as bagas da amoreira, que então se tingiram de um vermelho escuro.
Apesar de ainda apavorada com a leoa, o grande medo de Tisbe era não conseguir encontrar seu amado. Assim, resolveu arriscar-se a voltar para junto da árvore onde haviam marcado o encontro, a
amoreira dos reluzentes frutos brancos, mas não conseguia encontrá-la. A árvore era a mesma, mas seus ramos não deixavam entrever um só lampejo de brilho branco. Ao olhar bem, percebeu que alguma coisa se mexia no chão. Recuou, trémula, mas no instante seguinte, firmando os olhos por entre as sombras, viu claramente o que se passava ali: Píramo, banhado em sangue e quase morto. Voou para ele e o tomou nos braços, beijando-lhe os lábios frios e implorando-lhe que a olhasse e falasse. "Sou eu, a tua Tisbe, a tua amada!",disse-lhe a chorar. Ao ouvir o nome que tanto amava, Píramo entreabriu os olhos pesados e olhou para Tisbe pela última vez. Em seguida, a morte se encarregou de fechá-los para sempre. Ela então viu a espada que lhe caíra das mãos, e bem perto dela
a sua capa manchada de sangue e esfarrapada. Num instante, compreendeu tudo. "Tua própria mão te matou", disse, "e teu amor por mim. Também posso ser corajosa, também eu posso amar. Só a morte teria tido o poder de nos separar, mas agora deixará de ter esse poder." Cravou no coração a espada ainda úmida do sangue de seu amado.
Por fim, os deuses se apiedaram, e o mesmo fizeram os pais dos dois jovens. O fruto vermelho escuro da amoreira ficou sendo a eterna recordação desses amantes fiéis e verdadeiros. Suas cinzas estão contidas em uma única urna, pois nem a morte foi capaz de separá-los.
Edith Hamilton, Mitologia greco-latina
terça-feira, 13 de setembro de 2016
Improvisação, uma necessidade
Marcelo LAZZARATTO
Universidade Estadual de Campinas - Unicamp
A improvisação me interessa como o lugar do encontro de um objeto estrangeiro, exterior ao jogador, com o imaginário deste. Ela provoca o sujeito a reagir, seja no interior da proposta que lhe é feita,
seja em torno da proposta, explorando amplamente a zona que se desenha para ele, segundo o modo como sua imaginação é convocada.(RYNGAERT, 2009, p. 90)
Os artistas envolvidos na criação teatral, principalmente atores e diretores, utilizam em alguma etapa do processo criativo a Improvisação. Para a desinibição dos atores, para o estímulo à espontaneidade, para a análise ativa das relações e dos objetivos dos personagens, para a descoberta de possível material criativo que não é oferecido a priori pelo texto a ser encenado, para conquistar interação entre os atores envolvidos no jogo teatral, para desenvolver rapidez de raciocínio e prontidão, para colocar-se em uma situação buscando envolvimento, para oferecer aos atores a possibilidade de descoberta pessoal, para verificação das características dos personagens e para tantas outras coisas que a lista seria quase que infindável.
A Improvisação se presta a qualquer momento do processo. Cabe aos artistas envolvidos perceberem a sua utilidade a partir de suas necessidades. De Stanislavski a Peter Brook, passando por Brecht, Barba, Viola Spolin, Stela Adler, Michail Checov, Boal e Grotovski, todos em algum momento de suas criações e de seus sistemas de trabalho usam a Improvisação de acordo com suas teorias. Cada um ao seu modo propõe aos atores que improvisem oferecendo limites seja de linguagem, de objetivos, ou de traços estilísticos que pertençam à sua proposta estética. Assim, nunca se falou e nem é possível falar em um método de Improvisação, pois traria em si uma contradição incontornável. Um método traz em sua essência uma ideia de finitude, acabada, uma fórmula pela qual se chega a um resultado já comprovado e verificado. Ora, a Improvisação é exatamente o oposto. Ela nunca será um fim e sim um meio. Não é possível dizer que se você fizer de tal e tal maneira num improviso você chegará a tal resultado, pois ela abre, durante seu acontecer, inúmeras possibilidades, que uma vez desenvolvidas, podem chegar a resultados diversos, tantas vezes quantas for realizada. Nunca se saberá ao certo qual será o fim de um Improviso. Ele dependerá de inúmeras variantes subjetivas que dizem respeito somente aos artistas que o executam.
É por isso que cada artista, cada diretor de teatro, estimula seus atores a sua maneira e
encontra na Improvisação uma aliada que se adequa muito bem às suas características. Um
diretor nem sempre se adequa à Improvisação, mas a Improvisação sempre se adequa ao
diretor. Essa adequação ocorre devido ao fato de a Improvisação, além de ser um procedimento
de treinamento, se constituir também como linguagem. Assim, ela cabe muito bem, por ser tão
maleável, às exigências estéticas da encenação. Mas os autores de maneira geral não se dedicam em seus textos à Improvisação como poderiam ou deveriam. Em seus livros se preocupam em conceituar princípios estéticos inovadores que tragam uma nova luz à cena, sentindo a necessidade do ponto final e da comprovação de sua investigação; e a Improvisação, por ser um meio e não um fim, não se
presta a essa finalidade. Por ser muito difundida, utilizada por todos em todos os processos, é
como se fosse um lugar-comum óbvio demais (a redundância aqui é necessária) para se prestar à
inovação pretendida. Ao contrário, creio que é por isso que deva ser valorizada e muito. Mas como falar de Improvisação, oferecer seu real valor se ela em si é efêmera? Usar que metodologia para destrinchá-la?
Se o Teatro é efêmero, o Improviso é sua potencialização máxima. Tanto que requer muita disciplina e concentração para que os artistas recuperem momentos enriquecedores descobertos em uma Improvisação. Não há registro, como no improviso jazzístico. O vídeo, como todos sabem, não guarda sensorialidades que somente o calor da execução oferece. Sensorialidades advindas de um processo intuitivo de apreensão. A intuição, além de ser algo extremamente valioso para qualquer artista, já que se refere a um conhecimento existente, imediato, mas não elaborado como discurso, traz à luz percepções apreendidas em algum momento que, ao se tomar partido delas, o ator lança-se em um terreno movediço que certamente será transformador. O ator, por ser alguém que encontra
na prática sua razão de ser, seu entendimento, necessita da experimentação para compreender seus processos criativos. Ele não é um teórico que encontra unicamente no pensar a chave de seu ofício: não é somente o conhecimento lógico-racional que é válido para ele. Ele também está sujeito à experiência, levando em conta os sentimentos e as vontades frentes a ela. Seu conhecimento não é, portanto, somente do tipo racional-discursivo, mas também, do tipo irracional-intuitivo. A experiência o transforma, pois o desequilibra. É no desequilíbrio que se descobre novos prumos, novas possibilidades inventivas. A Improvisação promove um desequilíbrio do “já conhecido”, já que opera, e muito, segundo e seguindo a intuição. Faz com que o ator ande na corda bamba em busca de um novo eixo, que se estabelecerá a cada dia e sempre sendo um novo eixo, sujeito às necessidades e variáveis da criação.
Na questão metodológica o problema se mostra com muita clareza, mas com pouca resolução. Que método abarcará as inúmeras variáveis proporcionadas por um procedimento que traz em sua essência processos intuitivos? Como já dito acima, a Improvisação não se adequa a um método. Brincando com termos da Física Quântica, ela está mais para onda do que para partícula. Pode estar nesse e/ou naquele registro. Servir a tal e/ou tal estilo. É capaz de multifacetar-se, está mais para reticências do que para ponto final. Então, como demonstrá-la, como dar validade científica? Se levarmos em consideração que a Improvisação é uma prática e os atores seres humanos que querem e sentem em busca do conhecimento, a intuição será sua grande aliada. Johannes Hessen em seu livro Teoria do conhecimento ao discutir sobre os problemas do intuicionismo diz:
(...) devemos fazer uma distinção. Trata-se da distinção entre o comportamento teórico e o prático. No campo teórico, a intuição não pode reclamar o direito de ser um meio de conhecimento autônomo, emparelhado ao conhecimento racional – discursivo. Nesse campo, o intelecto está com a palavra final. Toda intuição deve, aqui, legitimar-se perante o tribunal da razão. O opositor do intuicionismo está certo em fazer essa exigência. Mas as coisas já não se passam do mesmo modo no campo prático. A intuição possui, nesse terreno, uma importância autônoma. Enquanto seres que sentem e querem, a intuição é, para nós, o verdadeiro órgão do conhecimento. Se o que o intuicionismo ensina não é nada mais do que isso, a razão está do seu lado. (HESSEN, 2000, p. 110)
Acredito que o melhor método para investigar a Improvisação não é um método e sim um sistema, um sistema dinâmico que leva em conta as variáveis. Tal sistematização leva em conta a ideia de repetição, não fechando portas, mas permitindo a existência de lacunas originadas nas repetições, detectando e analisando as variáveis para que ocorra nova sistematização, num processo constante e ininterrupto. É por isso que há a necessidade de treinamento, elaboração e reflexão constantes.
Em uma época onde a ideia de arquétipo e inconsciente coletivo já tem mais de meio século e a ciência através da Física Quântica leva em conta a incerteza como dado científico, a probabilidade como certeza, o insight quântico como um dado inerente à criatividade, acredito que a Improvisação no teatro é o meio potencial para a verificação dessas características: lugar onde a incerteza é benéfica e transformadora, onde o a priori não tem espaço, as probabilidades verificadas, a sensorialidade estimulada até o insight e, em sintonia, a coletividade criadora instaurando uma atmosfera poética para trazer à luz ideias latentes no inconsciente. Improvisar é alcançar a liberdade. Não uma liberdade utópica, romântica, mas sim, instaurar-se em um plano poético onde a impossibilidade não existe. A sensação dessa possibilidade leva o ator a conectar-se com prazeres até então não revelados, abrindo potencialidades de significação e compreensão que não advêm necessariamente da racionalidade. Improvisar faz o corpo pensar. Abole a divisão corpo/mente. Razão e sensibilidade juntas processando os mais variados estímulos e respondendo a eles de maneira
criativa; pois nesse estado (corpo pensando), não há certo e errado, não há juízo de valor, muito menos maniqueísmos e dicotomias; o que há é o processo da dualidade, constante, entrelaçando-se em espiral como o DNA, como o anel de Moebius, onde figura e fundo coexistem, significando e dependendo um do outro.
Improvisar é abrir-se à inspiração e ao acaso. Inspiração no sentido de conexão, conexão com uma supra-consciência geradora da qual fazemos parte e que nos tira do estado de consciência cotidiano, banal e viciado para nos colocar em um estado poético de consciência, transgressor e atuante. Sentir-se inspirado é perceber a inexistência de obstáculos. É perceber a fluência em lugar do tranco. Ou melhor, levar em consideração o tranco como fluência. Fayga Ostrower, em seu livro Acasos e criação artística, relacionando acaso e inspiração, nos diz que os acasos de alguma forma são esperados ainda que numa “expectativa inconsciente” e continua dizendo que: é importante levar em consideração este ponto: o de uma expectativa latente em nós, em termos de mobilização psíquica e receptividade. Iluminará certas questões de inspiração. Mostrará a distinção a ser feita entre passividade e receptividade. As pessoas não são passivas frente aos estímulos – e não é qualquer estímulo que poderá tornar-se “acaso” ou “inspiração”. As pessoas estão é receptivas; receptivas, a partir de algo que já existe nela de forma potencial e que encontra no acaso como que uma oportunidade concreta de se manifestar. Por mais surpreendentes que sejam os acasos, eles nunca surgem de modo arbitrário e sim dentro de um padrão de ordenações, em que as expectativas latentes da pessoa e os termos de seu engajamento interior representam um elo vital na cadeia causa e efeito.
Somente nesse ponto é que chegamos ao estado de improviso. E para chegar a ele é necessário improvisar. Chega-se ao estado de improviso improvisando. Improvisação é matéria vivida. Ela faz com que não nos esqueçamos que o homem é constituído de carne, ossos, sangue e emoções. Ela nos alia, nós, atores e espectadores, novamente a forças vitais, reinstaurando-nos Dioniso. Canal aberto para o entusiasmo, no sentido que a Antiguidade nos legou: arrebatamento extraordinário daqueles que estavam sob inspiração divina. Caminho da espontaneidade que nos leva ao humor e à leveza, alargando e aprofundando as possibilidades criativas. Por outro lado o “vale tudo” da Improvisação pode nos levar ao “qualquer coisa”. Um dos motivos pelos quais a Improvisação cai em descrédito é essa sua queda pela falta de rigor quando utilizada com incompetência. Por ser algo dinâmico, repleto de variáveis, que não visa exatamente um fim, mas entende que o caminho é a questão, a Improvisação exige que os atores e diretores processem seu fazer operando de uma outra forma. Uma reflexão mecanicista não suporta as variáveis do Improviso. Esse tipo de pensamento tende a querer resultados específicos e imediatos, tende a equacionar todas as coisas visando finais certeiros e
reprodutíveis. A Improvisação exige uma mudança de paradigma. Ela nos ajuda a compreender que a arte do ator não é fixa, que a ação que ele fará amanhã em cena não é (mesmo) a mesma de hoje. Que sua reprodução é dependente de variáveis ao mesmo tempo objetivas e subjetivas, racionais e sensoriais, previstas e irremediavelmente ligadas ao acaso. Por isso deve-se adquirir uma nova forma de processar a Improvisação tanto no momento de seu acontecimento quanto no momento de sua reflexão.
O compositor, regente e educador Hans-Joachin Koellreutter a respeito da Improvisação em música e que se estende a qualquer Improvisação artística diz: Não há nada que precise ser mais planejado do que uma Improvisação. Para improvisar é preciso definir claramente os objetivos que se pretende atingir. É preciso ter um roteiro, e a partir daí trabalhar muito: ensaiar, experimentar, refazer, avaliar, criticar, etc.. O resto é vale-tudismo! (BRITO, 2001, pp. 45-6)
Acrescentaria ao planejamento que os artistas envolvidos em uma Improvisação devam também estar abertos a compreenderem/sentirem a ideia/sensação de fluência, dinâmica, mobilidade, impregnação, aleatoriedade. Planejar para lançar-se. Saber que planejamos a vela, o mastro, as cordas, mas não o vento. Prevemos o vento, mas não o dominamos. A Improvisação ensina-nos a controlar sem controle. Por isso sua potência. Por isso ela desestabiliza e oferece o inesperado, o “novo”.
Improvisação é coisa séria. Não pode ser entendida apenas como “gambiarra”, como mascaramento de um erro, mas sim como meio de acesso à criatividade. É através dela que o ator encontrará o meio pelo qual expressará suas necessidades e desejos. O ator que não se lança ao improviso deixa de perceber que é através dele que sua necessidade de expressão pode se manifestar. Porque a Improvisação é o seu território, um território vivo. Ele pode, assim, subjugar-se à necessidade do autor e do diretor. Deixa de estabelecer um diálogo com tais necessidades. Ele deixa de ser artista e passa a ser um mero executor de tarefas. Ele perde contato consigo, deixa de perceber-se como homem inserido em um contexto em que todas as vozes devem ser ouvidas e compartilhadas. Impede seu grito.
Michael Chechov, em seu livro Para o ator, a respeito de Improvisação diz que: Pensadores profundos, impelidos a expressarem-se, criaram seus próprios sistemas filosóficos. Do mesmo modo, um artista que se esforça por expressar suas convicções mais íntimas trata de aperfeiçoar seus próprios instrumentos de expressão, sua forma particular de arte. O mesmo, sem exceção, deve ser dito da arte do ator: seu desejo irrefreável e seu mais alto propósito também só podem ser satisfeitos por meio da livre Improvisação (CHECOV, 1986, p. 39).
Embora a Improvisação seja um procedimento que sempre existiu, às vezes com mais intensidade, como nos autos medievais e na Comédia dell’arte, outras vezes de maneira mais sutil como no Classicismo francês, é no século XX, com a modernidade, que ela ganha espaço definitivo nas manifestações artísticas: na música dita erudita de Stravinsky a Koellreutter passando por Cage; na popular com o aparecimento do Jazz nos Estados Unidos, onde a Improvisação é o próprio jazz, ou nos repentes nordestinos; nas artes plásticas através do conceito de Instalação levando em conta o visitante, relacionando-se com a obra de maneira improvisada e aleatória, os Parangolés de Hélio Oiticica sendo um exemplo próximo; e no teatro, a ideia de Performance Teatral advinda dos anos 60 com o Living Theatre. Na contemporaneidade, neste momento em que o ator passa a ser o centro das
atenções, onde o conceito ator-criador é amplamente divulgado (embora o considere uma redundância), em que o diálogo ator/encenador se dá de maneira mais franca e democrática, a
Improvisação é o melhor instrumento de pesquisa para que esse ator possa se manifestar, elaborar o seu material criativo, associar fundamentos teóricos com a ação cênica especificamente, enfim, entrar em contato com suas necessidades e anseios expressivos.
Peter Brook nos diz:
“Vamos supor que tenhamos a mais elevada das ambições: no espetáculo, só queremos apanhar o peixe dourado” (entenda-se peixe dourado como a qualidade especial que faz com que a arte se manifeste plenamente e alcance todos os espectadores tanto a nível racional quanto intuitivo). De onde vem o peixe dourado? Ninguém sabe. Deve ser de algum lugar do inconsciente coletivo mítico, daquele vasto oceano cujos limites nunca foram descobertos, cujas profundezas nunca foram suficientemente exploradas. E onde estamos nós, as pessoas comuns da plateia? Estamos no mesmo lugar em que estávamos ao entrar no teatro, em nós mesmos, em nossas vidas corriqueiras. Tecer a rede (para apanhar o peixe dourado) é construir uma ponte entre nós, como somos habitualmente em
condições normais, trazendo conosco nosso mundinho de todo dia, e um mundo invisível que só pode se revelar quando a insuficiência da percepção ordinária é substituída por outro tipo de consciência cuja qualidade é infinitamente mais aguda. Mas essa rede é feita de buracos ou de nós? Esta questão é como um koan, e para fazer teatro devemos conviver com ela o tempo todo. (BROOK, 1999, p. 72)
Peter Brook talvez seja o grande mestre da arte de interpretar da última metade do século XX. Mestre, porque além de exigir de seus atores qualidades técnicas fundamentais para a fruição da energia humana transformada em arte, ele também se preocupa, como acabamos de ver, com questões “abstratas”, subjetivas e ocultas, tais como, atmosfera da cena, relação energética palco-plateia, oferecer ao ator e posteriormente à plateia condições de ampliar a percepção consciente cotidiana para alcançar uma nova percepção, oriunda da intuição que está profundamente conectada com o inconsciente coletivo.
Assim, o ator pode recuperar sensações, cheiros, gestos de uma ancestralidade para muitos perdida e articulá-los na ação cênica. Ao entrarmos em contato com essa grande consciência percebemos que o Tempo não é o mesmo tempo cronológico do dia-a-dia, o Espaço já não é esse que ocupamos diariamente, e o que observamos é uma outra relação tempo-espaço, um lugar de simultaneidades e sincronicidades onde tudo é possível, tudo é provável, basta estarmos antenados para “sacar” os sinais, seus indícios.
Peter Brook exercita seus atores para que afinem seus instrumentos de trabalho (corpo pensando) em busca dessa nova qualidade de percepção. Porque se trata de uma percepção criativa. Esse estado dilatado de entendimento – que aqui traduzo por corpo-pensando, mesclando o que é da mente e o que é do corpo – precisa de um terreno, de um laboratório em que suas químicas se misturem e se potencializem a tal ponto que não possamos mais perceber quem gestou a faísca criativa. E acredito que a improvisação para o ator é esse terreno fértil. Em um processo improvisacional é mais fácil percebermos e detectarmos o instante em que ocorre em nós a criatividade. Para jogar com as inúmeras variáveis que ele nos apresenta só mesmo com criatividade. Há um estado de latência constante que faz com que o gesto, o movimento, a ação, desempenhados pelo ator, em sua ação improvisada, adquira a força da espontaneidade, por ter sido escolhida entre tantas outras possibilidades. Essa escolha é a resultante do impulso advindo da intuição com a ordenação e a estruturação advindas da consciência. É através dela que o ator tem a oportunidade de acessar livremente uma região potencial criativa por excelência que aparece do encontro entre sua sensibilidade e o material poético, entre sua individualidade e o “outro”. É nessa região potencial que o gesto criador pode adquirir forma e assim se expressar na cena propriamente dita segundo os critérios estéticos de cada encenação. Se o ator é essencialmente um artista que manifesta em seu próprio corpo a sua arte, ele não pode ficar alheio ao “outro” acreditando apenas em sua própria capacidade inventiva. É somente através do contato com o “outro” que ele tem a possibilidade de se tornar verdadeiramente um criador e o jogo improvisacional é o lugar ideal para que esse exercício da alteridade se dê plenamente. A improvisação é um território ao mesmo tempo fecundo e movediço em que ele encontra a fluidez criativa originada do encontro entre as latências inconscientes e as escolhas conscientes. É no jogo improvisacional que o ator encontra o élan vital de sua arte.
BIBLIOGRAFIA CITADA:
BRITO, Teca Alencar de. Koellreutter Educador: o humano como objetivo da educação musical. São Paulo,
Peirópolis, 2001.
BROOK, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999.
CHECHOV, Michael. Para o ator. São Paulo, Martins Fontes, 1986.
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar, representar. São Paulo, Cosac e Naify, 2009.
OSTROWER, Fayga. Acasos e criação artística. Rio de Janeiro, Campus, 1999.
Marcelo LAZZARATTO
Universidade Estadual de Campinas - Unicamp
A improvisação me interessa como o lugar do encontro de um objeto estrangeiro, exterior ao jogador, com o imaginário deste. Ela provoca o sujeito a reagir, seja no interior da proposta que lhe é feita,
seja em torno da proposta, explorando amplamente a zona que se desenha para ele, segundo o modo como sua imaginação é convocada.(RYNGAERT, 2009, p. 90)
Os artistas envolvidos na criação teatral, principalmente atores e diretores, utilizam em alguma etapa do processo criativo a Improvisação. Para a desinibição dos atores, para o estímulo à espontaneidade, para a análise ativa das relações e dos objetivos dos personagens, para a descoberta de possível material criativo que não é oferecido a priori pelo texto a ser encenado, para conquistar interação entre os atores envolvidos no jogo teatral, para desenvolver rapidez de raciocínio e prontidão, para colocar-se em uma situação buscando envolvimento, para oferecer aos atores a possibilidade de descoberta pessoal, para verificação das características dos personagens e para tantas outras coisas que a lista seria quase que infindável.
A Improvisação se presta a qualquer momento do processo. Cabe aos artistas envolvidos perceberem a sua utilidade a partir de suas necessidades. De Stanislavski a Peter Brook, passando por Brecht, Barba, Viola Spolin, Stela Adler, Michail Checov, Boal e Grotovski, todos em algum momento de suas criações e de seus sistemas de trabalho usam a Improvisação de acordo com suas teorias. Cada um ao seu modo propõe aos atores que improvisem oferecendo limites seja de linguagem, de objetivos, ou de traços estilísticos que pertençam à sua proposta estética. Assim, nunca se falou e nem é possível falar em um método de Improvisação, pois traria em si uma contradição incontornável. Um método traz em sua essência uma ideia de finitude, acabada, uma fórmula pela qual se chega a um resultado já comprovado e verificado. Ora, a Improvisação é exatamente o oposto. Ela nunca será um fim e sim um meio. Não é possível dizer que se você fizer de tal e tal maneira num improviso você chegará a tal resultado, pois ela abre, durante seu acontecer, inúmeras possibilidades, que uma vez desenvolvidas, podem chegar a resultados diversos, tantas vezes quantas for realizada. Nunca se saberá ao certo qual será o fim de um Improviso. Ele dependerá de inúmeras variantes subjetivas que dizem respeito somente aos artistas que o executam.
É por isso que cada artista, cada diretor de teatro, estimula seus atores a sua maneira e
encontra na Improvisação uma aliada que se adequa muito bem às suas características. Um
diretor nem sempre se adequa à Improvisação, mas a Improvisação sempre se adequa ao
diretor. Essa adequação ocorre devido ao fato de a Improvisação, além de ser um procedimento
de treinamento, se constituir também como linguagem. Assim, ela cabe muito bem, por ser tão
maleável, às exigências estéticas da encenação. Mas os autores de maneira geral não se dedicam em seus textos à Improvisação como poderiam ou deveriam. Em seus livros se preocupam em conceituar princípios estéticos inovadores que tragam uma nova luz à cena, sentindo a necessidade do ponto final e da comprovação de sua investigação; e a Improvisação, por ser um meio e não um fim, não se
presta a essa finalidade. Por ser muito difundida, utilizada por todos em todos os processos, é
como se fosse um lugar-comum óbvio demais (a redundância aqui é necessária) para se prestar à
inovação pretendida. Ao contrário, creio que é por isso que deva ser valorizada e muito. Mas como falar de Improvisação, oferecer seu real valor se ela em si é efêmera? Usar que metodologia para destrinchá-la?
Se o Teatro é efêmero, o Improviso é sua potencialização máxima. Tanto que requer muita disciplina e concentração para que os artistas recuperem momentos enriquecedores descobertos em uma Improvisação. Não há registro, como no improviso jazzístico. O vídeo, como todos sabem, não guarda sensorialidades que somente o calor da execução oferece. Sensorialidades advindas de um processo intuitivo de apreensão. A intuição, além de ser algo extremamente valioso para qualquer artista, já que se refere a um conhecimento existente, imediato, mas não elaborado como discurso, traz à luz percepções apreendidas em algum momento que, ao se tomar partido delas, o ator lança-se em um terreno movediço que certamente será transformador. O ator, por ser alguém que encontra
na prática sua razão de ser, seu entendimento, necessita da experimentação para compreender seus processos criativos. Ele não é um teórico que encontra unicamente no pensar a chave de seu ofício: não é somente o conhecimento lógico-racional que é válido para ele. Ele também está sujeito à experiência, levando em conta os sentimentos e as vontades frentes a ela. Seu conhecimento não é, portanto, somente do tipo racional-discursivo, mas também, do tipo irracional-intuitivo. A experiência o transforma, pois o desequilibra. É no desequilíbrio que se descobre novos prumos, novas possibilidades inventivas. A Improvisação promove um desequilíbrio do “já conhecido”, já que opera, e muito, segundo e seguindo a intuição. Faz com que o ator ande na corda bamba em busca de um novo eixo, que se estabelecerá a cada dia e sempre sendo um novo eixo, sujeito às necessidades e variáveis da criação.
Na questão metodológica o problema se mostra com muita clareza, mas com pouca resolução. Que método abarcará as inúmeras variáveis proporcionadas por um procedimento que traz em sua essência processos intuitivos? Como já dito acima, a Improvisação não se adequa a um método. Brincando com termos da Física Quântica, ela está mais para onda do que para partícula. Pode estar nesse e/ou naquele registro. Servir a tal e/ou tal estilo. É capaz de multifacetar-se, está mais para reticências do que para ponto final. Então, como demonstrá-la, como dar validade científica? Se levarmos em consideração que a Improvisação é uma prática e os atores seres humanos que querem e sentem em busca do conhecimento, a intuição será sua grande aliada. Johannes Hessen em seu livro Teoria do conhecimento ao discutir sobre os problemas do intuicionismo diz:
(...) devemos fazer uma distinção. Trata-se da distinção entre o comportamento teórico e o prático. No campo teórico, a intuição não pode reclamar o direito de ser um meio de conhecimento autônomo, emparelhado ao conhecimento racional – discursivo. Nesse campo, o intelecto está com a palavra final. Toda intuição deve, aqui, legitimar-se perante o tribunal da razão. O opositor do intuicionismo está certo em fazer essa exigência. Mas as coisas já não se passam do mesmo modo no campo prático. A intuição possui, nesse terreno, uma importância autônoma. Enquanto seres que sentem e querem, a intuição é, para nós, o verdadeiro órgão do conhecimento. Se o que o intuicionismo ensina não é nada mais do que isso, a razão está do seu lado. (HESSEN, 2000, p. 110)
Acredito que o melhor método para investigar a Improvisação não é um método e sim um sistema, um sistema dinâmico que leva em conta as variáveis. Tal sistematização leva em conta a ideia de repetição, não fechando portas, mas permitindo a existência de lacunas originadas nas repetições, detectando e analisando as variáveis para que ocorra nova sistematização, num processo constante e ininterrupto. É por isso que há a necessidade de treinamento, elaboração e reflexão constantes.
Em uma época onde a ideia de arquétipo e inconsciente coletivo já tem mais de meio século e a ciência através da Física Quântica leva em conta a incerteza como dado científico, a probabilidade como certeza, o insight quântico como um dado inerente à criatividade, acredito que a Improvisação no teatro é o meio potencial para a verificação dessas características: lugar onde a incerteza é benéfica e transformadora, onde o a priori não tem espaço, as probabilidades verificadas, a sensorialidade estimulada até o insight e, em sintonia, a coletividade criadora instaurando uma atmosfera poética para trazer à luz ideias latentes no inconsciente. Improvisar é alcançar a liberdade. Não uma liberdade utópica, romântica, mas sim, instaurar-se em um plano poético onde a impossibilidade não existe. A sensação dessa possibilidade leva o ator a conectar-se com prazeres até então não revelados, abrindo potencialidades de significação e compreensão que não advêm necessariamente da racionalidade. Improvisar faz o corpo pensar. Abole a divisão corpo/mente. Razão e sensibilidade juntas processando os mais variados estímulos e respondendo a eles de maneira
criativa; pois nesse estado (corpo pensando), não há certo e errado, não há juízo de valor, muito menos maniqueísmos e dicotomias; o que há é o processo da dualidade, constante, entrelaçando-se em espiral como o DNA, como o anel de Moebius, onde figura e fundo coexistem, significando e dependendo um do outro.
Improvisar é abrir-se à inspiração e ao acaso. Inspiração no sentido de conexão, conexão com uma supra-consciência geradora da qual fazemos parte e que nos tira do estado de consciência cotidiano, banal e viciado para nos colocar em um estado poético de consciência, transgressor e atuante. Sentir-se inspirado é perceber a inexistência de obstáculos. É perceber a fluência em lugar do tranco. Ou melhor, levar em consideração o tranco como fluência. Fayga Ostrower, em seu livro Acasos e criação artística, relacionando acaso e inspiração, nos diz que os acasos de alguma forma são esperados ainda que numa “expectativa inconsciente” e continua dizendo que: é importante levar em consideração este ponto: o de uma expectativa latente em nós, em termos de mobilização psíquica e receptividade. Iluminará certas questões de inspiração. Mostrará a distinção a ser feita entre passividade e receptividade. As pessoas não são passivas frente aos estímulos – e não é qualquer estímulo que poderá tornar-se “acaso” ou “inspiração”. As pessoas estão é receptivas; receptivas, a partir de algo que já existe nela de forma potencial e que encontra no acaso como que uma oportunidade concreta de se manifestar. Por mais surpreendentes que sejam os acasos, eles nunca surgem de modo arbitrário e sim dentro de um padrão de ordenações, em que as expectativas latentes da pessoa e os termos de seu engajamento interior representam um elo vital na cadeia causa e efeito.
Somente nesse ponto é que chegamos ao estado de improviso. E para chegar a ele é necessário improvisar. Chega-se ao estado de improviso improvisando. Improvisação é matéria vivida. Ela faz com que não nos esqueçamos que o homem é constituído de carne, ossos, sangue e emoções. Ela nos alia, nós, atores e espectadores, novamente a forças vitais, reinstaurando-nos Dioniso. Canal aberto para o entusiasmo, no sentido que a Antiguidade nos legou: arrebatamento extraordinário daqueles que estavam sob inspiração divina. Caminho da espontaneidade que nos leva ao humor e à leveza, alargando e aprofundando as possibilidades criativas. Por outro lado o “vale tudo” da Improvisação pode nos levar ao “qualquer coisa”. Um dos motivos pelos quais a Improvisação cai em descrédito é essa sua queda pela falta de rigor quando utilizada com incompetência. Por ser algo dinâmico, repleto de variáveis, que não visa exatamente um fim, mas entende que o caminho é a questão, a Improvisação exige que os atores e diretores processem seu fazer operando de uma outra forma. Uma reflexão mecanicista não suporta as variáveis do Improviso. Esse tipo de pensamento tende a querer resultados específicos e imediatos, tende a equacionar todas as coisas visando finais certeiros e
reprodutíveis. A Improvisação exige uma mudança de paradigma. Ela nos ajuda a compreender que a arte do ator não é fixa, que a ação que ele fará amanhã em cena não é (mesmo) a mesma de hoje. Que sua reprodução é dependente de variáveis ao mesmo tempo objetivas e subjetivas, racionais e sensoriais, previstas e irremediavelmente ligadas ao acaso. Por isso deve-se adquirir uma nova forma de processar a Improvisação tanto no momento de seu acontecimento quanto no momento de sua reflexão.
O compositor, regente e educador Hans-Joachin Koellreutter a respeito da Improvisação em música e que se estende a qualquer Improvisação artística diz: Não há nada que precise ser mais planejado do que uma Improvisação. Para improvisar é preciso definir claramente os objetivos que se pretende atingir. É preciso ter um roteiro, e a partir daí trabalhar muito: ensaiar, experimentar, refazer, avaliar, criticar, etc.. O resto é vale-tudismo! (BRITO, 2001, pp. 45-6)
Acrescentaria ao planejamento que os artistas envolvidos em uma Improvisação devam também estar abertos a compreenderem/sentirem a ideia/sensação de fluência, dinâmica, mobilidade, impregnação, aleatoriedade. Planejar para lançar-se. Saber que planejamos a vela, o mastro, as cordas, mas não o vento. Prevemos o vento, mas não o dominamos. A Improvisação ensina-nos a controlar sem controle. Por isso sua potência. Por isso ela desestabiliza e oferece o inesperado, o “novo”.
Improvisação é coisa séria. Não pode ser entendida apenas como “gambiarra”, como mascaramento de um erro, mas sim como meio de acesso à criatividade. É através dela que o ator encontrará o meio pelo qual expressará suas necessidades e desejos. O ator que não se lança ao improviso deixa de perceber que é através dele que sua necessidade de expressão pode se manifestar. Porque a Improvisação é o seu território, um território vivo. Ele pode, assim, subjugar-se à necessidade do autor e do diretor. Deixa de estabelecer um diálogo com tais necessidades. Ele deixa de ser artista e passa a ser um mero executor de tarefas. Ele perde contato consigo, deixa de perceber-se como homem inserido em um contexto em que todas as vozes devem ser ouvidas e compartilhadas. Impede seu grito.
Michael Chechov, em seu livro Para o ator, a respeito de Improvisação diz que: Pensadores profundos, impelidos a expressarem-se, criaram seus próprios sistemas filosóficos. Do mesmo modo, um artista que se esforça por expressar suas convicções mais íntimas trata de aperfeiçoar seus próprios instrumentos de expressão, sua forma particular de arte. O mesmo, sem exceção, deve ser dito da arte do ator: seu desejo irrefreável e seu mais alto propósito também só podem ser satisfeitos por meio da livre Improvisação (CHECOV, 1986, p. 39).
Embora a Improvisação seja um procedimento que sempre existiu, às vezes com mais intensidade, como nos autos medievais e na Comédia dell’arte, outras vezes de maneira mais sutil como no Classicismo francês, é no século XX, com a modernidade, que ela ganha espaço definitivo nas manifestações artísticas: na música dita erudita de Stravinsky a Koellreutter passando por Cage; na popular com o aparecimento do Jazz nos Estados Unidos, onde a Improvisação é o próprio jazz, ou nos repentes nordestinos; nas artes plásticas através do conceito de Instalação levando em conta o visitante, relacionando-se com a obra de maneira improvisada e aleatória, os Parangolés de Hélio Oiticica sendo um exemplo próximo; e no teatro, a ideia de Performance Teatral advinda dos anos 60 com o Living Theatre. Na contemporaneidade, neste momento em que o ator passa a ser o centro das
atenções, onde o conceito ator-criador é amplamente divulgado (embora o considere uma redundância), em que o diálogo ator/encenador se dá de maneira mais franca e democrática, a
Improvisação é o melhor instrumento de pesquisa para que esse ator possa se manifestar, elaborar o seu material criativo, associar fundamentos teóricos com a ação cênica especificamente, enfim, entrar em contato com suas necessidades e anseios expressivos.
Peter Brook nos diz:
“Vamos supor que tenhamos a mais elevada das ambições: no espetáculo, só queremos apanhar o peixe dourado” (entenda-se peixe dourado como a qualidade especial que faz com que a arte se manifeste plenamente e alcance todos os espectadores tanto a nível racional quanto intuitivo). De onde vem o peixe dourado? Ninguém sabe. Deve ser de algum lugar do inconsciente coletivo mítico, daquele vasto oceano cujos limites nunca foram descobertos, cujas profundezas nunca foram suficientemente exploradas. E onde estamos nós, as pessoas comuns da plateia? Estamos no mesmo lugar em que estávamos ao entrar no teatro, em nós mesmos, em nossas vidas corriqueiras. Tecer a rede (para apanhar o peixe dourado) é construir uma ponte entre nós, como somos habitualmente em
condições normais, trazendo conosco nosso mundinho de todo dia, e um mundo invisível que só pode se revelar quando a insuficiência da percepção ordinária é substituída por outro tipo de consciência cuja qualidade é infinitamente mais aguda. Mas essa rede é feita de buracos ou de nós? Esta questão é como um koan, e para fazer teatro devemos conviver com ela o tempo todo. (BROOK, 1999, p. 72)
Peter Brook talvez seja o grande mestre da arte de interpretar da última metade do século XX. Mestre, porque além de exigir de seus atores qualidades técnicas fundamentais para a fruição da energia humana transformada em arte, ele também se preocupa, como acabamos de ver, com questões “abstratas”, subjetivas e ocultas, tais como, atmosfera da cena, relação energética palco-plateia, oferecer ao ator e posteriormente à plateia condições de ampliar a percepção consciente cotidiana para alcançar uma nova percepção, oriunda da intuição que está profundamente conectada com o inconsciente coletivo.
Assim, o ator pode recuperar sensações, cheiros, gestos de uma ancestralidade para muitos perdida e articulá-los na ação cênica. Ao entrarmos em contato com essa grande consciência percebemos que o Tempo não é o mesmo tempo cronológico do dia-a-dia, o Espaço já não é esse que ocupamos diariamente, e o que observamos é uma outra relação tempo-espaço, um lugar de simultaneidades e sincronicidades onde tudo é possível, tudo é provável, basta estarmos antenados para “sacar” os sinais, seus indícios.
Peter Brook exercita seus atores para que afinem seus instrumentos de trabalho (corpo pensando) em busca dessa nova qualidade de percepção. Porque se trata de uma percepção criativa. Esse estado dilatado de entendimento – que aqui traduzo por corpo-pensando, mesclando o que é da mente e o que é do corpo – precisa de um terreno, de um laboratório em que suas químicas se misturem e se potencializem a tal ponto que não possamos mais perceber quem gestou a faísca criativa. E acredito que a improvisação para o ator é esse terreno fértil. Em um processo improvisacional é mais fácil percebermos e detectarmos o instante em que ocorre em nós a criatividade. Para jogar com as inúmeras variáveis que ele nos apresenta só mesmo com criatividade. Há um estado de latência constante que faz com que o gesto, o movimento, a ação, desempenhados pelo ator, em sua ação improvisada, adquira a força da espontaneidade, por ter sido escolhida entre tantas outras possibilidades. Essa escolha é a resultante do impulso advindo da intuição com a ordenação e a estruturação advindas da consciência. É através dela que o ator tem a oportunidade de acessar livremente uma região potencial criativa por excelência que aparece do encontro entre sua sensibilidade e o material poético, entre sua individualidade e o “outro”. É nessa região potencial que o gesto criador pode adquirir forma e assim se expressar na cena propriamente dita segundo os critérios estéticos de cada encenação. Se o ator é essencialmente um artista que manifesta em seu próprio corpo a sua arte, ele não pode ficar alheio ao “outro” acreditando apenas em sua própria capacidade inventiva. É somente através do contato com o “outro” que ele tem a possibilidade de se tornar verdadeiramente um criador e o jogo improvisacional é o lugar ideal para que esse exercício da alteridade se dê plenamente. A improvisação é um território ao mesmo tempo fecundo e movediço em que ele encontra a fluidez criativa originada do encontro entre as latências inconscientes e as escolhas conscientes. É no jogo improvisacional que o ator encontra o élan vital de sua arte.
BIBLIOGRAFIA CITADA:
BRITO, Teca Alencar de. Koellreutter Educador: o humano como objetivo da educação musical. São Paulo,
Peirópolis, 2001.
BROOK, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999.
CHECHOV, Michael. Para o ator. São Paulo, Martins Fontes, 1986.
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo, Martins Fontes, 2000.
RYNGAERT, Jean-Pierre. Jogar, representar. São Paulo, Cosac e Naify, 2009.
OSTROWER, Fayga. Acasos e criação artística. Rio de Janeiro, Campus, 1999.
terça-feira, 6 de setembro de 2016
O T A B L A D O apresenta
PROUST E AS ARTES, com Roberto Machado
DATAS: Quintas das 17h30 às 19:30h, nos dias 6, 13, 20 e 27 de outubro e 03 de novembroINVESTIMENTO: R$200,00 / *R$100,00 (alunos d’O Tablado)AS INSCRIÇÕES DEVEM SER FEITAS NA SECRETARIA DO TEATRO O TABLADO,DE SEGUNDA A QUINTA, DAS 14:30 ÀS 19:30 eSEXTA. DAS 14:30 ÀS 18HVAGAS LIMITADAS - GARANTA SUA PARTICIPAÇÃO PREENCHENDO A FICHA DE INSCRIÇÃO EM ANEXO E EFETUANDO PAGAMENTO NA SECRETARIA
quarta-feira, 31 de agosto de 2016
Um Dia Você Aprende
Depois de algum tempo você aprende a
diferença,
a sutil diferença, entre dar a mão e acorrentar uma alma.
E você aprende que amar não significa apoiar-se,
e que companhia nem sempre significa segurança.
E começa a aprender que beijos não são contratos
e presentes não são promessas.
E começa a aceitar suas derrotas com a cabeça erguida
e olhos adiante, com a graça de um adulto
e não com a tristeza de uma criança.
E aprende a construir todas as suas estradas no hoje,
porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos,
e o futuro tem o costume de cair em meio ao vão.
Depois de um tempo você aprende que o sol queima
se ficar exposto por muito tempo.
E aprende que não importa o quanto você se importe,
algumas pessoas simplesmente não se importam…
E aceita que não importa quão boa seja uma pessoa,
ela vai feri-lo de vez em quando e você precisa perdoá-la por isso.
Aprende que falar pode aliviar dores emocionais.
Descobre que se leva anos para se construir confiança
e apenas segundos para destruí-la,
e que você pode fazer coisas em um instante,
das quais se arrependerá pelo resto da vida.
Aprende que verdadeiras amizades continuam a crescer
mesmo a longas distâncias.
E o que importa não é o que você tem na vida,
mas quem você é na vida.
E que bons amigos são a família que nos permitiram escolher.
Aprende que não temos que mudar de amigos
se compreendemos que os amigos mudam,
percebe que seu melhor amigo e você podem fazer qualquer coisa, ou nada, e terem bons momentos juntos.
Descobre que as pessoas com quem você mais se importa na vida são tomadas de você muito depressa,
por isso sempre devemos deixar as pessoas que amamos
com palavras amorosas, pode ser a última vez que as vejamos.
Aprende que as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós, mas nós somos responsáveis por nós mesmos.
Começa a aprender que não se deve comparar com os outros,
mas com o melhor que você mesmo pode ser.
Descobre que se leva muito tempo para se tornar a pessoa que quer ser, e que o tempo é curto.
Aprende que não importa aonde já chegou, mas onde está indo,
mas se você não sabe para onde está indo,
qualquer lugar serve.
a sutil diferença, entre dar a mão e acorrentar uma alma.
E você aprende que amar não significa apoiar-se,
e que companhia nem sempre significa segurança.
E começa a aprender que beijos não são contratos
e presentes não são promessas.
E começa a aceitar suas derrotas com a cabeça erguida
e olhos adiante, com a graça de um adulto
e não com a tristeza de uma criança.
E aprende a construir todas as suas estradas no hoje,
porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos,
e o futuro tem o costume de cair em meio ao vão.
Depois de um tempo você aprende que o sol queima
se ficar exposto por muito tempo.
E aprende que não importa o quanto você se importe,
algumas pessoas simplesmente não se importam…
E aceita que não importa quão boa seja uma pessoa,
ela vai feri-lo de vez em quando e você precisa perdoá-la por isso.
Aprende que falar pode aliviar dores emocionais.
Descobre que se leva anos para se construir confiança
e apenas segundos para destruí-la,
e que você pode fazer coisas em um instante,
das quais se arrependerá pelo resto da vida.
Aprende que verdadeiras amizades continuam a crescer
mesmo a longas distâncias.
E o que importa não é o que você tem na vida,
mas quem você é na vida.
E que bons amigos são a família que nos permitiram escolher.
Aprende que não temos que mudar de amigos
se compreendemos que os amigos mudam,
percebe que seu melhor amigo e você podem fazer qualquer coisa, ou nada, e terem bons momentos juntos.
Descobre que as pessoas com quem você mais se importa na vida são tomadas de você muito depressa,
por isso sempre devemos deixar as pessoas que amamos
com palavras amorosas, pode ser a última vez que as vejamos.
Aprende que as circunstâncias e os ambientes têm influência sobre nós, mas nós somos responsáveis por nós mesmos.
Começa a aprender que não se deve comparar com os outros,
mas com o melhor que você mesmo pode ser.
Descobre que se leva muito tempo para se tornar a pessoa que quer ser, e que o tempo é curto.
Aprende que não importa aonde já chegou, mas onde está indo,
mas se você não sabe para onde está indo,
qualquer lugar serve.
Aprende que, ou você controla seus
atos ou eles o controlarão,
e que ser flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade,
pois não importa quão delicada e frágil seja uma situação,
sempre existem dois lados.
Aprende que heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer,
enfrentando as conseqüências.
Aprende que paciência requer muita prática.
Descobre que algumas vezes a pessoa que você espera que o chute
quando você cai é uma das poucas que o ajudam a levantar-se.
Aprende que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência
que se teve e o que você aprendeu com elas
do que com quantos aniversários você celebrou.
Aprende que há mais dos seus pais em você do que você supunha.
Aprende que nunca se deve dizer a uma criança que sonhos são bobagens,
poucas coisas são tão humilhantes e seria uma tragédia
se ela acreditasse nisso.
Aprende que quando está com raiva tem o direito de estar com raiva,
mas isso não lhe dá o direito de ser cruel.
Descobre que só porque alguém não o ama do jeito que você quer
que ame, não significa que esse alguém não o ama,
pois existem pessoas que nos amam,
mas simplesmente não sabem como demonstrar isso.
Aprende que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém,
algumas vezes você tem que aprender a perdoar-se a si mesmo.
Aprende que com a mesma severidade com que julga,
você será em algum momento condenado.
Aprende que não importa em quantos pedaços seu coração foi partido,
o mundo não pára para que você o conserte.
Aprende que o tempo não é algo que possa voltar para trás.
Portanto, plante seu jardim e decore sua alma,
ao invés de esperar que alguém lhe traga flores.
E você aprende que realmente pode suportar…
que realmente é forte, e que pode ir muito mais
longe depois de pensar que não se pode mais.
E que realmente a vida tem valor
e que você tem valor diante da vida!
Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o bem
que poderíamos conquistar, se não fosse o medo de tentar.
(William Shakespeare)
e que ser flexível não significa ser fraco ou não ter personalidade,
pois não importa quão delicada e frágil seja uma situação,
sempre existem dois lados.
Aprende que heróis são pessoas que fizeram o que era necessário fazer,
enfrentando as conseqüências.
Aprende que paciência requer muita prática.
Descobre que algumas vezes a pessoa que você espera que o chute
quando você cai é uma das poucas que o ajudam a levantar-se.
Aprende que maturidade tem mais a ver com os tipos de experiência
que se teve e o que você aprendeu com elas
do que com quantos aniversários você celebrou.
Aprende que há mais dos seus pais em você do que você supunha.
Aprende que nunca se deve dizer a uma criança que sonhos são bobagens,
poucas coisas são tão humilhantes e seria uma tragédia
se ela acreditasse nisso.
Aprende que quando está com raiva tem o direito de estar com raiva,
mas isso não lhe dá o direito de ser cruel.
Descobre que só porque alguém não o ama do jeito que você quer
que ame, não significa que esse alguém não o ama,
pois existem pessoas que nos amam,
mas simplesmente não sabem como demonstrar isso.
Aprende que nem sempre é suficiente ser perdoado por alguém,
algumas vezes você tem que aprender a perdoar-se a si mesmo.
Aprende que com a mesma severidade com que julga,
você será em algum momento condenado.
Aprende que não importa em quantos pedaços seu coração foi partido,
o mundo não pára para que você o conserte.
Aprende que o tempo não é algo que possa voltar para trás.
Portanto, plante seu jardim e decore sua alma,
ao invés de esperar que alguém lhe traga flores.
E você aprende que realmente pode suportar…
que realmente é forte, e que pode ir muito mais
longe depois de pensar que não se pode mais.
E que realmente a vida tem valor
e que você tem valor diante da vida!
Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o bem
que poderíamos conquistar, se não fosse o medo de tentar.
(William Shakespeare)
Um Apólogo
Machado de Assis
Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por
que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que
vale alguma cousa neste mundo?
—
Deixe-me, senhora.
— Que a
deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável?
Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que
cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem
cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se
com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas
você é orgulhosa.
—
Decerto que sou.
— Mas
por quê?
— É
boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é
que os cose, senão eu?
—
Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os
cose sou eu e muito eu?
— Você
fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição
aos babados...
— Sim,
mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem
atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também
os batedores vão adiante do imperador.
— Você é
imperador?
— Não
digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai
só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que
prendo, ligo, ajunto...
Estavam
nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto
se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não
andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da
linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam
andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os
dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor
poética. E dizia a agulha:
— Então,
senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta
distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos
dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha
não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela,
silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras
loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi
andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a
costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no
outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a
noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se,
levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E
enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro,
arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar
da agulha, perguntou-lhe:
— Ora,
agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do
vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas,
enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio
das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece
que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor
experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda,
aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da
vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro
caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei
esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
— Também
eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!
Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos", Editora Ática - São Paulo, 1984, pág. 59.
SOBERBA
Lionel Fischer
(Cortina fechada. Surge a princesinha Tesudetta. Ela se
dirige à platéia)
Tesudetta - Como podeis
constatar sem grande esforço, estou possuída de grave melancolia, salpicada de
aflição e fustigada pela desesperança. E se aqui me encontro, diante de vós, e
diante de vós me prostro de joelhos (Ela se põe de joelhos), é porque em vós deposito minha última
esperança. Caso m’a negueis, o que não posso crer que o façais, todo meu ser se
verá tomado pela mais cava depressão, morada fatídica de onde ninguém consegue
escapar, desde que nela adentre - ainda mais no século em que vivo, o XIII, quando Freud
ainda não havia sido concebido e muito menos os medicamentos específicos aos
quais tendes acesso quando tal moléstia, a melancolia, vos assalta. Acompanhai,
portanto, e com a atenção devida, a breve narrativa que ora vos exponho, finda
a qual talvez consigais lançar alguma luz sobre as trevas abissais em que me
encontro, fruto do impasse que me dilacera por dentro e em toda a minha
periferia. (Entra uma
música, a cortina se abre lentamente. Vemos duas escadas. No topo de uma delas
se encontra o Rei; no topo da outra, o príncipe Arlindorlandus. Junto a cada
uma das escadas, um Conselheiro. Sai a música)
Tesudetta - Toda a tragédia
começou no dia que seria o dia mais feliz de minha vida: quando completei 15
anos de radiosa existência, fato ocorrido há um mês. Para comemorar a marcante
data, meu pai resolveu promover um grandioso baile, para o qual convidou todos
os governantes dos reinos fronteiriços, dentre eles o príncipe Arlindorlandus.
E lá pelas tantas, quando os trovadores começaram a entoar uma seqüência de
baladas dançantes que muito sucesso faziam, eis que Arlindorlandus me saca pra
bailar. (Entra uma
música medieval. Arlindorlandus desce da escada e dança com Tesudetta. O Rei
descongela, assim como os dois Conselheiros)
Conselheiro do Rei - E todos
acompanhávamos, embevecidos, a evolução dos pares, e em especial o formado por
Tesudetta e Arlindorlandus, que até então não se conheciam e, surpreendentemente,
exibiam total entrosamento.
Conselheiro do Príncipe - Num dado momento,
porém, o assombro tomou conta de todos. (Sai a música medieval. Todos congelam, menos o Conselheiro
do Príncipe) Como que embalados pelo som de uma música que ninguém ouvia, Tesudetta e meu senhor, Arlindorlandus, passaram a
evoluir estranhamente acoplados, e rebolando de tal forma que tivemos a
impressão de que um processo de cópula estava em marcha. (Entra um forró. O Rei se ergue,
estupefato, a mesma estupefação estampada no rosto dos Conselheiros. Após um
tempo, o Rei pula da escada. Cessa o forró)
Rei - Mas o que é isso? Estais possuídos pelo demo? É ele quem
impregna vossos ouvidos de uma canção que não ouvimos e vos instiga a
projetarem para frente e para trás os mútuos ventres, assim promovendo
indecorosa intimidade entre vossas partes pudendas?
Tesudetta - Meu pai, estais
interpretando erroneamente...
Rei - Calai-vos, antes que a cólera me domine por completo e te
esbofeteie até ver tua rosada face deformada!
Príncipe - Senhor, por que
partiríeis para uma agressão tão descabida se...
Rei - Calai-vos vós, igualmente, pois do contrário tuas
bochechudas faces receberão idêntico flagelo!
Tesudetta - Oh meu Deus, fazei
com que papai...
Rei - Como ousaste sarrar minha única e dileta filha, diante de
minhas barbas, em meu castelo, e tendo por testemunha toda a minha nobreza e a
fronteiriça?
Arlindorlandus - Perdão, senhor,
mas não a sarrava!
Rei - Ah, não? E o que fazíeis, grudando o que imagino que
possuís entre as pernas na região análoga de Tesudetta?
Tesudetta - Oh, meu pai,
acreditai em vossa filha: nada senti de ofensivo, da parte de Arlindorlandus,
na região que mencionais!
Rei - Talvez nada tenhais sentido porque o objeto da ofensa, no
presente caso, seja um tanto diminuto! (Tesudetta desvia o olhar do pai, com expressão dúbia)
Arlindorlandus - Sugeris acaso que o pedúnculo que ostento em meu baixo
ventre...
Rei - Cagando estou para a dimensão de vosso pedúnculo! Quero
apenas que saibais que, de ora em diante, e para todo o sempre, sois persona
non grata
neste reino!
Todos - Oh!
Rei - E que estão cortadas para todo o sempre as amistosas
relações que até então mantínhamos, tanto pessoais como comerciais!
Todos - Oh!
Rei - Assim sendo, ordeno que vos retireis imediatamente de meus
domínios, ficando desde já implícito que, se neles fordes algum dia
surpreendido, sereis torturado implacavelmente até a morte!
Todos - Oh!
Arlindorlandus - Pois que seja. E o
mesmo vaticínio aplico a vós, se porventura e sob qualquer pretexto, fordes surpreendido
nos domínios sob minha tutela!
Tesudetta - Meu nobre pai!
Gracioso Arlindorlandus! Estais ambos agindo como crianças insensatas! Ponderai
com um mínimo de calma acerca da grotesca decisão que acabais de tomar e logo
percebereis suas graves conseqüências!
Rei/Arlindorlandus - E quais são elas?
Tesudetta - Afora a perda da
mútua amizade que até então vos unia, vos vereis privados daquilo que mais
amais!
Rei/Arlindorlandus - E o que seria?
Tesudetta - Não sejais cínicos!
Vós, meu pai, sabeis perfeitamente que não conseguireis sobreviver sem degustar
diariamente os brocolitos...
Conselheiro do Rei (À platéia) - Palitinhos de
brócolis.
Tesudetta - ...que para cá são
exportados por Arlindorlandus!
Rei - Serei forte o bastante para suportar a brutal abstinência!
Tesudetta - E quanto a vós,
Arlindorlandus: imaginais poder viver sem as trulhetas...
Conselheiro do Príncipe (À plateia) - Trufas em forma de caneta.
Tesudetta - ...que só aqui
existem e que meu pai vos envia mensalmente?
Arlindorlandus - Serei forte o bastante
para suportar a brutal abstinência!
Tesudetta - Por Deus, sabeis
que não! Da mesma forma que não ignorais que todo esse mal-entendido pode ser
agora dissipado!
Rei/Arlindorlandus - Jamais!
Tesudetta - Meu pai, por tudo
que pode haver de mais sagrado: eu vos juro que não tive minhas partes pudendas
fustigadas pelo colossal ariete de Arlindorlandus!
Rei - Como sabeis ser colossal o dito ariete?
Tesudetta - Bem, eu...
Arlindorlandus - Inóspito vizinho:
embora esta não seja a ocasião propícia para a revelação de detalhes
anatômicos, posso vos garantir que o pedúnculo que ostento se enquadra nos
padrões da mais absoluta normalidade!
Conselheiro do Príncipe - Isso é verdade.
Príncipe - E se Tesudetta o
adjetivou de “colossal”, isto se deve apenas a um mimo de sua parte, posto que
toda mulher sabe que todo homem gostaria de possuir um tarugo capaz de
aterrorizar a mais devastada das prostitutas!
Conselheiro do Rei - Tesudetta já
nasceu sabendo das coisas...
Arlindorlandus - Assim sendo,
reitero o que já vos disse: ao bailar com vossa filha, em nenhum momento me
ocorreu a obscena idéia de sarrá-la. E o mesmo, vos afirmo, jamais passou pela
cabeça de Tesudetta, flor ainda em botão, a inocência personificada.
Portanto...
Rei - Nem uma palavra mais! Ou a espada desembanharei e vossa
rotunda cabeça cortarei!
Arlindorlandus - Se vossa mão
buscar o rumo de vossa espada, o mesmo se dará com a minha! E serei eu a
decepar vossa cabeça, por sinal muito mal feita!
(Ambos sacam as respectivas espadas. Os Conselheiros se agarram
aos seus monarcas, enquanto Tesudetta, após correr para o procêncio, solta um
grito lancinante. Toda a cena congela. Tesudetta, à platéia, sob a luz de um
único foco)
Tesudetta - Como já vos disse
no início desta dolorosa narrativa, já 30 dias se passaram. E nada se
modificou. Ou por outra: tudo se modificou. Privado de seus brocolitos, meu pai
se encontra neste lamentável estado...(Um foco no Rei, trepado na escada. Ele está com o peito à
mostra, onde se vêem manchas arroxeadas) Pústulas nauseabundas adornam seu outrora
majestoso peito...(O Rei
geme e chora) Quanto a Arlindorlandus, uma vez
privado das trulhetas, assim ficou...(Foco no Príncipe, também trepado na escada, a peruca que
usava em uma das mãos) Estão lhe caindo todos os pelos, a começar pelos de cima...(Arlindorlandus chora e geme) Quanto a mim, já
não sei mais o que fazer. A não ser contemplar, impotente, os trágicos efeitos
da soberba. Sim, pois é ela que os impede de fazer as pazes. Por desmedido
orgulho, nenhum dos dois se dispõe a dar o primeiro passo, a estender a mão que
selaria a paz. E aqui não se trata, em absoluto, de ferrenha defesa de
princípios, pois meu pai tem plena consciência de minha natureza galinácea e se
porventura Arlindorlandus a desconhecia, não resta a menor dúvida de que
fustigou minha caçapinha com seu inflado bastonete. Seja como for, estamos
todos diante deste doloroso impasse. E a menos que algum dos senhores ou
senhoras me diga o que fazer para levá-los a renunciar ao capital pecado que os
consome, nada me restará a não ser aguardar, resignada, a morte de meu pai e a
de meu ardente forrozeiro! (Tempo) E então, senhores? Nenhuma idéia salvadora?
Rei (Agonizando) - Meu reino por um brocolito...
Tesudetta - Por Deus, meu pai
agoniza!
Arlindorlandus (Agonizando) - Tudo daria por uma trulheta...
Tesudetta - Vede o lamentável
estado em que se encontra Arlindorlandus!
Conselheiro do Rei - É inútil
prosseguir com vossas súplicas, Tesudetta...(Toda a cena se ilumina)
Conselheiro do Príncipe - Deles não obtereis
a salvadora dica.
Tesudetta - E por que não?
Conselheiro do Rei - Porque vossa
história não os comoveu.
Conselheiro do Príncipe - E nem convosco se
identificaram.
Conselheiro do Rei - E quando a platéia
não estabelece com a protagonista a indispensável empatia...
Conselheiro do Príncipe - Narrativa e cena
vão ambas pro caralho!
Conselheiro do Rei - Assim, que o pano
se feche e as luzes se apaguem!
Conselheiro do Príncipe - E para as coxias
marchemos conscientes do próprio fracasso!
Tesudetta - Pois daqui não saio
até que um conselho receba!
Conselheiro do Rei - Aceitai a derrota,
ninfa pervertida!
Conselheiro do Príncipe - E permiti que a
humildade de vosso ser se aposse!
Tesudetta - Poupai meus ouvidos
de tão estéril cantilena! Já disse e repito: deste palco só saio quando algum
deles se pronunciar!
Conselheiro do Rei - Se assim é,
preparai-vos para uma longa agonia...
Conselheiro do Príncipe - Em tudo semelhante
à que o destino reservou a vosso pai e a meu senhor...
Conselheiro do Rei - Pois no fundo,
assim como no raso, não passais de almas gêmeas...
Conselheiro do Príncipe - Todas padecendo do
mesmo e pavoroso pecado.
Tesudetta - E qual seria ele,
se não vos importais de m’o dizê-lo?
Conselheiros - A soberba!!! (Acorde dramático. Tesudetta tomba no
chão, vítima de soberbo enfarte, ao mesmo tempo em que o Rei e Arlindorlandus
exalam o último suspiro. Após constatarem a tripla morte, os Conselheiros vão
saindo de cena, cada qual por um lado, lentamente, enquanto as luzes caem em
resistência)
OBS: esta cena foi escrita, em tempos
imemoriais, em homenagem a ArlindoOrlando, personagem criado por Evandro Mesquita
na canção “A dois passos do paraíso”.
____________________________
A mão
Desde a noite de núpcias,
há mais de 50 anos, que dormiam de mãos dadas. Mesmo durante os inevitáveis
períodos de crise, a nenhum dos dois ocorreu renunciar ao gesto: realizavam-no
automaticamente e apesar de tudo. E embora jamais tenham trocado uma palavra
sobre essa singular perseverança, no fundo acreditavam que se rompessem uma
única vez com o ritual de sempre isso equivaleria a admitir que nada mais lhes
restaria a não ser a separação. Mas afora seu caráter simbólico, o gesto
parecia possuir propriedades soporíferas, pois uma vez consumado o casal
adormecia em menos de cinco minutos, sendo, portanto, de extrema validade tanto
para o espírito como para o corpo.
Tinham a mesma idade, setenta e cinco anos, gozavam de
boa saúde e a morte não os preocupava. Juraci, inclusive, tinha plena convicção
de que viveria mais de cem anos. Menos otimista, ainda assim Soraia acreditava
que atingiria os noventa. A se confirmar a previsão de ambos, teriam então ao
menos quinze anos de vida em comum.
Entretanto, numa tarde como outra qualquer, quando
regressava para casa após ter feito compras na quitanda da esquina, Soraia
sentiu subitamente a presença da morte. Poderia, por certo, ter interpretado o
calafrio que lhe percorreu as entranhas como um sintoma de gripe iminente;
também poderia ter associado a vertigem, que quase a fez tombar, à recente
mudança de grau nos óculos que usava ; ou ter atribuído à sua costumeira
flatulência a dor que sentiu pouco abaixo do diafragma e que parecia empenhada
em lhe obstruir a respiração. Enfim, Soraia poderia ter tentado consolar-se da
premonição que a invadira apoiando-se em qualquer uma das três hipóteses, ou
até mesmo mesclando-as. Mas foi tão avassaladora a sensação de que não lhe
restavam pouco mais do que uns míseros dias que tudo o que conseguiu fazer foi
recostar-se no muro de uma casa e chorar discretamente a inexorabilidade de seu
destino.
Entretanto, nada comentou com o marido, mas a partir
daí só agiu em função dele. No dia seguinte, procurou um artesão que vendia
bonecos desengonçados nas feiras e nos mercados, e encomendou-lhe uma mão
exatamente igual à sua, pagando adiantado e regiamente - mas só depois de ter
arrancado dele a promessa solene de que ninguém haveria de saber o que ela lhe
pedia. Petrônio, o escultor fracassado, que só conseguia se manter vivo graças
à generosidade de uns poucos que eventualmente adquiriam seus monstrengos, ante
a polpuda quantia oferecida lançou-se de imediato ao trabalho, concluindo-o em
três dias.
Nessa mesma noite, Soraia mostrou a réplica de sua mão
esquerda ao marido. Ele a elogiou muitíssimo, mas quando ficou ciente dos
motivos que haviam animado a esposa a mandar fazê-la, teve uma crise de asma
tão violenta que Soraia, por um momento, acreditou que a escultura corria sério
risco de jamais vir a ser utilizada. Juraci precisou ser levado a um posto de
saúde e só não morreu por puro acaso. Passou a noite inteira encafifado dentro
de um balão de oxigênio e sua dispnéia só cedeu quando o dia clareava. Soraia
permaneceu todo o tempo ao seu lado, segurando sua mão, implorando a Deus para
que não o levasse antes dela, dentre outras coisas por não lhe parecer justa
uma inversão na ordem das mortes depois do que havia gasto.
Quando regressaram a casa, Juraci não mais silvava
como um cão agonizante, mas em contrapartida tornou-se catatônico. Soraia
tentou durante todo o dia convencê-lo de que agira pensando unicamente nele, na
sua tranqüilidade noturna, na perpetuação do antigo hábito, mas Juraci
permanecia aferrado à sua postura pétrea de general de estátua. Passava das
onze quando, já rouca e esgotada, Soraia decidiu finalmente renunciar a que o
marido reconhecesse a grandeza de seu gesto. Colocando então a mão sintética e
borrachuda numa caixinha de vidro, beijou o marido, foi para o seu quarto,
deitou-se e morreu imediatamente.
Durante os quinze dias que se seguiram à misteriosa
morte, Juraci não ousou tocar naquela mão eternizada, mas também não conseguiu
dormir um minuto sequer - apenas cochilava durante o dia, no máximo por alguns
minutos. Recorreu a sedativos, inventou os mais variados estratagemas para
atrair o sono, mas foi tudo inútil. Quando finalmente se convenceu de que não
lhe restava outra alternativa a não ser a de seguir a recomendação da falecida,
foi para a cama com a caixinha e tão logo se pôs em contato com a réplica
dormiu de imediato.
A partir daí, Juraci nunca mais teve qualquer problema
para dormir, porque jamais deixou de se deitar de mãos dadas com o precioso
objeto. Sua relação com ele, aliás, não se limitava ao mero ato de usufruir
suas propriedades soporíferas; quando saía para passear, por exemplo, levava-o
sempre consigo, se bem que oculto, pois não lhe interessava que os outros
soubessem de sua existência. Afora isso, lavava-o com freqüência, escovava-o e
depois de certo tempo habituou-se a passar esmalte uma vez por semana nas unhas
da escultura, utilizando invariavelmente a tonalidade preferida da esposa, um
rosa desmaiado.
Diante de tal quadro, não se torna nem um pouco
difícil compreender porque Juraci conseguia suportar tão bem - dentro do
possível, evidentemente - a ausência da esposa. Guardadas as devidas
proporções, era como se ela continuasse em sua casa e em sua vida. É até
provável que seu amor por Soraia tenha aumentado depois da morte dela, pois
nunca fora tão atencioso e gentil com a esposa como o era agora com a réplica
de sua mão esquerda. Sempre a amara, é verdade, mas de forma econômica,
homeopática, pouco expansiva, como se no fundo temesse um esvaziamento
prematuro de suas reservas afetivas.
E assim, apaixonado e certo de que chegaria mesmo a
completar um século, Juraci foi levando sua vida. E certamente teria conseguido
o prodígio de viver cem anos não tivesse tido a idéia de comemorar o primeiro
aniversário de viúvo chamando seus amigos mais chegados para uma singular
reunião social. Aos que estranharam o aparentemente insólito convite declarou,
em tom solene, que tinha certeza de que Soraia aprovaria aquela iniciativa,
posto que a mesma fora concebida visando homenageá-la. Sim, toda a conversa
haveria de girar em torno dela, da maravilhosa relação que haviam mantido por
mais de meio século - Juraci só não revelou que pretendia recitar alguns
sonetos que compusera pensando na finada e que gostaria de submeter à sincera
avaliação de seus amigos. Se aprovados, prosseguiria dando vazão à verve
poética de que se julgava possuído e mais tarde, quem sabe, tentaria
publicá-los. Já havia até mesmo escolhido o título da possível coletânea: “Soneraia”-
que, como se vê, é a sutil mescla de soneto com Soraia.
Confiando que a inusitada tertúlia haveria de
consagrá-lo como esposo devotado e poeta tardio, encomendou um farto bufê de
doces e salgadinhos, assim como abarrotou a geladeira de cerveja de várias
marcas. E para que nada pudesse distrair a atenção dos amigos ou interromper o
fluxo de paixão que haveria de impregnar os corações presentes, contratou uma
mulata que trabalhava na quitanda para servir as guloseimas e bebidas.
Chamava-se Fátima e teria uns 17 anos. Por julgá-la inexperiente em assuntos de
tamanha envergadura - amor e poesia -, Juraci a orientou no sentido de não
permitir que algum dos convidados deixasse a sala para, por exemplo, ir até a
geladeira pegar um pouco mais de cerveja. Ela teria que permanecer vigilante na
porta da cozinha, que dava para a sala, e suprir as carências de seus amigos
antes mesmo que eles as notassem. Em troca, receberia 50 reais e poderia ficar
com todos os petiscos que porventura não viessem a ser consumidos.
A idéia, em si, era excelente, pois, como todos
sabemos, a poesia, para ser devidamente apreciada, requer um grau de
concentração absoluto. Mas nem sempre as boas intenções geram resultados
compensadores, haja vista a enorme legião de bem-intencionados que habita as
trevas infernais. E ainda que não possamos garantir que tenha sido esse o
destino de Juraci, o fato é que antes de soarem as doze badaladas daquele
fatídico dia ele já não pertencia mais a esse nosso abençoado mundo.
Mas vamos ao que ocorreu. A reunião começou às 18h em
ponto, hora da Ave Maria e justamente com uma oração em memória de Soraia,
porque todos os presentes, além de estimá-la muito, eram católicos genuínos. Em
seguida, e durante as próximas duas horas, falou-se muito dela, da relação do
casal, do amor, tudo de acordo com os planos previamente traçados por Juraci. E
comeu-se muito e bebeu-s em igual medida, de forma que às 20h o anfitrião
julgou que o clima já se tornara propício para o início do recital. Então, sem
nenhum aviso prévio, postou-se no centro da sala e, para assombro dos presentes,
recitou, de cor e em seqüência, 54 sonetos!
Assim que acabou, afônico e esgotado de tanta emoção,
Juraci tornou a se sentar e teve uma violenta crise de choro. Mas os amigos o
cercaram de imediato e foram pródigos em elogios e afagos - dentre os muitos
que ribombaram pela casa talvez o mais sublime tenha sido o que o designou “O
José de Alencar de Vila Valqueire”, o que em muito excedia as mais otimistas
expectativas do poeta estreante.
Finalmente, às 23h, retirou-se o último convidado, na
casa permanecendo apenas a mulata Fátima, entretida na arrumação da casa e na
lavagem de pratos, copos e talheres. Nada poderia sugerir o que se seguiu, mas
o fato é que de repente Juraci teve a intuição de que aquela noitada o havia
rejuvenescido em pelo menos vinte anos. E essa intuição surgiu no exato
instante em que Fátima, empenhada em resgatar um garfo que caíra embaixo de uma
das poltronas, sem querer exibiu uma considerável parcela de suas coxas
magníficas. Incapaz de dominar-se, Juraci atirou-se sobre as ancas da distraída
criatura e as mordeu com tal ímpeto que a doméstica, equivocada quanto ao real
sentido daquele inesperado assalto, assim que conseguiu desvencilhar-se partiu em
disparada e aos gritos, desprezando o pagamento, os salgadinhos e os tardios
pedidos de desculpas que lhe endereçava Juraci. Mas este, ainda que um tanto
frustrado, não chegou a ficar triste, pois redescobrira que suas reservas de
macho ainda não se haviam esgotado, como supunha. O curioso, no entanto, é que
em nenhum momento lhe ocorreu que a dita
descoberta se dera imediatamente após ter recitado 54 sonetos de amor em homenagem à falecida...o
que configurava uma traição, ainda que póstuma. Tanto assim que, ao deitar-se
de mãos dadas com a borrachuda réplica, não se conteve e recitou alguns sonetos
que considerava pertencentes ao grupo dos melhores. E ao adormecer, o fez com a
certeza de que nunca amara tanto Soraia quanto naquele momento.
Deviam ser umas sete da manhã quando a porta da
residência de Juraci começou a ser cruelmente massacrada pelos punhos do pai de
mulata, que, indignado com o relato que ela lhe fizera, decidira tomar
satisfações. Impaciente com a demora e já imaginando que Juraci fingia dormir
para esquivar-se às suas responsabilidades, o latagão de ébano acabou ponto a
porta abaixo. Ato contínuo e como um Átila invadiu a residência aos gritos de “velho
porco, velho tarado”, aos quais agregou ameaças de toda a espécie. Infelizmente
para ele, porém, não teve a ventura de consumá-las, pois assim que entrou no
quarto de Juraci percebeu sua total imunidade a vinganças deste mundo: estava
morto.
Mas não foi por esse motivo que o ofendido pai se
retirou desabaladamente dos aposentos que invadira, mas sim devido ao terror
que dele se apossou ao constatar a presença, no pescoço de Juraci - que
gostaria de haver torcido - de uma mão crispada! - sem dúvida a causadora da mortal
asfixia. (Lionel Fischer, escrito aos 17 anos)
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