quarta-feira, 17 de março de 2010

Niccolo Maquiavel
(1469-1527)

Lionel Fischer

Escritor italiano, Maquiavel foi uma das personalidades mais marcantes da Renascença. De formação humanista, escreveu várias peças, sendo a mais conhecida "A mandrágora", considerada a comédia italiana mais importante do século XVi, tanto pela originalidade temática (que não segue nenhum modelo) como pela elegância dos diálogos, que possibilitam uma visão amarga e crítica dos costumes e vícios de sua época.

Mas o Maquiavel agora em questão é o autor de várias obras político-históricas, sendo a mais célebre "O príncipe", que, se reduzida à sua essência, apregoaria que os fins justificam os meios. Talvez não seja exatamente assim, ou talvez o seja. O fato é que a maioria dos estudiosos não hesita em afirmar que Maquiavel colocava a prática acima da ética, e "O príncipe" seria um modelo imoral de praticar o poder, mas seguido à risca por quase todos os políticos que o criticam.

De qualquer forma, o livro é leitura obrigatória, e como "aperitivo" coloco a seguir um dos capítulos mais interessantes e polêmicos de "O príncipe".


XVII

Da crueldade e da piedade,
e se é melhor ser amado que temido
ou o contrário

Afirmo que todo príncipe deve desejar ser tido por piedoso e não por cruel. No entanto, deve ele tomar cuidado de não fazer um mau uso dessa piedade. César Bórgia foi reputado como cruel; entretanto, a sua dita crueldade reconciliou internamente a Romanha, fê-la coesa, reconduzindo-a a um estado de paz e de fidelidade. Considerando tudo atentamente, veremos que ele foi muito mais piedoso que o povo florentino, o qual, para evitar a fama que advém da crueldade, permitiu a destruição de Pistóia.

Um príncipe, portanto, para poder manter os seus súditos unidos e imbuídos de lealdade, não deve preocupar-se com esta infâmia, já que, com algumas poucas ações exemplares, ele mostrar-se-á mais piedoso do que aqueles que, por uma excessiva comiseração, acabam deixando medrar a desordem da qual derivam as mortes e os latrocínios (os quais, por sua vez, soem depreciar um povo na sua totalidade), ao passo que as execuções por ele ordenadas afetam apenas o particular. E, entre todos os príncipes, é ao novo príncipe que se faz impossível evitar a reputação de cruel, pois que os Estados nascentes vêm sempre repletos de ameaçadores desafios.

Todavia, o príncipe deve ser ponderoso em seus julgamentos e em suas ações, sem temer o seu próprio poder, e proceder de um modo equilibrado, com prudência e benevolência, de sorte que a larga confiança (que nos outros deposita) não faça dele um incauto e que sua excessiva desconfiança não o torne intolerável.

Nasce daí o debate: se é melhor ser amado que temido ou o inverso. Dizem que o ideal seria viver-se em ambas as condições, mas, visto que é difícil acordá-las entre si, muito mais seguro é fazer-se temido que amado, quando se tem de renunciar a uma das duas.

Dos homens, em realidade, pode-se dizer genericamente que eles são ingratos, volúveis e dissimulados, fugidios quando há perigo, e cobiçosos. Enquanto ages em seu benefício, e contanto que a tua necessidade esteja ao longe, todos estão ao teu lado e oferecem-te o seu sangue, os seus bens, as suas vidas e os seus filhos. Ao avizinhar-se, porém, essa necessidade, eles esquivam-se.

Um príncipe que confie intiramente na palavra desses homens, sem prover-se de quaisquer outras garantias, sucumbirá. Isto porque as adesões que obtemos mediante paga e que não nascem do caráter elevado e nobre de cada um, embora nos sejam devidas, com elas não podemos contar, e, nos momentos críticos, delas não nos podemos valer.

E se os homens têm menos receio de conspirar contra aquele que se faz estimar que contra aquele que se faz temer é porque a estima mantêm-se mercê de um compromisso ético, o qual, por serem os homens perversos, sempre vê-se rompido em favor de interesses pessoais, ao passo que o temor está assente sobre um medo de punição que não os abandona jamais.

O príncipe, de todo modo, deverá fazer-se temido, de sorte que, em não granjeando estima, ao menos evitará ser o alvo de ódios; afinal, é perfeitamente possível a um só tempo fazer-se temido sem fazer-se odiado, o que, aliás, ocorrerá sempre que ele se abstiver dos bens dos seus concidadãos e dos seus súditos, bem como das mulheres destes.

E, se ainda precisar atentar contra o sangue de alguém, deverá fazê-lo com uma decorosa justificação e com uma razão manifesta. Mas, sobretudo, deverá ele abster-se dos bens de outrem, visto que os homens não tardam tanto a esquecer a morte de um pai quanto a perda de um patrimônio. Ademais, razões nunca faltam a apoiar um espólio material, e aquele que envereda por um caminho de rapinas encontra sempre uma justificativa para perpetrar suas usurpações. Inversamente, para atentar contra a vida, estas razões fazem-se mais raras e menos duradouras.

Porém, estando um príncipe à frente dos seus exércitos e tendo sob suas ordens uma multidão de soldados, ele não deverá absolutamente preocupar-se em ser reputado cruel, porquanto sem tal reputação jamais se pode manter um exército unido e preparado para qualquer operação. Entre os admiráveis feitos de Aníbal conta o de que, possuindo ele um exército extraordinariamente grande no qual se amalgamavam homens de inúmeras procedências, exército que comandara em batalhas travadas em terras estrangeiras, jamais surgiu no seio deste qualquer dissensão, nem entre os soldados, nem contra o seu comando, nem na advesidade e tampouco na fortuna.

Isso só pôde decorrer da sua inumana crueldade, a qual, a par das suas inúmeras virtudes, fez com que, aos olhos dos seus soldados, ele parecesse sempre venerável e terrível, e sem a qual essas mesmas virtudes não lhe teriam bastado para causar uma tal impressão. Os escritores, pouco conscienciosos nesse particular, por um lado louvam este seu feito; por outro, condenam o seu principal requisito.

Do fato de que as outras virtudes de Aníbal não lhe teriam bastado, podemos nos aperceber num paralelo com Cipião, personagem dos mais invulgares não apenas do seu tempo mas de todos os tempos cuja memória herdamos, ele que teve os seus soldados rebelados na Espanha - o que não derivou de outra coisa senão que da sua demasiada clemência, clemência esta que brindara os seus soldados com uma permissividade incompatível com a disciplina militar.

Daí ele ter sido alvo das reprimendas de Fábio Máximo no Senado, o qual o acusou de corruptor do exército romano. Os locrenses, perfidamente abatidos por um legado de Cipião, por este não foram vingados, nem a insolência do tal legado castigada, tudo isso procedendo da sua natureza complacente. Prova disso é que, em sua defesa, um senador foi à tribuna para dizer que, a exemplo de Cipião, muitos outos homens mais sabiam como não cometer crimes do que punir os crimes cometidos. Esta sua índole teria, com o tempo, maculado o seu nome e o seu prestígio caso, nela inspirado, ele houvesse seguido a decidir dos destinos do Império. Porém, vivendo sob a hegemonia do Senado, esta sua deplorável qualidade tornou-se imperceptível mas reverteu em sua própria glória.

Concluo, pois, retomando o problema do ser temido ou estimado, que, dado que os homens prezam segundo a sua vontade e temem segundo a vontade do príncipe, este, sendo prudente, deverá fundar-se naquilo que respeita ao seu arbítriio, não no que respeita ao arbítrio de outrem. Em suma, terá apenas de proceder de modo a evadir o rancor alheio, como foi dito.

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