terça-feira, 23 de novembro de 2010

Flores de Chumbo

Lionel Fischer
(1984)

CAPÍTULO XXIII


Eu não sabia por que o chamara, nem muito menos para onde me dirigia com tanta determinação. Intuíra, apenas, que precisava sacudí-lo do torpor em que ele mergulhara e me pareceu que um verbo de movimento, associado ao movimento propriamente dito, deveria causar algum impacto. E foi o que aconteceu: não me virei para trás uma única vez, mas sentia monsenhor nos meus calcanhares. Anacleto também resolveu participar da expedição e se colocou ao meu lado, como um ajudante de ordens e de vez em quando me lançava olhares curiosos, que fingi não notar. Assim distribuídos, caminhamos cerca de um quilômetro em campo descoberto e depois uns trezentos metros dentro de um bosque. Neste ponto resolvi interromper a marcha, pois a vegetação se tornara tão densa que prosseguir significava correr o risco de nunca mais encontrar o caminho de volta. É claro que fiz segredo dessa inquietação, pois ela destruiria de um só golpe a imagem de líder que precisava impor. Com o maior cinismo, comecei a olhar as árvores à nossa volta como se, além de reconhecê-las, soubesse o que fazer com elas.

Durante uns quinze minutos consegui desempenhar meu papel com razoável eficiência: arranquei algumas folhas e as cheirei; balancei os galhos mais baixos das árvores adjacentes como se testasse sua resistência; cheguei até mesmo a arrancar um pedaço da casca de uma gigantesca árvore e o pus na boca, engolindo involuntariamente um par de formigas. Enfim, rendi o mais que pude a insólita situação para a qual não conseguia encontrar nenhum desfecho convincente. Quando já estava a ponto de tornar pública a minha fraude, Anacleto, que acompanhara atentamente minha representação, levantou-se e caminhou até uma árvore que eu não incluíra no meu teatrinho. Lá chegando, cheirou-a por um momento e em seguida encharcou sua base com sua urina abundante e fétida. Depois se afastou alguns passos, refestelou-se na relva e adormeceu profundamente.

Sendo inesgotável a capacidade do formidável hirco de compreender tanto minhas palavras como meus silêncios, era evidente que ele não urinara naquele momento e exatamente ali a troco de nada. Por consegüinte, naquela árvore deveria estar a nossa salvação. E foi com esse pensamento positivo que iniciei uma perigosíssima escalada. Nunca tivera a menor habilidade para esse tipo de proeza e que eu me lembre, só havia subido até então no arbusto de onde assistira ao funeral de Ambrosina. Mas era tamanha a minha confiança em Anacleto que fui me afastando do solo, sem pensar que a qualquer momento poderia sofrer uma queda fatal.

Aliás, para ser absolutamente franco, não pensava em coisa alguma a não ser em subir, sempre e cada vez mais. Só comecei a ficar meio angustiado quando me dei conta de que em breve não haveria mais o que escalar e teria que iniciar o caminho de volta, envergonhado e de mãos abanando. Mas mesmo assim continuei subindo, como se algo situado no topo dessa árvore me atraísse irresistivelmente, embora eu não conseguisse mais enxergar um palmo à minha frente, tal a quantidade de folhas que me rodeava.

De repente, ao procurar firmar a mão direita num galho que eu nem via, entrei em contato com uma superfície espetante e volumosa, que me lembrou um abacaxi. Sabia, naturalmente, que abacaxi não nasce em árvore, mas fiquei radiante assim mesmo, pois essa massa incógnita representava uma esperança concreta. Firmando-me então o mais que pude, comecei a sacudir o galho para ver se a fruta (já não tinha a menor dúvida de que se tratava de uma fruta) despencava. Mas a desgraçada resistia a todos os solavancos, parecendo firmemente decidida a permanecer onde estava.

Quando, depois de infrutíferas tentativas, me convenci de que com apenas uma mão não obteria êxito, esqueci toda a cautela e enroscando ambas as pernas num galho que havia mais acima, agarrei aquele que a fruta relutava em abandonar e o agitei com o resto de energia que ainda possuía. Para minha felicidade, depois de uns poucos segundos o colosso se desprendeu e inflingindo à pobre árvore machucados em toda a sua extensão, acabou se estatelando no solo. No solo...ou na cabeça de monsenhor?

Fiquei na dúvida, pois além de ter tido a impressão de ouvir um grito abafado, o prelado não respondeu aos apelos que passei a lhe fazer para saber se estava tudo bem. Com o coração descompassado, pois temia ter cometido um crime involuntário, iniciei a descida tentando me preparar psicologicamente para o horripilante quadro que poderia estar à minha espera: monsenhor, o crânio esmigalhado por essa estranha mistura de abacaxi com jaca, estendido ao lado de Anacleto, que provavelmente ainda dormia!?

Felizmente, nada disso aconteceu. Quer dizer, só aconteceu em termos, pois Anacleto continuava de fato adormecido, mas em contrapartida monsenhor não sofrera nada. E se não respondera aos meus apelos é porque se entregava avidamente à tarefa de devorar um naco da portentosa fruta.

- Puxa, monsenhor...podia ao menos ter me respondido!? Quase morri imaginando que essa coisa pudesse ter caído na sua cabeça!

Mas o prelado não me deu a mínima. Continuou triturando o precioso manjar que lha caíra dos céus sem sequer se dignar a agradecer com um gesto, um simples olhar ou discreto meneio de cabeça a minha indômita bravura. Ofendi-me, evidentemente, mas como a fome superava minha indignação, resolvi atacar uma atraente porção da salvadora fruta e deixar para mais tarde uma seríssima conversa sobre a ingratidão humana.

Quando regressamos à granja já era noite fechada e só conseguimos atingí-la graças a Anacleto, que nos serviu de guia. Não fosse ele e certamente teríamos sido forçados a pernoitar na selva, à mercê dos lobos que, em numerosos bandos, atacavam todos os seres que ousavam perambular por seus domínios - mais uma vez o formidável hirco me salvara a vida. Essa conversa sobre os lobos nós a tivemos por volta das dez da noite, enquanto devorávamos os restos da magnífica fruta. É curioso, mas nenhum de nós sugeriu que guardássemos pelo menos alguns pedaços para o dia seguinte. Seria o lógico, já que não havia a menor garantia de que irmã Geovana nos mandasse provisões. Ainda assim, só não comemos as cascas porque as mesmas, além de duríssimas, espetavam.

Tempos mais tarde, pensando sobre este fato, cheguei à conclusão de que nossa atitude, aparentemente irresponsável, na verdade era a única possível. Todo aquele que vive uma situação extrema não consegue traçar um plano de ação que transcenda suas carências imediatas, visto que a partir de um certo momento o futuro deixa de existir enquanto perspectiva real. Por isso, toda oportunidade que surge passa a ser encarada como a última. E esse mecanismo se aplica tanto àquele que, como eu, arrancara a fruta de uma árvore para não morrer de fome quanto a um outro que, durante uma batalha, arranca os olhos de seu inimigo para evitar que ele arranque os seus. A única diferença entre as duas ações é que na primeira o herói permanece anônimo; na segunda, às vezes é condecorado.

Monsenhor Flávio e eu permanecemos à mesa até quase meia-noite, trocando banalidades digestivas e arrotando sem parar - nossa sorte é que a bendita fruta alojada em nosso ventre não resolveu fermentar, pois aí aquela casa teria se convertido numa verdadeira câmara de gás. Só nos levantamos quando as blasfêmias arrotais se tornaram mais esparsas. Mas não nos deitamos imediatamente. Resolvemos dar um passeio pelo pátio a fim de completar a digestão. A granja, naturalmente, estava toda iluminada, e pela primeira vez prestei uma real atenção a ela.

Embora pequena e simples, não deixava de ser encantadora. Serviria de morada tanto a um camponês e sua família quanto a alguém que, cansado dos tumultos desta vida, buscasse simplesmente um pouco de paz. Era isolada da cidade o suficiente para impedir o assédio constante dos chatos, mas não a reconfortante presença dos amigos. Possuía uma vista deslumbrante e o clima era agradável. O único senão era a ausência de um riacho de águas cristalinas, no qual se pudesse nadar nas noites de verão. Afora esse pequeno detalhe, podia ser considerada um paraíso.

Quando contornávamos o velho galpão e nos dirigíamos para a casa, lembrei que àquela hora a eleição já deveria estar terminada. Teria irmã Geovana se saído vitoriosa? Provavelmente sim. Mas qual teria sido a reação das derrotadas? Conformaram-se? Criaram tumultos? Ameaçaram minha amada? Solicitado a se manifestar, monsenhor Flávio emitiu a seguinte opinião:

- Para mim, irmã Geovana ganhou a eleição. Outro resultado seria inconcebível.

- Mas o senhor não me parece nem um pouco tranquilo. Por quê?

Monsenhor permaneceu calado alguns instantes. Só me respondeu quando já estávamos na varanda e eu a ponto de repetir a pergunta.

- Eu acho que o resultado desse pleito é em si menos importante do que a necessidade que se teve de realizálo, percebe?

- Mais ou menos...- retruquei, já intuindo que monsenhor me geraria angústia.

- Veja bem: mesmo que irmã Geovana seja mantida como superiora, não resta a menor dúvida de que se trata de uma vitória apenas relativa. Se as calúnias que lhe foram feitas não tivessem abalado seu prestígio, a ninguém ocorreria pôr em discussão sua liderança. Eu sei que a idéia da eleição partiu da própria irmã Geovana, mas se tudo continuasse como antes ela teria sido prontamente rejeitada, porque pareceria absurda. No entanto, não o foi. Isso significa o quê? Que a antiga e irrestrita confiança deixou de existir. Portanto, é bem possível que numa próxima ocasião as forças retrógradas obtenham o triunfo, pois com toda a certeza saberão tirar proveito da cisão que provocaram.

- E não há nada que se possa fazer para impedir isso?

- Creio que irmã Geovana, por temperamento, não conseguirá jamais pôr em prática as medidas necessárias. Para enfrentar aquela corcunda e suas asseclas ela teria que agir como Jesus com os vendilhões do templo: expulsá-las a chibatadas! Mas ela faria isso?

- Ela eu não sei ...- respondi, inflamado. - Mas eu posso fazê-lo!

- Desculpe, mas você não tem nada a ver com isso. Esse problema pertence exclusivamente a ela.

- Tudo que diz respeito à minha amada eu encaro como coisa minha!

- Isso é machismo, meu caro. Ela não é propriedade sua para que você se intrometa em seus assuntos.

- Eu não quis dizer isso.

- Tive essa impressão. Em todo caso, é bom que você se convença de uma coisa: se pretende mesmo conquistar irmã Geovana, jamais incorra no erro de tentar pensar por ela, sentir por ela e muito menos agir por ela. Nunca, entendeu? Eu sei o que estou dizendo!

- Tudo bem, monsenhor. Não precisa bater com o pé, eu já entendi.

- Tomara.

Monsenhor, evidentemente, estava com a razão. Irmã Geovana tinha que encontrar sozinha a solução para os seus problemas. O fato de me introduzir no convento e sair chicoteando freiras não resolveria nada. Ao contrário, poria tudo a perder. Mas era difícil para mim saber que tantas coisas a ameaçavam e ainda assim permanecer, digamos, como mero espectador de um drama que me tocava tão de perto.

Enquanto tecia essas conjecturas, monsenhor permaneceu me olhando fixamente, parecendo pronto a intervir caso meu semblante passasse a expressar algo que não resignação. Devo tê-lo satisfeito, pois de repente ele se aproximou e disse:

- Eu sei que é duro, mas você precisa ser forte. É tudo que tem a fazer.

- E se acontecer alguma coisa com ela?

- O quê, por exemplo?

- Não sei...se lhe baterem ou trancafiarem?

- Irmã Geovana sabe se defender.

- Semibreve pode mandar envenená-la!?

- Escuta, Gabriel...- falou monsenhor, agarrando-me pelos ombros com firmeza. - Se você seguir essa linha de raciocínio vai concluir que a corcunda, ao menos em tese, pode tentar o diabo contra irmã Geovana; envenená-la, enforcá-la, esfaqueá-la e assim por diante. Mas você acredita que ela possa tomar uma iniciativa desse gênero?

- E por que não tomaria?

- Porque ela não é uma idiota. Sabe que isso seria a sua ruína.

- Ela já se sente arruinada, monsenhor. Para essa víbora o poder é tudo que interessa.

- Muitos almejam o poder, mas pouquíssimos a ponto de em seu nome perpetrar um crime.

- Ela é uma dessas "poquíssimas", tenho certeza.

- Mas baseado em que você faz uma afirmativa dessa natureza?

- Baseado no que eu vi, monsenhor. Esse monstro quis arrancar meu pau!?

- Você está delirando, meu amigo. Não é possível que...

- Ah, não? Então o senhor pergunta a irmã Geovana. Ela conhece a história.

- Mas que interesse essa anciã entrevada e corcunda poderia ter no seu...enfim...

- O que ela faria com ele eu não sei, monsenhor. Mas que ela tentou o senhor pode ter certeza. E quem é capaz de arrancar o membro de um jovem a sangue-frio, é capaz de qualquer coisa!

O prelado ficou me olhando um longo tempo. A princípio pensei que ele ficara impressionado com a revelação que lhe fizera, mas logo comecei a achar que apenas se calara para evitar que meu arrebatamente atingisse um grau paroxístico. Contudo, não disse nada. Já estava suficientemente inquieto para iniciar uma nova polêmica. Quando por fim renunciou ao seu mutismo e propôs que nos deitássemos, alegando que as tensões daquele dia nos impediriam de conversar de forma profícua, não coloquei nenhuma objeção a essa idéia. Desejei-lhe boa noite e fui para o meu quarto. Ao passar pela sala vi que Anacleto dormia descaradamente no divã, barriga para cima, pernas abertas e levemente arqueadas, a boca escancarada. E ainda por cima roncava. Parecia ul sultão, o formidável hirco...

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