quinta-feira, 17 de março de 2011

Apresentação do personagem

David Lodge

         
           O personagem pode ser considerado o elemento mais importante do romance. Outras formas narrativas, como a épica, e outros formatos, como o filme, são capazes de contar histórias com a mesma desenvoltura, mas nada se compara à grandiosa tradição do romance europeu em termos de riqueza, variedade e profundidade psicológica na representação da natureza humana.

          No entanto, em toda a arte da ficção, o personagem é provavelmente o aspecto mais difícil de se discutir em termos técnicos. Em parte essa dificuldade deve-se aos diferentes tipos de personagem e às várias formas de representá-los: personagens principais e secundários, personagens planos e redondos, personagens retratados a partir da psiquê, como a Mrs. Dalloway de Virginia Woolf, e personagens vistos de fora, como a Sally Bowles de Christopher Isherwood.

          Depois de aparecer pela primeira vez em uma das histórias e esboços levemente ficcionados que compunham Adeus a Berlim, Sally Bowles teve uma carreira um tanto longa no imaginário coletivo do nosso tempo, graças às boas adaptações do texto de Isherwood para o teatro e o cinema (I am a camera) e mais tarde para dois musicais, um para o palco e outro para o cinema (Cabaret).

          Num primeiro momento é difícil entender como ela se tornou quase um mito. Sally não chama a atenção pela beleza, pela inteligência nem pelo talento artístico. É orgulhosa, irresponsável e mercenária em relação ao sexo. Mas, apesar de tudo, Sally mantém um ar inocente e frágil - e existe algo irresistivelmente cômico na disparidade entre as pretensões que tem e a vida que de fato leva.

           A história adquire interesse e relevância maiores por passar-se na Berlim da República de Weimar, logo antes de os nazistas chegarem ao poder. Ao nutrir sonhos de fama e riqueza em pensões decrépitas, entregar-se a protetores de caráter duvidoso, bajular, explorar e mentir de modo descarado, Sally simboliza o autoengano e a loucura que tomaram conta da sociedade da época.

          A maneira mais simples de apresentar um personagem, comum na ficção mais antiga, é descrever seus traços físicos e fornecer ao leitor um resumo biográfico. No entanto, os romancistas modernos preferem que os fatos sobre os personagens venham à tona aos poucos, de diferentes formas, ou então que sejam depreendidos a partir de ações e falas.

          De qualquer modo, toda descrição ficcional é altamente seletiva; a técnica retórica típica é a sinédoque - a parte que assume o lugar do todo. Christopher Isherwood evoca a aparência física de sua heroína a partir das mãos e do rosto, deixando o restante para a imaginação do leitor.Uma descrição completa dos atributos físicos e psicológicos de Sally Bowles ocuparia muitas páginas - talvez um livro inteiro.

          As roupas são sempre úteis para se determinar o caráter, a classe e o estilo de vida de um personagem, em especial no caso de exibicionistas como Sally. O figurino em seda preta (usado durante uma visita casual à tarde) evidencia o desejo de impressionar, a teatralidade (a capa) e a provocação sexual (no decorrer da história, o chapeuzinho de pajem adquire significância a partir de várias referências à ambivalência e à perversão, inclusive travestismo).

            A impressão é reforçada pelos modos de falar e de agir: Sally pede para usar o telefone a fim de impressionar os dois homens com sua mais recente conquista erótica, e o narrador aproveita a ocasião para descrever suas mãos e seu rosto.

          É o que Henry James chamou de "método cênico", e também o que pretendia fazer quando se exortou a "Dramatizar! Dramatizar!". James estava pensando nos dramas do teatro, mas Isherwood esteve entre os primeiros romancistas a crescer com o cinema, e essa influência é notável.

          Quando o narrador de Adeus a Berlim diz "Eu sou uma câmera", ele se refere a uma câmera cinematográfica. Sally é mostrada em ação.  É fácil dividir a passagem em uma seqüência de tomadas cinematográficas: Sally posa com um modelito preto - uma breve troca de olhares entre os dois homens - um close-up nas unhas verdes de Sally enquanto ela disca o número - outro close-up na maquiagem malfeita, como a de um palhaço, e na expressão afetada com que cumprimenta o amante - por fim uma tomada com os dois espectadores homens, pasmos com a performance desastrosa.

            Assim se explica a facilidade com que a história de Sally Bowles foi levada para o cinema. Mas o trecho também tem nuances puramente literárias. Aquelas unhas verdes nas mãos imundas são a primeira coisa em que penso quando ouço o nome de Sally. É possível mostrar o esmalte verde num filme, mas não o comentário irônico do narrador, "uma escolha infeliz".

          "Uma escolha infeliz" resume a vida de Sally Bowles. Também é possível mostrar as manchas de cigarro e a sujeira, mas apenas um narrador poderia comentar que suas mãos eram "sujas como as de uma garotinha". A qualidade infantil por trás da sofisticação superficial é justamente o que faz de Sally Bowles uma personagem memorável.
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Extraído (e um pouco reduzido) de "A arte da ficção" (L&M POCKET, tradução de Guilherme da Silva Braga/2010)

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