sexta-feira, 15 de abril de 2011

A matéria-prima do enredo

Eric Bentley


          A experiência viva de uma peça de teatro, como de uma novela, ou de uma peça musical, é um caudal de sentimentos que flui dentro de nós, ora célere, ora lento, aqui placidamente espraiando-se entre as margens largas, além precipitando-se em torrentes entre as ribas estreitas, agora deslizando por uma vertente, logo atirando-se em vertiginosos rápidos, depois precipitando-se de uma catarata, adiante sustado por uma represa, até desaguar num oceano.

          Com tudo isso, a imediata experiência, a erudição e a crítica e a pedagogia, surpreendentemente, pouco têm a ver. Os especialistas dispõem de teorias a respeito do Hamlet e têm certeza de que são corretas. Mas pergunte-se-lhes por que vão a um show ou ao cinema num sábado à noite e vê-los-emos muito menos seguros de si.

          Ora, deverá parecer um tanto suspeito que se pretenda resolver os problemas mais avançados sem que se tenham solucionado os mais elementares. Mas alguma vez foram solucionados os elementares? As perguntas mais fáceis são as mais difíceis. E só é possível começar a discuti-las tal como se discutem as mais complexas: fragmentando-as em suas parcelas componentes, detendo as mais cruas e tratando de abrir caminho através das menos cruas.

          O que é enredo? O produto acabado que ocorre à mente é, sobretudo, intrincado e sutil. De que matérias-primas se fez o produto? Da vida, poderíamos confiantemente aventar, a vida em sua diversidade e sem exclusão do seu aspecto mais desagradável. Mas não pode haver respostas, mesmo provisórias, enquanto as perguntas forem tão genéricas.

          A análise do material do enredo só poderá começar quando for isolada alguma unidade menor que a "vida", de preferência - uma vez que o nosso tema é o enredo no teatro - uma unidade característica do teatro, em particular. Na busca dessa unidade, aproveito uma sugestão de George Santayana para efeito de que, enquanto o novelista verá os acontecimentos por intermédio da mente de outros homens, o dramaturgo, por seu lado, "consente que vejamos a mente de outros homens, por intermédio de eventos". Se o enredo é um edifício, os tijolos de que está construído são acontecimentos, ocorrências, sucessos, incidentes.

           Os eventos não são dramáticos em si. O drama requer os olhos do espectador. Ver drama nalguma coisa é perceber os elementos de conflito e reagir emocionalmente a esses elementos. Essa reação emocional consiste em ficar impressionado, ser atingido de espanto, na presença do conflito. O próprio conflito também não é intrinsicamente dramático. Se todos perecermos numa guerra nuclear, continuará havendo conflito - nos domínios da Física e da Química. Não se trata de um drama e apenas de um processo. Se o drama é uma coisa que se vê, tem de haver alguém para ver. A arte dramática é humana.

          Até que ponto a nossa vida é dramática? Existe, por certo, a opinião de que os elementos dramáticos são raros, e de que a experiência cotidiana é cacete, sem conflitos. Que as coisas passam e repassam num vaivém infindável poder-se-ia dizer, e tem-se dito, da vida em geral. Tem-se dito também de certas épocas e lugares.

          Mas se o drama é uma questão não só de acontecimentos, propriamente ditos, mas também das nossas reações emocionais, então a pergunta "até que ponto a nossa vida é draqmática?" é, em parte, uma questão subjetiva. O que uma pessoa sente como coisa aborrecida, outra acha emocionante. Mesmo um homem que considere a vida, em geral, não-dramática, notará exceções.

          Freud escreveu um livro revelador, Psicopatologia da Vida Cotidiana, em que mostrou que as atividades verbais sem conteúdo aparente encerram, na realidade, um tesouro de significações. Não poderíamos falar, numa acepção semelhante, do drama da vida cotidiana, mesmo onde o drama pareça faltar completamente?

          A idéia convencional é que a vida só é dramática depois de um jornalista ou um dramaturgo "dramatizarem" os assuntos. Sem mencionar aquilo com que os jornalistas e dramaturgos principalmente contam: o nosso insaciável apetite de drama. Consideremos a atividade conhecida como ócio. Pensemos que o cansaço é tanto que nem dá para devaneios. Cochilamos em nossa cadeira. Talvez nos sintamos relativamente serenos em nosso cochilo. Mas tão logo  adormecemos, como se diz, "o diabo fica à solta". Lutas gigantescas, perseguições terríveis, frustrações angustiosas, desencadeiam-se no íntimo dos nossos sonhos.

          Se, ao menos, cessassem quando despertamos! Mas a disposição gerada durante o sonho persiste, como é natural, se considerarmos que consubstancia as nossas principais inquietações. Descarregamnos em nossa esposa. Uma peça de Strindberg! A nossa irritação tem as mesmas dimensões do nosso pesadelo. O telefone soa. Um pequeno problema surgiu no escritório. Mas, nesse momento, o pequeno já é enorme. O problema do escritório adquire proporções de um bombardeio aéreo. Suspendemos o fone coléricos. Um drama social!

           Por um lado, os grandes dramas dos Linberghs e dos Hitlers; por outro lado, os pequenos dramas de cada um de nós, de cada dia. Mas esses pequenos dramas, para a imaginação, são grandes e estão moldados à semelhança, precisamente, dos grandes dramas descritos nos jornais. Assim é que as peças, em geral, são a respeito de grandes pessoas, embora o que elas dizem se aplique às pequenas.

          E há o inverso dessa proposição: quando um grande dramaturgo, como Tchecov, apresenta a mesquinhez da vida cotidiana, consegue sugerir - como realmente deve - a grandeza da vida de todos os dias, as dimensões daquelas fantasias que vão desde a vida secreta de Walter Mitty até os devaneios heróicos de Don Quixote.

          Virginia Woolf referiu-se certa vez à novelística como um prolongamento do âmbito de nossa bisbilhotice. O drama, sendo em geral um fenômeno mais violento, poderia ser considerado uma ampliação do âmbito do escândalo. Ambos os gêneros testemunham o amor humano à informação que diga respeito a outros seres humanos, particularmente àquele tipo de informação que, normalmente, é retido ou negado; e o dramaturgo é, nisso como em muitas outras coisas, um extremista, um homem que, noutras circunstâncias, poderia ter sido um bisbilhoteiro ou um espião da polícia.

          Se isso não for aceito como coisa certa logo de início, apenas servirá para sentirmo-nos frustrados mais tarde, como acredito que alguns em tudo o mais excelentes críticos se sentiram - Edwin Muir, por exemplo, que escreveu em seu livro sobre novelística:

          "Um deleite irresponsável nos acontecimentos vigorosos é o que nos encanta na novela de ação. Por que uma simples descrição de ações violentas nos agrada é uma questão para os psicólogos".

          O segundo período transcrito fornece, incidentalmente, uma pequena prova de que o homem literário talvez deseje evitar os fatos mais elementares da experiência literária, porquanto Muir não poderia querer dizer que é difícil encontrar o motivo para a atração exercida pelas ações violentas. Por que nos agrada mesmo uma péssima descrição de ações violentas? E como poderia deixar de agradar?

          Inclinamo-nos a sentir que a nossa vida carece de violência e gostamos de ver aquilo que nos falta. Tendemos para uma existência enfadonha, e gostamos de ser colhidos na excitação de outrem. Somos agressivos, e gostamos de presenciar a agressão. (Se não sabemos que somos agressivos, ainda mais prazer nos dá presenciar a agressão). Nunca nos vimos em tão grandes apuros, e gostamos que os outros estejam passando ainda pior.

           Esta é, portanto, a resposta a Muir: a violência interessa-nos porque somos violentos. E o exteriormente mais gentil e tranqüilo pode ser, interiormente, o mais turbulento. Essa possibilidade tem sido, de fato, acentuada a tal ponto que, hoje em dia, já suspeitamos de que todo Milquetoast é um Torquemada reprimido, de que todo Jekyll é uma simples máscara para Hyde. Mas a violência não está limitada às pessoas de comportamento não-violento. Está presente em todos nós, excetuando-se, de um lado, as pessoas exepcionalmente debilitadas e, de outro, certas espécies de santos.

          E, embora a debilidade possa ser congênita, a santidade não-violenta não o é. A violência foi expurgada no santo por meio de um incessante, um infatigável labor moral. Ora, aos santos não faz falta o dramatismo; e os pobres de corpo e espírito não podem alcançá-lo. E tenho por vezes cogitado se não faria melhor sentido ensinar aos dramaturgos incipientes, em vez da habitual Técnica Dramática, duas regras fundamentais da natureza humana: se quereis atrair as atenções da audiência, sêde violentos; se quereis mantê-la, sêde novamente violentos. É verdade que as más peças se baseiam em tais princípios, mas não é verdade que as boas peças sejam escritas desafiando-os.
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Extraído - e um pouco reduzido - de A experiência viva do teatro
(Zahar Editores/1967. Tradução de Álvaro Cabral)
         

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