quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

SIMBOLISMO

David Lodge


"Que imbecil!", gritou Ursula. "Por que ele não se afasta até o trem passar?"

          Gudrun o encarava com olhos negros, atentos, enfeitiçados. Mas o homem  continuava reluzindo, obstinado, dominando a égua, que rodopiava e fazia curvas súbitas como o vento, sem conseguir livrar-se da vontade que a subjugava nem escapar aos terrores ribombantes que lhe varavam o corpo, enquanto os vagões estrondeavam devagar, pesados, temíveis, um atrás do outro, perseguindo uns aos outros, pelos trilhos da intersecção.

          A locomotiva, como se curiosa para ver o que aconteceria, freou, e com o impacto da parada súbita os vagões bateram os para-choques metálicos, que ressoaram como címbalos temíveis, estrugindo cada vez mais perto em terríveis concussões estridentes. A égua abriu a boca e ergueu-se devagar, como se alçada por um sopro de terror. De repente as duas patas da frente ergueram-se enquanto ela fugia em pânico daquele horror. O animal recuou, e as duas garotas se abraçaram, sentindo que ela cairia para trás em cima do homem. Mas o cavaleiro se inclinou para a frente, o rosto radiando júbilo, e por fim dominou a montaria, fez com que ela se abaixasse e a conduziu de volta ao local. Mas forte como o impulso de sua compulsão era a repulsa do terror da égua, que se afastou da ferrovia e começou a correr em círculos sobre apenas duas patas, como se estivesse no olho de um furacão. A cena fez Gudrun esmorecer com a vertigem pungente, que aparentou penetrar fundo em seu coração.

D. H. Lawrence, Mulheres apaixonadas (1921)


De maneira simplificada, tudo o que remete a outra coisa é um símbolo, mas esse processo opera de várias formas diferentes. Num dado contexto, uma cruz pode simbolizar o cristianismo, por remeter à crucificação, e em outro pode simbolizar um cruzamento na estrada, por semelhança. O simbolismo literário é menos decodificável do que esses exemplos, pois tenta ser original e tende a uma pluralidade fecunda e até mesmo à ambigüidade do significado (características indesejáveis nos ícones religiosos e especialmente nos sinais de trânsito).

Se as metáforas e os símiles consistem em estabelecer semelhanças entre A e B, um símbolo literário é um B que sugere um A, ou um certo número de As. O estilo poético conhecido como simbolismo, que surgiu no fim do século XIX na França com as obras de Baudelaire, Verlaine e Mallarmé e exerceu influência considerável sobre a literatura inglesa do século XX, caracterizava-se por uma superfície luzente de significados sugeridos sem qualquer núcleo denotativo.

No entanto, alguém já disse que a tarefa do romancista é chamar as coisas pelos seus devidos nomes antes de transformá-las em símbolos, o que parece um ótimo conselho a escritores interessados em criar algo como "a ilusão da realidade". Um objeto que surge na história de maneira óbvia demais, apenas em virtude de seu valor simbólico, tende a minar a credibilidade da história enquanto ação humana. D. H. Lawrence muitas vezes assumia esse risco para dar vasão a seus insigts visionários - quando, em um outro episódio de Mulheres apaixonadas, por exemplo, o autor põe seu herói a rolar nu pela grama e atirar pedras no reflexo da lua. Mas, na passagem citada, o equilíbrio entre a descrição realista e a sugestão simbólica foi mantido.

Aqui não se trata de um simples objeto, mas de uma ação complexa: um homem que tenta controlar uma égua assustada pelo trem carvoeiro que atravessa uma passagem de nível, ao mesmo tempo em que duas mulheres o observam. O homem é Gerald Grich, filho do dono da mina, além de seu atual gerente e futuro herdeiro. A ação se passa no cenário de Nottinghamshire, onde Lawrence, filho de um mineiro, passou a infância: uma paisagem rural agradável, mas com cicatrizes negras das minas e das ferrovias em alguns pontos.

Poder-se-ia dizer que o trem simboliza a indústria mineira, um produto cultural no sentido antropológico da palavra, enquanto a égua, como criatura da natureza, simboliza o campo. A indústria foi imposta ao campo mediante o poder masculino e a determinação do capitalismo - um processo encenado em nível simbólico no modo como Gerald domina a sua montaria, forçando o animal a aceitar o terrível fragor mecânico do trem.

As duas mulheres na cena são as irmãs Ursula e Gudrun Brangwen, professora e artista, respectivamente. Elas estão passeando pelo campo quando presenciam a cena junto à passagem de nível. Ambas indentificam-se com a situação do animal aterrorizado. Ursula fica revoltada com o comportamento de Gerald e fala o que lhe vem à cabeça. Mas a cena é descrita segundo a perspectiva de Gudrun, e a reação dela é mais complexa e ambivalente.

Existe um simbolismo sexual no modo como Gerald controla a égua - "por fim dominou a montaria, fez com que ela se abaixasse e a conduziu de volta ao local" - e sem dúvida um elemento de exibcionismo viril na demonstração de força frente às duas mulheres. Ao passo que Ursula sente apenas repulsa diante do espetáculo, Gudrun experimenta uma excitação sexual, quase contra a sua vontade. A égua "começou a correr em círculos sobre apenas duas patas, como se estivesse no olho de um furacão. A cena fez Gudrun esmorecer com a vertigem pungente, que aparentou penetrar fundo no seu coração".

"Pungente" é um epíteto deslocado, que em termos lógicos refere-se ao sofrimento da égua; sua aplicação, um tanto inusitada em referência a "vertigem", expressa a turbulência emocional de Gudrun e chama a atenção para o significado original de pungente - perfurante, pontiagudo - que, ao lado de "penetrante" na frase seguinte, confere uma forte ênfase fálica a toda a descrição.

Algumas páginas adiante, Gudrun aparece "com os pensamentos embotados pela sensação do cavaleiro de peso suave montando o corpo vivo do animal: as coxas fortes e indômitas do homem de cabelos loiros agarrando o corpo palpitante da égua e impondo-lhe o mais absoluto controle". A cena funciona como um presságio do relacionamento sexual ardente e destrutivo que mais tarde se desenvolve entre Gudrun e Gerald.

A sugestão simbólica, no entanto, seria bem menos eficaz se Lawrence não nos permitisse imaginar a cena com todos os detalhes vívidos e sensuais. O terrível fragor e o movimento dos vagões quando a locomotiva freia são representados em sintaxe e dicção onomatopaicas ("estrugindo cada vez mais perto em terríveis concussões estridentes"), seguidas de uma imagem eloquente da égua, graciosa até mesmo em uma situação de pânico: "A égua abriu a boca e ergueu-se devagar, como se alçada por um sopro de terror". Independente do que você pense sobre os homens e as mulheres de Lawrence, ele sempre foi brilhante ao descrever animais.

Vale ressaltar que o simbolismo é gerado de duas formas diferentes na passagem. O simbolismo da natureza e da cultura aparece nas figuras de linguagem conhecidas como metomínia e sinédoque. A metomínia substituui uma causa por seu efeito e vice-versa (a locomotiva simboliza a indústria porque é um efeito da Revolução Industrial), e a sinédoque substitui o todo por uma parte e vice-versa (a égua simboliza a natureza porque pertence à natureza). 

O simbolismo sexual, por outro lado, aparece na metáfora e no símile, figuras de linguagem em que uma coisa é igualada a outra em virtude de alguma semelhança entre as duas formas: a forma como Gerald domina sua montaria sugere uma relação sexual humana. A distinção, formulada pelo estruturalista russo Roman Jakobson, opera em todos os níveis do texto literário e, na verdade, fora da literatura também, conforme minha heroína Robyn Penrose demonstrou a um Vic Wilcox um tanto cético em Um almoço nunca é de graça ao analisar anúncios de cigarro.
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Extraído de A arte da ficção, L&PM POCKET

Um comentário:

  1. Muito bom o texto e conselhos memoráveis para quem (como eu) deseja estruturar bem um romance.
    Sempre é um deleite ler suas palavras.
    Obrigado

    http://robsondibrito.blogspot.com/

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