sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Teatro/CRÍTICA

"A marca da água"


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Fascinantes compassos de uma nova música


Lionel Fischer


Nada entendo de numerologia, mas não deixa de ser curioso que a Armazém Companhia de Teatro esteja completando 25 anos e agora leve à cena seu 25º espetáculo, "A marca da água", em cartaz na sede do grupo, na Fundição Progresso. Por tratar-se de um dos mais conhecidos e importantes grupos teatrais do país, não julgo necessário mencionar seus muitos sucessos e numerosos prêmios. Mas gostaria, sim, de registrar que me considero um privilegiado por ter assistido a todos os espetáculos da companhia desde sua estreia, no Rio de Janeiro, com "A ratoeira é o gato". 

Sendo o teatro, como afirma Peter Brook, "a arte do encontro", e após tantos e tão memomáreis encontros com a Armazém Companhia de Teatro, o público carioca tem agora mais uma imperdível oportunidade de usufruir o talento deste grupo de exceção. Com dramaturgia assinada por Maurício Arruda de Mendonça e Paulo de Moraes, e direção deste último, "A marca da água" traz no elenco Patrícia Selonk (Laura), Ricardo Martins (Pedro, o pai/médico), Marcos Martins (Jonas, o marido), Marcelo Guerra (Domênico, o irmão) e Lisa E. Fávero (Eugênia, a mãe), que compartilham a cena com o músico Ricco Viana.

"Laura tem 40 anos. Vive numa aparente placidez, uma espécie de tristeza cotidiana. Até que um peixe enorme aparece misteriosamente em seu jardim. A presença estranha do peixe, a discussão com o marido, as picuinhas da vida da família, são uma pista falsa sobre o rumo das coisas. Laura está diante do inevitável. Numa narrativa feita de descontinuidades - com um filtro surrealista e algo trágico (pois há aqui uma espécie de autodestruição) - A Marca da Água inicia o processo de reconstrução da pequena Laura, que sofreu um acidente neurológico na infância e começa a sentir novamente os sintomas da doença em seu cérebro".

Extraído do programa distribuído ao público, o trecho acima sintetiza o enredo do espetáculo. Mas o que me parece fundamental ressaltar, como afirma o autor/diretor Paulo de Moraes, é que a personagem "escolhe o sintoma em lugar da cura". Ou seja: poderia optar por realizar uma operação que drenasse a água que lhe toma o cérebro, assim evitando sua possível morte.

No entanto, essa água lhe permite ouvir uma misteriosa e bela música, que confere inesperado e poderoso sentido à sua vida. E nisto reside, em minha opinião, a principal mensagem da peça - se é que uma peça deva necessariamente oferecer uma mensagem: não desistir nunca. E isto implica em não desprezar sinais que surgem inesperadamente, não valorizar apenas o cotidiano em detrimento do onírico, ter a sagacidade de perceber que o eventual descompasso de nossos neurônios pode criar fascinantes compassos de uma nova melodia. E esta, como ocorre aqui, espanta a monotonia e estimula a memória, o que permite a Laura uma comovente reconstrução de seus afetos.

Bem escrita, contendo ótimos personagens e impregnada de fantasia e lirismo, "A marca da água" recebeu excelente versão cênica de Paulo de Moraes, um encenador que cada vez mais também se afirma como um poeta. De fato, suas marcações parecem ser a resultante não apenas de uma decisão racional, mas também de impulsos oriundos do inconsciente de uma mente aberta, que sabiamente percebeu, como Hamlet, que somos feitos da matéria dos sonhos. Aqueles que negam esta premissa são as pessoas comuns, mesmo que possuidoras de muitos méritos. Aqueles que a afirmam, são os artistas. E nisto reside toda a diferença...

Com relação ao elenco, todos os profisisonais que estão em cena exibem performances seguras e convincentes. E por tratar-se do aniversário de um grupo, tinha em mente não particularizar nenhuma atuação. Mas Patrícia Selonk me obriga ao contrário. Todos sabemos que Patrícia possui vastíssimos recursos técnicos, mas o que mais me encanta na atriz é algo que não consigo definir com precisão. Falar de seu carisma é pouco, mencionar sua inteligência cênica não basta. Mas então, o que seria?

Posso estar enganado, mas arrisco uma hipótese: talvez meu fascínio advenha do fato de que, ao ver Patrícia Selonk em cena, tenho sempre a sensação de que se entrega às suas personagens como se cada gesto fosse o último; cada palavra proferida, a derradeira; cada respiração, o último fôlego. Enfim...é como se Patrícia, a cada momento, nos lembrasse de que cada momento pode e deve conter toda a eternidade.   

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo os trabalhos de todos os profissionais envolvidos nesta belíssima produção - Maneco Quinderé (iluminação), Rita Murtinho (figurinos), Ricco Viana (direção musical), Paulo de Moraes (cenografia), Rico Vilarouca e Renato Vilarouca (videografismo), Alexandre de Castro e Jopa Moraes (projeto gráfico) e Mauro Kury (fotografias).

A MARCA DA ÁGUA - Texto de Maurício Arruda de Mendonça e Paulo de Moraes. Direção de Paulo de Moraes. Com a Armazém Companhia de Teatro. Fundição Progresso/Espaço ARMAZÉM. Quinta a sábado, 20h. Domingo, 19h.   

2 comentários:

  1. Sua crítica acompanha o tom exato da peça. Linda e emocionante!

    PS: foi um prazer assistir ao seu lado e agora ler as suas impressões.

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  2. Priscila:

    Agradeço tuas palavras tão generosas. E também foi um prazer assistir a peça a teu lado. E ficamos de trocar mais impressões depois, lembra? Mas infelizmente me lembrei de que tinha que concluir um texto naquela mesma noite. Enfim...caso queira voltar a conversar comigo, meu e-mail é lionelfischer54@hotmail.com

    Beijos,

    Eu

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