quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Piadas e Teatro


Artigo extraído do livro A Experiência Viva do Teatro, de Eric Bentley (Zahar Editores, 1967, tradução de Álvaro Cabral), capítulo 7, dedicado à Farsa.

          Uma das mais profundas percepções básicas de Bergson e Freud foi a de que soltar piadas é criar teatro. Bergson diz que qualquer demonstração de graça, se for articulada, de fato, é em cenas que se articula - o que equivale a uma comédia incipiente. Freud assinala que, para haver uma piada, são precisos não um ou dois, mas três componentes: o autor da piada, o alvo da piada e o ouvinte. O trio é conhecido na forma de comediante, homem sério e público. Esse trio de vaudeville sugere, por sua vez, o ironista, o impostor e o público do teatro cômico tradicional.

          Dizer que o piadista precisa de um alvo equivale apenas a dizer que precisa de uma piada. Precisará tanto de uma piada quanto de um ouvinte? Deixemos que cada um de nós lhe pergunte por que, num dado momento, ele deseja soltar uma piada. Não pode ser porque desejamos que ela nos divirta, visto que as piadas não são divertidas a segunda vez que circulam, e não se pode soltar uma piada que já não tenha sido ouvida (excluo de consideração qualquer super-homem que possa inventar sempre as suas piadas; ele é irrelevante aqui porque o tema que estou abordando é o comediante, que certamente não escreve sempre o texto de seus gracejos). De qualquer modo, se a nossa necessidade fosse ouvir a piada, a pessoa poderia contá-la a si própria. É indiscutível que a necessidade não é da piada, absolutamente: é de público para ouví-la.

Necessidade

          Quem tiver conhecido comediantes fora do palco pode testemunhar que se trata, freqüentemente, de homens com uma necessidade de aplauso e admiração que excede até a de outros atores. E há uma razão pela qual os homens com essa necessidade - quer se trate de talentos humoristas ou não - procurem a profissão de comediantes. Só a piada obtém do seu público uma reação cujo conteúdo é inconfundível e entusiástico: o riso. O ator trágico não recebe tal indicação, no final do seu solilóquio “Ser ou não ser...”, de que o desempenhou perfeitamente. Ficará satisfeito se houver silêncio na sala, mas ainda assim poderá ficar na dúvida se alguém não teria adormecido. Duvidará se esse sentimento de que tudo correu bem não será talvez uma ilusão.

          Mas não existe, como Ramon Fernandez assinala, uma ilusão de que a platéia está gargalhando. Assim, o riso é peculiarmente atraente para uma pessoa que precisa de uma reação do público, de minuto em minuto, e que precisa ter a certeza de que é altamente favorável. Na noite em que o público não ri, o palhaço sai e mata-se. Pelo menos, poderia, visto que a única coisa pela qual tem vivido não aconteceu.

          Sugeri que o comediante é o homem cuja necessidade de aplauso é a mais insistente e suspicaz. Uma interpretação alternativa é o comediante ser o mais dotado, o mais talentoso dos faladores compulsivos. Todas as festas recebem muitas pessoas que não cessam de falar enquanto tiverem alguém que as escute. Poder-se-ia considerar o piadista como um falador compulsivo que obtém êxito porque sua conversa é divertida. As gargalhadas que saúdam cada história constituem um diploma em que se declara que ele teve êxito em não maçar a audiência. Poderá ser tentado a contar suas histórias a grupos cada vez mais numerosos. Se acabar num palco falando para pessoas com quem nunca se encontrou, é um comediante profissional.

Histeria

          O que se propõe como estudos de comédia e, freqüentemente, redunda apenas em estudos sobre o riso, deve ser lamentado; contudo, a circunstância reflete fielmente a mentalidade do comediante. O seu desejo é cativar e manter dominado o público, sabendo que tal desejo só está realizado quando o público ri. Portanto, embora o riso possa não ser o emblema apropriado para a comédia, constitui a ratificação final das anedotas. Por esse motivo, pode-se perdoar aos comerciantes de diversões públicas uma certa histeria a tal respeito, e deveríamos receber com mais tristeza do que com ira as notícias de que o pessoal da TV está medindo a duração e o volume das gargalhadas com medidores de riso.

          Se os filósofos podem reduzir a arte cômica ao riso, então os empresários podem, certamente, reduzir o riso ao ruído que provoca. Mas, em ambos os casos, o verdadeiro tópico é excessivamente delimitado. O estudioso do riso deveria estudar toda a curva de que a explosão de riso é apenas a fração final. Antes das pessoas estourarem em gargalhadas têm de ser preparadas para isso. E a única preparação segura é um estado especial de expectativa e sensibilidade que corresponde a uma espécie de euforia. Pode ser mais importante que a própria anedota. Pode-se alcançar um estado de excitação em que as pessoas rirão de qualquer coisa. O ator poderá ter de averiguar para si próprio aquilo que não deverá provocar riso, se quiser impedir o caos. Tem de vigiar para que as moças não fiquem inquietas e as senhoras histéricas.

Explosão

          Em tudo isso, o teatro manifesta-se como a arte de soltar piadas, não a arte de escrever livros. Lemos sozinhos; e achamos notável se, uma vez por outra, rimos em voz alta. Por isso mesmo, é uma só explosão de riso, ainda que em voz alta. O resto da família tem a certeza de que essa gargalhada foi para chamar a atenção e pergunta o que foi que teve graça. E é muito provável que fosse essa a intenção.

          A arte da farsa resume-se apenas a piadas transpostas para o teatro - piadas inteiramente articuladas como personagens e cenas teatrais. É correto dizer que sua finalidade é o riso, mas não é dizer uma coisa simples. O riso pode significar isto ou aquilo e, em qualquer um dos casos, tem de ser preparado com o máximo cuidado. E modulado, também. Os estudiosos futuros do tema fariam bem em abandonar a piada, individualmente considerada, e as razões por que é divertida, voltando-se para a seguinte pergunta: até que ponto é divertida num determinado contexto? Verificar-se-á que, por vezes, não é absolutamente divertida e, noutras, muitíssimo divertida. É uma questão de como o público foi levado ao ponto em que o riso deve eclodir e a graça ficar comprovada.

Exaustão

          Estive falando de uma eclosão de riso, com uma preparação, e mesmo num acontecimento tão pequeno há muito que observar. Mas qualquer farsa que demore mais do que um minuto ou dois tem de fazer o público gargalhar um número considerável de vezes. Isso não pode ser conseguido enfileirando-se apenas as piadas umas após as outras. A exultação geral é de uma potência tão superior a qualquer dos vários momentos estimulantes que é lícito indagar: o que é uma piada? Como já disse, se uma pessoa tiver êxito com uma primeira piada, o público poderá ficar num estado de espírito em que qualquer coisa parece divertida. Tudo o que se precisa é um novo rumo para os acontecimentos e uma nova onda de riso acolherá a manobra.

          Mas esse estado de espírito não durará muito se não for ajudado. E talvez não seja aconselhável mantê-lo indefinidamente, para que o resultado não acarrete a pura exaustão. Aquele que organiza uma sessão de “divertimento” deve ser, de fato, um organizador. Nada seria mais fatal do que jogar tudo na preparação de um bom começo e, depois, deixar que os acontecimentos tomem seu curso, o que é algo que qualquer bom produtor de vaudevilles sempre soube; e é algo que todo autor de farsas deve ter em mente.

Temperatura

          Um esclarecimento subsidiário é fornecido pela afirmação de Sir John Gielgud a respeito da encenação de A Importância de Ser Honesto, de Wilde. Era sobre a necessidade do diretor aprender a evitar que o público ria em demasia das passagens da peça. Quem tenha visto a encenação de Gielgud perceberá o que ele queria dizer. A temperatura cômica foi levada tão alto, o entusiasmo do público era tão intenso, que a representação, em alguns momentos, quase não podia continuar.

          Wilde escrevera um diálogo tão vivo que qualquer fala podia ser o sinal para novos acessos de riso. A interrupção do desempenho - mesmos em surtos de contentamento - não é uma finalidade desejável. O que os atores tinham a fazer era o inverso de “explorarem” cada fala, para obterem o máximo de divertimento. Era, antes, desperdiçarem uma quantidade de divertimento em cada fala, a fim de obterem um divertimento mais importante.

Bebês

          O objetivo da estratégia de Gielgud não era apenas evitar o tumulto. Era o mais completo gozo da representação em geral. Os espectadores são como bebês e não fazem idéia daquilo que gostarão. Se os deixarem, rirão tanto e com tamanha insistência que, depois, só podem ter acessos de histeria ou mau humor. Tem de se evitar que prejudiquem seus próprios sistemas nervosos. O riso não pode ser regular e constante. Não pode começar pianissimo e depois ficar cada vez mais forte ad infinitum. Nem pode manter a mesma intensidade permanentemente, como a sirene de uma fábrica. Está associado ao nosso sistema respiratório e vocal muito limitado, para não citar a nossa psicologia.

          Se um medidor de riso pudesse avaliar o mérito de um espetáculo, então o espetáculo ideal seria aquele que produzisse uma só e ininterrupta gargalhada. Consistiria, portanto, numa peça que não só não poderia avançar, mas nem mesmo começar. Na realidade, não existe uma proporção estabelecida entre o contentamento e a duração do riso audível. Mas riso a menos é melhor que riso a mais.

          E a propósito: com que freqüência escutamos realmente o riso? É um som bastante feio. Quantas vezes olhamos para as pessoas enquanto riem? Não é um bonito panorama. E quão pouco se ri no palco, no bom teatro! O lugar para o riso é a platéia. Talvez o motivo seja porque na platéia ninguém é observado. As pessoas vêem os atores, que raramente riem e, quando o fazem, é principalmente para efeitos negativos. Há poucos dias abri uma revista e deparei com um rir sumamanet expressivo da face de um ator. A legenda informou-me que se tratava de Gustav Gründgens...no papel de Mefistófeles!?

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