segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Teatro/CRÍTICA

"Fala comigo como a chuva e me deixa ouvir"

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Inesquecível montagem sobre a solidão



Lionel Fischer



"Em um quarto, um homem e uma mulher trocam palavras, mas não se comunicam. Há um desejo de falar, mas não necessariamente um com o outro. Desgastados, não conseguem se relacionar, nem se separar. A trama concentra em apenas um ato o desespero existencial que marca a obra de Williams. Em seu íntimo, os personagens sabem que o amor não pode salvá-los da solidão. Assim, por meio deste casal em crise, o dramaturgo faz um retrato emocionado e pungente da própria condição humana".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima resume o contexto de "Fala comigo como a chuva e me deixa ouvir", de Tennessee Williams. Em cartaz na Casa da Glória, o espetáculo integra as comemorações do 18º aniversário do grupo Os Dezequilibrados. Ivan Sugahara assina a direção da montagem, que tem elenco formado por Ângela Câmara e Saulo Rodrigues.

Como se sabe, nosso tempo se caracteriza, dentre outras coisas, pela desvairada crença de que artefatos tecnológicos (que multiplicam-se de forma exponencial) constituem poderoso antídoto contra a solidão. Trata-se de uma falácia, naturalmente, pois se a virtualidade pode gerar a ilusão de que jamais se está sozinho, no real da vida as coisas não ocorrem em sintonia com aquilo que sugerem os mencionados artefatos. Vamos a um exemplo. 

Suponhamos que alguém tenha 500 amigos no Face - que particularmente nem sei muito bem o que é. Eis que, numa sexta-feira à noite, uma indefinida angústia o invade: será que um desses 500 amigos brindará o desafortunado com sua presença e seu amparo? Eis a questão, que certamente faria Hamlet cismar como jamais cismara...

Mas o texto em questão se passa em uma época desprovida de ensandecidas muletas virtuais. O casal está sozinho e, como explicitado no parágrafo inicial, não consegue se comunicar. Os personagens esboçam separações que não se materializam e, em patético e desesperado esforço, ainda empreendem algumas tentativas de ao menos entender como chegaram àquele ponto. Mas é tudo inútil. Uma vez enraizada em nossa alma, a solidão é muito difícil de ser extirpada. De certa forma, é como o câncer. Em certo sentido, se assemelha à inveja.

Texto belíssimo e de espantosa atualidade, "Fala comigo como a chuva e me deixa ouvir" recebeu deslumbrante e trágica versão de Ivan Sugahara. Em algumas passagens, o encenador manipula o tempo, fazendo-o recuar como se fosse possível, através de um olhar sobre o passado, ao menos entender o que ocorre no presente. Ou quem sabe nos mostrar um pequeno equívoco que, se resolvido a tempo, poderia ter evitado a devastação existencial dos personagens. Mas é inútil: nenhum indício é detectado e nada nos resta a não ser contemplar o amargo quadro que nos é oferecido. E aqui cabe uma confissão: mesmo conhecendo o texto, me surpreendi em vários momentos torcendo por um final feliz...

Outra virtude maravilhosa do encenador diz respeito à itinerância do espetáculo. Normalmente, não costumo me envolver muito com montagens itinerantes, pelo fato de que, em sua maioria, durante o trajeto entre uma ambientação e outra, a dispersão me assola - talvez culpa minha, ou talvez porque a cena vista não tenha me marcado o suficiente para levá-la comigo durante a caminhada. Mas neste espetáculo ocorre exatamente o oposto e a tal ponto que, em dados momentos, tive a sensação de que conhecia aquela casa, que ela talvez pertencesse ao meu passado, que eu poderia efetivamente ter vivido aquela história - e aqui esclareço que, não sendo chegado a surtos, tais sensações não chegaram a comprometer completamente minha lucidez...

Ainda que jamais reveja o que escrevo, enquanto escrevo, tenho a sensação de que é chegado o momento de priorizar ao menos uma das passagens que mais me marcaram durante este inesquecível espetáculo - se fosse citar todas, escreveria algo que poderia se assemelhar a uma dissertação de mestrado. Meu foco recai, então, sobre a cena da piscina, e mais particularmente sobre o momento em que os dois personagens, dilacerados de angústia após mais um momento em que tentaram se comunicar e não conseguiram, abandonam o local. Mas o fazem após encher de água duas mochilas, como se nutrissem a esperança de poder conservar, ao menos simbolicamente, algo que tiveram em comum, ou que almejaram ter em comum. Mas à medida em que se afastam, as mochilas se esvaziam. Não há, efetivamente, mais nada a ser conservado.

Explorando com notável sensibilidade todas as possibilidades expressivas da casa, inclusive facultando ao espectador um olhar sempre diferenciado sobre as cenas, Ivan Sugahara exibe o mérito suplementar de haver extraído maravilhosas performances de Ângela Câmara e Saulo Rodrigues, a meu ver as melhores de suas significativas carreiras. 

Exibindo extraordinária capacidade de entrega e uma contracena que só pode existir quando os atores, além de compreenderem perfeitamente o contexto em que atuam, confiam inteiramente um no outro, Ângela e Saulo me geraram emoções que há muito não sentia no teatro. Assim, a ambos agradeço o poderoso encontro que tive com o fenômeno teatral, e ao mesmo tempo torço para que os sempre caprichosos deuses do teatro permitam que a presente temporada não se encerre no próximo dia 17. Seria por demais injusto com o público carioca.

Na equipe técnica, considero irrepreensíveis as preciosas contribuições de todos os profissionais envolvidos nesta imperdível empreitada teatral - Gisele Freire (tradução), André Sanchez (cenografia), Renato Machado (iluminação), Tarsila Takahashi (figurinos), Ivan Sugahara e Lívia Paiva (trilha sonora), Duda Maia (direção de movimento), Ricardo Góes (preparação vocal), Thiago Ristow (programação visual), Dalton Valério (fotografia) e André Poyart (edição de som). Gostaria também de destacar o belíssimo texto em off que encerra o espetáculo, "5 segundos", de autoria de João Paulo Cuenca.

FALA COMIGO COMO A CHUVA E ME DEIXA OUVIR - Texto de Tennessee Williams. Dramaturgia de Ivan Sugahara e Lívia Paiva. Direção de Sugahara. Com Ângela Câmara e Saulo Rodrigues. Casa da Glória. Sábado e domingo às 14h e 16h.

   





  


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