sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Teatro/CRÍTICA

"Estudo para Missa para Clarice - Um espetáculo sobre o homem e seu Deus"

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Belo e visceral encontro com a dúvida



Lionel Fischer



"Sei que o mundo não vai mudar por minha causa, nem por causa do meu Teatro, mas prefiro acreditar que sim. Vivo melhor assim. Os artistas que conheço, todos, têm uma chama visceral de dizer algo a alguém. Um desejo ingênuo de perpetuar. Para que vivemos? Onde estamos? Para onde vamos?. Desde Sófocles, o Teatro existe para comungar essas dúvidas. Assim o entendo. 'Missa para Clarice' é uma celebração do Sim. Um projeto que nasce do impulso e da necessidade. Puro afeto. Pelo Teatro, pela Clarice, por mim, pela investigação, pelo gosto bom. Nasce da necessidade de se reinventar a profissão. De gritar pro mundo. O grito de Munch. De sobreviver 'apesar de'. Nasce de uma angústia que insatisfeita é a criadora de nossa própria obra".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima, de autoria de Eduardo Wotzik, sintetiza sua relação com o teatro - e, portanto, com a vida e com tudo que pode transcendê-la - e seu objetivo com o presente espetáculo, baseado na obra de Clarice Lispector. Em cartaz no Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil, "Estudo para Missa para Clarice - Um espetáculo sobre o homem e seu Deus" leva a assinatura de Wotzik (também responsável pela edição final do texto), que divide a cena com Cristina Rudolph e Natally do Ó. O trabalho dramatúrgico foi efetuado por Vittorio Provenza.

O contexto é o de uma missa. Mas não uma missa no sentido convencional, já que no lugar do sacerdote temos um Arauto e no lugar dos coroinhas, duas Beatas Claricianas. O espetáculo não despreza a oração, mas a prioridade é a reflexão. E o que aqui se celebra é a dúvida que, como todos sabemos, é o que faculta a possibilidade do Não se converter em Sim. Muitas perguntas permanecem sem resposta, mas isso é irrelevante, pois o essencial - e isso o espetáculo deixa muito claro - não é o ponto de chegada, mas o percurso. E se algum espectador acreditar que, diante de tantas questões levantadas, melhor seria não levá-las em consideração, já que poderia se sentir como um louco que se perde em um deserto pleno de indagações, a esses o espetáculo parece perguntar: não será preferível eventualmente se perder, mas ainda assim chegar a traçar uma pista?  

Acredito que, em sua essência, "Missa para Clarice" nos propõe traçarmos pistas, as nossas próprias pistas, ainda que muitas vezes angustiados, ainda que eventualmente nos sentindo como se fôssemos órfãos de nós mesmos, ainda que não raro sejamos acossados pela sensação de que nada faz sentido, que um vazio irremediável será nosso eterno companheiro. Mas aqui cabe perceber que, se existe um vazio, é porque existe algo que pode ser preenchido. "Missa para Clarice" aposta nisso: na possibilidade de preenchermos os nossos próprios vazios. 

Impondo à cena uma dinâmica que, sem renunciar ao ritual, propõe uma visceral comunhão entre quem faz e quem assiste, Eduardo Wotzik exibe aqui um dos melhores trabalhos de sua brilhante carreira de encenador, cabendo também destacar sua fortíssima presença cênica e as seguras participações de Cristina Rudolph e Natally do Ó. Minha única ressalva fica por conta de alguns momentos em que imaginei que o espetáculo iria terminar e ele prossegue. Alguns exemplos: a cena em que são distribuídos papéis com pensamentos proferidos; ou a passagem em que, estimulados pelo Arauto, todos repetem algumas frases enquanto dançam; e finalmente, no mais belo momento do espetáculo, quando o Arauto, no altar, ergue as mãos e delas escorre, lentamente, uma grande quantidade de grãos de areia, espécie de oferenda ao Sagrado de todas as nossas fragilidades. 

De qualquer forma, e mesmo considerando este pequeno senão, não resta a menor dúvida de que "Missa para Clarice" é um dos espetáculos mais marcantes e significativos da atual temporada, que contou com a preciosa contribuição de todos os profissionais da equipe técnica - Analu Prestes (direção de arte), irmãos Mantovani (iluminação), Vittorio Provensa (dramaturgia) e Gorecki, este responsável por belíssima música.

ESTUDO PARA MISSA PARA CLARICE - UM ESPETÁCULO SOBRE O HOMEM E SEU DEUS - Texto de Clarice Lispector. Edição, texto final e direção de Eduardo Wotzik. Com Wotzik, Cristina Rudolph e Natally do Ó. Teatro III do CCBB. Quinta a domingo, 19h30.



   


Um comentário:

  1. Hola! soy argentina y tuve el gusto de assistir a la pieza Missa para Clarice: adorei!
    Con solamente una silla, un copo de agua, una mesa y un libro (nada más en el escenario) nos invitan a VIAJAR por EL MUNDO DE CLARICE que es mágico...
    Las actrices ofrecen agua a los "espectadores" (no tan espectadores) en el medio de la obra.
    Buena selección de la obra de una escritora brasilera que no solo es literata mas tamben pensadora - filósofa por las preguntas y las no respuestas que se da.
    Vale la pena assistir!

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