segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Teatro/CRÍTICA


"As crianças"

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Inesquecível encontro no Poeira



Lionel Fischer


"O casal de físicos aposentados Dayse e Robin vive só e sem vizinhos numa casa improvisada perto da costa, numa região inóspita assolada por um acidente nuclear. Após uma ausência de quase 40 anos, Rose, antiga colega de profissão e amiga, chega a essa casa com uma missão que poderá mudar para sempre a vida do casal. Para complicar as coisas, Robin teve uma relação com Rose no passado".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o enredo de "As crianças", da dramaturga inglesa Lucy Kirkwood.
Em cartaz no Teatro Poeira, a montagem leva a assinatura de Rodrigo Portella, estando o elenco formado por Mario Borges (Robin), Analu Prestes (Dayse) e Stela Freitas (Rose).

Ao me dirigir ao Teatro Poeira neste último sábado, nada sabia sobre a autora. Ao deixar o teatro, fiz questão absoluta de saber o máximo sobre ela. Pois bem: ela é inglesa, é atriz, dramaturga e roteirista, já coleciona muitos e importantes prêmios e, para minha total surpresa, tem apenas 35 anos! E quando escreveu "As crianças", o fez com apenas 32!? E essa constatação me deixou pálido de espanto, como um personagem de soneto - adoraria ter escrito essa frase, mas o crédito cabe a Nelson Rodrigues. Mas a que atribuir tal espanto?

Em primeiro lugar, tentei encontrar uma explicação minimamente plausível para o fato de uma pessoa tão jovem ter decidido escrever uma peça com personagens sexagenários. Após tecer inúmeras conjecturas, não cheguei a nenhuma conclusão que me satisfizesse, o que sempre acho interessante, posto que isso ativa em mim um estado que muito aprecio: o de total perplexidade.

E esta perplexidade, enquanto assistia a montagem, foi se convertendo em progressivo assombro, tamanha a beleza do texto, a magnífica construção dos personagens, a profundidade com que muitos temas são abordados e a deslumbrante teatralidade dos diálogos. E como tudo se dá em um contexto aparentemente banal, mas que aos poucos permite o aflorar de questões que pareciam fadadas ao esquecimento, não tenho a menor dúvida em afirmar  que Kirkwood é a reencarnação feminina de Tchecov - se tal assertiva parecer bizarra, e ainda que respeitando quem assim a considere, recomendo uma leitura atenta das obras-primas do genial dramaturgo russo. 

Como já dito, Robin e Dayse moram numa região inóspita, assolada por um acidente nuclear. E um tal acidente, como todos sabemos, gera consequências terríveis, que podem se estender por um tempo indeterminado. Os três personagens trabalhavam na usina quando ocorreu o acidente e obviamente que por ele também são responsáveis. Mas seguiram suas vidas - o casal entregue às suas tarefas cotidianas e Rose vivendo em um lugar ignorado. No entanto, ela retorna imprevistamente. Com que objetivo? Resgatar sua relação com Robin? Propor ao casal uma atitude concreta em face do que ocorreu 40 anos atrás? Enfim...paro por aqui pois prosseguir me obrigaria a revelar as muitas surpresas e reviravoltas da trama.

Ainda assim, e mesmo admitindo que os fatos narrados tenham realmente acontecido, ouso supor que a tragédia ocorrida na usina nuclear também possa abarcar uma interpretação metafórica, ou seja: de quantos acidentes conseguimos nos livrar acreditando que não deixaram sequelas, posto que relegados ao passado, e inesperadamente esse conforto é aniquilado por algo que jamais poderíamos imaginar que tivesse esse poder? A radiação nuclear, quando não mata, deforma. Algo semelhante acontece com a culpa: ou a admitimos, a elaboramos e agimos, ou então ela acabará nos convertendo em uma espécie de náufragos de nós mesmos, ainda que ninguém perceba (nem mesmo os que estão afundando) a trágica dimensão deste naufrágio.

Com relação ao espetáculo, Rodrigo Portella impõe à cena uma dinâmica de enganosa simplicidade. Não há efeitos mirabolantes, videografismos, projeções e mais uma infinidade de recursos tão em voga em encenações contemporâneas. No entanto, Portella realiza um trabalho absolutamente extraordinário, na medida em que aposta todas suas fichas na contundência do texto e na interpretação do elenco. Todas as alternâncias de climas emocionais em jogo são trabalhadas com calma e total sutileza, e para tanto o encenador se vale de marcações extremamente expressivas e admirável maestria no tocante aos tempos rítmicos - neste quesito, cabe ressaltar a potência das pausas, dos silêncios que conferem à cena um inquietante estado de suspensão, sem jamais resvalar para a monotonia. Em resumo: uma encenação brilhante, que merece ficar em cartaz por muitos anos. Além disso, cabe a Rodrigo Portella o mérito suplementar de haver contribuído para a deslumbrante atuação do elenco.

Sem o menor receio de me tornar repetitivo, volto a afirmar que  este país pode carecer de tudo, menos de grandes intérpretes. E neste seleto rol estão incluídos Mario Borges, Analu Prestes e Stela Freitas. E esta inclusão não se deve apenas a aspectos técnicos, mas a algo que os transcende. Mas o que seria esse "algo"? Acredito que possa resumi-lo em dois tópicos, embora minha lista seja bem mais extensa. O primeiro:  Mario, Analu e Stela entregam-se de tal forma aos personagens e às relações entre eles que parecem acreditar que cada apresentação possa ser a última, e portanto nada pode ser poupado, adiado ou feito mecanicamente - atores deste quilate às vezes ligam o automático e desgraçadamente nos enganam. O segundo: certamente acreditam que o teatro, como sustenta Peter Brook, é a arte do encontro. E quem for ao Teatro Poeira haverá de constatar a potência deste inesquecível encontro.

Na ficha técnica, Rodrigo Portella e Julia Deccache respondem por uma cenografia simples e funcional, cabendo destacar o chão coberto de fragmentos de rocha triturada, que produzem um som inquietante e sugerem que algo possa estar prestes a desmoronar. Paulo Cesar Medeiros assina uma de suas mais expressivas iluminações, sempre reforçando os climas emocionais em jogo e encerrando a montagem com focos vindos do fundo, cuja potência aumenta gradativamente como a sugerir que redentoras transformações começam a florescer. Também de altíssima qualidade são os figurinos de Rita Murtinho, a trilha sonora original de Marcelo H e Federico Puppi, a tradução de Diego Teza e a preparação corporal de Marcelo Aquino. 

AS CRIANÇAS - Texto de Lucy Kirkwood. Direção de Rodrigo Portella. Com Mario Borges, Analu Prestes e Stela Freitas. Teatro Poeira. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.






   









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