quinta-feira, 28 de março de 2019

Teatro/CRÍTICA

"Merlin e Arthur - Um sonho de liberdade"

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Surpreendente, corajoso e libertário musical



Lionel Fischer



Acredito que todos nós, em maior ou menor grau - e sobretudo na infância - nos encantamos com as aventuras do Rei Arthur, Lancelot e os cavaleiros da Távola Redonda. E embora até hoje se discuta se as histórias narradas realmente correspondem à verdade ou se as lendas se sobrepõem aos fatos, isso é o que menos importa, posto que o fascínio permanece intacto. Mas agora estamos diante de um projeto curioso e ousado, pois o universo de Camelot nos chega não apenas no formato de um musical, mas estruturado em cima de 25 canções do repertório de Raul Seixas. 

Contando com concepção e direção de Guilherme Leme Garcia, e texto de Márcia Zanelatto, "Merlin e Arthur - Um sonho de liberdade" está em cartaz no Teatro Riachuelo. O numeroso elenco é encabeçado por Vera Holtz (que só aparece em vídeo na pele de Merlin), Paulinho Moska (Arthur), Larissa Bracher (Guinevere), Gustavo Machado (Lancelot), Patrick Amstalden (Dreadmor), Kacau Gomes (Anamorg), Rodrigo Salvadoretti (Arthur jovem), Natália Glanz (Guinevere jovem) e Saulo Segreto (Lancelot jovem). Também participam da montagem Gabi Porto, Ubiracy Brasil, Santiago Villalba, Fernanda Gabriela, Daniel Haidar, Renato Caetano, Laíze Câmara, Oscar Fabião, Thainá Gallo, Paola Poliny, Dennis Pinheiro, Leonam Moraes, Carol Pita e Félix Boisson.

Ainda que nutra imensa admiração por Raul Seixas e por tantas razões que seria tedioso enumerá-las, o fato é que, ao tomar conhecimento do projeto, pus-me a cismar, como o faria o jovem Hamlet: "Mas será que vai dar certo? As letras das canções selecionadas têm a ver com a narrativa ou haverá, digamos assim, uma espécie de forçação de barra para que tudo se encaixe de forma minimamente crível?". Tais conjecturas eu as fiz impregnado de um certo temor, que acabou resultando infundado. E pelas seguintes razões.

A principal diz respeito ao novo andamento imposto à maioria das canções, que assim adquirem uma nova e surpreendente perspectiva, não raro de grande expressividade. Outro fator reside no fato de que às vezes só ouvimos as letras, como se as mesmas não tivessem sido escritas para serem cantadas. E o resultado evidencia a poesia e o olhar crítico do autor sobre o tempo em que viveu. E se a isto somarmos o surpreendente olhar de Márcia Zanelatto sobre o universo de Camelot, a soma destes ingredientes já seria suficiente para conferir grande interesse à presente empreitada teatral. Mas em que consiste este surpreendente olhar?

Como explicitado no parágrafo inicial, as aventuras do Rei Arthur e de seus cavaleiros da Távola Redonda são por todos conhecidas. No entanto, e embora a autora não deixe de retratar tais aventuras, ela as trabalha em dois tempos diversos, fazendo com que os protagonistas estabeleçam relações entre eles que a vida real obviamente impediria. Tal licença poética, que poderia soar gratuita, aqui funciona muito bem, na medida em que as reflexões feitas no presente e no passado contribuem decisivamente para nossa compreensão a respeito do futuro.

Outra questão de suma importância refere-se ao amor, e obviamente à liberdade indispensável para usufruí-lo em toda a sua plenitude. Guinevere ama e respeita profundamente Arthur, mas  nutre avassaladora paixão por Lancelot. Este e Arthur também se amam e se respeitam, sendo que Lancelot nutre por Guinevere uma paixão análoga. Pois bem: diante de um tal quadro, o que fazer? Lancelot e Arthur deveriam duelar até a morte pelo amor de Guinevere?  Esta deveria ser condenada por admitir que ama dois homens ao mesmo tempo? 

Neste ponto, e desprezando todas as histórias e lendas referentes à narrativa oficial, a autora sugere corajosamente que é possível, sim, que três pessoas se amem ao mesmo tempo. E esta proposição nada tem de vulgar, muito pelo contrário: é essencialmente libertária e a liberdade de nossas escolhas, afetivas ou não, só diz respeito a nós mesmos, ainda que a moral e os bons costumes preguem exatamente o oposto. Ou seja: a imperiosa necessidade de enquadrar-se, sendo tal enquadramento a única possibilidade de se atingir a tão almejada felicidade.  

Com relação ao espetáculo, Guilherme Leme Garcia exibe aqui algumas de suas principais virtudes como encenador: precisão, excelente acabamento e refinada elegância. No entanto, creio que a montagem seria ainda mais expressiva se a tais virtudes fossem acrescentadas doses mais virulentas de paixão, pois quase sempre os embates priorizam a reflexão, minimizando os dilacerantes sentimentos que os motivam.  

No tocante ao elenco, Vera Holtz (ainda que apenas em vídeo) nos brinda com uma atuação poderosa, impregnada de saber e mistério. Quanto aos demais protagonistas, todos exibem performances convincentes, tanto nas passagens cantadas quanto naquelas em que o texto predomina. Mas torna-se imperioso destacar as atuações de Patrick Amstalden (Dreadmor) e Kacau Gomes (Anamorg), o primeiro por transcender a chave racional da maior parte do elenco, e a segunda pela mesma razão, afora o fato de cantar magnificamente.

Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de Fabio Cardia e Jules Vandystadt (direção musical e arranjos), Toni Rodrigues (direção de movimento e coreografia), Anna Turra, Camila Schmidt e Roger Velloso (cenografia, iluminação e videodesign), João Pimenta (figurino), Fernando Torquatto (visagismo) e Carlos Esteves (desenho de som).

MERLIN E ARTHUR, UM SONHO DE LIBERDADE - Concepção e direção de Guilherme Leme Garcia. Texto de Márcia Zanelatto. Com Vera Holtz, Paulinho Mosca, Larissa Bracher, Gustavo Machado, Patrick Amstalden, Kacau Gomes e grande elenco. Teatro Riachuelo. Sexta (20h), sábado às 16 e 20h, domingo 18h.

















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