quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Uma leitura do mundo


Entrevista com ENRIQUE DIAZ


O surgimento e o desenvolvimento da Cia. dos Atores estiveram vinculados à afetividade. Reunião de amigos que tinham a prática teatral como afinidade, o grupo formado por Enrique Diaz, Bel Garcia, César Augusto, Drica Moraes, Gustavo Gasparani, Marcelo Olinto, Marcelo Valle e Suzana Ribeiro fincou, desde o início, suas bases na experimentação e lançou propostas de criação coletiva e/ou de desconstrução da estrutura e da reverência que costumam repousar sobre as abordagens de textos clássicos. Não por acaso, o grupo tem um dramaturgo: Filipe Miguez.
Com total liberdade para trabalharem fora da companhia, os atores costumam trazer de volta as experiências acumuladas em espetáculos fora do grupo e ainda em aprofundamentos da pesquisa artística. O próprio Enrique Diaz passou meses em Nova York participando de um workshop dirigido por Anne Bogart e dirige, ao lado de Mariana Lima, o Coletivo, trabalho surgido a partir do treinamento físico compartilhado com outros profissionais na Fundição Progresso e recentemente mostrado no “Festival Aurillac”, na França.
Os investimentos paralelos nunca trouxeram o distanciamento como conseqüência. Voltaram a trabalhar, todos juntos, em Notícias Cariocas, espetáculo que, juntamente ao bem-sucedido Ensaio.Hamlet, marcou a comemoração dos 15 anos da Cia. dos Atores, data que será sublinhada também com o lançamento de um livro que aborda não apenas a história do grupo, como busca um diálogo com o teatro brasileiro contemporâneo.
Nascido em Lima, no Peru, filho de pai paraguaio e mãe brasileira, Enrique Diaz é o caçula de uma família de seis irmãos. Passou parte da vida morando em lugares diferentes devido ao trabalho do pai na Organização dos Estados Americanos (OEA). Acabou encontrando porto seguro no teatro, sendo motivado, como muitos futuros artistas de sua geração, por Carlos Wilson, carinhosamente conhecido como Damião, responsável por fazer a ponte de tantos jovens do universo escolar para o teatro profissional. Só do Andrews vieram quatro dos integrantes da companhia – Bel, Drica, Gustavo e Marcelo.
A seguir, entrevista exclusiva concedida aos Cadernos de Teatro por Enrique Diaz, também contendo depoimentos de todos os integrantes da Cia. dos Atores.

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Cadernos de Teatro – Como foi o seu início de carreira e em que momento sentiu que havia, de fato, se profissionalizado?

Enrique Diaz – A primeira aula de teatro que fiz foi com Damião, Claudio Baltar e Chico Diaz, meu irmão, quando tinha 14 anos. Comecei rapidamente a fazer peças. Participei de Arlequinada, no Parque Lage, na mesma época em que o Pessoal do Despertar encenava A tempestade. Depois vieram Capitães de areia e Os 12 trabalhos de Hércules. Tentei conciliar Comunicação Social com o teatro, mas acabei interrompendo a faculdade. Em todo caso, foi uma boa experiência porque me garantiu uma base teórica. Num esquema já mais profissional, um dos meus primeiros trabalhos foi A estrela do lar, de Mauro Rasi.

CT – Como você se vê como ator?

ED - Tenho aspectos positivos no que diz respeito à presença e à intensidade física e uma tendência às composições populares. Fiz muito bem a composição de A Torre de Babel (espetáculo de Gabriel Vilela). Procuro buscar sutilezas que sempre me faltaram.

CT – E o trabalho como diretor?

ED – Tinha assistido a Marat-Sade, filme de Peter Brook (a partir de texto de Peter Weiss), em Londres e havia um festival de teatro e performance aqui no Rio de Janeiro. Fizemos uma versão de 40 minutos com textos mais densos mesclados a músicas dos Titãs e armamos uma temporada de dois meses. Quis enriquecer o material e organizei uma colagem, unindo trechos de Marat-Sade a de A morte de Danton, de Georg Büchner, e Mauser, de Heiner Muller. Assim nasceu Rua Cordelier. Agora, tenho a impressão de que só passei a me considerar diretor a partir de Melodrama.

CT – De meados dos anos 70 em diante, o trabalho de corpo passou a ser muito valorizado, em especial com as influências de Klaus e Angel Vianna. Como você se reconhece dentro deste processo?

ED – O corpo é uma herança dos anos 70 em todos nós. Fiz mímica corporal dramática na escola de Etienne Decroux, na França, e procurei marcar os espetáculos da Companhia dos Atores de composição espacial, ritmo, musicalidade e desenho do corpo do ator no espaço.

CT – Existe o risco do trabalho corporal se transformar em recurso acrobático?

ED – Não vejo isto como um problema porque um trabalho pode ser acrobático sem se converter em virtuosismo puro. Mariana Lima se jogava loucamente contra a parede em A paixão segundo GH.

CT – Como você acha que seria dirigir uma garotada nova, ainda inexperiente, e, no extremo oposto, os grandes figurões do teatro brasileiro?

ED – Com a garotada tenderia a ser parecido ao processo com a companhia. Em relação aos figurões, buscaria aproximá-los do que costumo fazer, mas dentro de determinados limites, obviamente. Acabaria recaindo mais sobre o trabalho com texto.

CT – O que um ator precisa ter para que você sinta vontade de trabalhar com ele?

ED – Tenho vontade de trabalhar com inteligências cênicas. O ator deve ter uma ligação com o seu trabalho. Pode ser até que o estar em cena movido pelo narcisismo e pela aceitação dê certo, mas é preciso transformar isto em alguma coisa. Na companhia, os atores são autores. Até porque a pessoa no palco é reflexo da atuação dela no mundo. Quero cada vez mais me manifestar em relação ao mundo, falar do que está me inquietando e não apenas montar bem Hamlet.

CT – Fale um pouco sobre os princípios básicos do seu processo de trabalho.

ED – Não considero a peça como uma base. Procuro, isto sim, cavar dentro ou nos arredores dela para ver o que nos suscita, nos provoca. A justificativa para uma cena existir não está no fato dela ter sido escrita. Já na leitura de O rei da vela chutávamos possibilidades de links que seriam ou não seguidos. No decorrer dos ensaios, uma integração entre os atores é criada, de modo que aqueles que estiverem fazendo abdominais não interfiram em quem estiver envolvido em trabalhos de construção de personagem.

CT – Na sua visão, qual o ponto central dos seus próprios espetáculos?

ED – Praticamente todos os meus espetáculos decorrem de buscas e experimentações minhas. Ensaio.Hamlet foi um processo muito autoral. Trabalhei com três atores da companhia (Bel Garcia, Cezar Augusto e Marcelo Olinto) e três de fora (Felipe Rocha, Fernando Eiras e Malu Galli). Fernando tem quase 50 anos e sustenta uma busca muito radical. Felipe traz uma inteligência mais performática. Bel trouxe novidades em relação ao que eu já conhecia dela. Criou cenas que estão na peça.

CT – Há algum espetáculo da companhia que você não goste?

ED – Não seria capaz de dizer que não gosto. Cobaias de Satã foi um espetáculo de crise. Depois de Melodrama houve a possibilidade de fazermos uma espécie de Melodrama 2. A companhia talvez tivesse ido por este caminho, mas eu não quis. Peguei um outro canal radical. Há gente jovem que diz ter adorado a montagem, como José DaCosta. Não era ruim, mas sim um trabalho incompleto. Tristão e Isolda foi legal, mas não contamos com tempo suficiente para fazer. E também gostei de Notícias Cariocas, apesar de ter passado pelo mesmo problema.

CT – E quais são os que você mais gosta?

EDA bao a qu, Melodrama e Ensaio.Hamlet, sobre o qual já falei um pouco. A bao a qu era muito moderno, elaborado e original, embora Bob Wilson, Pina Bausch, Tadeuz Kantor e Gerald Thomas tenham “aparecido” por lá. E Melodrama foi um processo muito feliz, com todo mundo integrado num playground conseqüente. Elena Soárez (hoje, roteirista de cinema) ajudou na pesquisa e fez parte da comissão de discussão da dramaturgia.

CT – Quais são suas principais referências?

ED – No fundo, tudo é referência: Gerald Thomas, Bia Lessa, os primeiros anos de Moacyr Góes, Gabriel Vilela. Recentemente, gostei muito de Deve haver algum sentido em mim que basta, peça de Jefferson Miranda. Gosto também das montagens do Teatro da Vertigem e de alguns trabalhos da Cia. Armazém, como Alice através do espelho. E me interesso por investidas contemporâneas, como as de Daniel Veronese junto ao grupo “Los Periféricos”, e pelo hibridismo do teatro com a dança e as artes plásticas.

CT – Quais as dificuldades que você encontra como diretor?

ED – Alguns atores te colocam como responsável pelo sofrimento deles, como se o máximo que pudesse acontecer é serem aprovados por mim. Então eu digo: “Você se expõe daí que eu me exponho daqui”.

CT – A que você atribui a apatia da cena carioca atual? E porque os jovens não estão freqüentando o teatro?

ED – Na tenho informações suficientes para responder sobre isto. Mas existem 120 peças em cartaz. E os jovens amavam Ensaio.Hamlet. Agora, as coisas mudam. E cada vez mais rápido. Há mais escolhas hoje em dia. Se o teatro fica estacionado no século XIX, no sentido de montar um texto clássico como ele deveria ser montado, não interessa nem a mim. As artes plásticas, por exemplo, estão bem mais loucas, mais efervescentes.

CT – Apesar do termo “experimental” ter se tornado um tanto desgastado, você se considera filiado a esta tendência?

ED – O desgaste decorre de um certo tipo de experimentos mal acabados demais. Mas me sinto completamente voltado para a experimentação. Os trabalhos de que mais gosto são aqueles em que posso experimentar, que me permitem mostrar como leio o mundo a cada momento.


Depoimentos dos Atores

Drica Moraes – “Dentro da companhia, temos liberdade para ir e vir, trazer o ganho de experiências vivenciadas fora do grupo. No decorrer destes anos, reinventamos códigos de cena e a dramaturgia, cuja questão passa diretamente pelo ator. Chegamos a ensaiar quase um ano determinadas montagens, como Melodrama, trabalho gerado a partir de Só eles o sabem, que já trazia a questão da máscara melodramática e do ator tirando partido de variados estilos de interpretação.”

Gustavo Gasparani – “Quando você faz parte de um grupo de teatro, acaba virando um homem de teatro. Cria envolvimentos não só com a sua personagem como também com a produção, a feitura da cenografia e dos figurinos, a formulação de workshops. Além disso, sinto que aprofundamos segmentos de nossa personalidade de ator. E desenvolvemos uma linguagem própria.”

Marcelo Olinto – “Integrar a Cia. dos Atores representa a possibilidade de aprimorar a forma do fazer teatral e desenvolver questões importantes do momento, seja estética ou politicamente. Quando montamos O rei da vela nas comemorações dos 500 anos de Brasil nos colocamos como cidadãos, ao mesmo tempo em que proporcionamos um entretenimento. Com o passar dos anos, percebo que nossa sede se mantém a mesma; a diferença é que fomos amadurecendo e passamos a utilizar melhor nossas ferramentas.”

Suzana Ribeiro – “A Cia. dos Atores marcou o encontro entre pessoas da minha geração, algumas oriundas do Tablado, outras de colégios como o Andrews e o Souza Leão, como no meu caso. Há uma expressão de fidelidade em relação àquele final dos anos 80. Começamos a trabalhar com pessoas que estavam no mesmo lugar e nos tornamos donos do próprio trabalho ao invés de à mercê de um mercado tão competitivo.”

Bel Garcia - “É muito difícil ser ator no Brasil - no Rio ainda mais que em São Paulo, tenho a impressão - e integrar a Cia. dos Atores nos possibilita investir na continuidade de um trabalho e no aprofundamento de uma linguagem. Temos a liberdade de opinar, de exercer nossa autoria e especificidades. Eu, por exemplo, puxo mais para o lado de um humor próximo do absurdo.

César Augusto - Ao longo do tempo, criamos espetáculos bem dimensionados sem nos esquecermos do público. Acho que temos apontado para as pessoas o quanto o teatro é necessário, vital, para o ser humano. Conseguimos atingir um reconhecimento que ultrapassa o limite da mídia televisiva. Exercemos, cada um, nossas capacidades, que vão além do ato de interpretação.

Marcelo Valle - Há entre os atores uma relação de confiança no sentido de conhecer como cada pessoa se coloca em cena, onde o seu estímulo pode ecoar melhor, onde ecoa menos. Nós nos encontramos há muito tempo e estamos juntos até hoje porque gostamos, sentimos admiração. A experiência artística mais forte da minha vida foi a viagem com a companhia por cidadezinhas do interior de São Paulo.
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Esta entrevista, publicada no nº 171 dos Cadernos de Teatro, foi concedida a Lionel Fischer e Daniel Schenker Wajnberg, cabendo a este último a redação final.

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Implicância e anti-teatralidade

entrevista com Moacir Chaves

Fala mansa e aveludada, gestos comedidos, educado ao extremo, Moacir Chaves poderia interpretar qualquer papel em que tais predicados fossem indispensáveis – monsenhor, analista, aquele amigo paciente a quem confiamos nossos segredos mais inconfessáveis etc. Ou mesmo outros, já que se trata de um ator com 16 trabalhos no currículo. Mas é como diretor teatral (24 montagens) que Chaves ganhou projeção, graças a trabalhos como O sermão da quarta-feira de cinzas e Bugiaria – o primeiro deu a Pedro Paulo Rangel todos os prêmios existentes na época (Shell, Mambembe e Molière), sendo que o segundo fez de Moacir ganhador do prêmio Governador do Estado (1999-2000) nas categorias Direção e Melhor Espetáculo. Casado com a atriz Monica Biel, pai de Daniel e Bruno, flamengo doente e um ala de futsal nada desprezível, aos 38 anos Moacir Chaves é um dos jovens diretores mais talentosos do país.
Em entrevista concedida a Daniel Schenker e Lionel Fischer, publicada nos Cadernos de Teatro nº 170, o encenador fala do início de sua carreira, do processo de criação de alguns espetáculos e do ator nacional, entre outros temas.

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Cadernos de Teatro - Como começou a sua relação com o teatro?

Moacir Chaves - Eu nasci em Petrópolis e morei em Teresópolis a partir do meio da infância. Lá integrei um grupo chamado Texto Coletivo, criado por um professor, Paulo Maia. Montávamos uma peça por ano no Teatro Higino. E de vez em quando vínhamos ao Rio assistir a uma peça. O primeiro espetáculo que eu vi foi O beijo da Mulher Aranha, com José de Abreu e Rubens Corrêa. Antes o grupo já tinha estado no Rio para conferir Macunaíma, dirigido pelo Antunes Filho, mas eu fui comprar peças para o meu autorama... Tempos depois, comecei a estudar Geologia no Fundão. E então passei a freqüentar todas as peças. Conheci a cidade procurando apartamento para alugar, indo a teatro e, anos mais tarde, desenvolvendo projeto-escola.

CT - E o contato com a prática teatral aqui no Rio?

MC - Fiz um curso no Instituto de Educação e outro com Milton Dobim, no Circo Voador, onde conheci Beth Néspoli (hoje repórter de teatro do jornal O Estado de São Paulo) e Claudio Mendes. Conheci também Juliana Carneiro da Cunha (atriz brasileira há muitos anos integrante do grupo francês Théâtre du Soleil) num curso na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL). Logo fiquei sabendo da existência da Escola de Teatro Martins Pena e me inscrevi, certo de que não seria selecionado, mas acabei passando - acho que muito devido ao meu nível de educação. Nessa época, já havia abandonado a Geologia e tentado minha segunda opção na faculdade, História. No meio da Martins Pena, entrei para a Uni-Rio e comecei a trabalhar como ator e assistente de direção no Grupo Tapa, a convite de Renato Icarahy.

CT - E depois, o que aconteceu?

MC - Fiquei com eles durante uns dois anos, até que aconteceu um racha no grupo e parte dele se mudou para São Paulo. Formei, então, um grupo com Denise Fraga (com quem Moacir Chaves foi casado), Hercules Franco, Zé Antonio Carnevar e Maria Assunção – o Grupo Cine-Teatro. Começamos a montar textos brasileiros em sindicatos, comunidades e escolas, nos mais variados locais, como Anchieta, Méier e Niterói, afora muitas escolas na Zona Sul.

CT - Quanto tempo durou esse trabalho?

MC - Cerca de três anos.

CT - E como funcionava o grupo?

MC - A primeira peça, As desgraças de uma criança, do Martins Pena, seria dirigida pelo Hercules, mas ele declinou e como eu já tinha assinado um espetáculo infantil chamado Cadê o peixe?, acabei assumindo a função. A segunda peça, montada com o dinheiro arrecadado em As desgraças...foi O primo da Califórnia, de Joaquim Manuel de Macedo, e a terceira, Defeito de família, de França Jr. Este último com música ao vivo e as presenças de Maurício Marques, que entrava para o grupo, e Rogério Cardoso, que, na época, fazia uma peça com a Denise no Teatro Princesa Isabel.

CT - Foi assim que você optou pela direção?

MC - Acho que até hoje não resolvi ser diretor...(Risos) Na verdade, eu penso no evento como um todo. Tenho interesse por todas as funções.

CT - Inclusive a de ator?

MC - Eu adoro trabalhar como ator. O problema é que eu precisaria dedicar minha vida a isso, mas não tenho tempo e não gostaria de acumular com o trabalho de diretor.

CT - Em que peças do grupo você atuou?

MC - Atuei em As desgraças de uma criança e fui stand-in nas outras peças. Sei que posso fazer um bom trabalho como ator porque conheço muita coisa, mas não possuo treinamento específico para isto, apesar de continuar fazendo aulas de canto. Mais recentemente, fiz Bugiaria como ator em Santa Catarina, mas tive o cuidado de começar a me preparar um mês antes para estar em forma.

CT - Essa divisão em funções – ator, diretor, dramaturgo etc. – é típica da modernidade, não é verdade?

MC - Certamente. É só pensarmos em Shakespeare e Molière, entre outros. Na época deles o envolvimento com todo o processo era maior.

CT - Retrocedendo um pouco: em que momento você abandonou Geologia e História para se dedicar ao teatro?

MC - Eu entrei para a Martins Pena para continuar brincando de teatro, eu adorava aquilo, o aspecto lúdico dessa atividade. Por isso também fui fazer a Uni-Rio quando ainda cursava História. Aí, houve uma greve na UFRJ que durou oito meses e fiquei exclusivamente com o teatro. Quando vi, estava no Tapa. Então, veio a idéia de fazer Esperando Godot, do Beckett, que mereceu uma crítica muito boa da Barbara Heliodora e outra nem tanto do editor dos Cadernos...(Risos) Mas eu acho que ele assistiu num dia muito ruim...(Mais risos). Depois viajamos para São Paulo e também foi muito bacana. Montei, então, Fausto, no Teatro Cacilda Becker, um trabalho de formação da Martins Pena. E em seguida O sermão da quarta-feira de cinzas, que me deu projeção.

CT - Como surgiu o projeto de montar O sermão...?

MC - Nunca tinha lido Padre Antonio Vieira. Mas quando assisti ao filme Os sermões, de Julio Bressane, fiquei abismado com aquele autor. Era simplesmente maravilhoso, pertinente, próximo, vivo, incisivo, inteligente. E também fiquei revoltado com meus professores, que nunca tinham me mostrado aquilo. Então, decidi fazer uma peça com textos do Padre, mas não sabia o quê. Como eu gostava muito de um sermão, o da quarta-feira de cinzas, fiz uma leitura dele com alguns alunos e foi horrível! As pessoas não entenderam nada e, no final, ficaram me consolando.

CT - Você ficou mesmo deprimido?

MC - Eu? Pelo contrário: saí eufórico!

CT - Por quê?

MC - Porque entendi que precisava montar aquilo inteiro, desde que tivesse um grande ator. E logo me ocorreu chamar o Pepê (Pedro Paulo Rangel), mas relutei porque não tinha grana. Mas tive a sorte do Fábio Ferreira (Diretor do RioArte) me ligar oferecendo uma pequena verba para algum projeto. Liguei para o Pepê, que, por milagre, inteligência e sorte, aceitou. Mas o projeto só saiu mesmo porque o Pepê, ao tomar conhecimento do dinheiro disponível, cedeu a parte dele para a produção.

CT - E Bugiaria?

MC - É um projeto mais antigo do que O sermão.... Pensava no João Coimbra antes do Padre Antônio Vieira. Havia comprado tudo sobre ele, cogitado em escrever uma peça, mas não era dramaturgo. Tempos depois fiz um projeto para o programa de bolsas do RioArte e como ele foi aprovado, comecei a estudar feito um louco. Para que vocês tenham uma idéia: li todo o processo que está nos anais da Biblioteca Nacional, além de fazer um roteiro com trechos do processo da Inquisição, misturado com outros sobre Jean de Léry. Quando tudo ficou pronto, veio a pergunta de sempre: como montar? Então eu soube que poderia conseguir um patrocínio pela Lei do SS e cumpri aquela gincana ensandecida de forma exemplar. Assim, eu e a Monica (a atriz Monica Biel, esposa de Moacir) conseguimos o dinheiro para fazer Bugiaria.

CT - Fale um pouco sobre o processo de Viver.

MC - Foi um processo longuíssimo. Adoro Machado de Assis e Viver é um conto que tinha muita vontade de encenar. Então, entre outras coisas, percorri muito as ruas do Rio, por onde transitaram alguns dos seus personagens. E também uma infinidade de sebos do Centro. Essas duas atividades me permitiram estabelecer uma relação muito forte com a cidade.

CT - Agora, vamos ficar no presente: você está preparando uma nova montagem do Fausto. Como você explica essa paixão por este texto de Goethe?

MC - É um material extraordinário, muito pertinente. Reflete uma espécie de implicância minha no sentido de levar as pessoas a entenderem que se trata de algo legal, bonito, que nos diz respeito. É um pouco como o Sermão no sentido da anti-teatralidade. Tem a ver com o homem, com morrer, com a relação com a divindade, com a natureza.

CT - Você é considerado um excelente diretor de atores. Qual a sua opinião sobre o intérprete brasileiro?

MC - Os atores brasileiros são ótimos, mas a maioria ainda necessita trabalhar muito, assim como adquirir uma certa consciência social, inerente a essa atividade. No Brasil, o ator precisa aparecer na TV para ser considerado ator. E isso é muito perigoso, já que qualquer pessoa pode entrar na TV, desde que atenda aos interesses dessa indústria.

CT - Quando o ator é bom, isso fica evidente logo no início da carreira?

MC - Nem sempre. Às vezes, um ator extraordinário é ruim em começo de carreira porque não sabe desenvolver a potência que há dentro dele. Vai melhorando à medida que adquire domínio vocal, corporal e maior compreensão intelectual. Na realidade, esse ator que não desponta logo no início talvez tenha mais chance de evoluir do que outro que conta com um talento inato evidente.

CT - E como está a cena carioca?

MC - A atividade teatral no Rio não é tão intensa quanto em outros centros mundiais. Talvez falte ao nosso teatro se fazer mais importante na vida das pessoas. Para mim, ele sempre foi um pouco aquilo que é, já que comecei na década de 80. Nós somos uma cultura colonizada. Ou seja: se por um lado algumas produções nossas são extraordinárias, não devendo nada a ninguém em termos de inteligência, por outro sentimos uma certa necessidade de um aval de fora para sermos valorizados aqui. E isto praticamente não acontece, até porque existe a questão da língua. Já com o cinema é diferente, porque consegue circular mais. Imagina se Cidade de Deus tivesse sido indicado ao Oscar: certamente o público aumentaria. Se ganhasse, então...

CT - Como você se vê pessoal e profissionalmente?

MC - Sempre trabalhei e estudei muito, sempre fui muito interessado. Mas também tive sorte nos encontros que travei ao longo do tempo. Sorte de ter entrado na Martins Pena, porque eu gosto de muita coisa e poderia ter seguido por outro caminho; sorte de ter encontrado o Renato Icarahy, que me levou para o Tapa, um grupo do qual me sentia parte integrante; sorte de ter conhecido Rogério Cardoso e aprendido muito com ele; e sorte também de meu caminho ter se cruzado com os de Pedro Paulo Rangel e Monica Biel. Além disso, lutei pela criação de uma estrutura de trabalho profissional, independente da televisão, que me permitisse viver dignamente como cidadão. Muitas pessoas são fascinadas pelo glamour da TV e devem ir em frente – quantos se inscreveram para entrar no Big Brother?

CT - Existe alguma receita para se tornar um diretor de prestígio?

MC - Que eu saiba, nenhuma. Mas eu acho fundamental viajar, conhecer o mundo e não permanecer auto-centrado. Entender o que significa o Rio de Janeiro, o Brasil, a América Latina, o mundo. Fazemos algo que tem dimensão universal, mas não difusão universal. Fausto é um jovem impetuoso que, no começo da peça, revela sua insatisfação com o saber e passa 15 anos estudando com ânsia e garra. Seria maravilhoso se os atores brasileiros, que são ótimos, tivessem a mesma disposição para o estudo e a superação.

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Principais trabalhos de DIREÇÃO

Esperando Godot (Samuel Beckett, 1991)
Fausto (Goethe, 1993)
Sermão da quarta-feira de cinzas (Padre Antônio Vieira, 1994)
Roberto Zucco (Bernard-Marie Koltès, 1996)
Don Juan (Molière, 1997)
A história de Catarina (Ana Barroso, Monica Biel e Thereza Falcão, infantil, 1998)
As desgraças de uma criança (Martins Pena, 1999)
O altar do incenso (Wilson Sayão, 1999)
Bugiaria (dramaturgia de Moacir Chaves, 1999-2000)
Lazanha e ravioli in casa (Ana Barroso, Monica Biel e Thereza Falcão, infantil, 2000)
A resistível ascensão de Arturo Ui (Bertolt Brecht, 2001)
Viver (Machado de Assis, 2001)
Inutilezas (Manoel de Barros, 2002)
Por mares nunca dantes (Geraldo Carneiro, 2002)
Fausto (Goethe, 2003)

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Afinidades, fontes e retalhos

entrevista com Andrea Beltrão



Vamos supor que você seja sócio do Flamengo, freqüente o clube na parte da manhã e vez por outra se posicione à beira da piscina olímpica, onde, desde muito cedo, nadadores deslizam freneticamente pelas cristalinas águas. Se você tem esse hábito, é certo que já tenha tido sua atenção voltada para uma moça esguia que, após cumprir exaustiva rotina aquática, abandona a piscina com infinita graça, sempre brindada com olhares curiosos. E se você teve a sensação de que a conhecia, essa é uma hipótese muito provável. Afinal, a nadadora em questão está sempre presente na TV, no cinema e no teatro. Trata-se de Andrea Beltrão, uma das maiores atrizes do país, e que agora você vai conhecer um pouco mais.
Em entrevista concedida a Daniel Schenker, Bernardo Jablonski e Lionel Fischer, publicada nos Cadernos de Teatro nº 169, a maravilhosa intérprete de A prova – seu último sucesso no teatro – fala de sua carreira, processo de trabalho e planos para o futuro, entre outros temas.

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Cadernos de Teatro - Quando você começou a fazer teatro?

Andrea Beltrão - Participei de minha primeira peça ainda na escola, aos 12 anos. Foi O boi e o burro no caminho de Belém. Daí, eu fui fazer Tablado, onde tive, como professores, Aracy Mourthé, Damião e Thaís Baloni. Interpretei um sapo em João e Maria e estive também em Quem pariu Mateus Rimbali? e Hoje é dia de rock.

CT - Você nasceu no Rio de Janeiro? É filha única?

AB - Sou carioca. Fui filha única, deixei de ser e voltei a ser porque meu irmão faleceu.

CT - E que atividades você desenvolvia antes de se tornar atriz?

AB - Jogava vôlei, nadava. Queria ser atleta, ir para Moscou...

CT - Igual às Três irmãs...(peça de Tchecov em que três irmãs, que moram na província, sonham em ir para Moscou)

AB - Exatamente.

CT - E por que você interrompeu suas atividades esportivas?

AB - Na verdade, eu até hoje ainda nado.

CT - E quanto ao vôlei?

AB - O vôlei eu parei. Eu jogava no Flamengo e tive um problema no joelho. Aí fiquei meio vagabunda e a minha família acabou me botando no Tablado.

CT - Então não foi uma opção tua.

AB - Não foi mesmo. Fui a contragosto, porque era muito tímida.

CT - E como foi o teu início no Tablado?

AB - Eu me sentia meio deslocada. A maior parte da turma era do Andrews e eu ia de chinelo e calça rasgada. Me viam como uma garota estranha. Mas a Aracy foi me puxando e eu comecei a me interessar mesmo a partir de O auto da compadecida, em que fazia o João Grilo. Me lembro que você, Bernardo, e a Silvia Fucs foram falar comigo no final da peça, eu estava muito nervosa naquele dia. Contei para a minha mãe que os dois disseram que eu era ótima e me matriculei no ano seguinte. Mas não na turma do Bernardo, sempre lotada. (Neste momento, Bernardo Jablonski ficou rubro de modéstia)

CT - Quanto tempo você ficou no Tablado? E depois, foi para onde?

AB - Fiquei no Tablado durante uns quatro anos. Aí conheci o grupo Manhas e Manias, formado por José Lavigne, Carina Cooper, Marcio Trigo, Chico Diaz, Dora Pellegrino, Vicente Barcellos e Mario Dias Costa. Era um momento em que a Dora e o Vicente iam sair e estavam precisando de três garotas. Então, eu e Debora Bloch acabamos entrando no infantil Brincando com o fogo. Permaneci lá por uns cinco anos. Mas não posso esquecer também que houve um grupo paralelo ao Tablado, o Arco da Velha, em que eu e Fabrizia Pinto montávamos Flicts em lugares bem pobres. Bom, mas acabei saindo do Manhas porque eles foram fazer uma temporada em São Paulo e eu estava cursando a Faculdade de Teatro da Uni-Rio. Mas acabei trancando para fazer o filme Garota dourada, em Florianópolis.

CT - Quais os trabalhos que você considera mais importantes em sua carreira?

AB - Cada um teve a sua importância. Foi em O auto da compadecida que senti uma onda especial. Exercitei o teatro de rua com as peças do Arco da Velha e do Manhas e Manias. A tempestade foi o meu primeiro Shakespeare. E continuei procurando manter o espírito de grupo nos trabalhos seguintes. Em O amigo da onça éramos um grupo, apesar de não termos um nome.

CT - Você prefere trabalhar em grupo?

AB - Sempre, porque acho bacana ter uma família artística com afinidades, cada um com uma chance diferente a cada novo trabalho. O chato é que as peças terminam e as pessoas somem e você acaba ficando melancólico.

CT - Em grupo acontecem situações complicadas em termos de distribuição de papéis, uma obrigação em ser absolutamente democrático quando há pessoas que se destacam naturalmente...

AB - Estou lendo a nova biografia da Cacilda Becker e lá está escrito que, num determinado momento, ela é acusada de querer sempre fazer o papel principal, e ela responde que tem que ser assim porque ela é a melhor atriz. Acho que eu não faria isto; posso lutar pelo papel mas não no sentido do “eu sou a melhor”. Até porque há uma diferença fundamental: enquanto que no passado Cacilda parecia estar muito à frente das demais, na minha geração existem várias excelentes atrizes, como a Fernandinha Torres e a Débora Bloch.

CT - Você já tem algum projeto teatral agendado?

AB - Bem, o meu amigo e parceiro Daniel Dantas vai fazer Macbeth, algo que me interessa muito, mas estou envolvida com a A prova. Nós vamos fazer uma temporada em São Paulo.

CT - Retomando a cronologia da sua carreira. Estávamos em O amigo da onça.

AB - Tinha acabado Armação ilimitada e eu havia passado por um problema sério com drogas, tanto que fiquei durante cinco anos nos Narcóticos Anônimos.

CT - Como começou o seu contato com as drogas?

AB - Por uma curiosidade idiota de jovem, prepotência, ignorância em relação ao perigo e devido também às minhas confusões habituais. Vi que tinha que parar quando perdi o controle e percebi que as pessoas que se drogavam comigo estavam preocupadas. Fazia O amigo da onça e Sergio Mamberti convidou uma pessoa do NA que foi conversar comigo. Mas estava fazendo análise e achava que conseguiria parar. Não deu. Quando me dei conta de que poderia ser internada fui para o NA, mantendo também a análise.

CT - Depois você foi fazer A estrela do lar, não?

AB - Na época de A estrela...estava meio desesperada pela falta de trabalho, achava que podia estar estigmatizada. Marieta Severo soube que eu estava bem e me chamou. Li a peça, vi que o papel era pequeno, mas queria trabalhar e foi uma experiência ótima. Estive muito bem acompanhada e consegui aparecer numa medida confortável para mim. Houve a morte do meu irmão, que faleceu aos 19 anos de aneurisma cerebral. Aí embarquei na TV direto e abandonei um pouco o teatro. Quando voltei, fui produzir Senhorita Julia em São Paulo, com o José Mayer. Conseguimos fazer uma temporada de cinco meses, acho que muito devido ao fato de nós dois contarmos naquele momento com a visibilidade da TV. Mas a montagem não era boa. Mas enfim, estava exercitando meu primeiro papel dramático.

CT - E depois?

AB - Procurei Marieta e fomos assistir A ver estrelas, do João Falcão. Aí pensamos que gostaríamos de fazer um espetáculo daqueles, só que para adultos. Procuramos o João e ele escreveu A dona da história.

CT - E a Marieta foi indicada como melhor atriz e você como atriz coadjuvante. Por que, se ambas dividiam a cena?

AB - É, mas entendo perfeitamente. Nós produzimos o espetáculo, o que nos dava um peso igual, mas historicamente não. E ela me deu a oportunidade de estar ao lado dela, abriu o palco meio a meio em fotos, cartazes, entrevistas. Terminamos porque engravidei (Andréa é mãe de Francisco, de 7 anos, Rosa, de 5, e José, de 2).

CT - E quando surgiu a oportunidade de protagonizar?

AB - Só em A prova. Em A memória da água, Felipe Hirsch me convidou e eu achava que era um diretor procurando uma atriz talentosa com quem nunca tinha trabalhado. Quando o produtor me chamou para fazer A prova, eu ainda dei uma esnobada. Mas ele, que era o produtor, queria, e o Aderbal (Freire-Filho), diretor, também. Agora, eu queria deixar claro que até hoje não sou super convidada. Eu é que vou atrás do que me interessa. Até porque as pessoas tendem a ficar esperando pelo grande papel. E se eu tenho a fantasia de que uma peça vai acabar e ninguém vai me chamar, então é hora de fazer uma peça barata num teatro de bolso.

CT - Parece que a Marieta Severo precisou correr 70 empresas até conseguir patrocínio para A dona da história. Ou seja: a cada novo projeto a pessoa tem que estar preparada para praticamente recomeçar do zero...

AB - Eu estou preparada para fazer tudo de novo. Eu não tenho nenhuma ilusão em relação à temporada de A prova, em São Paulo. Sei que estamos indo mostrar um excelente trabalho. Mas sugeriram três meses e eu pedi que fossem dois. Não é que só goste de me apresentar para casa lotada, mas quando abrimos o pano e há menos de 180 pessoas na platéia eu fico agoniada pelo lado da produção.

CT - Fazer teatro realmente ficou muito caro?

AB - Caríssimo. Por exemplo: precisamos de um dinheiro enorme para investir em divulgação. O material gráfico tem que ser muito bom. Anúncio não sai por menos de
R$ 10 mil por mês. E acho que está muito difícil romper uma barreira com a imprensa. Temos sempre que ter um gancho. Hoje em dia nós estreamos um espetáculo e podemos perder uma matéria de capa para uma taça de vinho de Petrópolis. Na verdade, o mundo da informação está muito banalizado. Não interessa falar só do seu trabalho, você tem que parecer inteligente, espirituosa e bonita.

CT - Para que lado você sente que a sua carreira pendeu mais?

AB - Para o lado do humor, da comediante. Em teatro a experiência mais amarga foi em Senhorita Julia, mas acabou sendo maravilhoso porque aprendi muito.

CT - Quais são os seus pontos fracos e fortes como intérprete?

AB - Meu ponto fraco sou eu todinha, o conjunto da obra (risos). Agora, uma coisa boa em mim é o fato de conseguir ver o lado triste das personagens sem pieguice, a não ser que se trate de uma personagem piegas mesmo. Com já vivi muitas coisas tristes, perdi o medo da tristeza. Sei que num momento de tristeza total, algo acontece.

CT - A sua carreira passou por uma transformação evidente: do humor para o mergulho em atmosferas mais densas. Isso tem alguma coisa a ver com o mundo atual, que positivamente não anda nada engraçado?

AB - Não pensei nisto, as coisas foram acontecendo. Acho que no meu caso é uma questão de maturidade, de ter trabalhado muito, de ser boa aluna.

CT - Como é que você inicia um ensaio? Normalmente já sabe a direção que vai seguir ou é sempre um salto no escuro?

AB - É sempre um salto no escuro. Aliás, adoro abismos. Quando começo a trabalhar, fico estranha, tensa, não quero conversar, não quero que me desconcentrem. Fico ansiosa para ir para o ensaio, nervosa quando demora para começar, achando que não vai dar tempo. Fico preocupada se as pessoas estão sendo bem tratadas. Se uso o meu poder em algum momento, é aí. No decorrer do trabalho, meu objetivo é pegar um papel em branco e fazer um desenho novo, apesar de se tratar de mim, da mesma pessoa. Desconfio do que é muito natural para mim.

CT - Disseque um pouco mais seu processo de trabalho.

AB - Em A prova, por exemplo, fizemos umas duas semanas de leitura de mesa examinando a tradução de José Almino. O Aderbal já tinha na cabeça que este seria um trabalho essencial. Nada de pirotecnias e marcas engenhosas. Contamos a história, até porque o texto é muito rico e merece ser falado com calma. Sobre a personagem, Aderbal me disse: é um corpo largado numa mente brilhante. Assisti a Corra, Lola, corra e percebi que a música do filme me daria a velocidade cerebral de que precisava. Fui ver K-pax, que é péssimo, mas achava que o comportamento do personagem poderia me dar alguma coisa. Aderbal me falou para ler Humilhados e ofendidos, de Dostoievski, onde há uma menina de 12 anos, uma heroína muito triste. A criação, então, é uma colcha de retalhos e eu preciso de fontes.

CT - Quando você sentiu que o trabalho daria certo?

AB - Aderbal é famoso por falar muito e eu apressava – apesar dele só falar coisas maravilhosas. Aí eu comprei um caderno e comecei a escrever tudo o que ele falava, tentando, depois, aplicar no texto. Ensaiava com os dados que ele tinha me dado no dia anterior. Em determinado momento, eu disse: “Aderbal, você não está me falando nada sobre as minhas cenas”. E ele respondeu: “Você está apontando para vários lados. Eu gosto de todos, mas não sei por qual me decidir”.

CT - Qual o conselho que você daria para uma atriz iniciante?

AB - Para seguir sua verdadeira intenção, seu objetivo. Adoro fazer sucesso, mas não cedo a determinadas concessões, como a permanência na mídia, e não gosto de falar de nada que não seja o meu trabalho. E é esta postura que acaba gerando uma solidez, uma confiança. Adoro a chacrinha da TV, mas sei que meu lugar é no teatro. E, hoje em dia, se você não tem um apartamento, um carro e uma casa de campo aos 25 anos, significa que está atrasado. Esta cobrança não existia no passado e é ela que distancia o artista da razão principal que o levou àquilo: a possibilidade de mexer em buracos difíceis.

CT - O que você gostou mais de fazer na televisão e no cinema?

AB - Na televisão, Armação ilimitada, porque foi onde aprendi a fazer TV e cinema. Guel Arraes, com quem era casada na época, filmava com uma câmera só e eu acompanhava a edição dos programas e entendia tecnicamente. No cinema gostei de Pequeno dicionário amoroso e A partilha.

CT - O humor exige mais domínio técnico do que o drama?

AB - Tanto o drama quanto o humor possuem uma matemática de intervenção. No humor o ator conta com uma resposta mais imediata através das gargalhadas, ao passo que no drama a resposta é mais sutil. A comédia tem uma aparente facilidade que, na verdade, é uma grande dificuldade.

CT - Você se considera engraçada?

AB - Sim, mas tenho tara em observar as pessoas. Adoro pesquisar na rua, prestar atenção nos outros, ver manifestações emocionais e sociais e sublinhar isto, que vem da vida cotidiana.


Principais trabalhos

Teatro

A tempestade (William Shakespeare, direção de Paulo Reis)
O amigo da onça (Chico Caruso, direção de Paulo Betti)
A estrela do lar (Mauro Rasi, direção do autor)
A dona da história (João Falcão, direção do autor)
A memória da água (Shelagh Stephenson, direção de Felipe Hirsh)
A prova (David Auburn, direção de Aderbal Freire-Filho)

Cinema

Garganta (Rodolfo Brandão)
Minas Texas (Carlos Alberto Prates)
A cor do seu destino (Jorge Durán)
Vai trabalhar, vagabundo II (Hugo Carvana)
Pequeno dicionário amoroso (Sandra Werneck)
A partilha (Daniel Filho)

Televisão

Armação ilimitada (seriado mensal. Direção de Guel Arraes)
Corpo a corpo (novela de Gilberto Braga, direção de Dênis Carvalho)
Rainha da sucata (novela de Sílvio de Abreu, direção de Jorge Fernando)
Radical chic (programa semanal de Miguel Paiva, direção de Marcos Paulo)
Mulheres de areia (novela de Yvani Ribeiro, Direção de Wolf Maia)
Madona de cedro (novela de Antônio Callado, direção de Tisuka Yamasaki)

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Atores de Laura:
grupo festeja 10º aniversário


Quando Daniel Herz e Susanna Kruger começaram a dar aulas para adolescentes na Casa de Cultura Laura Alvim, em 1988, talvez pudessem supor que o namoro de um ano duraria outro tanto, ou quem sabe ficariam juntos por mais tempo – acabaram juntando os trapinhos durante 13 anos, daí resultando duas gracinhas que atendem por Daniel (8 anos) e Débora (4). Mas dificilmente imaginariam que os cursos se converteriam no embrião de um dos grupos teatrais cariocas mais marcantes dos anos 90, os Atores de Laura, que em 2002 comemora 10 anos de existência.
Com 10 espetáculos encenados, 13 prêmios (33 indicações), dois livros publicados e muitos projetos – o próximo talvez seja a montagem simultânea de duas obras do fabuloso bardo, Sonho de uma noite de verão e Muito barulho por nada – , o grupo Atores de Laura levou à cena este ano uma excelente versão de As artimanhas de Scapino, de Molière (na tradução de Carlos Drummond de Andrade, que publicamos nesta edição, o título escolhido pelo poeta foi Malandragens de Escapino), que recebeu três indicações para o Prêmio Shell de Teatro: direção (Daniel), ator (Charles Fricks) e figurino (Heloísa Frederico).
Em entrevista exclusiva aos Cadernos de Teatro, Daniel e Susanna recordam o início de suas carreiras, apontam suas principais influências, explicitam os objetivos do grupo e revelam planos para o futuro, entre outros temas.

* * *

Cadernos de Teatro - O que levou vocês ao teatro?

Daniel - Na adolescência, eu tive uma grande decepção religiosa, que determinou uma crise existencial que tinha como ponto crucial a sensação de que a vida era um absurdo, não fazia o menor sentido. Então eu imaginei que aquela sensação de vazio talvez pudesse ser preenchida com o teatro. Soube que o Clovis Levy estava dando um curso na Divina Providência e me inscrevi.

Susanna - Meus pais haviam sido cantores de ópera e lá em casa a arte era sempre um assunto presente. Durante a infância, tive muitas dúvidas entre ser cantora, bailarina ou pianista. Mas acabei achando que, no teatro, poderia ser as três coisas. Então, aos 15 anos, entrei para o Tablado, e fazia aula cinco dias por semana.

CT - Com quem você estudou no Tablado?

Susanna - Com a Maria Clara Machado, Louise Cardoso e Bernardo Jablonski. E mais adiante entrei no grupo Tapa. Quando houve uma cisão nele e o diretor Eduardo Tolentino foi para São Paulo com alguns atores, comecei a trabalhar com Eduardo Wottzik. Essa parceria durou seis anos e me permitiu participar de um projeto maravilhoso: o Festival de Teatro Brasileiro.

CT - Quando vocês começaram a dar aulas, elas obedeciam a algum objetivo específico?
(Nesse momento, os dois começam a falar ao mesmo tempo, o que tornou deliciosamente árdua a tarefa de converter em diálogo o que parecia ser um monólgo bem ensaiado)

Daniel - O objetivo dos cursos era e continua sendo o mesmo, que inclusive norteou o trabalho do grupo, fundado mais adiante: orientar o trabalho no sentido de valorizar o ator.

Susanna - Fazer teatro a partir do ator, que no palco encontraria seu verdadeiro espaço.

Daniel - E também desvincular a atuação do real.

Susanna - Nós sempre acreditamos que a realidade deve ser distorcida no palco, jamais reproduzida.

Daniel - Afora isso, os cursos sempre nos ajudaram a melhorar como atores, pois podemos observar de fora o resultado daquilo que propomos aos alunos e a nós mesmos.

CT - A maioria dos estudiosos não hesita em afirmar que as principais realizações do teatro brasileiro sempre foram fruto do trabalho de grupos e companhias. Vocês concordam?

Daniel - Sem dúvida. Ter um grupo significa a possibilidade de você ser dono da sua própria história.

Susanna - Além disso, para se realizar alguma coisa significativa no teatro é preciso que todos sintam total confiança uns nos outros. E isso só é possível num grupo.

Daniel - E ter um grupo também significa que você só vai fazer o que te parece essencial.

CT - A Susanna usou a expressão “total confiança” como sendo uma premissa básica do trabalho em grupo. Como se chega a ela?

Susanna - É claro que o tempo e a convivência vão aos poucos estreitando os laços entre todos, e a confiança mútua vai se solidificando cada vez mais. Mas nós tivemos absoluta certeza de que nossos projetos só poderiam ser bem sucedidos se conseguíssemos fazer da ética um dos pilares da companhia.

Daniel - E isso implica não apenas em ser totalmente verdadeiro em todos os momentos, mas também no respeito absoluto pelo outro. E esse respeito inclui disciplina, rigoroso cumprimento de tudo que foi combinado, assim como um cuidado muito grande
com o espaço em que trabalhamos.

CT - Como assim?

Daniel - Todos são responsáveis pela limpeza do palco, platéia e camarins. Seria risível pretender chegar a um resultado interessante lidando de forma desleixada com o espaço em que trabalhamos diariamente.

CT - À exceção de As artimanhas de Scapino, que o Daniel dirigiu sozinho, todos os demais espetáculos do grupo levam a assinatura de vocês dois. Como é dirigir em dupla? Há alguma divisão prévia de tarefas?

Susanna - Não, não há uma divisão rígida de funções. Nós acreditamos que o equilíbrio decorre da mescla da força feminina e masculina. Nossos olhares sobre a cena se complementam, com cada um segurando os “surtos” do outro.

CT - Qual de vocês costuma surtar mais? (Risos)

Daniel - Acho que é meio a meio...

CT - Dizem que vocês são um tanto obsessivos quando ensaiam. Isso é verdade?

Daniel - Sem dúvida. Nós acreditamos piamente na eficácia de se repetir incontáveis vezes uma cena. Só assim se chega a um resultado interessante.

CT - E qual é a duração média do período de ensaios?

Susanna - Em torno de seis meses.

CT - Por que vocês resolveram montar As artimanhas de Scapino?

Daniel - Nós estávamos realizando estudos sobre a Commedia d’ell Arte e o texto de Molière tem muito do gênero, inclusive personagens equivalentes a alguns da Commedia.

Susanna - A peça também permitia um trabalho que extrapolasse o cotidiano, que é o que buscamos sempre.

CT - Mudando um pouco o nosso foco: vocês já estão separados há dois anos e mesmo assim continuam a trabalhar juntos, o que não deixa de ser surpreendente. Foi muito difícil conseguir isso?

Daniel - É claro que toda separação implica em sofrimento. Mas assim que nos juntamos, para nós ficou claro que estávamos a fim de criar juntos não apenas uma trajetória teatral, mas também de vida. E se não somos mais marido e mulher, isso não significa que nossa parceria artística tenha que ser desfeita.

Susanna - Não haveria nenhuma razão para isso acontecer. Na próxima montagem do grupo talvez o Daniel dirija e eu atue, ou vice-versa. O importante é que continuamos a acreditar na força conjunta de nosso trabalho.

CT - Já existe algum espetáculo previsto?

Daniel - Na verdade, dois. Estamos pensando seriamente em fazer ao mesmo tempo Sonhos de uma noite de verão e Muito barulho por nada, de Shakespeare. E há também a possibilidade de fazermos alguma remontagem.

CT - E enquanto isso não fica decidido, vocês estão desenvolvendo alguma atividade paralela à exibição de Scapino?

Susanna - Bem, como você sabe, nós administramos há dois anos o Teatro Miguel Falabella. Então, aproveitando que temos à disposição este espaço maravilhoso, estamos
promovendo, entre outras atividades, encontros quinzenais às segundas-feiras com profissionais ligados às artes cênicas, que dão palestras para o grupo. Recentemente tivemos um encontro maravilhoso com Marlene Soares dos Santos, uma especialista em Shakespeare.

CT - Para terminar: vocês destacariam alguém que tenha ajudado ou influenciado vocês?

Daniel - Nós temos uma gratidão eterna para com o Rubens Corrêa, o Ivan de Albuquerque (já falecidos) e a Leyla Ribeiro, fundadores do Teatro Ipanema. Nós freqüentamos muito a casa deles e eles sempre nos deram a maior força.

Susanna - Tanto é assim que nosso primeiro espetáculo, A entrevista, estreou no Ipanema. Rubens, Ivan e Leyla são pessoas fundamentais na nossa história.

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Esta entrevista foi concedida a Lionel Fischer em agosto de 2002 e publicada nos Cadernos de Teatro nº 168


Os espetáculos

A entrevista (92/93) - texto de Bruno Levinson e Daniel Herz. Depois de seis meses em cartaz no Teatro Ipanema, no Rio, o espetáculo foi exibido em São Paulo e em Brasília.

Cartão de embarque (94) - texto de Levinson e Herz. Temporadas no Rio e em São Paulo.

Sonhos de uma noite de inverno ou Julliest’s birthday (95) - o grupo e atores convidados apresentaram 50 cenas de comédias, tragédias e dramas históricos de Shakespeare por todas as instalações da Casa de Cultura Laura Alvim. Espetáculo itinerante, teve apenas uma representação, encerrando o Forum Shakespeare no Rio.

Romeu e Isolda (95/96/97) - criação coletiva da companhia. O espetáculo representou o Brasil na Biennale Théâtre Jeunes Publics (Lyon, França, junho de 97).

Decote (96/97) - criação coletiva inspirada na obra de Nélson Rodrigues. Após três meses em cartaz no Rio, participou do VI Festival de Teatro de Rezende (RJ) e também da II Mostra SESI de Artes Cênicas, em São Paulo, excursionando pelo interior do estado a convite do SESC.

O julgamento (98) - adaptação de Herz do texto A visita da velha senhora, de Friedrich Dürrenmatt. Temporada de três meses na Casa de Cultura Laura Alvim, no Rio.

A casa bem assombrada (98) - texto de Susanna Kruger, primeiro espetáculo do grupo dirigido ao público infantil. Cumpriu temporada no Rio e representou o Brasil no Festival Internacional de Teatro para a Infância, na Turquia.

O auto da Índia ou Arabutã (99) - criação coletiva, a montagem se apresentou no Rio e em São Paulo.

A flauta mágica (99) - livre adaptação da ópera de Mozart feita por Antônio Guimarães e Celso Lemos. Cumpriu dois meses de temporada no Teatro Carlos Gomes (RJ).

As artimanhas de Scapino (2002) - texto de Molière. Temporada de quatro meses no Teatro Miguel Falabella, prosseguindo carreira no Teatro Laura Alvim.

Prêmios e indicações

Cartão de embarque - indicação nas categorias texto e direção no Prêmio Coca-Cola de Teatro Jovem.

Romeu e Isolda - Prêmio Shell de iluminação (Aurélio de Simoni). Cinco indicações para o Prêmio Coca-Cola de Teatro Jovem, conquistando direção (Daniel Herz e Susanna Kruger) e cinco indicações para o Prêmio Cantão de Teatro Adolescente, ganhando nas categorias espetáculo e atriz (Ana Paula Secco).

Decote - prêmios nas categorias texto, direção e espetáculo no VI Festival de Teatro de Rezende (RJ). A montagem recebeu as mesmas premiações no Prêmio Coca-Cola de Teatro Jovem (96).

A flauta mágica - indicação para o Prêmio Coca-Cola de Teatro Jovem nas categorias ator (Daniel Herz), direção (Herz e Susanna Kruger), figurinos (Ronald Teixeira), iluminação (Aurélio de Simoni), revelação (Helena Stweart e Paulo Hamilton), autor (Celso Lemos e Antônio Guimarães), produção e espetáculo, vencendo nas categorias revelação, produção, iluminação e espetáculo.

As artimanhas de Scapino - indicação para o Prêmio Shell (2002) nas categorias ator (Charles Fricks), diretor (Daniel Herz) e figurinos (Heloísa Frederico).


Publicações e eventos

A entrevista e Cartão de embarque - reunidos num volume, os dois textos foram publicados pela editora Relume-Dumará (94).

Romeu e Isolda/ Decote - o mesmo ocorreu com as duas peças, publicadas pela Garamond Editora (97)

Prêmio Coca-Cola de Teatro Jovem - apresentação e criação da festa de entrega do prêmio no Rio e em São Paulo (96/97)

Buscas, rupturas e transgressões:

Processos cênicos de companhias de repertório
- patrocinado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, o projeto reuniu grupos representativos do novo teatro brasileiro, no Centro Cultural São Paulo (97). Neste evento, os Atores de Laura compareceram com os espetáculos Romeu e Isolda e Decote.

Ciclo de leituras de Brecht - realizado no Teatro Dulcina, no Rio, em 98. O grupo leu
O círculo de giz caucasiano.

Melodramas do picadeiro - ciclo de leituras dramatizadas de peças circences dos anos 40/50. O grupo leu O mundo não me quis, de A.Peres Filho, no Teatro Gonzaguinha (Fundação Calouste Gulbenkian), em 98. No ano seguinte, participou do mesmo evento interpretando As rosas de nossa senhora, de Celestino Silva.

Festival de Curitiba - a companhia apresentou A flauta mágica, em 2000.

Teatro Miguel Falabella - o grupo assume a direção artística e administrativa desta casa de espetáculo (2000).

Minissérie - a convite da TV Globo, o grupo participou da minissérie sobre a vida de Chiquinha Gonzaga, atuando como uma companhia da época que contava teatralmente a história da maestrina.

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Ao encontro do Cavalinho Azul:
UM ENSAIO

Pedro M. Kosovski

“Nessa admiração que ultrapassa a passividade das atitudes contemplativas, parece que a alegria de ler é o reflexo da alegria de escrever, como se o leitor fosse o fantasma do escritor”
Gaston Bachelard

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O presente artigo é resultado do Trabalho de Conclusão do Curso de Psicologia da PUC-RJ no ano de 2005, no qual partimos das imagens e personagens apresentados na peça O Cavalinho Azul, de Maria Clara Machado, para uma análise simbólica orientada pelo referencial teórico da psicologia analítica; conceitos como criatividade, arquétipo e processo de individuação sustentam o campo de nossa discussão. (Pedro M. Kosovski)

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Apresentação
O Velho João de Deus conta a história de Vicente – um menino que diz ter um cavalo azul, apesar de todos afirmarem ser um pangaré. Para ter o que comer, o pai decide vender o pangaré. Inicia-se, então, a aventura de Vicente à procura do cavalo pelo Brasil afora, onde cruzará com os mais distintos personagens, até o encontro com cavalo azul real.
Em nosso estudo destacamos um olhar sobre a trajetória. A atração provocada pelo o cavalo azul movimenta o menino em sua direção; o encontro é resultado de uma trajetória. O símbolo do cavalo azul estende-se por todo caminho, nas experiências e relações estabelecidas anteriores ao próprio encontro, em um processo de conscientização e revelação de uma personalidade, que culminará na sua realização.

O velho conta a história do menino
Na maior parte da peça o cavalo azul é uma presença invisível, uma espécie de prolongamento imaginário de Vicente. Desse modo, um terceiro personagem é imprescindível para estrutura central da peça – o narrador João de Deus. Um velho conta a história de um menino. Nessa relação de oposição temos um dinamismo complementar – onde um esbanja vitalidade, o outro prudência e sabedoria; onde um tem ingenuidade, o outro ironia; enquanto um age, o outro contempla, e assim por diante.
Consideramos o menino como aquele que contém, em sua fragilidade e pequeneza, o potencial de crescimento para iniciar sua ascensão. O velho, por sua vez, é aquele que já ascendeu ao máximo sua curva de potencialidade e começa a descer. Velho e menino estão mais próximos do que aparentam, encontram-se na mesma linha, cada qual em seu lado da parábola compartilhando uma espera semelhante – duas mortes, uma física e outra simbólica, da infância para a vida adulta. Embora estejam em pontos complementares diferenciam-se, pois o velho guarda em si a consciência de sua trajetória, e o menino, alheio a seu futuro, é puro devir.

O pangaré – contradições da realidade
A realidade seca e esturricada, a todo instante, choca-se contra a realidade subjetiva do menino dando provas de sua crueldade. Qual o sentido de um pangaré velho e fraco? A vaca dá leite, a galinha dá ovos, e se até a carroça já foi vendida, “Este cavalo só serve para comer mais dinheiro.” A saída é vender o pangaré, e em troca conseguir uns trocados para o menino ter o que comer. Mas agora que a nutrição está garantida, o menino não quer mais comer. Uma nova ameaça impõe-se diante de sua existência: a desnutrição afetiva.
A presença do pangaré é a salvação. O corpo velho e sujo representa o suporte material necessário para que as projeções imaginárias de Vicente ganhem forma. A força do pangaré, como base de realidade, possibilita um cavalinho azul vivo, e através da energia contida no símbolo redimensionam-se todos os objetos – passamos de uma paisagem condicionada e morta, a uma paisagem criativa composta por campinas verdes, rios de água branca e enormes circos, pois só assim a existência é possível!
O cavalinho azul é, acima de tudo, a possibilidade de um conhecimento real, onde o livro de estudo refaz-se em experiência imediata sensibilizando o homem para as origens. O menino descreve sua experiência: “Depois, eu monto em você e saímos atrás das capitanias hereditárias...Vai ser ótimo!”. O símbolo do cavalo traz consigo a renovação; não se trata, pois, de uma negação da realidade, mas de uma re-criação que possibilite a organização da exterioridade de um modo mais favorável à sua subjetividade.
Em uma das rubricas iniciais a autora indica: “O menino, em êxtase, procura convencer o cavalo”. Vicente luta com toda sua energia, para convencer a realidade-pangaré que um dia ela poderá galopar livremente, mas logo se zanga: “Assim você não poderá trabalhar no circo! Não pode. Veja como eu faço”. O menino não vivencia uma alucinação, mas sim o paradoxo do cavalinho azul encarnado na pele e o osso de um pangaré. A forma encontrada por Vicente, independente de seu conteúdo fantástico, soluciona temporariamente sua condição social desfavorável.
Contudo, essa situação não perduraria. O mundo externo confronta-se com o mundo interno, e cada qual a seu modo, exige de Vicente a satisfação de necessidades antagônicas levando-o a um equilíbrio insustentável. Em um mundo partido, onde as imagens não coincidem com os objetos, instaura-se um dilema: ceder ao exterior e perder a poesia ou ceder ao imaginário e perder a consciência? A realidade dominante, respaldada por sua materialidade, exibe sua brutalidade frente à sutileza dos processos imaginários, estabelecendo-se como única e verdadeira: “Que cavalinho azul, que nada! Um pangaré velho não presta mais nem pra puxar a carroça de teu pai. Cavalinho azul!...Azul!”.
O menino persiste no treinamento. Põe-se no centro do picadeiro, e puxa o cavalo pelo cabresto indicando manobras circulares, que o animal sem vida executa em um esforço sem igual. Vicente espera a tão sonhada apresentação no circo.

A perda. Iniciação do herói no mundo
“Vicente, sentado na soleira da porta, de vez em quando dá uma espiadela para fora”.
Com a venda do pangaré o mundo impele Vicente a crescer. A dicotomia pangaré-cavalo azul vivida por Vicente, na maturidade apresenta-se como um corte, uma amputação do potencial imaginário.
Para Vicente o cavalo azul perdeu-se no caminho de volta para a casa. O menino passa a esperar algo de fora – o retorno do cavalo azul perdido no mundo. A projeção imaginária rompe as paredes protetoras da casa paterna, enveredando pelo mundo e indicando que as condições anteriores eram realmente insustentáveis. O cavalinho azul expande-se em detrimento da perda do pangaré. Abre-se espaço, então, para uma transformação: faz-se necessário um cavalo azul inteiro e real, em um menor instante que seja de confluência entre imagem e objeto. Se antes o menino dependia do cavalo azul para viver, agora deparamo-nos com uma inversão significativa: é o aceno frágil e desprotegido do cavalinho no mundo que impulsiona Vicente, um herói, para sua salvação.

A grande farsa do circo americano
A experiência imaginária refugia-se em espaços restritos e bem delimitados pela cultura – o circo, o teatro, o cinema, etc. – onde temos permissão para vivenciar o criativo. A cultura, portanto, estabelece uma relação de condição, impondo limites concretos ao imaginário que assume o caráter de expressão artística. Em todo caso, esta é a forma que dispomos para manter acesas as virtualidades do viver, imprescindíveis ao ser humano.
O primeiro lugar a se procurar o cavalo é em um circo – onde se poderia achar um cavalinho azul? Desde o início, o circo é um abrigo de realidade para as invenções imaginárias de Vicente; uma referência externa que compartilha o mesmo vocabulário fantástico em suas excêntricas atrações. E mais um confronto.
O circo idealizado não corresponde ao circo real. O “Grande Circo Americano” é um espetáculo decadente, uma farsa dirigida por três bandidos-músicos, que visando unicamente obter lucro, apropriam-se do pressuposto imaginário acerca do circo para iludir seus espectadores. Com a finalidade capitalista, a ilusão – maior qualidade do circo, possibilidade de jogo, que trata da realização do invisível – desfaz-se no vazio material de suas atrações, assumindo o caráter negativo de alienação. O potencial imaginário, aliado à sua demanda afetiva, é utilizado como instrumento de manipulação e controle ideológico, laçando as bases do poder da propaganda em nossa cultura – as imagens criativas distorcem-se em simulacros, para a sustentação do espetáculo grotesco de nossa sociedade.
Um palhaço sem-graça, apresentador do show, é explorado pelos bandidos-músicos, que o utilizam como fachada de seu circo. Rotineiramente, ele apresenta as mais fantásticas atrações – que nunca se realizaram – e entre uma palhaçada fracassada e outra, anuncia o final do show justificando-se pela ausência dos artistas. Neste caso, toda a experiência criativa esvazia-se em um discurso que não se efetiva; a criatividade se apresenta apenas como um potencial inativo, e não como possibilidade viva de criação.
Vicente não encontrou o cavalo azul. Mas de certo modo, a idealização inicial do circo indicara o caminho necessário. Naquele espaço decadente e desencantado, o cavalinho azul foi recebido pela primeira vez como verdade, e atraiu o interesse de todos. Alguns o ajudariam, outros o perseguiriam, mas ninguém permaneceria indiferente à notícia do cavalo azul. Vicente sai do circo modificado; na mão direita a companhia da menina, e na mão esquerda a perseguição dos bandidos-músicos.

A meninazinha
Na peça deparamo-nos com um feminino frágil e pouco atuante; a menina é capaz de se submeter à farsa do circo como única espectadora, e de satisfazer-se, depois de uma longa jornada, com um cavalinho azul de papelão. Em contraponto, observamos a força do feminino na obra de Jung; especificamente, a anima tem como sua função ser uma espécie de ponte para o inconsciente. Na proposta junguiana, a anima se fortalece ao passo que o sujeito aprofunda os laços com o inconsciente. Em Vicente é diferente. O menino transita com intimidade por seu potencial criativo; o vínculo com o inconsciente está fortemente amarrado. Para Vicente é necessária uma experiência que aprofunde suas relações com o real, mas que não se estabeleça como um corte violento.
Tendo em vista a dinâmica compensatória entre consciente e inconsciente, propomos que a anima fortificada projeta-se na realidade em um corpo frágil de Menina. O feminino discreto tem, em sua fragilidade, a delicadeza necessária para que o real se estabeleça – não como uma ruptura, mas como uma extensão do imaginário. Através da Menina, de seu gesto de acolhimento, Vicente é suavemente conduzido para o real; em sua companhia a experiência subjetiva se torna uma aventura compartilhada, e conseqüentemente, o cavalinho azul, uma possibilidade real. A Menina nada impõe; e o real inicia-se em uma despretensiosa sugestão de caminho: “Tenho um tio no Ceará. Vamos lá primeiro?”

A perseguição da sombra
Os bandidos também foram contagiados pelo símbolo do cavalo: “Os dois meninos viajavam de dia e dormiam à noite... Mas não sabiam do perigo que vinha atrás deles. Os três velhos fingindo que eram músicos de verdade, para não serem vistos, andavam durante a noite e dormiam de dia. Os velhos, cada vez mais gulosos, só pensavam no dinheiro que o cavalo ia dar-lhes”.
Diferente dos outros adultos, onde o cavalo azul ressoava como um símbolo morto, esvaziado pela tendência materializante da realidade, nos bandidos despertou fascínio e espanto. No entanto, o que para Vicente simbolizava uma busca existencial, para os bandidos representava a ampliação dos limites econômicos – o sentido do cavalo difere em função da subjetividade que dele se aproxima, mas mantém em ambos os casos o caráter de expansão.
Tal como Vicente, os bandidos abriram mão de tudo para buscar o cavalo azul, em um esforço tão grande quanto o do próprio menino. Dá-se inicio ao jogo ambivalente do símbolo, acirrando os conflitos: o que para uns é motivo de ilusão e deformação, para outros é de transformação total dos valores da realidade. Ao longo do caminho, os bandidos contabilizavam dinheiro, ao passo que os meninos contabilizavam sonhos.

A velha-que-viu
O caminho trilhado começa a dar sinais de aproximação: uma velha viu o cavalo. A Velha-Que-Viu não enxerga mais nada – só tem olhos para o cavalo azul que a cerca por todos os lados – e até seu nome designa a experiência que a marcou para sempre.
Os bandidos, que a principio raptaram-na para descobrir o paradeiro do cavalo, logo verificaram: “Ela é doida!”. A velha foi arrebatada pelo impacto da imagem sem nenhum suporte material, e, portanto, enlouqueceu. A maioria de suas falas refere-se ao céu, ao ar ou vento: “Lá vem o Menino cavalgando no cavalo azul... cavalgando na nuvem que é preta e grita: ai!ai!ai! Quero cair, quero molhar...”. O cavalinho azul tornou-se um dragão furioso, que em uma devastação afetiva arrancou da terra toda a base, todo o sólido, e desmanchou-os no ar. A velha tornou-se um rio, e o cavalo o explora – nutre-se de sua alma e banha-se sobre seu corpo – em uma correnteza sem fim que não ampara, só afunda, afunda, afunda mais... Perdendo-se todo o fôlego de realidade.
Nesse ponto, destacamos mais uma vez a importância de uma base concreta que ampare a experiência imaginária. No caso de Vicente, a presença do pangaré possibilitava um cavalo azul de carne e osso, e mesmo depois de sua venda a referência objetiva já estava marcada em sua subjetividade.

No curral do cowboy
O Cowboy doma cavalos e prende bandidos. Em seu curral acorre um importante encontro; não do Menino com o cavalo azul (ele alimentou essa esperança e se enganou, pois lá só havia cavalos brancos), mas o encontro do Menino com os bandidos. Vicente confronta-se com o Mal, que apesar de inconsciente esteve presente durante todo o caminho, e vê a aparente pureza e bondade constitutiva se desfazerem. Para isso, nada mais apropriado que o cenário escolhido. No curral habitam cavalos, e sabemos que não se trata de ambiente limpo. O encontro com o Mal é cercado de esterco, e permeado por seu cheiro desagradável.
Irritados com o engano do cavalo, e cansados de tanta procura, os três músicos tiram as barbas postiças e revelam as verdadeiras faces de bandidos. Vicente é finalmente abatido. Pela primeira vez, a situação foge de seu controle e não há solução criativa que compense a crueza da realidade. O disfarce imaginário caiu, revelando um rosto terrível que imobiliza Vicente e ameaça-o com a morte. Por outro lado, a realidade exposta afirma também que agora só será possível o encontro com o cavalo real. Não há mais espaço para uma imaginação infantil que controla tudo e a todos; o real faz-se no jogo entre sujeito e mundo.
O Cowboy, herói profissional, consciente dos perigos da realidade, entra em ação. Prende os bandidos e salva o menino. Vicente e o Cowboy têm em comum a paixão por cavalos; o vaqueiro doma os animais para vendê-los ao circo. Vicente não precisa domar seu cavalo; o objeto – cavalo – não está dissociado do sujeito – Vicente. Não é algo externo, que deve ser capturado, educado e humanizado. O cavalo azul faz parte de Vicente, ou melhor, Vicente faz parte de seu cavalo azul. Domar cavalos e prender bandidos são funções que se relacionam. A natureza traz consigo o excesso, de forma que poderá ser representada como um mal, à sombra da educação e das leis que formam sujeitos auto-disciplinados. Os instintos – entre eles, o impulso criativo – são sufocados pela cultura, restando-nos apenas cavalos brancos, iguais e normais.

O encontro
Finalmente, o encontro:
“Como vocês viram, os três músicos foram presos, a menina levei para casa dela. Todos na cidade estão esperando Vicente voltar. Ele continuou correndo o mundo. (Na cena surge Vicente todo esfarrapado, sem um pé de sapato, comendo um pedaço de pão) Quando estava muito cansando, vinha deitar aqui perto de mim (...) E foi assim que um dia... Vejam vocês...”.
O menino segue sozinho em sua busca; na Serra da Mantiqueira, quando ele menos espera, dá-se a aparição do cavalo azul. A autora indica o tom de naturalidade do encontro: “Como se estivesse fazendo a coisa mais natural do mundo, sem absolutamente encarar a aparição do seu cavalinho como coisa impossível, (...)".
Não existem surpresas na peça O Cavalinho Azul. Desde o início, a fé inabalável do menino denuncia o final da história – a inexorabilidade do encontro – sem com isso prejudicar a identificação do espectador com a peça. A transformação lenta e quase imperceptível pelo qual passa o herói ecoa no espectador, levando-o a ver o mundo com o olhar de Vicente. Porém, na aparição final do verdadeiro cavalo azul, isso já não é uma surpresa, mas sim uma certeza natural que o acompanhou desde o começo do espetáculo.
O ceticismo inicial do espectador converte-se em fé inabalável, seguindo o reflexo da transformação vivenciada por Vicente em sua jornada: realizar sua fé sob a forma de um corpo milagroso. Contudo, não há milagre – pelo menos não nos termos que utilizamos usualmente. A idéia de milagre pode ser associada à passividade, e isso se opõe radicalmente à postura de buscar o cavalo pelo mundo, em uma trajetória de esforço e paciência.
O retorno de Vicente e seu cavalo azul para casa marca uma trajetória espiralada. O final da linha – sob a influência de uma nova condição adquirida ao longo do processo – sobrepõe-se ao começo, determinando não o fechamento, mas a abertura de uma outra circunferência, que ao fim sobrepõe-se ao começo, abrindo uma nova circunferência, e assim por diante em um fluxo ininterrupto que é o mito de Vicente.

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Shakespeare assombra Brecht


Bernard Dort


Durante toda a sua vida, Brecht foi literalmente assombrado por Shakespeare. Se não em todos os momentos, pelo menos em cada grande transformação de suas reflexões sobre o teatro teve a necessidade de referir-se a Shakespeare, de enfrentar Shakespeare. Assim, encontraremos, por volta de 1926-1929, início da elaboração do conceito de “forma épica”, a Introdução a Macbeth, redigida para uma transmissão radiofônica da tragédia de Shakespeare. E depois, por volta de 1937-1939, um texto tão importante quanto O teatro de Shakespeare. Também no Pequeno Organon, datado de 1948, vários parágrafos são dedicados a Shakespeare. Finalmente, o trabalho sobre Coriolano ocupa um lugar importante nos últimos anos da vida de Brecht; a princípio pela adaptação da peça em 1951-1952 – acompanhada pela redação de inúmeras notas sobre Coriolano; depois, por diversas discussões do “coletivo” de encenação do Berliner Ensemble quanto à futura realização cênica de Coriolano (destas discussões foi tirado o Estudo da primeira cena de Coriolano, considerado por Brecht como uma peça essencial de um futuro conjunto teórico: A dialética do teatro).
Inicialmente, Brecht opõe uma recusa ao teatro shakespeariano, definido como uma dramaturgia das grandes individualidades que voltam as costas à sociedade e vão se perder e se exaltar na solidão. Esta recusa data dos anos 1926-1929, quando optou pela “forma épica do teatro”. Pode-se perceber nesta recusa a influência do sociólogo Fritz Sternberg, com quem Brecht teve então inúmeros encontros e até uma troca de cartas abertas sobre o drama. Sternberg via em Shakespeare o pai do teatro ocidental: em sua obra, dizia, a tragédia do indivíduo começa a se separar da tragédia da sociedade; e chegava mesmo a concluir pele inutilidade, em nossos dias, de uma dramaturgia em que se haja consumado a ruptura entre o indivíduo e a sociedade. Sem chegar a este ponto, Brecht compartilhava as opiniões de Sternberg sobre o teatro shakespeariano.

Ao longo de quatro atos, Shakespeare arranca a grande individualidade – Lear, Othelo, Macbeth – de todos os laços que a ligam à sua família, ao Estado, e expulsa-a para o deserto, para a solidão completa, onde ela deverá, no mesmo momento em que sucumbe, mostrar sua grandeza. Resulta dito uma forma dramática semelhante, por exemplo, às ondulações de um campo de aveia. O primeiro movimento de uma tragédia existe apenas para o segundo, e todos os seus movimentos existem apenas para que o último possa existir. É a paixão que mantém em atividade todo esse mecanismo, e a finalidade desse mecanismo é a grande experiência individual. Épocas posteriores definiram essa forma de drama como um drama para canibais e constataram que no início, em Ricardo III, o homem era devorado alegremente e no fim, como o cocheiro Henschel, lamentavelmente; mas que, de qualquer modo, ele era devorado.

Cerca de 20 anos mais tarde, Brecht voltaria a esta questão no Pequeno Organon e retomaria, quase que palavra por palavra, esta condenação de um teatro para “canibais”:

As grandes individualidades shakespearianas que trazem em si mesmas a estrela de seu destino, lançam-se em um fatal e inútil frenesi de assassinatos e precipitam sua própria perda; tanto que, em seu desmoronamento, é a vida e não a morte que se revela obscena, pois a catástrofe escapa a qualquer crítica. Sacrifícios humanos sempre e em toda a parte! Festas bárbaras! Sabemos perfeitamente que os bárbaros têm uma arte. Façamos uma outra!

Esta recusa ao teatro shakespeariano considerado como uma forma anacrônica, absolutamente imprópria para satisfazer nossas necessidades, foi formulada incessantemente por Brecht de diversas formas. Na introdução a Macbeth refere-se à sua improdutividade:

Alguns de meus amigos me garantiram, de maneira franca e clara, que Macbeth não poderia de nenhum modo lhes interessar. Esta tagarelice de feiticeiras, disseram, não nos inspira nenhum pensamento; estados de alma poéticos são nocivos, pois impedem que o homem ponha ordem em seu mundo; e uma glorificação geral das terras incultas chega decididamente tarde demais em uma época em que toda a energia da humanidade deve ser empregada para persuadir estes desertos a passarem a produzir cereais. De resto, tentar transformar os desertos em campos cultivados e os regicidas em socialistas seria bem mais útil e mais poético. Estas objeções devem ser escutadas muito seriamente, pois partem de pessoas despertas que, no meu entender, devem ser incitadas a freqüentar os teatros.

Mas é verdade que um pouco mais adiante, após ter verificado que as “Partes centrais da tragédia, esta seqüência de cenas que envolvem Macbeth em feitos sangrentos mas sem saída, não podem ser representadas”, Brecht parte para o sentido inverso desta opinião e apresenta o teatro de Shakespeare como um teatro brechtiano – ou seja, para ser encenado de forma conveniente exigiria o “estilo épico”.
Mas por enquanto vamos nos restringir ao primeiro teatro brechtiano. Nesta fase, Brecht restringia o teatro shakespeariano às grandes individualidades que fogem da sociedade e retornam à solidão, teatro das forças improdutivas, onde o homem é sempre batido pelo destino:

O que encontramos no velho teatro é uma técnica muito aperfeiçoada que lhe permite descrever o homem como um ser passivo. É mostrando como ele reage psiquicamente ao que lhe acontece que seu caráter é construído. O Ricardo III de Shakespeare responde a seu destino de aleijado esforçando-se por estropiar o mundo. Lear responde à ingratidão de suas filhas, Macbeth ao convite das feiticeiras que o incentivam a ser rei, Hamlet à incitação de seu pai, que o exorta à vingança. Wallenstein responde à tentação de ser infiel ao imperador. Fausto à tentação de viver, apresentada por Mefistófeles. Os tecelões reagem à opressão promovida pelo fabricante Dressger e Nora à opressão que seu marido exerce sobre ela. A questão é colocada pelo “destino”, e trata-se apenas de resolver a crise, fora do quadro de qualquer atividade humana; é uma questão eterna, e não deixará de tornar a surgir, nenhuma ação fará com que desapareça, ela não é humana em si, e jamais poderá ser identificada a uma atividade humana. Os homens agem sob coerção, de conformidade com seu caráter, e este caráter é “eterno”, imutável, pode apenas se manifestar, mas não tem causas sobre as quais o homem possa ter influência. Pode-se, é bem verdade, dominar o destino, mas apenas se acomodando a ele; a “má sorte” pode ser suportada, eis todo o domínio que é possível ter.

Brecht não nega, é claro, que às vezes o herói shakespeariano é livre, mas na realidade sua liberdade é apenas a liberdade de reagir às paixões:

O teatro elisabetano dotou o indivíduo de uma poderosa liberdade e o abandonou generosamente às suas paixões: a paixão de ser amado (Rei Lear), a de reinar (Ricardo III), a de amar (Romeu e Julieta, Antônio e Cleópatra), a de punir e de não punir (Hamlet) e assim por diante.

Uma liberdade, em suma, romântica: esta liberdade que o jovem Brecht admirava e criticava ao mesmo tempo no Dom Carlos de Schiller. A liberdade de cantar, mas não de agir. O contrário da verdadeira liberdade que é agora, a seu ver, a liberdade “para a sociedade transformar o indivíduo e torná-lo produtivo”.
Em Shakespeare, Brecht recusa a concepção dramática do teatro, que ele define assim:
O indivíduo é sua matéria-prima; a paixão, o meio; e a experiência vivida, a finalidade.

Entretanto, Brecht vê também em Shakespeare um precursor da forma épica do teatro, que ele opõe precisamente a esta forma dramática. O teatro shakespeariano não se restringe, de fato, à dramaturgia que engendrou: é bem mais amplo que ela. Ao mesmo tempo que rejeita a “ideologia” shakespeariana e sua visão trágica do universo, Brecht aceita as formas do teatro elisabetano que para ele se apresentam, com referência à sua própria experiência e a suas próprias preocupações, como uma antecipação do teatro épico. Daí a imagem, um pouco simples, que Brecht faz das condições da representação elisabetana:

Fuma-se também nos teatros; na sala, vende-se tabaco; no palco estão sentados os snobs que, fumando seus cachimbos, observam sonhadoramente como o ator representa a morte de Macbeth.

Esta imagem corresponde a um dos temas prediletos de Brecht: no teatro, deve-se poder “acender os charutos”. Mas Brecht não se limita a isto: para ele, é ponto pacífico que as peças shakespearianas foram compostas a partir de obras já existentes – que Hamlet, por exemplo, se origina de uma peça mais antiga, obra de um certo Thomas Kyd, que, alguns anos antes, já havia obtido grande sucesso. Deste modo, estas peças não são apenas a adaptação de obras anteriores, mas também conservam fragmentos inteiros destas obras, o que condiz com a técnica fundamental de toda a literatura épica: a da montagem, que permite incluir, em uma mesma obra, elementos heterogêneos.
Em seu diário, em 1940, Brecht assinala que Shakespeare pode ser considerado como o produto de um trabalho coletivo. Não que chegue a contestar que Shakespeare tenha sido o autor de suas peças, mas vê na técnica dramatúrgica empregada o resultado de um trabalho que, segundo ele, é menos individual que coletivo – e sabe-se que Brecht, que era sempre assistido por vários amigos ou colaboradores, encarava seu próprio trabalho de dramaturgo como uma obra coletiva:

O que me leva a crer que um pequeno coletivo haja terminado as peças de Shakespeare, não é que eu ponha em dúvida a possibilidade de um só homem ter escrito estas peças, nem de ter tido suficiente talento poético, ou suficiente habilidade técnica, em matéria de versificação, e nem de ter sido culto o bastante para fazê-lo. É mais porque eu reconheço em suas peças, em matéria de construção, de montagem, a maneira de trabalhar de um coletivo...Shakespeare foi sem dúvida a personalidade mais forte deste grupo. E assim, inclino-me a ver em Shakespeare uma espécie de chef-dramaturg.

E Brecht dá destaque às “inovações técnicas” que um coletivo shakespeariano teria deste modo introduzido no teatro.
Um outro ponto que lhe parece importante é que as obras Shakespearianas são o produto de um trabalho que nunca é definitivo e sempre suscetível de revisão. Brecht alega assim não apenas a existência de várias versões de uma mesma peça, mas ainda o fato de que em uma só obra impressa coexistem, de certa forma, várias versões da mesma. Baseado em um manuscrito teatral de 1601, Brecht assinala que diversas variantes são citadas e, à margem, o autor coloca esta anotação: “Escolha a modificação que lhe parecer melhor, e também esta: se essa formulação é difícil de compreender ou não convém ao público, pode-se usar uma outra”. E constata ainda:

As peças de Shakespeare são extremamente vivas. Elas parecem ter sido impressas a partir dos libretos dos autores, incluindo as improvisações destes e as correções realizadas ao longo dos ensaios. Hamlet sempre me interessou pela seguinte razão: sabemos que se trata de uma adaptação de uma peça anterior, obra de um certo Thomas Kyd, que, alguns anos antes, já obtivera grande êxito. Ela tratava da limpeza de uma estrebaria de Áugias. O herói, Hamlet, punha ordem em sua família. Parece que o fazia sem a menor dificuldade, tudo parece ter sido concebido em função do último ato. Mas o ator principal do Teatro Globo shakespeariano era um homem atarracado, de fôlego curto, de modo que após um certo tempo todos os heróis daquele Teatro tornaram-se atarracados e de fôlego curto, tanto Macbeth como Lear. Foi para ele, e possivelmente graças a ele, que a ação (de Hamlet) foi então aprofundada. Foram introduzidos alguns curto-circuitos. A peça tornou-se assim mais interessante. Tem-se a impressão que trabalharam e remodelaram a peça no palco até o quarto ato e esbarraram na dificuldade de chegar com este Hamlet hesitante ao banho de sangue final, que havia feito o sucesso da peça anterior. No quarto ato, encontram-se assim várias cenas, cada uma das quais constituindo uma solução do problema. Talvez o ator as utilizasse todas, mas talvez também mantivesse apenas uma, e contudo todas chegaram ao livro. Todas elas têm as características de uma inspiração súbita.

Este trabalho shakespeariano, reconstituído com alguma fantasia, passa desse modo a figurar como modelo. Brecht louva seu caráter profano, terra a terra e sadio. Recomenda mesmo a seus atores estudar os contratos feitos por Shakespeare com seu elenco, isto porque vê na atividade do Teatro Globo um exemplo comparável ao de Galileu em Florença – todos estes textos de Brecht datam de 1939-1940 – quando ele acabara de terminar sua primeira versão de Galileu Galilei:

Eles, Shakespeare e os membros do seu coletivo, experimentavam. Não experimentavam menos que Galileu em Florença e Bacon em Londres, e por isso devemos também montar estas peças entregando-nos a experiências.

Até mesmo com relação aos efeitos V (efeitos de distanciamento ou de afastamento) Brecht descobriu exemplos na obra de Shakespeare. De início, nela os papéis são, como em todo o teatro da época, representados por homens: já é uma maneira de afastar de nós as personagens. As paisagens não são imitadas pelo cenário, mas pintadas, descritas pelo poeta – e isto em pleno fogo da ação:

O palco não tem nenhuma determinação, ele pode ser todo um deserto. Em “Ricardo III” (ato cinco, cena 3), entre os dois acampamentos em que se situam as tendas de Ricardo e de Richmond, aparece, no sonho de ambos, visível e audível para todos os dois, um fantasma que a eles se dirige. Ou seja: um teatro cheio de efeitos V.

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Este artigo, aqui reduzido, foi extraído do livro O teatro e sua realidade, de Bernard Dort (Editora Perspectiva, São Paulo)

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Breves considerações sobre a
ENCENAÇÃO

Léon Moussinac


Creio que podem existir tantas concepções particulares de teatro como homens de teatro, quer dizer, artistas que pratiquem seu ofício com a principal preocupação de servir à arte. Por isso mesmo, não me parece que esta arte possa ser governada por leis fixas, imutáveis, universais e de alguma forma mágicas. Seu estudo só permite construir, tendo por base a reflexão e a experiência, teorias que têm valor em função da eficiência da prática que elas determinam, principalmente no que se refere à ação e à encenação, que se definem em consonância com o gênero e estilo da obra, e também levando-se em conta a época e os espectadores aos quais se destinava. Nisto, como em qualquer outra coisa, as teorias são um guia para a ação, para a criação dramática.
Com relação aos métodos, só interessarão os que resultem da razão e da experiência, a fim de se obter o domínio – ou ao menos a busca – dos princípios e da técnica a ser empregada. Em minha opinião, a arte teatral é, ao mesmo tempo, um dom do espírito e fruto do estudo. Por isso deve reinar na arte teatral, como em qualquer outro meio de expressão, a mais absoluta liberdade. As disciplinas nascem de uma necessidade, que para o artista é exterior e interior. Graças ao jogo de influências recíprocas, trata-se em essência de se chegar a uma concepção teatral pessoal que coincida com a idéia que se faz do teatro, de sua finalidade. Para mim, esta última não pode ter um caráter gratuito, por mais que tenha sido imposta pela realidade econômica, política, social – e, portanto, viva – do momento. Por mais que a expressão cause um certo desgosto aos artistas, aqui devemos encarar a utilidade da representação como fator fundamental.

Dons
Falei de um dom do espírito? Bem, trata-se do prazer de expressar, de representar, de criar personagens e situações; também se trata de talento e ofício. Falei de estudo? Por certo. Trata-se de integrar cultura na maior proporção possível, por assimilação dos conhecimentos mais amplos da poesia e da arte – e também de História – assim como do estudo dos clássicos, das técnicas dramáticas, da crítica; trata-se do sentido das idéias originais de cada época, sem esquecer a época em que se vive, o que é mais difícil do que parece.
O caráter ao mesmo tempo nacional e universal do teatro oferece à reflexão uma vasta perspectiva de estudo, o que permite o desenvolvimento de idéias originais. E a personalidade de cada um permite eleger, pouco a pouco, aquilo que melhor se aplica ao objeto encarado (e eventualmente descoberto), assim como os meios de realizar a ação e de representar. Não pretendo, evidentemente, dizer o que se deve fazer, mas sim expor minha opinião de como é possível orientar determinadas escolhas.
Um só exemplo. Em geral, se considera de bom gosto negar a atualidade do teatro. Isto é completamente absurdo, já que a atualidade é ao menos uma garantia de vida na medida em que se incorpora ao universal. Certamente, a razão que determina que algumas obras sobrevivam não é sua atualidade, mas sua força vital.

Mobilidade
Com relação à técnica, não existe uma, mas várias, algumas já testadas e aprovadas, outras que ainda precisam ser exploradas ou até mesmo descobertas. O indispensável é mover-se ativamente e essa mobilidade deve ser cuidadosamente guiada. Simplificando, poderia se afirmar que o teatro só admite concepções gerais: a do teatro escrito e a do teatro representado (a diferença entre ambos é que este último não dispõe de meios de conservação).
O teatro escrito pertence quase que exclusivamente à arte literária (a construção dramática e o diálogo), enquanto o teatro representado está atrelado ao fazer teatral; neste caso, o texto constitui um elemento essencial, mas não exclusivo do espetáculo. Aliás, Molière percebia claramente a diferença entre um texto para ser lido e outro para ser representado:

“Não é necessário advertir que há muitas coisas dependentes da ação. Sabemos que as comédias são escritas para serem representadas, e não aconselho sua leitura, a não ser para pessoas que têm olhos para perceber, na leitura, os recursos do teatro”.

Na história da literatura dramática, particularmente na história recente, tem havido um grande número de obras que respondem mais à primeira concepção do que à segunda, ou seja, funcionam mais sendo lidas do que encenadas.

Solidariedade
Para que uma montagem dê certo, é preciso que os pintores, os músicos, os escritores – e, em especial, os poetas – em total solidariedade com o diretor e os atores, assimilem todos os meios específicos de que dispõe a arte teatral, que pode, em função de um objetivo específico, priorizar mais ou menos um dos elementos utilizados, ainda que o mais importante, evidentemente, seja o ator.
No entanto, em geral os dramaturgos conhecem mais o ator do que os demais elementos cênicos, sendo que estes, em alguns casos, são parte essencial da concepção dramática de uma obra e de sua linguagem. Para o autor, o ator é uma espécie de garantia, como se dele dependesse o sucesso ou o fracasso de sua obra. É por isso que muitas vezes um autor, por pura desinformação, escreva um papel para um ator determinado, o que teoricamente é inaceitável.

Compreensão
Antigamente, quando se pedia a colaboração de um pintor para renovar um cenário insuficiente – digamos, fora de moda – se realizavam projetos segundo princípios que tinham êxito na pintura de cavalete, mas ignoravam as necessidades da ação, os meios técnicos da cena, e também a ótica profunda do teatro, cujas leis não se confundem necessariamente com as da perspectiva. Aos poucos, porém, os pintores compreenderam que não bastava fazer maquetes em seus estúdios e passaram a trabalhar em conjunto com os artesãos do palco, daí resultando trabalhos infinitamente melhores.
Isto significa que o êxito de qualquer espetáculo está atrelado à perfeita combinação de todos os elementos utilizados, o que pressupõe estreita e permanente colaboração entre todos os profissionais, inclusive o autor, até a estréia. Não nos esqueçamos de que o teatro é um todo e a unidade é indispensável.

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O presente texto, aqui reduzido, é uma espécie de introdução feita pelo autor antes de deter-se profundamente no estudo da encenação. O original chama-se Tratado de encenação (Ediciones Leviatán, Buenos Aires, Argentina). A tradução do francês para o espanhol foi feita por Francisco Javier, cabendo a mim sua tradução para o português. O título do presente artigo também é de nossa responsabilidade.

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