Eugène Ionesco e Bob Wilson
Quando Eugène Ionesco - romeno naturalizado francês, Papa do Teatro do Absurdo, membro da Academia Francesa, e autor de "A cantora careca" e "A lição" que, juntas, formam o espetáculo de carreira mais longa na história do teatro (mais de 20 anos em cartaz no mesmo espaço, o Teatro Huchette, Paris) - encontra Bob Wilson - americano, navaiorguino, e autor do "Teatro de 24 horas" e que São Paulo já teve uma mostra no Festival Internacional de Teatro, em 1976) -, o nonsense, o absurdo, e a loucura saem de cena para dar lugar a um diálogo cândido, lógico e racional. O tema, obviamente, é o Teatro.
* * *
BOB WILSON: Gostamos muito de sua obra na América. Você e Beckett são praticamente os únicos autores clássicos cujas peças foram encenadas na Broadway.
IONESCO: Você sabe, com exceção de "Rinoceronte", minhas peças foram off Broadway, e mesmo off off Broadway, ou então nas universidades, onde os estudantes se interessam ativamente pelos problemas novos da literatura e do teatro.
BW: Há uma falta alarmante de talentos no novo teatro dos Estados Unidos. Temos muito poucas salas subvencionadas. Faltando uma estrutura de festival como a que vocês têm na Europa, que permite divulgar espetáculos que, de outra forma, não viriam à luz.
IONESCO: Mas o Festival de Nancy não produziu grande coisa na França, pois, no final das contas, ficou restrito a Nancy.
BW: Foi em Nancy que se montou pela primeira vez "O olhar do surdo" na versão integral de sete horas. Pretendiam divulgar obras que pareciam anormais no teatro tradicional.
IONESCO: Fiquei deslumbrado com esta peça. Pensava que não fosse verdade, que não se pudesse fazer isso no teatro. É uma obra que ultrapassa tanto o cotidiano como a história individual e a política. Ela me parece como uma visão global da história da humanidade e até da história cósmica, com esta esperança insensata no final, quando o mundo renasce numa nova beleza. Alguém que não você pode remontar esta peça? Você tem cadernos, notas, ou é o único a poder dirigi-la?
BW: Tenho algumas anotações, mas são tão pessoais que outra pessoa teria dificuldade em utilizá-las. E além disso é uma obra construída a partir de pessoas que encontrei nessa época, como esse jovem negro cego. Ela está muito ligada aos atores.
IONESCO: Eu bem senti que era um momento único. É isso que faz sua beleza e infelicidade, em certo sentido.
BW: Você começou como autor de teatro?
IONESCO: Sim. Mas percebo até que ponto meu teatro é pouco teatral comparado com o seu, como é ligado à literatura (rindo): fui prisioneiro do ensino que me deram, o qual dividia a literatura em três gêneros: épico, lírico e dramático. O teatro nada mais é que tudo isso; é um sistema de expressão completamente particular, e foi com você que aprendi isso.
BW (constrangido): No que você trabalha atualmente?
IONESCO: Comecei uma nova peça. E embora tenha visto as suas peças, não me sinto desencorajado a escrevê-la (rindo) e recomecei porque é preciso fazer alguma coisa. Você trabalha nhesse momento em Paris?
BW: Sim, nos estúdios de vídeo de Beaubourg. Estou fascinado com as possibilidades de trocas que a estrutura arquitetônica permite entre as disciplinas. Tal como é concebido, o museu permite uma imensa abertura social. É o centro cultural da cidade, um pouco como as cidades que Paolo Soleri, um arquiteto do Arizona, construiu para daqui a duzentos ou trezentos ano. Ele introduz sempre um elemento cultural no centro e depois cerca este núcleo com as outras atividades da cidade, constituídas pela vida privada, a vida pública, os escritórios etc. Eu realizo nestes estúdios 200 episódios em vídeos de 30 segundos, sem palavras, para as televisões francesa, italiana e alemã. Mas como não há problema de língua, pode-se projetá-los em qualquer lugar.
IONESCO: Você acredita que, em 30 segundos, os telespectadores terão tempo de fixar isso?
BW: Sim, porque a televisão não é um instrumento como os outros. É como uma janela numa casa, completamente inserida na vida cotidiana: pode-se falar ao telefone, comer, fazer amor com o aparelho ligado.
IONESCO: Então é gravado pelo inconsciente e vem à superfície de modo mais sutil e insinuante.
BW: Creio que um episódio poético projetado no meio de uma partida de futebol pode mudar uma impressão mental em alguns instantes; minhas experiências sobre a duração cobrem agora uma gama muito ampla, porque se estende de 30 segundos a 24 horas. E em meio minuto pode-se dar uma enorme quantidade de informações, de impressões, pode-se representar uma vida completa. Mas é difícil incomodar pessoas por 30 segundos.
IONESCO: Eu mesmo fiz cenas muito curtas em minha nova peça, numa passagem cada vez mais fechada, hermética, a linguagem dos sonhos. É impossível num tempo mais longo e seguido não fazer ideologia, apesar de toda a boa vontade que se tem. E o que mais desejo é evitar explicar o mundo.
BW: Iniciada uma peça, como você a desenvolve?
IONESCO: Parece-me escutar uma réplica ou então parto de uma imagem cênica e então a desenvolvo.
BW: Você mesmo dirige suas peças?
IONESCO: Eu brigo com o diretor. Você briga consigo mesmo. (risos).
BW: Você não tem medo de ser mal interpretado?
IONESCO: Pode, é claro, haver conflitos se o diretor não compreende minha linguagem ou se as posições ideológicas entre o realizador e eu próprio são diferentes. Mas quando há compreensão, creio que a compreensão é justa. Aliás, minhas peças são muito simples.
BW: Você emprega, contudo, em sua nova peça, uma linguagem hermética...
IONESCO: Espero que o público queira me acompanhar.
BW: Você está inquieto?
IONESCO: Sim.
BW: Contudo, "A lição" é representada há 21 anos...
IONESCO: Isso pode efetivamente parecer-se com um penhor de fidelidade.
BW: A peça evoluiu, desde a sua criação?
IONESCO: Degradou-se. No início era um texto bufo intepretado de modo muito austero; agora os comediantes são cúmplices dos espectadores, criam efeitos, não têm mais a austeridade do início, interpretam um texto bufo enfatizando a pilhéria. Minha ambição era "dessignificar" a linguagem e finalmente esta peça adquiriu toda a espécie de significações que não me passavam pela cabeça: paródia do teatro, crítica à linguagem pequeno-burguesa...Quanto à "Cantora careca", transformou-se completamente numa peça de bulevar.
BW: A leitura das críticas também pode influenciar o comportamento dos atores. Durante a representação de "O olhar do surdo", os comediantes leram em alguns jornais que representavam lentamente, quando nós havíamos adotado um ritmo lento, pouco tradicional, mas que excluía a idéia de lentidão cinematográfica. Eles não mais reencontraram a seguir seu ritmo inicial.
IONESCO: Nunca devemos ler as críticas.
BW: Você as lê?
IONESCO: Sim.
BW: E se elas são negativas?
IONESCO: Não tem importância. Quando J. J. Gautier disse, no início de minha carreira que, ou eu era um trapaceiro ou um idiota, eu lhe respondi que talvez fosse um idiota, mas não era trapaceiro. (risos).
BW: Durante sua série de conferências nos Estados Unidos, uma pergunta voltava sempre: "Por que você entrou na Academia Francesa?" O que é que, na sua opinião, provoca esse espanto?
IONESCO: As pessoas não sabem o que é a Academia Francesa. Imaginam que é uma instituição muito convencional, ao passo que é um clube de solitários de vanguarda. Temos entre nós Lévi-Strauss, que criou uma nova Etnologia, De Broglie, que é um dos fundadores da Física Moderna e sobretudo o Sr. Wolf, particularmente interesssante porque é um biólogo que fabrica monstros, animais com cinco patas ou com duas cabeças. Mas não os vejo com freqüência, pois só raramente vou às reuniões. E, sobretudo, quando volto lá após cinco ou seis meses, há sempre uma dezena de mortos.
BW: Você tem dificuldade em aprender os nomes dos novos membros?
IONESCO: Sim, tenho...(rindo)
BW: Você foi ao teatro, na América?
IONESCO: Sim, principalmente em Nova Iorque vi uma peça que lembrava terrivelmente sua atmosfera. Esqueci o nome do autor, mas, como dizia Roger Blin: "O olhar do surdo não chegou aos ouvidos de um cego". (risos). Você formou uma escola em Nova Iorque; as pessoas se inspiram em você. Ouvi dizer que havia também tentativas de renovação do teatro em Los Angeles e do cinema fora de Hollywood. Pergunto-me se o futuro cultural da América não estará na Califórnia. O que você acha disso?
BW: Não gosto da Califórnia...(risos). O sol brilha, as pessoas são belas, com boa saúde. Prefiro as cidades sujas, feias, agressivas; trabalho melhor em Nova Iorque. É mais estimulante.
IONESCO: Eu tinha a impressão que Nova Iorque era menos trágica. As pessoas se agitam e, agitando-se, extravasam suas angústias. Na Califórnia, tem-se a impressão que as pessoas dissimulam isso sob uma aparência sorridente, esperando o fim do mundo. Mas é verdade que Nova Iorque é bem você, é a história do mundo tal como ela se faz. Vejo a Califórnia sobretudo como uma região para escritores como Beckett, uma região onde os autores morrem tranqüilamente, assim, como num sonho.
BW: O que lhe parece característico da juventude americana?
IONESCO: Achei os jovens extremamente acolhedores, escutam com muita atenção, tanta atenção que chega a ser constrangedor, porque acho que eles estavam lá para escutar coisas extremamente importantes, e eu não tenho nada de importante para dizer (risos); mas exagero um pouco, não é nada disso o que eu penso.
BW: O que você pensa exatamente?
IONESCO: Que consegui dizer alguma coisa.
BW: Fale-nos de sua próxima peça. São variações sobre temas obsessivos...
IONESCO: As coisas com as quais eu sonho à noite, sempre as mesmas; me encontro na infância, estou em conflito com meus pais...
BW: Descrevendo suas obsessões você pensa conseguir exorcizá-las?
IONESCO: Nunca pude exorcizar nada, nem o medo da morte, nem nenhuma angústia fundamental. Já que sei fazer literatura, faço literatura com isso. Afinal as angústias não são outra coisa além de materiais com os quais se constrói algo, já que uma obra é uma estrutura. Creio que a angústia é o sentimento fundamental que todos nós temos, é a coisa mais profunda que existe em nós - e a mais autêntica também. Temos razão, aliás, em sermos angustiados, encurralados como estamos entre a vida e a morte: realmente há motivo para se sentir angustiado.
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Extraído de INTERVIEW, ano 1., 1978. A presente entrevista consta da revista Cadernos de Teatro nº 79/1978, edição já esgotada.
segunda-feira, 18 de outubro de 2010
sexta-feira, 15 de outubro de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Ponto de fuga"
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As lavas de um vulcão
Lionel Fischer
Embora a princípio possa causar uma certa estranheza, julgo procedente iniciar a crítica do presente espetáculo falando um pouco de música. E mais especificamente de duas obras fundamentais de J. S. Bach. Na primeira, "O Cravo Bem Temperado", o genial compositor criou 48 prelúdios e fugas, sendo um prelúdio e uma fuga para cada tonalidade maior e menor. Na segunda, "A Arte da Fuga", que a morte impediu Bach de completá-la, a intenção era a de criar um conjunto de exemplos das técnicas de contraponto - são 14 fugas, de diferentes formas, mas todas oriundas de um mesmo tema.
Com a introdução acima, minha intenção foi a de estabelecer um paralelo entre a fuga, em seu sentido estritamente musical, e as fugas das quais tantas vezes tentamos nos valer para escapar ao real da vida, para suplantar a dor de existir. No entanto, certas questões são tão implacáveis que às vezes somos induzidos a acreditar que não há escapatória, que nenhum contraponto haverá de compensar determinadas lacunas. Então, só nos restariam duas alternativas: simplesmente enlouquecer ou, através da Arte, buscar alguma forma de novamente se inserir na vida. E é exatamente isto - salvo monumental engano de minha parte - que o autor Rodrigo Nogueira buscou materializar na cena.
Em cartaz no Teatro Gláucio Gill, "Ponto de fuga" gira em torno de uma mulher que, ao assistir a uma peça de teatro, se identifica tanto com um personagem (um músico que perde a capacidade de compor e só consegue ouvir música em seus sonhos) que de certa forma o incorpora, numa desesperada tentativa - consciente ou não - de estabelecer algum tipo de contato com o mundo real, do qual já vinha se afastando há muito tempo. Escrita e dirigida por Rodrigo Nogueira, a obra chega à cena com elenco formado por Cristina Flores (Cristina), Michel Blois (Michel), Luísa Friese (irmã/empregada), Lucas Gouvêa (marido/garoto de programa) e Aline Fanju (amiga/musicista) - estas últimas personagens também são interpretadas por Lilianne Rovaris, às quartas-feiras; mas como assisti ao espetáculo na quinta, só posso avaliar a atuação de Aline.
Mesmo que tenha resumido o enredo da peça, me abstenho de detalhá-lo ainda mais, pois isso privaria o espectador de, em dado momento, perceber o contraponto entre o real e o imaginário. Ainda assim, cumpre ressaltar uma série de aspectos altamente positivos do presente texto, sem dúvida o melhor já escrito por Rodrigo Nogueira.
Além de ter criado ótimos personagens e uma ação que gera um permanente estado de inquietação, o autor se mostra capaz de externar uma angústia que não é apenas sua, mas de todos aqueles que não se contentam com uma existência mediana e previsível, que não se enquadram nos padrões ditados pela moral e os bons costumes, que trazem em si carências e desejos que às vezes sequer conseguem definir com clareza, mas que estão ali, represados, como as lavas de um vulcão que precisam necessariamente eclodir.
Em caso contrário, só lhes restará a loucura - renúncia total à vida - ou a Arte como possibilidade de nela se inserir, como já foi dito. Haveria, também, uma terceira hipótese: encarar a vida como um jogo de cartas marcadas, facultando ao destino a aleatória tarefa de escolher aqueles a quem beneficiaria com a sorte. E é exatamente esta a postura adotada pela maioria: a de aceitar navegar em um barco desprovido de leme, assim renunciando a assumir o papel de protagonista de sua própria história. E é justamente o oposto o que nos propõe Rodrigo Nogueira que, ao escrever este texto, renunciou à adolescência e tornou-se um homem.
Quanto ao espetáculo, este exibe uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico. A estranheza e a imprevisibilidade são a tônica. Eventuais momentos de total obscuridade nos obrigam a um mergulho interno, não raro desconfortável, assim como certas pausas nos aclaram conteúdos incapazes de serem expressos através de palavras. Enfim, uma direção brilhante, a qual se soma um irrepreensível trabalho de todo o elenco. A começar pelo da protagonista, Cristina Flores.
Em minha opinião, trata-se de uma das melhores atrizes de sua geração, e não apenas por exibir vastos recursos expressivos. O que me parece fundamental, em Cristina Flores, é sua coragem de se entregar totalmente às personagens que interpreta, criando-as não a partir de maneirismos, mas de uma busca interna muitas vezes, ao que imagino, nada confortável. Mas certamente Cristina Flores sabe que contém tudo que é inerente ao humano. Para o bem ou para o mal. E por não temer confrontar-se consigo mesma, ou ainda que eventualmente temendo esse encontro, dele não abdica. E aí reside toda a diferença entre uma grande atriz e uma atriz essencial. Cristina Flores pertence a este segundo e seleto grupo.
Quanto aos demais atores, todos também se entregam sem relutância à complexa tarefa de materializar personagens de diferentes matizes, mas sempre com o mesmo vigor e sensibilidade.
E aqui retornamos ao contraponto: o drama vivido pelo músico que não consegue compor, assim como o da protagonista que já não se mostra capaz de viver o real da vida, só adquire uma dimensão trágica porque estão cercados, de uma maneira geral, por personagens perfeitamente enquadrados. E que obviamente não entendem comportamentos que contrariam suas expectativas.
Na equipe técnica, Paulo César Medeiros ilumina a cena com a indispensável dramaticidade, sendo irrepreensíveis a cenografia de Natália Lana, os figurinos de Priscila Barcelos e Rose Duarte, assim como a trilha sonora de Gabriel Fomm, que mescla sons indefinidos com, por exemplo, trechos da "Bachiana nº 7", de Villa-Lobos, gerando um resultado que contribui decisivamente para o fortalecimento dos múltiplos climas emocionais em jogo.
PONTO DE FUGA - Texto e direção de Rodrigo Nogueira. Com Aline Fanju, Cristina Flores, Lucas Gouvêa, Luísa Friese e Michel Blois - ressaltando, mais uma vez, que Liliane Rovaris divide com Aline Fanju os personagens da amiga e da musicista. Teatro Gláucio Gill. Quartas e quintas, 21h.
"Ponto de fuga"
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As lavas de um vulcão
Lionel Fischer
Embora a princípio possa causar uma certa estranheza, julgo procedente iniciar a crítica do presente espetáculo falando um pouco de música. E mais especificamente de duas obras fundamentais de J. S. Bach. Na primeira, "O Cravo Bem Temperado", o genial compositor criou 48 prelúdios e fugas, sendo um prelúdio e uma fuga para cada tonalidade maior e menor. Na segunda, "A Arte da Fuga", que a morte impediu Bach de completá-la, a intenção era a de criar um conjunto de exemplos das técnicas de contraponto - são 14 fugas, de diferentes formas, mas todas oriundas de um mesmo tema.
Com a introdução acima, minha intenção foi a de estabelecer um paralelo entre a fuga, em seu sentido estritamente musical, e as fugas das quais tantas vezes tentamos nos valer para escapar ao real da vida, para suplantar a dor de existir. No entanto, certas questões são tão implacáveis que às vezes somos induzidos a acreditar que não há escapatória, que nenhum contraponto haverá de compensar determinadas lacunas. Então, só nos restariam duas alternativas: simplesmente enlouquecer ou, através da Arte, buscar alguma forma de novamente se inserir na vida. E é exatamente isto - salvo monumental engano de minha parte - que o autor Rodrigo Nogueira buscou materializar na cena.
Em cartaz no Teatro Gláucio Gill, "Ponto de fuga" gira em torno de uma mulher que, ao assistir a uma peça de teatro, se identifica tanto com um personagem (um músico que perde a capacidade de compor e só consegue ouvir música em seus sonhos) que de certa forma o incorpora, numa desesperada tentativa - consciente ou não - de estabelecer algum tipo de contato com o mundo real, do qual já vinha se afastando há muito tempo. Escrita e dirigida por Rodrigo Nogueira, a obra chega à cena com elenco formado por Cristina Flores (Cristina), Michel Blois (Michel), Luísa Friese (irmã/empregada), Lucas Gouvêa (marido/garoto de programa) e Aline Fanju (amiga/musicista) - estas últimas personagens também são interpretadas por Lilianne Rovaris, às quartas-feiras; mas como assisti ao espetáculo na quinta, só posso avaliar a atuação de Aline.
Mesmo que tenha resumido o enredo da peça, me abstenho de detalhá-lo ainda mais, pois isso privaria o espectador de, em dado momento, perceber o contraponto entre o real e o imaginário. Ainda assim, cumpre ressaltar uma série de aspectos altamente positivos do presente texto, sem dúvida o melhor já escrito por Rodrigo Nogueira.
Além de ter criado ótimos personagens e uma ação que gera um permanente estado de inquietação, o autor se mostra capaz de externar uma angústia que não é apenas sua, mas de todos aqueles que não se contentam com uma existência mediana e previsível, que não se enquadram nos padrões ditados pela moral e os bons costumes, que trazem em si carências e desejos que às vezes sequer conseguem definir com clareza, mas que estão ali, represados, como as lavas de um vulcão que precisam necessariamente eclodir.
Em caso contrário, só lhes restará a loucura - renúncia total à vida - ou a Arte como possibilidade de nela se inserir, como já foi dito. Haveria, também, uma terceira hipótese: encarar a vida como um jogo de cartas marcadas, facultando ao destino a aleatória tarefa de escolher aqueles a quem beneficiaria com a sorte. E é exatamente esta a postura adotada pela maioria: a de aceitar navegar em um barco desprovido de leme, assim renunciando a assumir o papel de protagonista de sua própria história. E é justamente o oposto o que nos propõe Rodrigo Nogueira que, ao escrever este texto, renunciou à adolescência e tornou-se um homem.
Quanto ao espetáculo, este exibe uma dinâmica em total sintonia com o material dramatúrgico. A estranheza e a imprevisibilidade são a tônica. Eventuais momentos de total obscuridade nos obrigam a um mergulho interno, não raro desconfortável, assim como certas pausas nos aclaram conteúdos incapazes de serem expressos através de palavras. Enfim, uma direção brilhante, a qual se soma um irrepreensível trabalho de todo o elenco. A começar pelo da protagonista, Cristina Flores.
Em minha opinião, trata-se de uma das melhores atrizes de sua geração, e não apenas por exibir vastos recursos expressivos. O que me parece fundamental, em Cristina Flores, é sua coragem de se entregar totalmente às personagens que interpreta, criando-as não a partir de maneirismos, mas de uma busca interna muitas vezes, ao que imagino, nada confortável. Mas certamente Cristina Flores sabe que contém tudo que é inerente ao humano. Para o bem ou para o mal. E por não temer confrontar-se consigo mesma, ou ainda que eventualmente temendo esse encontro, dele não abdica. E aí reside toda a diferença entre uma grande atriz e uma atriz essencial. Cristina Flores pertence a este segundo e seleto grupo.
Quanto aos demais atores, todos também se entregam sem relutância à complexa tarefa de materializar personagens de diferentes matizes, mas sempre com o mesmo vigor e sensibilidade.
E aqui retornamos ao contraponto: o drama vivido pelo músico que não consegue compor, assim como o da protagonista que já não se mostra capaz de viver o real da vida, só adquire uma dimensão trágica porque estão cercados, de uma maneira geral, por personagens perfeitamente enquadrados. E que obviamente não entendem comportamentos que contrariam suas expectativas.
Na equipe técnica, Paulo César Medeiros ilumina a cena com a indispensável dramaticidade, sendo irrepreensíveis a cenografia de Natália Lana, os figurinos de Priscila Barcelos e Rose Duarte, assim como a trilha sonora de Gabriel Fomm, que mescla sons indefinidos com, por exemplo, trechos da "Bachiana nº 7", de Villa-Lobos, gerando um resultado que contribui decisivamente para o fortalecimento dos múltiplos climas emocionais em jogo.
PONTO DE FUGA - Texto e direção de Rodrigo Nogueira. Com Aline Fanju, Cristina Flores, Lucas Gouvêa, Luísa Friese e Michel Blois - ressaltando, mais uma vez, que Liliane Rovaris divide com Aline Fanju os personagens da amiga e da musicista. Teatro Gláucio Gill. Quartas e quintas, 21h.
quinta-feira, 14 de outubro de 2010
Flores de Chumbo
Lionel Fischer
(1984)
CAPÍTULO XVII
Na manhã do dia seguinte ao de sua primeira visita, monsenhor resolveu aparecer de surpresa na granja. Vinha caminhando alegremente, na certeza de que saborearia um lauto desdejum, quando, a uns cinquenta passos da casa da velha Ecúria, teve a impressão de que ela conversava com alguém diante de sua porta. Como sabia que todos os habitantes da cidade estavam mortos, aproximou-se furtivamente visando decifrar o enigma. Esse "alguém" estava sentado numa cadeira de balanço e merecia da megera cuidados de mãe solteira. A todo momento ela abandonava a própria cadeira e o tocava, afastando-se em seguida para de novo o observar. Passados alguns instantes, tornava a se aproximar e assim sucessivamente.
Monsenhor Flávio imaginou que a pessoa com quem Ecúria conversava fosse eu, não apenas porque comigo ele se parecia, mas sobretudo pela ausência de uma outra disponível. Mas sua intuição lhe dizia ser esse encontro bastante improvável. Então, resolveu se posicionar de tal forma que pudesse enxergar com clareza a pessoa em questão. Dando uma volta na casa, esgueirou-se como uma lagartixa junto a uma das paredes laterais e graças a essa artimanha pôde contemplar a intrigante cena de um ângulo privilegiado.
A "pessoa" com quem Ecúria conversava simplesmente não existia!? Tratava-se de um boneco que, embora ainda não totalmente concluído, comigo já se parecia como se meu irmão gêmeo fosse. No exato instante em que monsenhor chegou a essa conclusão, a feiticeira colava meu cavanhaque - utilizando uma mecha de seu cabelo - e preparava-se para tingí-lo de preto. Monsenhor ficou duplamente impressionado. Primeiro, com a habilidade da bruxa, da qual ninguém jamais suspeitara; e depois com sua própria incapacidade de encontrar uma explicação para tão estranho procedimento.
- Se ela estivesse apenas exercitando seus dotes artísticos, a questão morreria neste ponto. Mas na medida em que o elegera como modelo, algo me disse que suas intenções não deviam ser nada boas.
- Estou de pleno acordo com o senhor...- e me sentei ao seu lado no sofá, repetindo sem o perceber a mesma atitude que tomara muitas vezes na infância com relação à minha avó, quando suas histórias espantosas começavam a me assustar além da conta. Monsenhor Flávio interpretou minha iniciativa com extrema sagacidade, ou seja, percebeu tanto o meu interesse por sua narrativa como minha premente necessidade de proteção. Mas creio que não precisava depositar sua mãozinha suarenta e fria sobre a minha.
- Passei todo aquele dia espreitando a construção do seu duplo. Só me afastei no final da tarde para aliviar os intestinos, mas logo retornei ao meu posto de observação. A velha Ecúria continuava lá, incansável. Já tingira sua barba, concluíra suas orelhas e se dedicava ao acabamento das mãos. À meia-noite comecei a sentir um sono terrível e resolvi voltar para a igreja, decidido a vir aqui no dia seguinte para lhe comunicar a novidade. Acordei bem cedo, mas não resisti e fui dar uma espiada. O senhor já estava quase pronto. Faltava apenas ajustar o pé direito e encurtar dois dedos do esquerdo, o mindinho sobretudo, que ultrapassava em comprimento o dedão. Deveria ter vindo conforme prometera, não é mesmo? Mas algo me impediu de arredar os pés dali. Estava como que hipnotizado pela sua duplicata, tão perfeita e expressiva que não me surpreenderia se Ecúria, parafraseando Michelângelo, de repente exclamasse "Parla!". O senhor conhece esta passagem da vida do gênio italiano, ao que suponho...
- Conheço, monsenhor, embora não acredite nela...- respondi, já achando que o prelado começava a render demais sua história. Nesse momento, uma mosca de tamanho médio se introduziu em uma das narinas de monsenhor, levando-o a estapeá-la furiosamente, fato de que me aproveitei para me afastar dele, visando escapar de sua mãozinha repelente. Mas, para meu desespero, assim que ele desalojou a mosca tornou a depositá-la em cima da minha, que eu colocara sobre o ventre numa tentativa de lhe dificultar a tarefa. Como eu já havia conseguido dominar minha ansiedade - ao menos externamente - achei esquisito ele insistir em permanecer de mãos dadas comigo. Em todo caso, preferi deixar para mais tarde uma análise mais depurada de suas possíveis tendências.
- Passei o dia inteiro vigiando. Às duas da madrugada Ecúria concluiu sua obra e fê-la ficar de pé. Se relegados a um segundo plano os detalhes macabros que cercavam o projeto, o espetáculo do senhor inanimado, exposto aos generosos eflúvios da lua, era realmente extraordinário! Embora o ache um rapaz bonito, o fato é que Ecúria construíra um verdadeiro Apolo, perfeito nos seus mínimos detalhes e de uma harmonia ímpar!
Ao descrever a obra, monsenhor parecia em êxtase. Apertava minha mão com tanta força que parecia ter a intenção de machucá-la. Eu ainda não conhecia sua paixão pela arte, em particular pelas esculturas, portanto nada mais justo que começasse a desconfiar que seu arrebatamento tinha muuito mais a ver com o modelo do que com sua réplica...
Passados alguns minutos, a situação, de embaraçosa, tornou-se crítica. Monsenhor literalmente me encurralara no canto do sofá e acariciava com ambas as mãos as partes do meu corpo que julgava terem sido reproduzidas com maior maestria pela velha Ecúria. Quando já não sabia mais o que fazer e estava a ponto de lhe dar um safanão, ele se levantou e caminhou bamboleante até uma das janelas, em cujo parapeito se apoiou, visivelmente transtornado. E não era para menos: afinal, o desvio de sua personalidade que tanto abominava e contra o qual lutara a vida inteira conseguira uma vez mais sobrepujar sua vontade e aflorara de maneira incontrolável - a confissão de sua homossexualidade me foi feita quando, já agonizante, monsenhor pressentiu que poderia morrrer a qualquer momento. Exceção feita a Ambrosina e irmã Geovana, eu fui a única pessoa com quem ele partilhou esse segredo que tanto o atormentava e que fora responsável, inclusive, por sua vinda para a pequena cidade, na qual julgara ser mais fácil se controlar.
Mas é claro que, no momento em que se deu o desagradável incidente, eu não tinha a menor idéia da extensão do drama daquele homem. Portanto, minha primeira reação foi de alívio. Pouco a pouco, porém, seu estado começou a me inquietar, pois monsenhor não conseguia dominar o pranto. Depois de refletir um instante, me aproximei dele com a intenção de proferir algumas palavras. Mas não consegui dizer nada. Tudo que me veio à cabeça me pareceu de uma banalidade insuportável. Eu ainda era muito imaturo e imaginava que uma bela frase pudesse amenizar o sofrimento alheio, agindo em relação ao espírito como um antibiótico com o corpo. Isso explica a sensação de fracasso que se apossou de mim quando voltei para a poltrona. Só muito mais tarde me conscientizei de que, em face de uma grande dor, as palavras são inúteis e que a única atitude possível é a de se fazer presente, facultando àquele que sofre todas as iniciativas.
Passou-se um bom tempo, durante o qual permaneci de olhos fechados, procurando fixar as imagens que me vinham à cabeça, tentando não escutar aquele desespero. Quando tornei a abrir os olhos, monsenhor estava parado à minha frente, apartentemente refeito.
- Vamos?
- Para onde, monsenhor?
- Para a casa de Ecúria.
- Fazer o quê?
- Impedir que ela crave uma enorme agulha no seu coração!
Então ele me deu as costas e foi engolido pela noite. Durante todo o percurso consegui o prodígio de me manter de boca fechada, só me atrevendo a abrí-la quando a casa da bruxa se tornou visível. Agarrando monsenhor pelo braço, perguntei:
- O senhor acredita em bruxarias, monsenhor?
- Não deveria, dada a minha condição de religioso. Mas como estamos vivendo uma situação extraordinária, é melhor não facilitar.
- Mas monsenhor...- insisti - como é que o senhor sabe que a velha Ecúria pretende me espetar? O senhor a ouviu mencionar esse desejo? Ou pelo menos viu a tal agulha?
Mas monsenhor, ao invés de me responder, ordenou com um gesto que eu ficasse calado. Nesse exato instante a hedionda deixava sua casa e se aproximava do meu duplo trazendo uma espécie de bandeja, na qual se podia notar a presença de um ameaçador estilete, que parecia ser de prata. Agindo como se participasse de uma cerimônia ritualística, ela se ajoelhou diante de minha réplica, beijou seu agulhão pontudo e o depositou no chão. Em seguida, tornou a desaparecer dentro da casa.
Embora o mortífero objeto não deixasse de me interessar, o fato é que o boneco gerou em mim o mesmo fascínio que antes em monsenhor, tão perfeito e expressivo ele era. A perfeição, propriamente dita, era o que menos me fascinava, pois apenas revelava uma espantosa habilidade para copiar. Mas a expressividade do meu duplo era realmente extraordinária. Ecúria conseguira o prodígio de me retratar exatamente como eu gostaria de ser visto pelos outros, ou seja, como uma pessoa forte, segura e corajosa. Parecia que a obra havia sido por mim encomendada, tanto que me favorecia. Confesso mesmo que depois de alguns minutos sua visão passou a me incomodar, na medida em que suas qualidades ultrapassavam em muito às do modelo em que se inspirara...
Pensando em partilhar essa desagradável sensação com monsenhor Flávio, dei-lhe um discreto cutucão. Mas ele, totalmente concentrado, sequer deu mostras de haver sentido meu apelo. Como eu insistisse, puxando as mangas de seu hábito, ele se virou para mim e sussurrou:
- Mas pelo amor de Deus, senhor Aquino! Será que não percebe que é a sua vida que está em jogo?
Não, eu não percebia. Achava, quando muito, que a velha Ecúria armava uma cerimônia macabra com o intuito de me fazer mal, mas não acreditava em sua eficácia. Quando, porém, a medonha apareceu com uma bacia cheia de um líquido que me pareceu ser sangue e o derramou em cima de mim, aí sim me deu uma certa dúvida. A cena se tornava impressionante. Caminhando à minha volta como se eu fosse um totem, a megera soltava gritos e se convulsionava como se estivesse possuída. Monsenhor Flávio, hirto, não movia um músculo. De repente, ao ver a bruxa pegar o estilete e erguê-lo em direção à lua, monsenhor não se conteve e exclamou baixinho, como se falasse consigo mesmo:
- O manto! Meu Deus, e o manto?
- Que manto, monsenhor? - perguntei, a essa altura já completamente aterrorizado.
- É preciso que ela vá buscá-lo! Não é possível que tenha se esquecido!?
Nesse exato instante, quando a velha Ecúria já se aproximava do meu coração fazendo pontaria, aconteceu o que mais tarde monsenhor denominou de "intervenção divina". A bruxa subitamente se imobilizou, como se o apelo de monsenhor lhe tivesse chegado aos ouvidos. Soltando um uivo, deu as costas para o meu duplo e foi para dentro de casa.
- Vamos! - bradou monsenhor. - É agora ou nunca!
E partiu na direção da minha duplicata. Eu o acompanhei, já com intensa falta de ar. Quando a atingimos, monsenhor me ordenou que a pegasse pelo tronco, enquanto ele a sustentaria pelas pernas. Isto feito, nos afastamos o mais rapidamente possível, como se o demônio estivesse em nosso encalço, brandindo um garfo incandescente. Tão logo dobramos a primeira esquina, escutamos um formidável estrondo. Involuntariamente, diminuí a marcha e ergui os olhos para o céu, imaginando que nele se armava uma soberba tempestade.
- Não seja estúpiodo! - rosnou monsenhor. - Esse uivo não partiu das nuvens!
E me obrigou a retomar o ritmo inicial. Evidentemente que eu fora um idiota, já que conhecia os poderes vocais da velha Ecúria. Ao constatar que sua obra-prima desaparecera, ela apenas liberara sua fúria, que eu cretinamente confundira com um trovão. Nunca, em toda a minha vida, tive tanta certeza de que jamais poderia ser um agente secreto, pois quando o medo afeta meu sistema nervoso, eu me torno um mongolóide exemplar, desses que qualquer faculdade de medicina gostaria de manter sob contrato para que os estudantes, em suas aulas práticas, possam ter a exata dimensão dos efeitos produzidos no organismo humano pela terrível enfermidade.
Ao chegarmos à granja, monsenhor me arrastou para os fundos da casa, o que me causou estranheza, pois imaginei que iríamos para dentro dela e o mais rápido possível.
- Para onde nos conduz, monsenhor?
- Precisamos nos livrar disso.
- Há um grande armário num dos quartos. Nós podemos enfiar lá!?
- Dentro da casa? O senhor é realmente uma personalidade única...
Antes que pudesse chegar a uma conclusão definitiva quanto ao verdadeiro sentido de sua observação, que em princípio não me pareceu favorável à minha pessoa, a terra se abriu e nos tragou aos três. Preocupado em decifrar as palavras de monsenhor, esquecera-me de que caminhávamos em direção ao refúgio que começara a cavar. Monsenhor, que ía um pouco à frente, foi quem mais sofreu com a queda, pois além do susto recebeu sobre seu frágil corpo o peso do meu e o de minha réplica somados. Literalmente amassado, me lançava apelos desesperados para que o libertasse da tremenda pressão. Mas como havíamos caído meio embolados e o espaço era um tanto exígüo, eu não conseguia me firmar para tentar satisfazer-lhe o premente desejo. Além disso, tinha medo de lhe causar um sério dano, se por exemplo me apoiasse em seu pescoço para retornar à superfície.
Quando, no entanto, sua súplicas começaram a diminuir em número e intensidade, concluí que se não agisse com presteza o prelado, daquele buraco, não precisaria mais sair. Finquei, então, meu pé direito sobre uma superfície gelatinosa e das profundezas emergi. Monsenhor, ao invés de uma exclamação de alívio, soltou um berro de hiena maltratada.
- O que foi, monsenhor? Será que eu pisei no seu saco?
- Na minha bexiga...- gemeu, com um fiozinho de voz.
- Ainda bem, monsenhor - respondi, aliviado. - Já pensou se tivesse sido mais embaixo?
- Eu me mijei todo, senhor Aquino...meu hábito está empapado!?
- E daí, monsenhor? Daqui a pouco ele seca! - retorqui, animado. - O importante é que o senhor não sofreu nenhuma lesão grave.
Isto dizendo, debrucei-me e comecei a içar o meu duplo, que continuava em cima de monsenhor.
- Tenho a impressão de que quebrei as pernas...- choramingou.
- Bobagem, monsenhor! - respondi, terminando de retirar minha duplicata. - Garanto que não houve nada com elas.
- Qual o motivo desse alçapão, senhor Aquino? O senhor, por acaso, estava construindo um túmulo?
- Um abrigo! - e agarrei suas saias.
- Devagar, por favor! - implorou. - As fraturas devem estar expostas!
- Monsenhor...-falei, enquanto o suspendia. - Eu tenho absoluta certeza de que suas pernas estão intactas. É até possível que a menorzinha tenha se igualado à outra!? - brinquei, sem me dar conta da extrema inadequação de minha piada. No entanto, tão logo consegui retirar monsenhor do buraco, ela me foi apontada:
- Se não estivesse absolutamente convencido de que o senhor é uma ótima pessoa, não tenha amenor dúvida de que o odiaria para sempre!
E antes que eu pudesse retrucar qualquer coisa, arrematou:
- E agora ponha-me no chão, por favor. Não há a menor necessidade de o senhor me manter no seu colo, como se eu fosse um recém nascido.
- Desculpe, monsenhor...- e o coloquei no chão. - Eu apenas pretendia...
- É sempre bom ter em mente o poder das palavras. Às vezes, mesmo que de forma involuntária, elas podem causar uma profunda mágoa.
Monsenhor Flávio estava certo. As palavras, sempre as palavras. Quando precisava delas, não me vinham. Se dispensáveis, apresentavam-se de imediato.
- Um abrigo, o senhor disse? - perguntou monsenhor, inspecionando o buraco.
- Exato.
- Com que finalidade?
- Quando a cidade for invadida, eu não quero ser encontrado.
- Invadida? Como assim?
Expliquei então que irmã Geovana enviara uma carta às autoridades comunicando a tragédia e pedindo providências. Contudo, essa explicação não convenceu monsenhor quanto à necessidade da construção de um abrigo subterrâneo.
- Mas para que o senhor está se dando a esse trabalho, se já possui a granja para se esconder?
- E o senhor acha que alguém respeita uma porta trancada quando sabe, ou pelo menos supõe, que do outro lado não há ninguém?
Mais uma vez monsenhor reagiu como se eu lhe tivesse dado uma bofetada. Embora eu tenha feito essa observação sem nenhuma intenção de relembrar as ações que ambos havíamos cometido quando nossos clamores estomacais sobrepujaram nossos valores éticos, ele a interpretou como se eu pretendesse atingí-lo.
- Em minha opinião, todas as pessoas respeitam uma porta trancada, salvo as que não prestam e as que estão desesperadas. O senhor tem alguma dúvida quanto a isso?
- Nenhuma, monsenhor....- respondi, fazendo-me de desentendido. - Eu penso exatamente como o senhor.
- Será? - perguntou, numa inflexão provocativa. Por um instante fiquei indeciso, mas acabei decidindo colocar tudo às claras.
- Olha aqui, monsenhor: nós estamos vivendo uma situação extraordinária. Se pretendemos sair dela conservando um resto de lucidez é preciso que a tornemos o menos complicada possível. Não pretendi fazer nenhuma insinuação maldosa em relação às atitudes que o senhor tomou para não morrer de fome, mesmo porque eu as tomei também. Portanto, esse sentimento de ofensa não cabe, como creio que não há mais lugar entre nós para mal-entendidos de qualquer espécie. Ou confiamos um no outro sem meias medidas ou é melhor que não nos vejamos mais!
As palavras, desta vez, se apresentaram da maneira que eu desejava. Monsenhor não esperava, naturalmente, uma réplica tão assertiva, pois ficou me olhando meio abismado, enquanto eu me mantinha com a postura típica de quem acaba de proferir uma verdade eterna. Por fim, ele disse:
- Você está certo. A confiança é a única saída.
Satisfeito com sua concordância e com a nova forma de tratamento - aquele "senhor" sempre me soara um tanto deslocado - pedi que a partir desse momento a mantivesse. Monsenhor não levantou qualquer objeção e aproveitando o clima amigável que de novo se instalara se permitiu afirmar que prosseguir com a construção daquele abrigo não passava de renomada tolice. Segundo ele, não havia a menor garantia de que as autoridades dessem crédito às afirmações de irmã Geovana. E na hipótese de que acreditassem nelas, dificilmente se abalariam até aquele fim de mundo, a menos que o caso ganhasse uma dimensão inesperada e fosse baixada, pelo governo federal, uma determinação nesse sentido. Mesmo assim, dessa comitiva não fariam parte mais do que umas dez pessoas, dentre outras coisas porque não havia praticamente nada a fazer, quando muito a constatar. Alguns dias mais tarde, no entanto, os fatos viriam a demonstrar o quanto mosenhor estava errado...
Mas naquele momento seus argumentos me tranquilizaram e resolvi abandonar o projeto. Sem perda de tempo, monsenhor me convenceu a utilizar o buraco como sepulcro para minha réplica, alegando que não havia nada neste mundo capaz de se manter atuante sob sete palmos de terra. E assim feoi feito. Em meia-hora o trabalho estava concluído e então fomos para dentro de casa, ávidos de higiene e comida. Sendo já muito tarde, propuis a monsenhor que passasse a noite comigo.
- Além de se sentir mais seguro o senhor poderá, antes de dormir, lavar suas roupas no tanque e deixá-las secando no varal. No dia seguinte, quando for embora, irá impregnando os caminhos com o suave frescor da madrugada...
Monsenhor não apenas concordou com minha proposta como se emocionou ligeiramente com seu epílogo, segundo ele muito rico do ponto de vista poético. Rubro de modéstia, agradeci suas palavras generosas, dando a entender que não julgava merecê-las. Pouco depois, ambos de pijama - cedi um ao prelado - nos reunimos à mesa e em silêncio ceiamos. Às três da madrugada trocamos um aperto de mão e fomos dormir.
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Lionel Fischer
(1984)
CAPÍTULO XVII
Na manhã do dia seguinte ao de sua primeira visita, monsenhor resolveu aparecer de surpresa na granja. Vinha caminhando alegremente, na certeza de que saborearia um lauto desdejum, quando, a uns cinquenta passos da casa da velha Ecúria, teve a impressão de que ela conversava com alguém diante de sua porta. Como sabia que todos os habitantes da cidade estavam mortos, aproximou-se furtivamente visando decifrar o enigma. Esse "alguém" estava sentado numa cadeira de balanço e merecia da megera cuidados de mãe solteira. A todo momento ela abandonava a própria cadeira e o tocava, afastando-se em seguida para de novo o observar. Passados alguns instantes, tornava a se aproximar e assim sucessivamente.
Monsenhor Flávio imaginou que a pessoa com quem Ecúria conversava fosse eu, não apenas porque comigo ele se parecia, mas sobretudo pela ausência de uma outra disponível. Mas sua intuição lhe dizia ser esse encontro bastante improvável. Então, resolveu se posicionar de tal forma que pudesse enxergar com clareza a pessoa em questão. Dando uma volta na casa, esgueirou-se como uma lagartixa junto a uma das paredes laterais e graças a essa artimanha pôde contemplar a intrigante cena de um ângulo privilegiado.
A "pessoa" com quem Ecúria conversava simplesmente não existia!? Tratava-se de um boneco que, embora ainda não totalmente concluído, comigo já se parecia como se meu irmão gêmeo fosse. No exato instante em que monsenhor chegou a essa conclusão, a feiticeira colava meu cavanhaque - utilizando uma mecha de seu cabelo - e preparava-se para tingí-lo de preto. Monsenhor ficou duplamente impressionado. Primeiro, com a habilidade da bruxa, da qual ninguém jamais suspeitara; e depois com sua própria incapacidade de encontrar uma explicação para tão estranho procedimento.
- Se ela estivesse apenas exercitando seus dotes artísticos, a questão morreria neste ponto. Mas na medida em que o elegera como modelo, algo me disse que suas intenções não deviam ser nada boas.
- Estou de pleno acordo com o senhor...- e me sentei ao seu lado no sofá, repetindo sem o perceber a mesma atitude que tomara muitas vezes na infância com relação à minha avó, quando suas histórias espantosas começavam a me assustar além da conta. Monsenhor Flávio interpretou minha iniciativa com extrema sagacidade, ou seja, percebeu tanto o meu interesse por sua narrativa como minha premente necessidade de proteção. Mas creio que não precisava depositar sua mãozinha suarenta e fria sobre a minha.
- Passei todo aquele dia espreitando a construção do seu duplo. Só me afastei no final da tarde para aliviar os intestinos, mas logo retornei ao meu posto de observação. A velha Ecúria continuava lá, incansável. Já tingira sua barba, concluíra suas orelhas e se dedicava ao acabamento das mãos. À meia-noite comecei a sentir um sono terrível e resolvi voltar para a igreja, decidido a vir aqui no dia seguinte para lhe comunicar a novidade. Acordei bem cedo, mas não resisti e fui dar uma espiada. O senhor já estava quase pronto. Faltava apenas ajustar o pé direito e encurtar dois dedos do esquerdo, o mindinho sobretudo, que ultrapassava em comprimento o dedão. Deveria ter vindo conforme prometera, não é mesmo? Mas algo me impediu de arredar os pés dali. Estava como que hipnotizado pela sua duplicata, tão perfeita e expressiva que não me surpreenderia se Ecúria, parafraseando Michelângelo, de repente exclamasse "Parla!". O senhor conhece esta passagem da vida do gênio italiano, ao que suponho...
- Conheço, monsenhor, embora não acredite nela...- respondi, já achando que o prelado começava a render demais sua história. Nesse momento, uma mosca de tamanho médio se introduziu em uma das narinas de monsenhor, levando-o a estapeá-la furiosamente, fato de que me aproveitei para me afastar dele, visando escapar de sua mãozinha repelente. Mas, para meu desespero, assim que ele desalojou a mosca tornou a depositá-la em cima da minha, que eu colocara sobre o ventre numa tentativa de lhe dificultar a tarefa. Como eu já havia conseguido dominar minha ansiedade - ao menos externamente - achei esquisito ele insistir em permanecer de mãos dadas comigo. Em todo caso, preferi deixar para mais tarde uma análise mais depurada de suas possíveis tendências.
- Passei o dia inteiro vigiando. Às duas da madrugada Ecúria concluiu sua obra e fê-la ficar de pé. Se relegados a um segundo plano os detalhes macabros que cercavam o projeto, o espetáculo do senhor inanimado, exposto aos generosos eflúvios da lua, era realmente extraordinário! Embora o ache um rapaz bonito, o fato é que Ecúria construíra um verdadeiro Apolo, perfeito nos seus mínimos detalhes e de uma harmonia ímpar!
Ao descrever a obra, monsenhor parecia em êxtase. Apertava minha mão com tanta força que parecia ter a intenção de machucá-la. Eu ainda não conhecia sua paixão pela arte, em particular pelas esculturas, portanto nada mais justo que começasse a desconfiar que seu arrebatamento tinha muuito mais a ver com o modelo do que com sua réplica...
Passados alguns minutos, a situação, de embaraçosa, tornou-se crítica. Monsenhor literalmente me encurralara no canto do sofá e acariciava com ambas as mãos as partes do meu corpo que julgava terem sido reproduzidas com maior maestria pela velha Ecúria. Quando já não sabia mais o que fazer e estava a ponto de lhe dar um safanão, ele se levantou e caminhou bamboleante até uma das janelas, em cujo parapeito se apoiou, visivelmente transtornado. E não era para menos: afinal, o desvio de sua personalidade que tanto abominava e contra o qual lutara a vida inteira conseguira uma vez mais sobrepujar sua vontade e aflorara de maneira incontrolável - a confissão de sua homossexualidade me foi feita quando, já agonizante, monsenhor pressentiu que poderia morrrer a qualquer momento. Exceção feita a Ambrosina e irmã Geovana, eu fui a única pessoa com quem ele partilhou esse segredo que tanto o atormentava e que fora responsável, inclusive, por sua vinda para a pequena cidade, na qual julgara ser mais fácil se controlar.
Mas é claro que, no momento em que se deu o desagradável incidente, eu não tinha a menor idéia da extensão do drama daquele homem. Portanto, minha primeira reação foi de alívio. Pouco a pouco, porém, seu estado começou a me inquietar, pois monsenhor não conseguia dominar o pranto. Depois de refletir um instante, me aproximei dele com a intenção de proferir algumas palavras. Mas não consegui dizer nada. Tudo que me veio à cabeça me pareceu de uma banalidade insuportável. Eu ainda era muito imaturo e imaginava que uma bela frase pudesse amenizar o sofrimento alheio, agindo em relação ao espírito como um antibiótico com o corpo. Isso explica a sensação de fracasso que se apossou de mim quando voltei para a poltrona. Só muito mais tarde me conscientizei de que, em face de uma grande dor, as palavras são inúteis e que a única atitude possível é a de se fazer presente, facultando àquele que sofre todas as iniciativas.
Passou-se um bom tempo, durante o qual permaneci de olhos fechados, procurando fixar as imagens que me vinham à cabeça, tentando não escutar aquele desespero. Quando tornei a abrir os olhos, monsenhor estava parado à minha frente, apartentemente refeito.
- Vamos?
- Para onde, monsenhor?
- Para a casa de Ecúria.
- Fazer o quê?
- Impedir que ela crave uma enorme agulha no seu coração!
Então ele me deu as costas e foi engolido pela noite. Durante todo o percurso consegui o prodígio de me manter de boca fechada, só me atrevendo a abrí-la quando a casa da bruxa se tornou visível. Agarrando monsenhor pelo braço, perguntei:
- O senhor acredita em bruxarias, monsenhor?
- Não deveria, dada a minha condição de religioso. Mas como estamos vivendo uma situação extraordinária, é melhor não facilitar.
- Mas monsenhor...- insisti - como é que o senhor sabe que a velha Ecúria pretende me espetar? O senhor a ouviu mencionar esse desejo? Ou pelo menos viu a tal agulha?
Mas monsenhor, ao invés de me responder, ordenou com um gesto que eu ficasse calado. Nesse exato instante a hedionda deixava sua casa e se aproximava do meu duplo trazendo uma espécie de bandeja, na qual se podia notar a presença de um ameaçador estilete, que parecia ser de prata. Agindo como se participasse de uma cerimônia ritualística, ela se ajoelhou diante de minha réplica, beijou seu agulhão pontudo e o depositou no chão. Em seguida, tornou a desaparecer dentro da casa.
Embora o mortífero objeto não deixasse de me interessar, o fato é que o boneco gerou em mim o mesmo fascínio que antes em monsenhor, tão perfeito e expressivo ele era. A perfeição, propriamente dita, era o que menos me fascinava, pois apenas revelava uma espantosa habilidade para copiar. Mas a expressividade do meu duplo era realmente extraordinária. Ecúria conseguira o prodígio de me retratar exatamente como eu gostaria de ser visto pelos outros, ou seja, como uma pessoa forte, segura e corajosa. Parecia que a obra havia sido por mim encomendada, tanto que me favorecia. Confesso mesmo que depois de alguns minutos sua visão passou a me incomodar, na medida em que suas qualidades ultrapassavam em muito às do modelo em que se inspirara...
Pensando em partilhar essa desagradável sensação com monsenhor Flávio, dei-lhe um discreto cutucão. Mas ele, totalmente concentrado, sequer deu mostras de haver sentido meu apelo. Como eu insistisse, puxando as mangas de seu hábito, ele se virou para mim e sussurrou:
- Mas pelo amor de Deus, senhor Aquino! Será que não percebe que é a sua vida que está em jogo?
Não, eu não percebia. Achava, quando muito, que a velha Ecúria armava uma cerimônia macabra com o intuito de me fazer mal, mas não acreditava em sua eficácia. Quando, porém, a medonha apareceu com uma bacia cheia de um líquido que me pareceu ser sangue e o derramou em cima de mim, aí sim me deu uma certa dúvida. A cena se tornava impressionante. Caminhando à minha volta como se eu fosse um totem, a megera soltava gritos e se convulsionava como se estivesse possuída. Monsenhor Flávio, hirto, não movia um músculo. De repente, ao ver a bruxa pegar o estilete e erguê-lo em direção à lua, monsenhor não se conteve e exclamou baixinho, como se falasse consigo mesmo:
- O manto! Meu Deus, e o manto?
- Que manto, monsenhor? - perguntei, a essa altura já completamente aterrorizado.
- É preciso que ela vá buscá-lo! Não é possível que tenha se esquecido!?
Nesse exato instante, quando a velha Ecúria já se aproximava do meu coração fazendo pontaria, aconteceu o que mais tarde monsenhor denominou de "intervenção divina". A bruxa subitamente se imobilizou, como se o apelo de monsenhor lhe tivesse chegado aos ouvidos. Soltando um uivo, deu as costas para o meu duplo e foi para dentro de casa.
- Vamos! - bradou monsenhor. - É agora ou nunca!
E partiu na direção da minha duplicata. Eu o acompanhei, já com intensa falta de ar. Quando a atingimos, monsenhor me ordenou que a pegasse pelo tronco, enquanto ele a sustentaria pelas pernas. Isto feito, nos afastamos o mais rapidamente possível, como se o demônio estivesse em nosso encalço, brandindo um garfo incandescente. Tão logo dobramos a primeira esquina, escutamos um formidável estrondo. Involuntariamente, diminuí a marcha e ergui os olhos para o céu, imaginando que nele se armava uma soberba tempestade.
- Não seja estúpiodo! - rosnou monsenhor. - Esse uivo não partiu das nuvens!
E me obrigou a retomar o ritmo inicial. Evidentemente que eu fora um idiota, já que conhecia os poderes vocais da velha Ecúria. Ao constatar que sua obra-prima desaparecera, ela apenas liberara sua fúria, que eu cretinamente confundira com um trovão. Nunca, em toda a minha vida, tive tanta certeza de que jamais poderia ser um agente secreto, pois quando o medo afeta meu sistema nervoso, eu me torno um mongolóide exemplar, desses que qualquer faculdade de medicina gostaria de manter sob contrato para que os estudantes, em suas aulas práticas, possam ter a exata dimensão dos efeitos produzidos no organismo humano pela terrível enfermidade.
Ao chegarmos à granja, monsenhor me arrastou para os fundos da casa, o que me causou estranheza, pois imaginei que iríamos para dentro dela e o mais rápido possível.
- Para onde nos conduz, monsenhor?
- Precisamos nos livrar disso.
- Há um grande armário num dos quartos. Nós podemos enfiar lá!?
- Dentro da casa? O senhor é realmente uma personalidade única...
Antes que pudesse chegar a uma conclusão definitiva quanto ao verdadeiro sentido de sua observação, que em princípio não me pareceu favorável à minha pessoa, a terra se abriu e nos tragou aos três. Preocupado em decifrar as palavras de monsenhor, esquecera-me de que caminhávamos em direção ao refúgio que começara a cavar. Monsenhor, que ía um pouco à frente, foi quem mais sofreu com a queda, pois além do susto recebeu sobre seu frágil corpo o peso do meu e o de minha réplica somados. Literalmente amassado, me lançava apelos desesperados para que o libertasse da tremenda pressão. Mas como havíamos caído meio embolados e o espaço era um tanto exígüo, eu não conseguia me firmar para tentar satisfazer-lhe o premente desejo. Além disso, tinha medo de lhe causar um sério dano, se por exemplo me apoiasse em seu pescoço para retornar à superfície.
Quando, no entanto, sua súplicas começaram a diminuir em número e intensidade, concluí que se não agisse com presteza o prelado, daquele buraco, não precisaria mais sair. Finquei, então, meu pé direito sobre uma superfície gelatinosa e das profundezas emergi. Monsenhor, ao invés de uma exclamação de alívio, soltou um berro de hiena maltratada.
- O que foi, monsenhor? Será que eu pisei no seu saco?
- Na minha bexiga...- gemeu, com um fiozinho de voz.
- Ainda bem, monsenhor - respondi, aliviado. - Já pensou se tivesse sido mais embaixo?
- Eu me mijei todo, senhor Aquino...meu hábito está empapado!?
- E daí, monsenhor? Daqui a pouco ele seca! - retorqui, animado. - O importante é que o senhor não sofreu nenhuma lesão grave.
Isto dizendo, debrucei-me e comecei a içar o meu duplo, que continuava em cima de monsenhor.
- Tenho a impressão de que quebrei as pernas...- choramingou.
- Bobagem, monsenhor! - respondi, terminando de retirar minha duplicata. - Garanto que não houve nada com elas.
- Qual o motivo desse alçapão, senhor Aquino? O senhor, por acaso, estava construindo um túmulo?
- Um abrigo! - e agarrei suas saias.
- Devagar, por favor! - implorou. - As fraturas devem estar expostas!
- Monsenhor...-falei, enquanto o suspendia. - Eu tenho absoluta certeza de que suas pernas estão intactas. É até possível que a menorzinha tenha se igualado à outra!? - brinquei, sem me dar conta da extrema inadequação de minha piada. No entanto, tão logo consegui retirar monsenhor do buraco, ela me foi apontada:
- Se não estivesse absolutamente convencido de que o senhor é uma ótima pessoa, não tenha amenor dúvida de que o odiaria para sempre!
E antes que eu pudesse retrucar qualquer coisa, arrematou:
- E agora ponha-me no chão, por favor. Não há a menor necessidade de o senhor me manter no seu colo, como se eu fosse um recém nascido.
- Desculpe, monsenhor...- e o coloquei no chão. - Eu apenas pretendia...
- É sempre bom ter em mente o poder das palavras. Às vezes, mesmo que de forma involuntária, elas podem causar uma profunda mágoa.
Monsenhor Flávio estava certo. As palavras, sempre as palavras. Quando precisava delas, não me vinham. Se dispensáveis, apresentavam-se de imediato.
- Um abrigo, o senhor disse? - perguntou monsenhor, inspecionando o buraco.
- Exato.
- Com que finalidade?
- Quando a cidade for invadida, eu não quero ser encontrado.
- Invadida? Como assim?
Expliquei então que irmã Geovana enviara uma carta às autoridades comunicando a tragédia e pedindo providências. Contudo, essa explicação não convenceu monsenhor quanto à necessidade da construção de um abrigo subterrâneo.
- Mas para que o senhor está se dando a esse trabalho, se já possui a granja para se esconder?
- E o senhor acha que alguém respeita uma porta trancada quando sabe, ou pelo menos supõe, que do outro lado não há ninguém?
Mais uma vez monsenhor reagiu como se eu lhe tivesse dado uma bofetada. Embora eu tenha feito essa observação sem nenhuma intenção de relembrar as ações que ambos havíamos cometido quando nossos clamores estomacais sobrepujaram nossos valores éticos, ele a interpretou como se eu pretendesse atingí-lo.
- Em minha opinião, todas as pessoas respeitam uma porta trancada, salvo as que não prestam e as que estão desesperadas. O senhor tem alguma dúvida quanto a isso?
- Nenhuma, monsenhor....- respondi, fazendo-me de desentendido. - Eu penso exatamente como o senhor.
- Será? - perguntou, numa inflexão provocativa. Por um instante fiquei indeciso, mas acabei decidindo colocar tudo às claras.
- Olha aqui, monsenhor: nós estamos vivendo uma situação extraordinária. Se pretendemos sair dela conservando um resto de lucidez é preciso que a tornemos o menos complicada possível. Não pretendi fazer nenhuma insinuação maldosa em relação às atitudes que o senhor tomou para não morrer de fome, mesmo porque eu as tomei também. Portanto, esse sentimento de ofensa não cabe, como creio que não há mais lugar entre nós para mal-entendidos de qualquer espécie. Ou confiamos um no outro sem meias medidas ou é melhor que não nos vejamos mais!
As palavras, desta vez, se apresentaram da maneira que eu desejava. Monsenhor não esperava, naturalmente, uma réplica tão assertiva, pois ficou me olhando meio abismado, enquanto eu me mantinha com a postura típica de quem acaba de proferir uma verdade eterna. Por fim, ele disse:
- Você está certo. A confiança é a única saída.
Satisfeito com sua concordância e com a nova forma de tratamento - aquele "senhor" sempre me soara um tanto deslocado - pedi que a partir desse momento a mantivesse. Monsenhor não levantou qualquer objeção e aproveitando o clima amigável que de novo se instalara se permitiu afirmar que prosseguir com a construção daquele abrigo não passava de renomada tolice. Segundo ele, não havia a menor garantia de que as autoridades dessem crédito às afirmações de irmã Geovana. E na hipótese de que acreditassem nelas, dificilmente se abalariam até aquele fim de mundo, a menos que o caso ganhasse uma dimensão inesperada e fosse baixada, pelo governo federal, uma determinação nesse sentido. Mesmo assim, dessa comitiva não fariam parte mais do que umas dez pessoas, dentre outras coisas porque não havia praticamente nada a fazer, quando muito a constatar. Alguns dias mais tarde, no entanto, os fatos viriam a demonstrar o quanto mosenhor estava errado...
Mas naquele momento seus argumentos me tranquilizaram e resolvi abandonar o projeto. Sem perda de tempo, monsenhor me convenceu a utilizar o buraco como sepulcro para minha réplica, alegando que não havia nada neste mundo capaz de se manter atuante sob sete palmos de terra. E assim feoi feito. Em meia-hora o trabalho estava concluído e então fomos para dentro de casa, ávidos de higiene e comida. Sendo já muito tarde, propuis a monsenhor que passasse a noite comigo.
- Além de se sentir mais seguro o senhor poderá, antes de dormir, lavar suas roupas no tanque e deixá-las secando no varal. No dia seguinte, quando for embora, irá impregnando os caminhos com o suave frescor da madrugada...
Monsenhor não apenas concordou com minha proposta como se emocionou ligeiramente com seu epílogo, segundo ele muito rico do ponto de vista poético. Rubro de modéstia, agradeci suas palavras generosas, dando a entender que não julgava merecê-las. Pouco depois, ambos de pijama - cedi um ao prelado - nos reunimos à mesa e em silêncio ceiamos. Às três da madrugada trocamos um aperto de mão e fomos dormir.
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quarta-feira, 13 de outubro de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Comédia russa"
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Crimes na repartição
Lionel Fischer
Muito já se escreveu sobre este monstro chamado burocracia, cuja principal finalidade é levar a espécie humana à loucura. Mas aqui, mesmo que exibindo a ineficiência de uma repartição pública, o ócio generalizado acaba sendo banido graças à uma seqüência de misteriosos crimes, que acabam conferindo, curiosamente, um pouco de vida ao marasmo habitual.
De autoria de Pedro Brício, "Comédia russa" é o mais recente espetáculo da Cia. Fodidos Privilegiados, ora em cartaz no Teatro Nelson Rodrigues (Caixa Cultural). João Fonseca responde pela direção, estando o elenco formado por Alexandre Pinheiro, Cristina Mayrink, Daniela Olivert, Filomena Mancuzo, Marcos Correa, Ricardo Souzedo, Roberto Lobo, Rose Abdallah e Thelmo Fernandes, além dos atores convidados Rodrigo Nogueira e Natália Lage.
Como fica perfeitamente claro, o autor Pedro Brício não pretendeu analisar ou questionar as razões que permitem a existência da máquina burocrática, cuja ineficiência é praticamente a mesma em todos os países - inclusive na Rússia, onde a ação é ambientada. Seu objetivo, ao que me parece, foi o de criar uma situação (como já foi dito) capaz de demonstrar que as mesmas pessoas que "agem" com a rapidez de uma lesma tornam-se super ativas quando confrontadas com um contexto que foge ao cotidiano de suas funções. E neste sentido seu texto pode ser considerado eficiente, embora tal eficiência pudesse ser ainda maior desde que a peça fosse um pouco reduzida.
Ainda assim, o autor cria ótimos personagens e situações hilariantes, exploradas com vigor e criatividade pelo diretor João Fonseca, a quem considero nosso melhor "especialista" quando se trata de materializar na cena contextos delirantes. E a Fonseca também deve ser creditada mais uma parcela desta bem sucedida empreitada teatral, já que consegue extrair ótimas atuações do numeroso elenco.
Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo a cenografia de Nello Marrese, os figurinos de Rui Cortez, a iluminação de Daniela Sanchez, a música original de André Abujamra e a programação visual de Adrien Scultori.
COMÉDIA RUSSA - Texto de Pedro Brício. Direção de João Fonseca. Com a Cia. Fodidos Privilegiados. Teatro Nelson Rodrigues. Quinta a domingo, 19h30.
"Comédia russa"
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Crimes na repartição
Lionel Fischer
Muito já se escreveu sobre este monstro chamado burocracia, cuja principal finalidade é levar a espécie humana à loucura. Mas aqui, mesmo que exibindo a ineficiência de uma repartição pública, o ócio generalizado acaba sendo banido graças à uma seqüência de misteriosos crimes, que acabam conferindo, curiosamente, um pouco de vida ao marasmo habitual.
De autoria de Pedro Brício, "Comédia russa" é o mais recente espetáculo da Cia. Fodidos Privilegiados, ora em cartaz no Teatro Nelson Rodrigues (Caixa Cultural). João Fonseca responde pela direção, estando o elenco formado por Alexandre Pinheiro, Cristina Mayrink, Daniela Olivert, Filomena Mancuzo, Marcos Correa, Ricardo Souzedo, Roberto Lobo, Rose Abdallah e Thelmo Fernandes, além dos atores convidados Rodrigo Nogueira e Natália Lage.
Como fica perfeitamente claro, o autor Pedro Brício não pretendeu analisar ou questionar as razões que permitem a existência da máquina burocrática, cuja ineficiência é praticamente a mesma em todos os países - inclusive na Rússia, onde a ação é ambientada. Seu objetivo, ao que me parece, foi o de criar uma situação (como já foi dito) capaz de demonstrar que as mesmas pessoas que "agem" com a rapidez de uma lesma tornam-se super ativas quando confrontadas com um contexto que foge ao cotidiano de suas funções. E neste sentido seu texto pode ser considerado eficiente, embora tal eficiência pudesse ser ainda maior desde que a peça fosse um pouco reduzida.
Ainda assim, o autor cria ótimos personagens e situações hilariantes, exploradas com vigor e criatividade pelo diretor João Fonseca, a quem considero nosso melhor "especialista" quando se trata de materializar na cena contextos delirantes. E a Fonseca também deve ser creditada mais uma parcela desta bem sucedida empreitada teatral, já que consegue extrair ótimas atuações do numeroso elenco.
Na equipe técnica, destaco com o mesmo entusiasmo a cenografia de Nello Marrese, os figurinos de Rui Cortez, a iluminação de Daniela Sanchez, a música original de André Abujamra e a programação visual de Adrien Scultori.
COMÉDIA RUSSA - Texto de Pedro Brício. Direção de João Fonseca. Com a Cia. Fodidos Privilegiados. Teatro Nelson Rodrigues. Quinta a domingo, 19h30.
igual a você
Teatro/CRÍTICA
"Igual a você"
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Loucuras cotidianas
Lionel Fischer
"Os males da vida moderna que atacam boa parte dos habitantes das grandes metrópoles são o alicerce da comédia". Este trecho, extraído do release que me foi enviado, traduz o que realmente ocorre em cena. Estruturado na forma de esquetes, "Igual a você" (Teatro do Leblon)exibe textos de Lícia Manzo ("Paranóia" e "Vício"), Cristina Fagundes ("Ninfomania" e "Pânico"), Adriana Falcão ("Insônia"), Regiana Antonini ("TOC e TPM") e Fernando Duarte e Therèze Bellido ("Hipocondria"). Ernesto Piccolo assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Camila Morgado, Bia Nunes e Anderson Müller.
Como em geral ocorre em espetáculos que reúnem esquetes, aqui alguns atingem mais plenamente seus objetivos do que outros. No presente caso, destacamos "Paranóia", "Ninfomania" e "TOC e TPM". Em "Paranóia", a autora Lícia Manzo extrai grande comicidade do primeiro encontro entre um homem e uma mulher que se conheceram através da internet. No segundo, Cristina Fagundes cria um texto muito engraçado envolvento uma jovem que reúne, em doses equivalentes, compulsão sexual e debilidade mental, gerando no rapaz que tenta seduzir um permanente estado de perplexidade.
Finalmente, em "TOC e TPM", Regiana Antonini nos mostra duas amigas em um restaurante, sendo uma delas cantora lírica que obriga a amiga a trocar de mesa a todo momento, alegando hipotéticas correntes de ar, capazes de causar irremediáveis danos às suas preciosas cordas vocais. Quanto aos demais, dramaturgicamente inferiores, ainda assim o riso acontece muitas vezes, mas muito mais em função da atuação dos intérpretes.
Com relação ao espetáculo, Ernesto Piccolo cria uma dinâmica cênica eficiente, mas isenta de maior brilho. Mas cabe ressaltar sua atuação junto ao elenco, pois Camila Morgado, Bia Nunes e Anderson Müller exibem ótimo tempo de comédia e grande versatilidade nos múltiplos personagens que interpretam. Na equipe técnica, Aurélio de Simoni (iluminação), Gabriel Lessa (trilha sonora) e Clívia Cohen (cenografia) respondem por trabalhos corretos, cabendo destacar os ótimos figurinos de Lessa de Lacerda.
IGUAL A VOCÊ - Textos de vários autores. Direção de Ernesto Piccolo. Com Camila Morgado, Bia Nunes e Anderson Müller. Teatro do Leblon. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h.
"Igual a você"
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Loucuras cotidianas
Lionel Fischer
"Os males da vida moderna que atacam boa parte dos habitantes das grandes metrópoles são o alicerce da comédia". Este trecho, extraído do release que me foi enviado, traduz o que realmente ocorre em cena. Estruturado na forma de esquetes, "Igual a você" (Teatro do Leblon)exibe textos de Lícia Manzo ("Paranóia" e "Vício"), Cristina Fagundes ("Ninfomania" e "Pânico"), Adriana Falcão ("Insônia"), Regiana Antonini ("TOC e TPM") e Fernando Duarte e Therèze Bellido ("Hipocondria"). Ernesto Piccolo assina a direção do espetáculo, estando o elenco formado por Camila Morgado, Bia Nunes e Anderson Müller.
Como em geral ocorre em espetáculos que reúnem esquetes, aqui alguns atingem mais plenamente seus objetivos do que outros. No presente caso, destacamos "Paranóia", "Ninfomania" e "TOC e TPM". Em "Paranóia", a autora Lícia Manzo extrai grande comicidade do primeiro encontro entre um homem e uma mulher que se conheceram através da internet. No segundo, Cristina Fagundes cria um texto muito engraçado envolvento uma jovem que reúne, em doses equivalentes, compulsão sexual e debilidade mental, gerando no rapaz que tenta seduzir um permanente estado de perplexidade.
Finalmente, em "TOC e TPM", Regiana Antonini nos mostra duas amigas em um restaurante, sendo uma delas cantora lírica que obriga a amiga a trocar de mesa a todo momento, alegando hipotéticas correntes de ar, capazes de causar irremediáveis danos às suas preciosas cordas vocais. Quanto aos demais, dramaturgicamente inferiores, ainda assim o riso acontece muitas vezes, mas muito mais em função da atuação dos intérpretes.
Com relação ao espetáculo, Ernesto Piccolo cria uma dinâmica cênica eficiente, mas isenta de maior brilho. Mas cabe ressaltar sua atuação junto ao elenco, pois Camila Morgado, Bia Nunes e Anderson Müller exibem ótimo tempo de comédia e grande versatilidade nos múltiplos personagens que interpretam. Na equipe técnica, Aurélio de Simoni (iluminação), Gabriel Lessa (trilha sonora) e Clívia Cohen (cenografia) respondem por trabalhos corretos, cabendo destacar os ótimos figurinos de Lessa de Lacerda.
IGUAL A VOCÊ - Textos de vários autores. Direção de Ernesto Piccolo. Com Camila Morgado, Bia Nunes e Anderson Müller. Teatro do Leblon. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h.
quinta-feira, 7 de outubro de 2010
Teatro/CRÍTICA
"Hedwig e o Centímetro Enfurecido"
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O amor em tempos de fúria
Lionel Fischer
Nascido em Berlim Oriental, Hansel conhece o militar Luther, por quem se apaixona. Este último, ainda que simulando idêntico sentimento, impõe a Hansel que troque de sexo, pois do contrário não o levará consigo para os Estados Unidos. A operação é feita, mas falha, e Hansel (agora Hedwig) é abandonada por Luther num trailer em Kansas City. Mais adiante, se apaixona pelo músico Tommy Speck, que rouba suas canções e se converte numa estrela do rock. Mais uma vez descartada, Hedwig passa a perseguir Tommy em sua turnê mundial, apresentando-se em restaurantes perto dos estádios onde ele toca. Durante seus shows, dá especial ênfase ao amor e à busca por sua cara-metade.
Eis, em resumo, o enredo do musical "Hedwig e o Centímetro Enfurecido", de John Cameron Mitchell, que conta com letras e músicas assinadas por Stephen Trask. Exibido com sucesso nos Estados Unidos e em muitos países, o musical chega ao Brasil com direção e adaptação de Evandro Mesquita, tradução de Jonas Calmon Klabin e elenco formado por Paulo Vilhena e Pierre Baitelli (ambos interpretam o papel de Hedwig) e Eline Porto (Yitzhak), que dividem o palco com os músicos Alexandre Griva (bateria), Fabrizio Iorio (teclado), Patrick Laplan (baixo) e Pedro Nogueira (guitarra).
Estruturado na forma de monólogos e números musicais, o espetáculo propõe à platéia, através da trágica história da protagonista, uma série de reflexões, com especial ênfase, como já foi dito, no amor. Mas este, em função do contexto, é abordado em múltiplos de seus aspectos, o que confere grande atualidade ao tema, visto que, em nossa época, as relações amorosas vem passando por constantes transformações. O conceito de "amor ideal" já há muito deixou de existir, assim como certas fronteiras foram abolidas. Seja como for, o que permanece inalterado é o desejo que todos sentimos de encontrar nossa alma gêmea, sem o que a plena felicidade torna-se impossível - ao menos em minha opinião.
Estamos, pois, diante de um texto bastante pertinente, que mescla a todo momento doses equivalentes de ironia e dor, e cuja única ressalva é sua extensão - acredito que, se um pouco reduzida, a peça atingiria ainda mais o espectador. Mas tal ressalva é amplamente compensada por uma produção impecável, materializada na cena sob o comando de Evandro Mesquita.
Impondo à cena uma dinâmica em total sintonia com as propostas do autor, Evandro Mesquita nos põe em contato com um universo decadente e desesperador, mas ainda assim não isento de alguma esperança. Esta deve ser atribuída à tenacidade com que a protagonista insiste em perseguir seus principais objetivos, quais sejam o de tornar-se uma artista reconhecida e encontrar alguém que a ame sem reservas, e a quem possa entregar-se totalmente, assim objetivando escrever uma nova história. Valendo-se de marcas debochadas, patéticas e ao mesmo tempo furiosas, o encenador consegue aproximar o delirante universo da protagonista da platéia, que se torna cúmplice de um ser que, em princípio, tenderia a rejeitar - ou, no máximo, encarar com uma certa piedade.
No elenco, Paulo Vilhena e Pierre Baitelli exibem performances irretocáveis, tanto nas partes cantadas quanto naquelas em que "contracenam" ou se relacionam diretamente com a platéia, entregando-se por completo à nada fácil tarefa de encarnar uma personalidade tão complexa. Aliás, com relação a Paulo Vilhena, gostaria de fazer o seguinte registro: acho admirável a postura adotada pelo ator, que jamais traz para os palcos personagens semelhantes aos que interpreta com tanto sucesso na TV, assim visando garantir, ao menos em teoria, um maior núnero de espectadores. Completando o elenco, Eline Porto canta e dança com a mesma eficiência, também se saindo muito bem nos momentos em que contracena com os protagonistas.
Com relação à equipe técnica, destacamos a direção musical de Danilo Timm e Evandro Mesquita, a brilhante atuação dos músicos, os maravilhosos figurinos de Marta Reis, a expressiva iluminação de Luiz Paulo Nenen e a "roqueira" (não encontrei termo melhor) cenografia de Suzane Queiroz. Cabe ainda registrar a preparação vocal de Danilo Timm, a edição de imagens de Alice Grillo, a bela programação visual de Tania Grillo, o abrangente release que me foi enviado e, finalmente, a eficiência dos profissionais que operam a luz (Marcelo Andrade), o som (Edson Barbosa) e as projeções (Rafael Mose).
HEDWIG E O CENTÍMETRO ENFURECIDO - Texto de John Cameron Mitchel. Direção de Evandro Mesquita. Com Paulo Vilhena, Pierre Baitelli e Eline Porto. Teatro das Artes. Quarta e quinta, 20h; sexta e sábado, 23h30.
"Hedwig e o Centímetro Enfurecido"
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O amor em tempos de fúria
Lionel Fischer
Nascido em Berlim Oriental, Hansel conhece o militar Luther, por quem se apaixona. Este último, ainda que simulando idêntico sentimento, impõe a Hansel que troque de sexo, pois do contrário não o levará consigo para os Estados Unidos. A operação é feita, mas falha, e Hansel (agora Hedwig) é abandonada por Luther num trailer em Kansas City. Mais adiante, se apaixona pelo músico Tommy Speck, que rouba suas canções e se converte numa estrela do rock. Mais uma vez descartada, Hedwig passa a perseguir Tommy em sua turnê mundial, apresentando-se em restaurantes perto dos estádios onde ele toca. Durante seus shows, dá especial ênfase ao amor e à busca por sua cara-metade.
Eis, em resumo, o enredo do musical "Hedwig e o Centímetro Enfurecido", de John Cameron Mitchell, que conta com letras e músicas assinadas por Stephen Trask. Exibido com sucesso nos Estados Unidos e em muitos países, o musical chega ao Brasil com direção e adaptação de Evandro Mesquita, tradução de Jonas Calmon Klabin e elenco formado por Paulo Vilhena e Pierre Baitelli (ambos interpretam o papel de Hedwig) e Eline Porto (Yitzhak), que dividem o palco com os músicos Alexandre Griva (bateria), Fabrizio Iorio (teclado), Patrick Laplan (baixo) e Pedro Nogueira (guitarra).
Estruturado na forma de monólogos e números musicais, o espetáculo propõe à platéia, através da trágica história da protagonista, uma série de reflexões, com especial ênfase, como já foi dito, no amor. Mas este, em função do contexto, é abordado em múltiplos de seus aspectos, o que confere grande atualidade ao tema, visto que, em nossa época, as relações amorosas vem passando por constantes transformações. O conceito de "amor ideal" já há muito deixou de existir, assim como certas fronteiras foram abolidas. Seja como for, o que permanece inalterado é o desejo que todos sentimos de encontrar nossa alma gêmea, sem o que a plena felicidade torna-se impossível - ao menos em minha opinião.
Estamos, pois, diante de um texto bastante pertinente, que mescla a todo momento doses equivalentes de ironia e dor, e cuja única ressalva é sua extensão - acredito que, se um pouco reduzida, a peça atingiria ainda mais o espectador. Mas tal ressalva é amplamente compensada por uma produção impecável, materializada na cena sob o comando de Evandro Mesquita.
Impondo à cena uma dinâmica em total sintonia com as propostas do autor, Evandro Mesquita nos põe em contato com um universo decadente e desesperador, mas ainda assim não isento de alguma esperança. Esta deve ser atribuída à tenacidade com que a protagonista insiste em perseguir seus principais objetivos, quais sejam o de tornar-se uma artista reconhecida e encontrar alguém que a ame sem reservas, e a quem possa entregar-se totalmente, assim objetivando escrever uma nova história. Valendo-se de marcas debochadas, patéticas e ao mesmo tempo furiosas, o encenador consegue aproximar o delirante universo da protagonista da platéia, que se torna cúmplice de um ser que, em princípio, tenderia a rejeitar - ou, no máximo, encarar com uma certa piedade.
No elenco, Paulo Vilhena e Pierre Baitelli exibem performances irretocáveis, tanto nas partes cantadas quanto naquelas em que "contracenam" ou se relacionam diretamente com a platéia, entregando-se por completo à nada fácil tarefa de encarnar uma personalidade tão complexa. Aliás, com relação a Paulo Vilhena, gostaria de fazer o seguinte registro: acho admirável a postura adotada pelo ator, que jamais traz para os palcos personagens semelhantes aos que interpreta com tanto sucesso na TV, assim visando garantir, ao menos em teoria, um maior núnero de espectadores. Completando o elenco, Eline Porto canta e dança com a mesma eficiência, também se saindo muito bem nos momentos em que contracena com os protagonistas.
Com relação à equipe técnica, destacamos a direção musical de Danilo Timm e Evandro Mesquita, a brilhante atuação dos músicos, os maravilhosos figurinos de Marta Reis, a expressiva iluminação de Luiz Paulo Nenen e a "roqueira" (não encontrei termo melhor) cenografia de Suzane Queiroz. Cabe ainda registrar a preparação vocal de Danilo Timm, a edição de imagens de Alice Grillo, a bela programação visual de Tania Grillo, o abrangente release que me foi enviado e, finalmente, a eficiência dos profissionais que operam a luz (Marcelo Andrade), o som (Edson Barbosa) e as projeções (Rafael Mose).
HEDWIG E O CENTÍMETRO ENFURECIDO - Texto de John Cameron Mitchel. Direção de Evandro Mesquita. Com Paulo Vilhena, Pierre Baitelli e Eline Porto. Teatro das Artes. Quarta e quinta, 20h; sexta e sábado, 23h30.
quarta-feira, 6 de outubro de 2010
O estranho
(47)
O embate foi breve. Fui tomado por um acesso de loucura e, em meu braço, senti o vigor e a força de mil homens. Ao cabo de alguns segundos empurrei-o com força bruta de encontro ao lambril e, assim, tendo-o à minha mercê, embebi minha espada repetidas vezes em seu peito com uma fúria selvagem.
Naquele instante alguém tentou abrir a porta. Apressei-me em evitar a intrusão e, de imediato, voltei para junto do meu adversário moribundo. Que língua humana, no entanto, seria capaz de expressar a surpresa, o horror que senti ao testemunhar o espetáculo apresentado aos meus olhos? Aparentemente, o breve instante em que desviei o olhar fora o suficiente para desencadear uma alteração considerável na situação do lado mais alto ou oposto do aposento. Um enorme espelho - foi assim que me pareceu em meio à confusão - assomou onde instantes atrás não havia nada; e, enquanto eu me aproximava em um paroxismo de terror, minha própria imagem, de aspecto pálido e manchada de sangue, avançou em minha direção a passos débeis e hesitantes.
Foi assim que pareceu, mas não foi. Era o meu adversário - era Wilson quem se erguia diante de mim nas agonias do seu ocaso. A máscara e o manto dele estavam onde os havia atirado, no chão. Nenhum fio em seus trajes - nenhuma linha em todo o seu semblante marcado e singular que não fosse, mesmo na identidade mais absoluta, o meu próprio! (Edgar Allan Poe, "William Wilson", 1839).
O crítico estruturalista francês de origem búlgara Tzvetan Todorov propôs que as histórias sobrenaturais fossem divididas em três categorias: o maravilhoso, em que nenhuma explicação dos fenômenos sobrenaturais é possível; o estranho, em que são possíveis; e o fantástico, em que a narrativa hesita, sem se decidir, entre explicações naturais e sobrenaturais.
Um exemplo do fantástico, segundo esse uso, é a famosa história de fantasmas "A volta do parafuso", de Henri James. Uma jovem governanta assume a guarda de duas crianças órfãs em uma casa de campo isolada, e começa a ver vultos que parecem lembrar a ex-governanta e o criado maléfico que a seduziu, ambos já falecidos. A governanta acredita que esses espíritos do mal têm poderes sobre as crianças que estão sob seus cuidados e tenta livrá-las dessa influência. No clímax da história, a jovem heroína luta contra o fantasma do criado para evitar que ele se aposse da alma de Miles, e o garoto morre: "seu pequeno coração, despossuído, parara".
A história, narrada pela governanta, pode ser e vem sendo lida de dois modos diferentes, que correspondem ao "maravilhoso" e ao "estranho" de Todorov: ou os fantasmas são "reais" e a governanta se envolve em uma batalha heróica contra os poderes sobrenaturais do mal, ou são projeções das próprias neuroses e paranoias sexuais da jovem, com as quais ela literalmente mata de susto o garoto de quem deveria cuidar. Os críticos tentaram, em vão, provar a exatidão desta ou daquela leitura. O mais importante nessa história é a possibilidade de uma dupla interpretação, o que a torna imune ao ceticismo do leitor.
A classificação de Todorov é um chamado provocativo à reflexão sobre o assunto, ainda que sua nomenclatura possa causar alguma confusão quando traduzida, pois "fantástico" em geral é entendido como em oposição ao "real", e "estranho" parece um termo pouco natural para classificar uma história como "A volta do parafuso". Também podemos discutir as minúcias da aplicação desta terminologia.
O próprio Todorov foi obrigado a reconhecer que existem obras que desafiam essa categorização e precisam ser classificadas como "fantástico-estranhas" ou "fantástico-maravilhosas". "William Wilson", de Edgar Allan Poe, é uma dessas obras. Ainda que Todorov leia o conto como a alegoria ou a parábola de uma consciência perturbada (o que o torna "estranho", segundo sua própria classificação), a história traz um elemento de ambigüidade que o crítico encara como sendo a característica essencial do "fantástico".
"William Wilson" é uma história de Doppelgänger. O narrador epônimo, que admite a própria devassidão no início da história, descreve o primeiro internato onde estudou como uma construção onde "era difícil, a qualquer momento, dizer com certeza em qual dos dois níveis estava (essa ambigüidade sem dúvida é proposital). Lá, Wilson tinha um rival com o mesmo nome, admitido à escola no mesmo dia, com a mesma data de aniversário e fisicamente muito parecido com o narrador, cujo comportamento o segundo Wilson satirizava. A única diferença entre o duplo e o narrador é que o primeiro é incapaz de elevar a voz a mais do que à altura de um sussurro.
Wilson gradua-se em Eton e vai para Oxford, enquanto se afunda cada vez mais na degradação. Sempre que o personagem pratica alguma ação particularmente odiosa surge um homem vestido em trajes iguais aos seus e com o rosto escondido, que murmura "William Wilson" em um sussurro inconfundível. Desmascarado pelo duplo enquanto trapaceava em um jogo de cartas, Wilson foge para o estrangeiro, mas o Doppelgänger o persegue em toda a parte. "Muitas e muitas vezes, em comunhão secreta com o meu próprio espírito, eu perguntava-me: quem é ele - e o que pretende?. Em Veneza, Wilson, à espera de uma mulher casada para um encontro adúltero, sente "o leve toque de uma mão sobre o ombro, e aquele inesquecível, grave e odioso sussurro nos meus ouvidos". Tomado de ódio, o personagem investe sobre o algoz de espada em punho.
É óbvio que o duplo pode ser interpretado como a externalização alucinatória da consciência ou de uma versão melhorada de Wilson, e no texto existem várias pistas que apontam nessa direção. Wilson afirma, por exemplo, que o duplo de sua época de garoto tinha "princípios morais muito além dos meus próprios", e ninguém além do próprio Wilson parece espantar-se com a semelhança física entre os dois. Mas a história não teria essa força perturbadora e sugestiva se não conferisse uma concretude plausível aos acontecimentos estranhos.
O clímax do conto parece especialmente engenhoso graças à referência ambígüa ao espelho. A partir de uma perspectiva racional, poderíamos supor que, em um delírio motivado pela culpa e pelo ódio a si mesmo, Wilson tenha confundido a própria imagem refletida no espelho com o duplo e investido sobre ela, mutilando-se no processo; mas, segundo a perspectiva de Wilson, o contrário parece ter acontecido - o que Wilson a princípio crê ser o reflexo da prórpria imagem revela-se a figura ensanguentada e agonizante do duplo.
Narrativas "estranhas" clássicas usam sempre narradores em primeira pessoa e imitam formas discursivas como confissões, cartas e depoimentos para dar maior credibilidade ao relato. (Podemos citar "Frankenstein", de Mary Shelley, e "O médico e o monstro", de Robert Louis Stevenson, como exemplos). Esses narradores tendem a escrever num estilo bastante literário que, em outros contextos, poderia parecer um tanto batido: no primeiro parágrafo do trecho, por exemplo, aparecem "acesso de loucura", "força de mil homens", "força bruta" e "fúria selvagem".
Na tradição gótica de horror à qual pertence Poe, e à qual o autor americano deu um forte impulso, não faltam exemplos desses textos "mal bem escritos". A previsibilidade retórica e a própria falta de originalidade garantem a lisura do narrador e tornam mais plausíveis as estranhas experiências relatadas.
_______________________
Extraído de "A arte da ficção", de David Lodge (LYPM POCKET, tradução de Guilherme da Silva Braga). O livro contém 50 deliciosos artigos sobre a arte de contar histórias.
(47)
O embate foi breve. Fui tomado por um acesso de loucura e, em meu braço, senti o vigor e a força de mil homens. Ao cabo de alguns segundos empurrei-o com força bruta de encontro ao lambril e, assim, tendo-o à minha mercê, embebi minha espada repetidas vezes em seu peito com uma fúria selvagem.
Naquele instante alguém tentou abrir a porta. Apressei-me em evitar a intrusão e, de imediato, voltei para junto do meu adversário moribundo. Que língua humana, no entanto, seria capaz de expressar a surpresa, o horror que senti ao testemunhar o espetáculo apresentado aos meus olhos? Aparentemente, o breve instante em que desviei o olhar fora o suficiente para desencadear uma alteração considerável na situação do lado mais alto ou oposto do aposento. Um enorme espelho - foi assim que me pareceu em meio à confusão - assomou onde instantes atrás não havia nada; e, enquanto eu me aproximava em um paroxismo de terror, minha própria imagem, de aspecto pálido e manchada de sangue, avançou em minha direção a passos débeis e hesitantes.
Foi assim que pareceu, mas não foi. Era o meu adversário - era Wilson quem se erguia diante de mim nas agonias do seu ocaso. A máscara e o manto dele estavam onde os havia atirado, no chão. Nenhum fio em seus trajes - nenhuma linha em todo o seu semblante marcado e singular que não fosse, mesmo na identidade mais absoluta, o meu próprio! (Edgar Allan Poe, "William Wilson", 1839).
O crítico estruturalista francês de origem búlgara Tzvetan Todorov propôs que as histórias sobrenaturais fossem divididas em três categorias: o maravilhoso, em que nenhuma explicação dos fenômenos sobrenaturais é possível; o estranho, em que são possíveis; e o fantástico, em que a narrativa hesita, sem se decidir, entre explicações naturais e sobrenaturais.
Um exemplo do fantástico, segundo esse uso, é a famosa história de fantasmas "A volta do parafuso", de Henri James. Uma jovem governanta assume a guarda de duas crianças órfãs em uma casa de campo isolada, e começa a ver vultos que parecem lembrar a ex-governanta e o criado maléfico que a seduziu, ambos já falecidos. A governanta acredita que esses espíritos do mal têm poderes sobre as crianças que estão sob seus cuidados e tenta livrá-las dessa influência. No clímax da história, a jovem heroína luta contra o fantasma do criado para evitar que ele se aposse da alma de Miles, e o garoto morre: "seu pequeno coração, despossuído, parara".
A história, narrada pela governanta, pode ser e vem sendo lida de dois modos diferentes, que correspondem ao "maravilhoso" e ao "estranho" de Todorov: ou os fantasmas são "reais" e a governanta se envolve em uma batalha heróica contra os poderes sobrenaturais do mal, ou são projeções das próprias neuroses e paranoias sexuais da jovem, com as quais ela literalmente mata de susto o garoto de quem deveria cuidar. Os críticos tentaram, em vão, provar a exatidão desta ou daquela leitura. O mais importante nessa história é a possibilidade de uma dupla interpretação, o que a torna imune ao ceticismo do leitor.
A classificação de Todorov é um chamado provocativo à reflexão sobre o assunto, ainda que sua nomenclatura possa causar alguma confusão quando traduzida, pois "fantástico" em geral é entendido como em oposição ao "real", e "estranho" parece um termo pouco natural para classificar uma história como "A volta do parafuso". Também podemos discutir as minúcias da aplicação desta terminologia.
O próprio Todorov foi obrigado a reconhecer que existem obras que desafiam essa categorização e precisam ser classificadas como "fantástico-estranhas" ou "fantástico-maravilhosas". "William Wilson", de Edgar Allan Poe, é uma dessas obras. Ainda que Todorov leia o conto como a alegoria ou a parábola de uma consciência perturbada (o que o torna "estranho", segundo sua própria classificação), a história traz um elemento de ambigüidade que o crítico encara como sendo a característica essencial do "fantástico".
"William Wilson" é uma história de Doppelgänger. O narrador epônimo, que admite a própria devassidão no início da história, descreve o primeiro internato onde estudou como uma construção onde "era difícil, a qualquer momento, dizer com certeza em qual dos dois níveis estava (essa ambigüidade sem dúvida é proposital). Lá, Wilson tinha um rival com o mesmo nome, admitido à escola no mesmo dia, com a mesma data de aniversário e fisicamente muito parecido com o narrador, cujo comportamento o segundo Wilson satirizava. A única diferença entre o duplo e o narrador é que o primeiro é incapaz de elevar a voz a mais do que à altura de um sussurro.
Wilson gradua-se em Eton e vai para Oxford, enquanto se afunda cada vez mais na degradação. Sempre que o personagem pratica alguma ação particularmente odiosa surge um homem vestido em trajes iguais aos seus e com o rosto escondido, que murmura "William Wilson" em um sussurro inconfundível. Desmascarado pelo duplo enquanto trapaceava em um jogo de cartas, Wilson foge para o estrangeiro, mas o Doppelgänger o persegue em toda a parte. "Muitas e muitas vezes, em comunhão secreta com o meu próprio espírito, eu perguntava-me: quem é ele - e o que pretende?. Em Veneza, Wilson, à espera de uma mulher casada para um encontro adúltero, sente "o leve toque de uma mão sobre o ombro, e aquele inesquecível, grave e odioso sussurro nos meus ouvidos". Tomado de ódio, o personagem investe sobre o algoz de espada em punho.
É óbvio que o duplo pode ser interpretado como a externalização alucinatória da consciência ou de uma versão melhorada de Wilson, e no texto existem várias pistas que apontam nessa direção. Wilson afirma, por exemplo, que o duplo de sua época de garoto tinha "princípios morais muito além dos meus próprios", e ninguém além do próprio Wilson parece espantar-se com a semelhança física entre os dois. Mas a história não teria essa força perturbadora e sugestiva se não conferisse uma concretude plausível aos acontecimentos estranhos.
O clímax do conto parece especialmente engenhoso graças à referência ambígüa ao espelho. A partir de uma perspectiva racional, poderíamos supor que, em um delírio motivado pela culpa e pelo ódio a si mesmo, Wilson tenha confundido a própria imagem refletida no espelho com o duplo e investido sobre ela, mutilando-se no processo; mas, segundo a perspectiva de Wilson, o contrário parece ter acontecido - o que Wilson a princípio crê ser o reflexo da prórpria imagem revela-se a figura ensanguentada e agonizante do duplo.
Narrativas "estranhas" clássicas usam sempre narradores em primeira pessoa e imitam formas discursivas como confissões, cartas e depoimentos para dar maior credibilidade ao relato. (Podemos citar "Frankenstein", de Mary Shelley, e "O médico e o monstro", de Robert Louis Stevenson, como exemplos). Esses narradores tendem a escrever num estilo bastante literário que, em outros contextos, poderia parecer um tanto batido: no primeiro parágrafo do trecho, por exemplo, aparecem "acesso de loucura", "força de mil homens", "força bruta" e "fúria selvagem".
Na tradição gótica de horror à qual pertence Poe, e à qual o autor americano deu um forte impulso, não faltam exemplos desses textos "mal bem escritos". A previsibilidade retórica e a própria falta de originalidade garantem a lisura do narrador e tornam mais plausíveis as estranhas experiências relatadas.
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Extraído de "A arte da ficção", de David Lodge (LYPM POCKET, tradução de Guilherme da Silva Braga). O livro contém 50 deliciosos artigos sobre a arte de contar histórias.
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