quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Um enredo não é uma peça

Eric Bentley


A matéria-prima do enredo é vida, mas não a média sofrível da vida cotidiana em sua banalidade exterior; pelo contrário, os raros clímax das situações extremas da vida ou da existência cotidiana, em suas formas secretas, não inteiramente conscientes. A perspectiva que rejeite essas situações extremas é antidramática. O enredo é a ordenação desse material. Acarreta a aplicação de um princípio racional aos caos do irracional. Logo, qualquer enredo tem um caráter dualista: compõe-se de matéria violentamente irracional, mas a "composição" é em si racional, intelectual. O interesse num enredo - ainda o mais rudimentar - é interesse em ambos esses fatores e, talvez ainda mais, na sua interação mútua.

Somos renitentes em conceder a existência de um elemento intelectual nas novelas do rádio e da TV ou noutras formas de melodrama. É o reverso da nossa relutância em aceitar um elemento cruamente emocional na arte superior. Contudo, o elemento intelectual é muito restrito na arte inferior. Está apenas na escala do elemento intelectual dos jogos infantis. Entretanto, os jogos requerem verdadeira engenhosidade para a solução dos pequenos problemas que criam. Um enredo é como um tabuleiro de xadrez: seu desafio e atração, em parte considerável, são devidos ao amor ao engenho ou talento.

"Todos os homens desejam, por natureza, conhecer", diz Aristóteles. Numa história policial, desejamos descobrir "o assassino desconhecido" e, ao desejá-lo, somos filósofos. A emoção em causa é a ânsia de descobrir - chamamos-lhe a sede de conhecimentos quando aprovamos, investigação quando desaprovamos, e curiosidade quando somos neutros. Torno-me curioso quando me surpreendem e deixam a surpresa sem explicação. Fico sobre brasas até que me esclareçam. É sobre essas brasas que se cozinha o drama simples. A palavra é suspense. A expressão "enredo engenhoso" significa uma hábil manipulação da surpresa e do suspense. Contudo, nem todas as obras dramáticas são assinaladas pelo "enredo engenhoso" nesse sentido, e a maior parte dos dramas assim marcados é de segunda categoria. Se a finalidade em vista é um drama de primeira categoria, a finalidade em vista não é surpresa e suspense, não é enredo. A teoria de que é foi "derivada" de Aristóteles, mas à revelia de sua própria intenção.

Mesmo quando alude a estratagemas tais como Inversão e Reconhecimento, considerando-os "elementos poderosíssimos de interesse emocional", é evidente que Aristóteles tem em mente algo mais do que mera curiosidade. Ele prevê uma platéia que "estremece de horror e se entermece de piedade". Horror (o medo) e piedade são, evidentemente, as emoções citadas no mais famoso, se não, o mais lúcido pronunciamento de Aristóteles - quando afirma que a tragédia, através da compaixão e do medo, efetua "a própria catarse dessas emoções". Basta dizer, por enquanto, que, apesar de todas as interpretações variadas dessa afirmação, ninguém tentou até hoje reduzi-la a uma defesa do drama do mero "interesse" (ou curiosidade).

O que é um bom enredo? A pergunta é difícil de ser respondida porque o enredo não é bom em si mesmo, mas uma parte integrante de um padrão. Ao chamar ao enredo a "alma" da tragédia, Aristóteles está afirmando, talvez, que na sua opinião o enredo é o principal instrumento do dramaturgo, entre muitos outros. Se o drama é uma arte de situações extremas, o enredo é o meio pelo qual o dramaturgo nos leva a penetrar nessas situações e (se assim o desejar) a sair novamente delas.

O enredo é o processo pelo qual o dramaturgo cria as necessárias colisões - como um perverso agente de trânsito que orientasse os carros não para se cruzarem, mas para se chocarem uns nos outros. As colisões despertam curiosidade e podem ser combinadas de modo a criarem suspense. Por enquanto, dispomos de um sólido teatro de segunda ordem. Algumas das coisas que o enredo pode trazer para criar um teatro de primeira ordem foram sugeridas neste capítulo. Falta sugerir as contribuições que podem ser dadas para tal teatro pela personagem, pelo diálogo, pelo pensamento e pela representação.
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Extraído de "A experiência viva do teatro", Zahar Editores/1967, tradução de Álvaro Cabral.

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