segunda-feira, 11 de julho de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Dispare"

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Os muitos 'Eus' que nos habitam


Lionel Fischer


"Dispare fala de um Eu partido, esfacelado, um Eu atormentado que tenta morrer e não consegue. Um Eu que se fragmenta, que gera outros Eus, mas, que, no fundo, continua sendo o mesmo eu. Fala, portanto de um Eu ou de um ser que não é mais pensado como uno e absoluto, mas como pluralidade e multiplicidade. Na verdade, pensa um ser que é uno e múltiplo ao mesmo tempo, como afirma Nietzche. E não se trata aqui de uma apologia da loucura e da dissolução (embora a própria loucura seja apenas o 'outro' da razão), mas, sim, da percepção clara de que o ser é uma polifonia, que ele é constituído por múltiplas vozes que vivem em perpétuo embate".

O trecho acima, extraído do programa oferecido ao público, leva a assinatura de Regina Schöpke, cujo livro "Por uma filosofia da diferença: Gilles Delleuze - um pensador nômade" foi o principal ponto de partida (como consta do release) para a criação do texto Dispare", mais recente produção da Cia. Boto-Vermelho. Em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim, a peça tem autoria de Roger Mello, também responsável pela direção, e elenco formado por Daniel Carfa, Leonardo Arantes, Ludmila Wichansky e Marcus Pina.

Como implícito no parágrafo inicial, o presente texto objetiva empreender reflexões sobre a multiplicidade da natureza humana, seu caráter fragmentário e, conseqüentemente, a extrema dificuldade - talvez mesmo impossibilidade - de chegarmos a uma, digamos, convivência pacífica com os muitos Eus que nos habitam.

Sem dúvida, temas relevantes e mais do que pertinentes. No entanto, para convertê-los em teatro o autor Roger Mello estaria obrigado a criar uma dramaturgia menos hermética, ou seja, que sem desprezar as questões mencionadas as inserisse em um contexto em que a ação dramática pudesse ser apreendida com maior clareza. 

Um texto dessa natureza, quando lido, faculta ao leitor a possibilidade de se deter em um trecho ou até mesmo em uma única frase, visando um maior entendimento. Quando levado à cena, esta possibilidade praticamente inexiste, já que as sucessivas ações não permitem que nos detenhamos em algo que, por exemplo, tenha nos gerado qualquer tipo de inquietação, curiosidade ou o que seja.

Ainda assim, há que se reconhecer a sintonia entre o material dramatúrgico e o espetáculo, cuja dinâmica cênica foge por completo ao realismo e coloca o espectador em um estado de permanente perplexidade. Valendo-se de marcas expressivas e criativas, o diretor Roger Mello consegue o que me parece que possa ter pretendido: priorizar uma sensação de estranhamento, talvez semelhante àquela que sentimos quando não conseguimos lidar com o caos nosso de cada dia.

Com relação ao elenco, os quatro intérpretes exibem total capacidade de entrega, além de inegáveis recursos expressivos, tanto vocais como corporais. Cabe também registrar a forte contracena que estabelecem, sempre plena de energia e variadas emoções.

Na equipe técnica, Roger Mello assina uma cenografia que atende a todas as necessidades do espetáculo, a mesma eficiência presente nos sombrios e algo futuristas figurinos de Ney Madeira, Pati Faedo e Dani Vidal, sendo excelente a luz de Ricardo Schöpke e ótima a direção de movimento de Roberta Repetto.

DISPARE - Texto e direção de Roger Mello. Com Daniel Carfa, Leonardo Arantes, Ludmila Wichansky e Marcus Pina. Casa de Cultura Laura Alvim. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 19h.  

Um comentário:

  1. Como estamos acostumados a procurar uma unidade em tudo, a peça causa sim estranhamentos e sentimentos de perplexidade. Apesar das ações cênicas impedirem uma maior introspecção, ainda sim vc consegue se prender em algumas falas. A que me vem à cabeça é : "A falta de alucinação é também uma alucinação". Fui com minha amiga hj e gostei mto. O teatro minúsculo facilita uma maior conexão entre peça, atores e público.

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