segunda-feira, 18 de julho de 2011

Teatro/CRÍTICA

"Todos os cachorros são azuis"

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A lucidez da loucura


Lionel Fischer


Rodrigo Souza Leão era jornalista, escritor e poeta. Era também esquizofrênico, tendo falecido ainda muito jovem, em 2009, aos 43 anos. E o presente espetáculo é uma adaptação teatral de seu romance homônimo, de cunho autobiográfico, no qual o autor relata parte de sua trajetória, incluindo internações em instituições psiquiátricas e a fundação de uma nova religião.

Em cartaz no Teatro Maria Clara Machado (Planetário da Gávea), "Todos os cachorros são azuis" chega à cena com direção de Michel Bercovitch, dramaturgia de Flávio Pardal, Michel Bercovitch e Ramon Mello (com colaboração de Manoela Sawitzki) e elenco formado por Bruna Renha, Camila Rhodi, Gabriel Pardal, Natasha Corbelino e Ramon Mello.

Um dos aspectos mais interessantes do presente espetáculo reside no fato de que o autor era esquizofrênico. Ou seja: escreveu de "dentro para fora" e não o inverso, como fez Nicolai Gógol em "O diário de um louco". Não padecendo da dita patologia, o escritor russo podia olhá-la à distância, refletir sobre ela com, digamos, uma certa tranquilidade. E por ser um dramaturgo maravilhoso, foi capaz de produzir uma obra comovente e dilacerante sobre alguém que, pouco a pouco, vai perdendo o contato com a realidade e mergulhando em um universo impregnado de delírios.

No entanto, aqui se dá algo muito diverso. Rodrigo falou de si mesmo, era seu próprio delírio, mas mesmo assim jamais deixa de exibir espantosa lucidez quando aborda temas como internações, medicamentos, amor, família, sexo e solidão, dentre outros. E se seu discurso não obedece, como não poderia obedecer, à lógica a que estamos acostumados, nem por isso seus fragmentados pensamentos deixam de nos atingir de forma dolorosa e comovente, e às vezes não isentas de surpreendente humor.

Trata-se, sem a menor dúvida, de um texto transbordante de humanidade, cuja ótima adaptação teatral possibilitou um espetáculo de forte impacto. Impondo à cena uma dinâmica em total sintonia com a escrita que lhe deu origem, Michel Bercovitch  consegue materializar, através de marcas expressivas e criativas, os principais conteúdos propostos pelo autor, que certamente haveria de aprovar a transposição cênica de seu romance.  

Com relação ao elenco, que, em quase toda a montagem, interpreta o autor, todos se entregam de forma visceral à nada fácil tarefa de dar vida a um esquizofrênico, sem apelar para abomináveis chavões, tais como olhares esgazeados, atitudes corporais desconexas, gritos lancinantes etc. Ou seja: encontraram uma chave interpretativa isenta de exageros e que por isso nos atinge com tanta contundência. Fazer um louco não me parece muito difícil. Já viver um louco...  

Na equipe técnica, Rui Cortez responde por excelente direção de arte - imagino que levem sua assinatura tanto os adequados e neutros figurinos como a cenografia, composta de grades móveis que, dependendo do momento, possuem duas funções indissociáveis: a criação de múltiplas ambientações em sintonia com os  pensamentos do autor.

Cabe também destacar a direção de movimento de Paula Maracajá, a preparação vocal de Marly Brito, as expressivas contribuições de Tomas Ribas (iluminação) e Rafael Rocha (direção musical), e a belíssima programação visual criada por Filipe Carvalho.

TODOS OS CACHORROS SÃO AZUIS - Texto de Rodrigo Souza Leão. Direção de Michel Bercovitch. Com Bruna Renha, Camila Rhodi, Gabriel Pardal, Natasha Corbelino e Ramon Mello. Teatro Maria Clara Machado. Sábado às 21h. Domingo, 20h.

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