quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Em Louvor da Lamúria

Eric Bentley


          O que significa chorar? O riso prendeu a atenção de muitos pensadores, entre os quais alguns dos melhores. Uma rápida busca nos índices de livros e catálogos de bibliotecas chama a nossa atenção para uma extensa literatura a tal respeito. As lágrimas são um oceano relativamente inexplorado.

          Uma razão pela qual o riso teve melhor divulgação parece-nos óbvia: o riso é (ou sustenta-se que é) agradável, ao passo que o choro é (ou afirma-se que é) desagradável. O riso é também algo que faz sermos apreciados. Qual o orador fatigado que não se espraia sobre os benefícios de um sentido de humor? 

          Chorar, por outro lado, é uma coisa que se ensina assìduamente os meninos pequenos a não fazerem. As mulheres são muito mais realistas: falam de ter desabafado com uma boa choradeira.

          A frase assinala o que é, talvez, a função mais comum das lágrimas: um mecanismo para aliviar, para descarregar emoções - usualmente, emoções muito superficiais. Mas há lágrimas e lágrimas. Soluçar sentidamente é uma questão de profundas, lancinantes emoções. Depois, temos as lágrimas de alegria. "O excesso de mágoas ri", diz Blake, "o excesso de alegria chora". Shaw explicou dessa maneira:

"As lágrimas na vida adulta são a expressão natural de felicidade, assim como o riso é, em todas as idades, o reconhecimento natural de destruição, confusão e ruína".

          As lágrimas derramadas pela assistência de um melodrama vitoriano cabem na rubrica de "uma boa choradeira". Poderiam denominar-se a catarse dos pobres e como tal obter um melhor justificante para a pretensão de constituir o principal objetivo do melodrama popular, em vez de suas notórias pretensões morais.

          Além de referir-se a uma emoção superficial, a frase "fiz uma boa choradeira" implica o sentimento de comiseração, de pena da pessoa por si própria. Mas, apesar de todos os seus deméritos, a autocomiseração tem sua utilidade. E. M. Forster afirma até ser a única coisa que torna suportável o sentimento de envelhecer - por outras palavras, que é uma arma na luta pela existência. A autocomiseração é uma ajuda muito atuante em tempos de dificuldade, e todos os tempos são tempos de dificuldade.

          Visto que o nosso moderno antagonismo à autocomiseração e ao sentimentalismo vai muito além das objeções racionais que se lhes pudesse fazer, percebemos que as próprias objeções racionais são, numa certa medida, meras racionalizações. Os ataques às falsas emoções disfarçam, com freqüência, o medo de uma emoção propriamente dita.No fim de contas, a nossa cultura consiste em meias palavras, meias atitudes.

          Observe-se como, nos últimos 50 anos, o prestígio da ironia seca subiu, enquanto o das emoções alterosas declinou. É um clima cultural em que um escritor secundário como Jules Laforgue pode ser mais apreciado que um escritor da envergadura de Victor Hugo.
Ou atente-se em nossa mudança de atitude em face da morte.

          Alguma outra época, além da nossa, receberia a morte de pessoas admiradas com "silenciosa reserva"? Podemos pensar que Auden abre seu coração no bom poema que escreveu sobre a morte de Yeats, mas compare-se o poema de Auden com o produto de uma cultura mais tradicional, digamos, com o Llanto por Ignacio Sánches Mejías, de Garcia Lorca! Seria possível em inglês até o próprio título do poema de Lorca? É o pranto ou lamento algo que nos possamos imaginar fazendo? Pelo contrário, modernizamos as tragédias gregas eliminando todas as variantes de "ai de mim!" Se Cristo e Alexandre, o Grande, ressuscitassem, ensiná-los-íamos a reterem as lágrimas.

          Vi, certa vez, fazer-se justiça à morte. Um ator italiano apresentou-se no palco para anunciar a morte de um colega. Foi um lamento, de fato. Agitou-se, chorou, produziu um caudal de retórica veemente, até que a assistência se agitou, chorou e lamentou a morte com ele. Ora, trata-se de lamúria, de autocomiseração, sem dúvida. Uma pessoa não lamenta um cadáver; lamenta-se a si própria, por ter sido desapossada, privada de alguém; e, no fundo, está com medo da própria morte. Mas tanto melhor para a autocomiseração. A experiência foi recebida, não recusada.

          Esse ponto tem certa importância para a saúde mental. A psiquiatria moderna começa com aqueles Estudos Sobre Histeria em que Freud e Breuer procuram explicar o que acontece quando às impressões emocionais não é permitido que se consumam. O choque de dor anseia por ser mitigado e liberto através de gritos, contorções, lágrimas. Os bons meninos que se mantêm quietos e calados sob uma chuva de golpes talvez venham a pagar por esse estoicismo vinte anos depois, num divã de psicoterapia. Seus ressentimentos, em vez de se consumirem por um processo natural, foram acumulados no inconsciente.

          Se rechaçarmos as lágrimas e os lamentos em altos brados da nossa vida cotidiana, poderemos verificar se se encotram igualmente ausentes ou não dos sonhos noturnos. Poderemos não ser mais sentimentais que o nosso vizinho e verificar, contudo, que temos muito sonhos em que choramos profusamente e, ao mesmo tempo, nos agitamos como um ator num velho melodrama: caímos de joelhos, erguemos os braços aos céus, lamentosamente etc. Nesse caso, a autocomiseração grandiloqüente é um fato da vida. Como só pode ser reproduzida mediante o uso do estilo grandiloqüente, a grandiosidade melodramática deveria parecer uma necessidade.
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Extraído de A Experiência Viva do Teatro, capítulo 6, referente ao Melodrama. Zahar Editores, 1964, tradução de Álvaro Cabral, apresentação de Paulo Francis 



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