quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Só Shakespeare salva
O crítico americano Harold Bloom ensina onde buscar a sabedoria e que o caminho passa longe da filosofia e da religião

LUÍS ANTÔNIO GIRON
O crítico americano Harold Bloom, de 75 anos, nutre o fascínio por montar listas de autores que considera fundamentais para a cultura humana. Assim publicou o ensaio que lhe deu fama internacional e o transformou no superastro da crítica contemporânea: Ansiedade da Influência (1973), traduzido no Brasil sob o título bizarro Angústia da Influência. Nesse livro, como nos que se seguiriam décadas afora, elaborou a teoria de que a história da literatura forma um emaranhado instável, no qual os poetas se influenciam das mais variadas maneiras, desde o plágio involuntário até a tentativa de superação. Em O Cânone Ocidental (1994) e Gênio: um Mosaico de Cem Mentes Criativas Exemplares (2003), o escritor releu a tradição para descobrir em cada gênio a contribuição ainda válida.
Bloom adoeceu gravemente e, diante da perspectiva do esgotamento de suas capacidades racionais, restringiu o campo de ação para buscar um saber essencial, apropriado para consolá-lo dos traumas da velhice e da perda dos amigos. Surgiu, em 2004, o mais pessoal de seus tratados, o denso e saboroso Onde Encontrar a Sabedoria? (Objetiva, 319 págs., R$ 44,80), agora publicado no Brasil. Remexeu em tudo o que havia aprendido na longa aventura intelectual para retirar dali os textos que lhe serviram como degraus na escada do auto-aperfeiçoamento. A escolha é excêntrica e pessoal: um coquetel de textos bíblicos e obras de poetas e romancistas, ensaístas e um dramaturgo: William Shakespeare, o bardo inglês que, segundo o estudioso, está no centro do cânone ocidental. Nesta entrevista a ÉPOCA, concedida por telefone de sua casa, em New Haven, Connecticut, Bloom ensina onde qualquer pessoa pode encontrar a sabedoria e critica a situação mundial e a degradação da cultura letrada por causa da tecnologia.
HAROLD BLOOM


 NascimentoEm Nova York, em 11 de julho de 1930. Morou com os pais no bairro do Bronx
 Carreira
Dedicou-se ao ensino na Universidade de Harvard e atualmente dá aulas em Yale
 Obra mais famosa
Angústia da Influência (1973), entre 31 livros
 Confrontos
Na universidade, combateu as feministas. Uma delas, Naomi Wolf, acusou-o de assédio sexual


ÉPOCA - No ensaio Onde Encontrar a Sabedoria, o senhor afirma que achou autores sábios quando se viu 'diante dos portões da morte'. Como foi essa experiência?
Harold Bloom - Aos 75 anos, tenho consciência de meu fim. Tive um problema sério no coração há três anos e sofri muito. Fui submetido a cirurgias, tive hemorragias e cheguei ao limite de minhas capacidades intelectuais. Percebi, deprimido, que poderia perdê-las a qualquer momento. Além disso, perdi gente querida, amigos e parentes. Eu, que tive uma atividade de reflexão, estudo e ensino, rodeado de pessoas que amava, me vi cada vez mais solitário. Quando vivemos uma crise assim, a sabedoria vai embora e perdemos o rumo de nossas reflexões. De que valeram os 31 livros que publiquei? O que sobra de tudo o que a gente aprendeu num momento-limite? Eu estava escrevendo um livro sobre o cânone da crítica, mas resolvi mudar de assunto por causa do choque. Depois de ter sido operado e de passar por uma convalescença de quatro meses, saí à procura de um tipo de sabedoria que me ajudasse a suportar a velhice e compreendê-la com serenidade. Algo que me consolasse da perda de pessoas essenciais em minha vida. Foi assim que o livro surgiu.
ÉPOCA - É quase um livro de auto-ajuda, não?
Bloom - Não, porque absorver os ensinamentos daqueles que considero os maiores sábios não traz consolo para ninguém. O que chamo de 'literatura sapiencial' colabora para que o homem se torne mais sereno e resignado, sem que com isso perca a consciência amarga e crítica em relação ao próprio fim.
ÉPOCA - Que critérios o senhor usou para estabelecer o elenco de escritores do livro?
Bloom - Estabeleci pré-requisitos bastante simples. São mais ou menos os mesmos critérios que regem minha atividade como crítico literário. As obras deviam ser esteticamente excelentes, possuir força intelectual e conter lições essenciais. Precisavam suprir as necessidades que as pessoas têm de conhecer, de sentir enlevo e chegar a alguma conclusão verdadeira.
ÉPOCA - O senhor cita a definição de sabedoria de Michel de Montaigne, para quem o sábio é aquele que aprende a morrer. O senhor concorda?
Bloom - Montaigne possui uma concepção serena da morte. Ele acha que aprender a morrer é ignorar a morte e vivê-la quando ela acontecer. Como jamais poderemos saber o que se passa quando morremos, o melhor é se despreocupar com a perspectiva da morte.
ÉPOCA - Qual sua definição de sabedoria?
Bloom - Trata-se de uma noção pessoal, fruto do sofrimento e da experiência. Sou eclético. Tomo exemplos de várias fontes, dos textos bíblicos aos dos poetas e filósofos. Em certa medida, Homero, Platão, o Livro de Jó e Shakespeare afirmam que a sabedoria deve ser austera e se equilibrar entre a ironia e a tragédia. Tal equilíbro nos leva a aceitar os próprios limites. Concordo com o verso de Stéphane Mallarmé: 'A carne é triste, ai de mim! E já li todos os livros'. E a sabedoria não se encontra só nos livros. Muitos filósofos são capazes de dizer grandes besteiras achando que produzem saber. E vice-versa, a aparente despretensão de poetas os mais simplórios contém a sabedoria que serve para todo mundo. Qualquer grande poema contém sabedoria, mesmo que não esteja pretendendo isso. O inverso não é verdadeiro. Nem toda filosofia contém poesia. Ninguém precisa ser filósofo para obter a sabedoria. Ela resulta da meditação solitária.
ÉPOCA - Em outras palavras, a sabedoria é um ato individualista.
Bloom - Nem poderia ser diferente. Só o indivíduo pode meditar convenientemente. A comunidade dos sábios é impossível. Lembro-me do dinamarquês Sören Kierkegaard, que afirma que sua filosofia se dirige dele, um sujeito único, para outro indivíduo.
ÉPOCA - E qual o caminho mais direto para chegar lá?
Bloom - Considero os textos do Oriente mais apropriados para quem queira encontrar conforto místico. Nesse ponto, os indianos Baghavad Gîta e Mahabarata, o xintoísmo e a tradição chinesa são incomparáveis. É provável que nós, ocidentais, não tenhamos ainda absorvido a profundidade da literatura sapiencial do Oriente. Mas, como meu campo de estudo é a literatura ocidental, vejo como caminho mais rápido para a sabedoria a poesia, embora a gente possa achar valia em textos bíblicos, como o Eclesiastes - mais pela sensibilidade poética que pelo dogmatismo. Sou um velho inimigo do historicismo. Não existem superações em arte. O que existe entre as linhagens e gerações é uma batalha pela supremacia de um discurso sobre o outro. Às vezes, os antepassados vencem seus pósteros.
ÉPOCA - Como assim?
Bloom - É interessante que Platão hoje nos pareça menos sábio que Homero, 300 anos mais velho que ele. A República, de Platão, está ultrapassada porque postula que a música e a poesia sejam banidas de um Estado ideal, governado por filósofos. Tal utopia soa como um pesadelo. Em compensação, a Ilíada ainda hoje nos dá lições de persistência, heroísmo e ética. O que vale em Platão é a poesia do texto. Nesse campo, no entanto, Homero é bem melhor. Do Velho Testamento, o meu favorito é o Livro de Jó, pela pungência do sofrimento do protagonista. Defendo a tese de que o Livro de Jó foi escrito por uma mulher, uma sábia hitita anônima. É a obra mais densa do Velho Testamento.
ÉPOCA - Repetir de cor poemas é um dos métodos que o senhor utiliza em suas aulas. Por quê?
Bloom - Só encontro consolo quando recito para mim mesmo, bem baixinho, os poemas e passagens que sei de cor. A repetição é uma forma arcaica de conhecimento, ainda eficaz, sobretudo num momento de domínio da tecnologia e do consumismo. Cada aluno interessado acaba aprendendo coisas importantes para si próprio.
ÉPOCA - Por que sua fascinação por William Shakespeare?
Bloom - Porque Shakespeare não é apenas a figura central do cânone ocidental - ao lado de Cervantes e de Dante Alighieri. Ele criou a noção que temos do que é humano. Sua obra torna acessível a qualquer um a sabedoria que só um filósofo pode possuir, mas que o cidadão comum não pode alcançar por meios convencionais. É uma filosofia imediata, que se dá nos dramas, na mistura de tragédia e comédia, nas passagens em que Hamlet toca no problema da metafísica e Lear conclui que o mundo é irrecuperável. Hamlet é o personagem mais sábio de toda a literatura. Shakespeare escreve tudo da forma mais natural. E não basta uma vida para abarcar tudo o que o bardo ensina. Ele é o supremo artífice da sabedoria. Sempre descubro uma nova lição em poemas e aforismos embutidos em seu teatro. Só Shakespeare salva.
ÉPOCA - Mas, conforme o senhor afirma no livro, Rei Lear lhe inculcou o niilismo. O senhor é tão niilista assim?
Bloom - Como escrevi, sou niilista porque dou aulas. E a universidade americana virou um campo de teóricos do ressentimento, que acham que o saber pode ser reduzido a questões de sexo e minorias. Não posso ter humor diante da ignorância e dos horrores do mundo. Busco paz na literatura. Meu niilismo é paradoxal, porque reza pelo breviário do humanismo.
ÉPOCA - Mesmo assim, o senhor não ousa imitá-lo. Seu estilo lembra mais Montaigne que Shakespeare.
Bloom - É verdade. Até porque me devotei ao gênero que Montaigne fundou, o ensaio, para mim o veículo ideal para minhas reflexões, por causa da liberdade que ele dá.
ÉPOCA - Qual sua opinião sobre o estado da cultura mundial?
Bloom - O mundo experimenta uma degradação do conhecimento por causa da conversão da cultura em produto. Apesar de todas as vantagens que trouxeram, computadores, internet e televisão estão levando os jovens a se desacostumar dos livros. A longo prazo, a cultura como conhecemos hoje vai desaparecer. Por causa do mundo digital, as pessoas estão perdendo até a capacidade de compreender um texto a fundo. E ainda não inventaram veículo melhor que o texto escrito em papel.
ÉPOCA - O saber virou uma espécie decommodity?
Bloom - Virou. Hoje o saber virou propriedade de uma certa elite, não exatamente uma elite econômica, mas intelectual. O saber atualmente é um tesouro para poucos. Considero-me um 'penetra' nessa elite, já que nasci num bairro pobre - o Bronx - e meus pais não eram sábios. Demorei para ler livros em inglês, porque fui criado falando iídiche em família. Comecei lendo para mim mesmo. Jamais pensei que faria no futuro parte de uma elite. O que me entristece é perceber que o conhecimento só poderá florescer em guetos de saber nos Estados Unidos, na Europa, na China e até no Brasil.
ÉPOCA - O senhor acha que existe hoje um choque cultural entre Ocidente e Oriente?
Bloom - Sim. Vejo isso com tristeza, pois as duas tradições deveriam se completar, mas estão envolvidas em uma espécie de confronto final. Por força do império do fundamentalismo cristão de George W. Bush e asseclas, criam-se guerras injustas como a do Iraque e se praticam monstruosidades em nome de valores que se dizem civilizados. A nova reencarnação de Bush é um monstro e o pior presidente americano de todos os tempos. Ele governa para os ricos. Ele tem um caráter vil. A Guerra do Iraque é o pior dos conflitos patrocinados pelos Estados Unidos. E olhe que tivemos a tomada de territórios mexicanos na década de 1860, a Guerra Hispano-Americana em 1898 e a Guerra do Vietnã. No Iraque, a guerra contra o terror não passa de uma cruzada contra o Islã.
ÉPOCA - Na era do combate ao terror, como ficam os direitos civis?
Bloom - Hoje experimentamos um enorme retrocesso em relação aos anos 60. Bush é contra tudo aquilo por que lutei: o direito ao aborto e à união entre homossexuais, a justiça social e a dignidade dos negros. Veja o que ocorreu na Louisiana. Bush não fez nada para evitar a catástrofe e deixou negros e pobres abandonados à própria sorte.

ÉPOCA - Por que o senhor nunca veio ao Brasil?
Bloom - Recebi inúmeros convites para viajar para o Brasil, consigo ler em português, admiro a literatura brasileira, em especial Machado de Assis, mas estou muito doente para fazer viagens longas. Gostaria de conferir o que meus amigos dizem do Brasil. Como os americanos, os brasileiros estão amargando o fim de um sonho libertário. O presidente Lula, esperança da esquerda, agora se encontra paralisado por causa das denúncias de escândalos e parece ter renunciado a seus ideais. Até o presidente do Congresso teve de se exonerar por denúncias de corrupção. Em cidades como Rio e São Paulo, crianças e mendigos continuam sendo mortas por traficantes e policiais. O Brasil não tem muito do que se orgulhar. Nós, americanos, também não. Aqui também acontece corrupção, injustiça e violência. A sabedoria provoca esse tipo de consciência - e, com ela, o pessimismo.
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Artigo extraído da revista Época

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