quarta-feira, 23 de julho de 2014

Teatro/CRÍTICA

"A dama do mar"

......................................................
Obra-prima em bela versão



Lionel Fischer




Por muitos considerado o pai do teatro moderno, o norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) escreveu 23 peças, algumas delas verdadeiras obras-primas. É o caso, entre muitos outros, de "A dama do mar", que acaba de entrar em cartaz na Casa de Cultura Laura Alvim. Maurício Arruda Mendonça assina a presente versão, estando a direção a cargo de Paulo de Moraes. No elenco, Tânia Pires, Zeca Cenovicz, João Vitti, Joelson Medeiros, Renata Guida, Leonardo Hinckel e Andressa Lameu.

Como em geral ocorre com textos de grande profundidade, este tem enredo simples. Casada com o dr. Wangel, Ellida vive presa a recordações que parecem ligá-la irremediavelmente a um misterioso Estrangeiro, o que a leva a só manter com o marido uma relação de paciente. Instável e sempre angustiada, ela só se mostra feliz quando nada no mar. Bolette e Hilde, filhas do primeiro casamento de Wangel, convivem com a madrasta apenas porque as circunstâncias as obrigam a fazê-lo. Os dois outros personagens - Ballested foi aqui suprimido - são o professor Arnholm e Lyngstrand, este último tuberculoso e com ambições artísticas.

Embora o texto permita várias interpretações, a que mais me interessa é a abordagem que Ibsen faz do inconsciente. O mar, que tanto fascina Ellida, torna-se metáfora das forças conflitantes que se agitam em seu interior e lutam para emergir. Se por um lado ela não tem plena consciência do que a aflige, por outro sente que sua vida não deve obedecer aos rumos traçados pela moral burguesa. É por isso que não consegue libertar-se da lembrança do Estrangeiro, com quem no passado estabeleceu um romântico compromisso matrimonial - sendo ele um marinheiro, é como se Ellida o encarasse como uma espécie de veículo capaz de levá-la a materializar seus obscuros anseios.

A presente versão condensa os cinco atos em apenas um, de pouco mais de uma hora. Assim sendo, é evidente que muitas passagens foram suprimidas. No entanto, Maurício Arruda de Mendonça se mostra capaz de priorizar o essencial, o que permitirá aos espectadores que não conhecem o original terem uma aproximação bastante sólida com as premissas essenciais desta peça deslumbrante, estruturada em cima de personagens maravilhosos e contendo reflexões mais do que pertinentes sobre os temas abordados.

Com relação ao espetáculo, Paulo de Moraes impõe à cena uma dinâmica que mescla despojamento e elegância em igual medida. E ainda que um autor como Ibsen, para ser devidamente apreendido, dependa fundamentalmente das relações estabelecidas entre os personagens, nem por isso Moraes deixou de criar passagens belíssimas, em total sintonia com os conteúdos em causa - neste sentido, cabe destacar os momentos em que Ellida e o Estrangeiro mergulham em um grande aquário, ora sugerindo que ele a está afogando, ora insinuando que fazem amor. Bastariam passagens como estas para ratificar que Paulo de Moraes é um encenador de exceção.

No tocante ao elenco, Tânia Pires compõe bem a angustiada Ellida. Mas acredito que, se ao longo da temporada, a atriz mergulhar de forma mais visceral nas contradições da personagem, seu desempenho se tornará ainda mais significativo do que já é. Zeca Cenovicz convence plenamente na pele do medíocre dr. Wangel, um homem cuja argumentação para fazer com que Ellida não o abandone é de patético machismo. Vivendo o Estrangeiro, João Vitti valoriza com potência todo o mistério e sedução do complexo personagem.

Joelson Medeiros interpreta o professor Arnholm de forma sensível e apaixonada, ressaltando toda a integridade e romantismo do personagem. Leonardo Hinckel exibe atuação segura e convincente, mas acho que poderia, ao menos em algumas passagens, reduzir um pouco seu volume vocal. Renata Guida consegue transmitir toda a angústia da jovem Bolette, valendo-se de sua voz poderosa e de um trabalho corporal impecável. Com relação a Andressa Lameu, a atriz evidencia que compreendeu perfeitamente o caráter da personagem, essencialmente irônico e descrente. Mas acredito que suas constantes ironias possam ser materializadas de forma mais contundente, o que poderá conferir ao papel uma dimensão mais forte.

Na equipe técnica, Maneco Quinderé ilumina a cena valendo-se de poucos efeitos, mas ainda assim de grande expressividade - neste sentido, gostaria de destacar um filete luminístico ao fundo, eventual sugestão de um oceano talvez possível, talvez ilusório. Carol Lobato responde por figurinos irretocáveis, em total sintonia com o simbolismo essencial da obra, a mesma eficiência presente na bela cenografia de Paulo de Moraes e na trilha sonora de Ricco Viana. Cabe ainda destacar as preciosas colaborações de Duda Maia (preparação corporal) e Rose Gonçalves (preparação vocal).

A DAMA DO MAR - Texto de Ibsen. Versão de Maurício Arruda Mendonça. Direção de Paulo de Moraes. Com Tânia Pires, Zeca Cenovicz, João Vitti, Joelson Medeiros, Renata Guida, Leonardo Hinckel e Andressa Lameu. Casa de Cultura Laura Alvim. Quinta a sábado, 21h. Domingo, 20h. 

   


Nenhum comentário:

Postar um comentário