segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Teatro/CRÍTICA

"Desaparecida"

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Oportuna lembrança dos anos de chumbo



Lionel Fischer



"DOPS, Belo Horizonte, um dia qualquer de 1971. Uma artista judia, de família alemã, fica na mesma cela de uma mulher brasileira, as duas acusadas de subversão. Sabendo que serão culpadas, mesmo sem julgamento, se descrevem, ouvem vozes reais e lembradas, pensam; os corpos entre grades gritam seu medo, seus impulsos de resistência, seus sonhos, sua fome de justiça. No corpo preso, a mente se liberta e produz outra potência, evocando milhares de outras vozes femininas, mulheres presas, sepultadas vivas, queimadas, desaparecidas das quais ficaram só sombras na poeira da História. A descrição das horas e lugares da reclusão se torna, assim, metáfora de todos os espaços e tempos reclusos".

Extraído do release que me foi enviado, o trecho acima sintetiza o contexto em que se dá "Desaparecida", texto baseado no Diário da Prisão, de Judith Malina, artista ligada ao Living Theatre, presa no Brasil em 1971 juntamente com alguns de seus companheiros. Alessandra Vannucci assina a dramaturgia e a direção do espetáculo, em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal. No elenco, Julia Carrera e Mariana Guimarães.

Ainda que o presente texto possa ter sido inspirado no mencionado diário, mesmo que não fosse continuaria válida a premissa de relembrar os horrores perpetrados pela ditadura brasileira nos chamados anos de chumbo. Aqui estamos diante de duas mulheres. Uma delas materializa alguém cujo corpo e alma vão sendo destruídos pela barbárie dos interrogatórios. A outra, que conduz a narrativa, atua mais como uma personagem que evoca fatos e empreende reflexões sobre os mesmos, às vezes de forma mais distanciada, às vezes tomada pela emoção. 

E este singular dueto permite ao espectador uma aproximação ao mesmo tempo emocionada e reflexiva, algo que remete ao fazer teatral de Bertolt Brecht - a exceção fica por conta de alguns momentos em que a segunda personagem vive literalmente uma lembrança, a representa como se o fato estivesse acontecendo no momento, o que em certa medida entra em choque com a estrutura adotada. Também me parece questionável a parte final, quando as atrizes fazem perguntas à plateia - mais um efeito de distanciamento brechtiano? Pode ser, mas o fato é que as perguntas, e o modo como são feitas, sem dúvida esvaziam um pouco as emoções e reflexões em causa.

Com relação ao espetáculo, Alessandra Vannucci impõe à cena uma dinâmica soturna e claustrofóbica, obviamente que visando enfatizar a extrema dramaticidade do contexto. E é quase sempre bem sucedida, a não ser quando cria uma marca que percebe-se imediatamente que é uma marca. Um exemplo: a presa nº 1 está imóvel e a presa nº 2 se aproxima dela com uma espécie de plástico; logo fica claro que este plástico será usado para envolver o corpo da primeira. O resultado visual é interessante? Sem dúvida. Mas aqui me parece que o resultado se sobrepõe à real necessidade da marcação, como se a diretora tivesse decidido, a priori, que em algum momento um corpo seria envolvido com o dito material.

No tocante às atrizes, Mariana Guimarães compõe bem a figura da presa torturada, evidenciando boa voz e bom preparo corporal. A mesma eficiência se faz presente na performance de Julia Carrera, particularmente forte e expressiva nas passagens em que evoca atrocidades. 

Na equipe técnica, Romulo Bandeira responde pela instalação cenográfica. Esta é composta basicamente por membros mutilados que vão sendo aos poucos pendurados, como a sugerir macabro açougue. A ideia é interessante, mas talvez o resultado fosse mais contundente se os tais membros fossem mais sugeridos do que propriamente cópias de membros reais, pois aí a ilustração se sobrepõe à expressividade. Lourdinha Guimarães assina figurinos corretos, a mesma correção presente na trilha sonora de Pedro Portella. Aurélio de Simoni responde por uma iluminação de excelente nível, determinante para a valorização dos múltiplos climas emocionais em jogo.

DESAPARECIDA - Texto e direção de Alessandra Vannucci. Com Julia Carrera e Mariana Guimarães. Centro Cultural da Justiça Federal. Quarta e quinta, 21h.

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