segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Euforia"

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Sensível brado contra o preconceito e a hipocrisia



Lionel Fischer



"Dividido em dois solos, o espetáculo trata do desejo. Um desabafo de dois personagens, um velho e uma cadeirante, que socialmente são olhados como seres assexuados, invisíveis aos olhos do prazer comum". Este trecho, extraído do ótimo release que me foi enviado, sintetiza o essencial de "Euforia", de autoria de Julia Spadaccini. Em cartaz no Espaço Cultural Sérgio Porto, a montagem leva a assinatura de Victor Garcia Peralta, estando a interpretação a cargo de Michel Blois.

Na primeira parte do espetáculo, entramos em contato com um senhor de 87 anos, que vive em um asilo e é cuidado por um enfermeiro (voz em off) que, provavelmente com o intuito de agradá-lo, inventa para ele um passado que jamais foi o seu - "um  garanhão que pegava todas". No entanto, o homem sempre foi homossexual e a narrativa nos revela a primeira vez em que teve absoluta certeza de que seu afeto seria sempre dirigido a um homem.

Já na segunda parte da montagem, a protagonista é uma jovem que, em face de um acidente de carro, perde completamente a sensibilidade da parte inferior de seu corpo. Pouco a pouco, uma vez superadas a dor e a revolta, ela começa a vislumbrar a possibilidade de transcender a fatalidade que a acometera e finalmente deseja e é desejada por um homem, com ele conseguindo consumar uma plena relação sexual.

No primeiro caso, a ênfase recai sobre a progressiva e inexorável ação do tempo sobre o corpo, assim como é enfatizado o desconforto do homem que já não consegue dar conta de si mesmo, e se vê obrigado a aceitar ser manipulado por alguém cuja suposta gentileza o constrange e entristece. No segundo caso, a personagem tem que reaprender a lidar com os limites físicos de seu corpo e parece que tal objetivo, se atingido, já seria suficiente. Mas, como já dito, sua libido é novamente despertada e então ela constata que o trágico acidente não a impediria de ser sexualmente ativa.

Em uma época, como a nossa, em que a hipocrisia e o preconceito parecem fadados a se perpetuar, é extremamente gratificante entrar em contato com um texto belíssimo, cujas pertinentes e sensíveis reflexões enfatizam, por um lado, que homossexualidade não é uma doença, como atualmente sustentam algumas correntes de pensamento abomináveis; e por outro que os deficientes físicos não devem e não podem ser encarados como seres inferiores, dignos no máximo de uma aparente compaixão que mal consegue disfarçar uma descarada repulsa.  

Exibindo uma estrutura narrativa que permite ao intérprete viver os personagens e ao mesmo tempo falar sobre as questões que os afligem, "Euforia" recebeu irretocável versão cênica de Victor Garcia Peralta. Explorando com extrema sensibilidade a ótima cenografia de Elsa Romero, que vai se transformando ao longo da montagem, o encenador constrói, como de hábito, uma encenação que prioriza o essencial, abdicando de inócuas firulas formais.  Afora isto, e também como sempre, Peralta revela-se um excelente parceiro dos intérpretes que dirige, no caso Michel Blois.

Possuidor de ótima voz, impecável trabalho corporal, grande carisma e uma inteligência cênica que o leva a buscar soluções que sempre escapam ao previsível, aqui Michel Blois exibe um dos melhores trabalhos de sua carreira, valorizando ao máximo tanto os conteúdos emocionais em jogo como as reflexões propostas pela autora. Sem dúvida, uma das melhores performances da atual temporada.

No complemento da ficha técnica, parabenizo com o mesmo entusiasmo as preciosas colaborações de todos os profissionais envolvidos nesta mais do que oportuna empreitada teatral - Wagner Azevedo (iluminação), Ticiana Passos (figurino), Holograma (trilha sonora original) e Raquel Alvarenga, que responde pelo belíssimo projeto gráfico.

EUFORIA - Texto de Julia Spadaccini. Direção de Victor Garcia Peralta. Com Michel Blois. Espaço Cultural Sérgio Porto. Sábado, domingo e segunda às 19h.   




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