terça-feira, 10 de outubro de 2017

Teatro/CRÍTICA

"Tripas"

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Inesquecível resgate de imprescindíveis afetos



Lionel Fischer




Em seu sentido mais óbvio, fronteira é o limite que demarca um país e o separa de outro(s). No entanto, o termo pode ser aplicado a variados contextos. No presente caso, a fronteira é entre a vida e a morte. Um homem sofre imprevista crise de diverticulite aguda. Passa por diversas cirurgias. Fica um ano internado. Em alguns momentos, seu estado melhora; em outros, piora a ponto de sugerir que não escapará. O filho desse homem está sempre ao seu lado, ora alimentando esperanças, ora tentando controlar a angústia que o devasta. Mas não estamos diante de personagens. O homem que luta por sua vida é o ator, diretor e professor Ricardo Kosovski. O homem que o acompanha é seu filho, o autor, diretor e professor Pedro Kososki. 

Quando privado de um mínimo de lucidez, Ricardo sequer reconhece o filho, chamando-o inclusive por vários nomes. Mas em um momento em que a doença dá uma trégua, e na hipótese de que a recuperação seja total, os dois combinam viajar juntos pelo mundo. Ou por outra: decidem visitar Tel Aviv, em Israel. E o almejado sonho se materializa: lá conhecem o Golfo de Ácaba, que fica na fronteira entre Israel, Egito, Jordânia e Arábia Saudita. E foi neste momento que Pedro começou a criar a dramaturgia.

Em cartaz na Sala Multiuso do Sesc Copacabana, "Tripas" chega à cena com direção de Pedro (que no final do espetáculo faz breve participação) e atuação de Ricardo, com o projeto contando com as colaborações de Lídia Kosovski (cenografia), Renato Machado (iluminação), Felipe Storino (direção musical), Toni Rodrigues (direção de movimento) e Pedro Nêgo (músico). Cabe registrar que o processo de criação de "Tripas" teve interlocução com Renato Ferracini (LUME Teatro/UNICAMP) e a peça está associada ao pós-doutoramento de Ricardo Kosovski, professor da UNIRIO, com o título "Das tripas...autoficção". 

Como todos sabemos, um espetáculo teatral pode ser abominável ou inesquecível - para ficarmos apenas com considerações extremas. Mas quais seriam as razões que nos levam a considerar inesquecível um espetáculo teatral? Somente devido a razões de natureza estética? Sem dúvida, estas possuem enorme importância. Mas acredito que também existam outras, que transcendem conjecturas teóricas e se inserem em territórios nem sempre muito definidos ou acessíveis, como o dos afetos.

Quem perde o pai ou a mãe conhece a dimensão de uma dor que palavra alguma é capaz de definir. No entanto, a dor é ainda maior quando, por infinitas razões, muito do que poderia ter sido dito não o foi, muito do que poderia ter sido vivido e compartilhado acabou não se materializando. E essa sensação de incompletude é devastadora, posto que jamais poderá ser remediada. 

E é exatamente isto que o texto nos mostra: graças à viagem que fizeram, Ricardo e Pedro puderam se conhecer muito mais e chegar à mesma conclusão: a grande celebração teria que se dar através do teatro, teria que acontecer em um teatro, pois assim o belíssimo encontro que tiveram poderia ser compartilhado com os espectadores, que, a exemplo do que aconteceu comigo, certamente acompanharão o espetáculo alternando lágrimas e sorrisos, e irão para suas casas conscientes de que tudo pode e deve ser dito àqueles que amamos, que tudo pode e deve ser vivido com aqueles que amamos. Enquanto há tempo. E o tempo passa muito rápido...

Texto pungente, emocionante, divertido e dilacerado, "Tripas" recebeu excelente versão de Pedro Kosovski, que impõe à cena uma dinâmica que valoriza ao extremo a estrutura fragmentada do texto, que alterna passagens ficcionais e outras em que Ricardo Kosovski fala na primeira pessoa a respeito do que lhe ocorreu. 

E é justamente quando isso acontece que o público se sente abraçado e cúmplice do que está assistindo e vivenciando. E por isso não reluta em aceitar o convite do ator para que, em dado momento, com ele compartilhe o palco. E é então que, pouco depois, Ricardo lê a carta que Pedro lhe escreveu quando tudo indicava não haver mais a menor possibilidade de cura - sem entrar em maiores detalhes, faço questão de confessar que este foi um dos mais lindos e impactantes momentos já vividos por mim em um teatro. 

Quanto a Ricardo Kosovski, tive o privilégio de conviver mais estreitamente com ele em "Boa noite, professor", peça escrita e dirigida por mim e minha filha Julia Stockler, e que esteve em cartaz no ano passado no Tablado. E então, duas certezas que já possuía não sofreram o mais ínfimo abalo. A primeira: Ricardo não é apenas um dos maiores atores do país, mas um artista, na acepção máxima do termo. A segunda: é um homem cuja integridade não admite que com ele estabeleçamos uma relação pautada por qualquer dubiedade. Com Ricardo Kosovski, é sempre olho no olho. E por isso nossos corações bateram juntos, e nossas almas se tornaram gêmeas.

Com relação à equipe técnica, Lídia Kosovski responde por expressiva cenografia, que sugere a aridez de um deserto e cujos desníveis estão em perfeita sintonia com as oscilações de um homem que luta desesperadamente por sua vida, a mesma expressividade presente no figurino que assina. Igualmente irrepreensíveis são as contribuições de Renato Machado, Felipe Storino, Toni Rodrigues e Pedro Nêgo, cabendo também destacar o belíssimo design gráfico de Marina Kosovski. 

TRIPAS - Texto e direção de Pedro Kosovski. Com Ricardo Kosovski. Sala Multiuso do Sesc Copacabana. Sexta e sábado, 19h. Domingo, 18h.


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