Teatro/CRÍTICA
"Miranda por Miranda"
............................................
Divertido e encantador tributo
Lionel Fischer
No início do espetáculo, e dirigindo-se à platéia na pele dela mesma, Stella Miranda faz algumas confissões. Em 2001, estava em São Paulo, internada no Hospital Sírio Libanês, lutando contra um câncer. Recebeu então um telefonema de seu amigo Miguel Falabella convidando-a para protagonizar o musical South American Way, que escrevera em parceria com Maria Carmem Barbosa. Ainda que encantada com o convite, foi obrigada a recusá-lo. Mas Falabella, como sempre fiel aos seus parceiros e amigos, dispôs-se a esperar o tempo que fosse necessário para ter Stella como protagonista da montagem que giraria em torno de Carmen Miranda. Após uma cirurgia bem sucedida e livre do mal que a afligia, Stella pôde enfim se engajar no projeto, que lhe valeu os prêmios Shell, Governador do Estado e Quality de melhor atriz, assim como Falabella e Maria Carmem levaram o Shell de melhor autor.
Agora, partindo de uma idéia de Falabella, Stella Miranda escreveu e dirigiu o musical Miranda por Miranda, que acaba de entrar em cartaz no Sesc Ginástico. Contando com direção musical e arranjos de Tim Rescala, o espetáculo conta também com a participação dos atores/cantores Édio Nunes, Pedro Lima, Raul Serrador e Zé Rescala, acompanhados por um trio formado por Tim Rescala/Chico Werneck (piano), Dodô Ferreirra/Bruno Repsold (baixo) e Oscar Bolão/Fabiano Salleck (percussão) - na noite em que assistimos ao espetáculo, o trio era composto por Werneck, Ferreira e Bolão.
Para os fãs de Carmen Miranda, o presente espetáculo oferece um retrato abrangente, divertido e comovente da nossa "pequena notável". Aspectos essenciais de sua vida e trajetória artística estão exemplarmente materializados na cena, tanto no que diz respeito ao texto como às inúmeras canções -28 e mais um medley de oito marchinhas de carnaval - cantadas de forma maravilhosa por Stella e pelos atores/cantores que com elam contracenam. E se a isto somarmos a irreverente e divertida direção de Stella, os criativos arranjos de Tim Rescala e a excelência dos músicos, o resultado só poderia ser uma noite de puro encantamento.
Mas falemos um pouco mais de Stella Miranda. Ótima atriz, excelente cantora, possuidora de grande carisma e forte personalidade cênica, esta profissional exemplar não exibe aqui apenas seus múltiplos talentos, mas faculta à platéia uma preciosa lição de vida. Embora a Medicina não faça parte de nossos parcos conhecimentos, ainda assim acreditamos piamente que o maior antídoto contra qualquer doença seja a vontade de viver. E Stella a possuía - e ainda possui, certamente - em grau superlativo. E por isso - afora o tratatamento a que se submeteu, evidentemente - deixou o leito hospitalar do qual ninguém acreditava que se libertaria para, apenas alguns meses depois, brilhar intensamente no já citado musical, o mesmo ocorrendo agora. Então, só nos resta desejar aos sempre caprichosos deuses do teatro que abençoem não apenas esta montagem imperdível, mas também Stella Miranda, que certamente ainda dará muitas alegrias àqueles que amam esta sublime manifestação artística que é o teatro.
No complemento da ficha técnica, destacamos com entusiasmo a cenografia de Hélio Eichbauer, a coreografia de Márcia Rubin, a iluminação de Maneco Quinderé, os cenários virtuais e efeitos visuais de Samir Abujamra e os figurinos de Rita Murtinho.
MIRANDA POR MIRANDA - Texto e direção de Stella Miranda. Com Stella Miranda, Édio Nunes, Pedro Lima, Raul Serrador e Zé Rescala. Sesc Ginástico. Quinta a domingo, 19h.
sexta-feira, 2 de outubro de 2009
quarta-feira, 30 de setembro de 2009
A tragédia de Althusser
Wilson de Lyra Chebabi
(O presente artigo apresenta os comentários de Chebabi após a leitura dramatizada da peça "A tragédia de Althusser", de Carlos Henrique Escobar, dirigida por Dina Moscovici no Tablado, em 2000. Este artigo está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 161)
A experiência que vivemos ao assistir a leitura da peça é muito instigante porque permite compartilhar de uma etapa importantíssima da gestação de um evento teatral. A leitura pelos atores e o empenho em cada um de colocar-se no palco e no personagem, constitui uma espécie de metabolização do texto do autor. Evidentemente, esta metabolização vai permitir que o próprio autor se surpreenda com o que ele escreveu, ao verificar a pluralidade das nuanças possíveis em função da vivência de cada ator e do diretor. Esta vivência depende daquilo que o drama de cada personagem apresentado como que puxa de dentro da pessoa do ator e que vai permitir que ele vá, durante a representação, vindo a ser o personagem. Quanto melhor o ensaio conseguir essa espessura de experiência humana de representação, mais eficaz será a peça na proposta de colocar o espectador em contato com a teia do seu vivido e portanto compartilhar do drama com a sua inteligência e com a sua emoção.
Qual o valor de colocar-nos em conexão com o que a vida vem tatuando em nós? Qual a vantagem de nos reconhecermos em Louis Althusser, como nos foi apresentado por Carlos Henrique Escobar, que com isso representa-se também em novas facetas, além daquelas através das quais já o conhecemos?
Como todas as perguntas, estas foram feitas para não serem respondidas. Qualquer resposta interpor-se-ia entre o evento teatral que nos alcança, e sua força de emergência do que se acha velado dentro de nós. A pertinência da pergunta está em potencializar a força do que todos nós assistimos, cada um a seu modo, para que o acontecimento prossiga a sua vocação de despertar novas perguntas. Será então que o ator vai emprestar densidade ao personagem à medida que for se deixando tatuar por ele? Ou é o ator que tatua o personagem com a maneira como empresta a ele seus dramas pessoais? Qual dos dois é o tatuador e qual é o que está sendo tatuado? Não será que o que caracteriza esse animal estranho que é o ser humano, é justamente não poder escapar da tatuagem da cultiva e da mecessidade de praticar nos demais essas marcas indeléveis?
A tendência mais corrente é impingir marcas impressas com ferro e fogo, como se faz com gado, para classificar as pessoas, em vez de descobrir-lhes as múltiplas características. Esssa marca, que enxerta um estigma, visa ferir dolorosamente alguém para intimidar e com isso exercer o poder. Um proeminente professor da Sorbone, na época, declarou: "Eu lhes havia dito que aquela filosofia era homicida".
Essa obra que assistimos, de autoria de Carlos Henrique Escobar, e de seus metabolizadores desta noite, tem uma função valiosa: a de incentivar a ler Althusser como ele se empenhou em ler Marx e ainda Montesquieu, Spinoza, Gramsci, Freud e Lacan. É uma dedicação íntima, uma devoção de conhecimento que nos está trazendo a este evento. Que devoção teria levado Louis Althusser a assassinar Helène? Mais uma pergunta para não ser respondida e sim para acionar uma nova pergunta: que assassinato era praticado por Helène em sua devoção - mostrada abundantemente na peça - em cuidar de Althusser com tal constância e devoção?
A tragédia de Althusser é a tragédia do homem que pensa. Pensar é ponderar e ponderar é recusar a cegueira da adoção cega de uma facção. Pôr os dois pesos na balança. Pensar é recusar o sectarismo, isto é, recusar tentar invalidar os motivos dos setores aos quais não nos filiamos. Para isso ser tentado - pois não sei se é possível - torna-se indispensável manter uma vigilante capacidade crítica da posição que adotamos. Isto significa ter a coragem de não se sujeitar à pressão dos co-participantes para silenciar toda crítica que revela que a facção que adotamos ainda carreia em seu bojo núcleos profundos daquela facção da qual nos destacamos e contra a qual nos voltamos. Essa crítica é extremamente ameaçadora porque nos joga a todos no inferno da incerteza. E aí abre-se o abismo entre a atividade de pensar e a luta pelo poder.
Há uma diferença profunda entre pensar para saber e pensar para o poder. Do saber, sem a menor dúvida, surge também um poder, que é secundariamente alcançar conclusões que possam ser empregadas como armas que destroçam os adversários. A ilustração mais eloqüente disto é o desenvolvimento da física atômica. Pensar é, portanto, ponderar também a possibilidade dos usos destrutivos que possam ser feitos dos saberes alcançados pelo pensamento. Mas não há nenhum recurso do pensamento que garanta o bom uso de qualquer descoberta. E é por isso que só se pode pensar para valer se suportarmos pisar nas areias movediças da incerteza.
Para combater, contudo, é necessário contar, embora ilusoriamente, com o solo firme da certeza. É este solo que sustenta as guerras com as suas campanhas baseadas na sugestão e no hipnotismo das massas. Ninguém desconhece o fascínio criado pelo aparato de propaanda nazista, tanto mais bem sucedido quanto mais conseguia eleger um causador de todos os males: o judeu. Aí está o germe de todo racismo. Esta configuração de fatores estabelece um estado de coisas que não deve ser abalado a qualquer preço. O pensar é sem a menor dúvida o boicote mais perigoso, embora tardio, contra o status-quo. Para os que se apoiam na certeza que sustenta a conjuntura, pensar é trair.
Fervoroso católico em sua juventude, já nesta época Althusser via-se atormentado por dúvidas e pelo medo de estar sendo insincero. E por mais paradoxal que pareça, foi em fidelidade ao espírito da Igreja que tornou-se comunista. Teve de fazer a guerra, mobilizado em 1939 e foi preso em 1940, ficando cinco anos em campo de concentração. O cativeiro permitiu que tivesse a experiência do contato com proletários, camponeses e militantes comunistas, percebendo-se apaixonado pela política. Já em 1947 era hospitalizado em um estabelecimento psiquiátrico, por apresentar "sinais de desequilíbrio mental" e foi diagnosticado como "psicótico maníaco-depressivo". Como sabemos, esta assim chamada entidade nosológica é considerada causadora, pela psiquiatria tradicional, do que chamaram de "acessos melancólicos repetitivos".
Sujeitando-se a ficar marcado por essa tatuagem, podia ter um lugar na cultura. De outro modo sua inquietação cognitiva e a profunda dor pelo desperdício de vida na sociedade em que vivemos e a aguda consciênia da impotência em conseguir mudá-la, despertariam no meio social a desorientação e o caos. Com o selo de doente mental podia ser respeitado pelo seu meticuloso e profundo trabalho conceitual, que não teria nada a ver com os impasses a que chegaram o seu percurso cristão, o seu percurso marxista e o seu porte filosófico.
Na peça de Escobar não fica muito nítido a sua ânsia de encontrar uma síntese dessas vertentes que tivesse a possibilidade de mudar o mundo. Mas classificado como doente ficava invalidado como líder de qualquer movimento renovador. A doença que ele adotava permitia aplacar o desespero da sociedade ao ver denunciadas as razões gananciosas que movem os seus desastres. Como doente, seu pensamento ficava limitado ao universo teórico para ser respeitado e estudado, mas não para ser exercido. Aceitando esse estigma, aplacava o medo que os outros tinham da prática das suas propostas ideológicas.
Deste modo, foi possível então tornar-se professor de filosofia. Seus estudos nesse anos de 1948 na Escola Normal Superior em Paris deram-lhe o título de agregado de filosofia. Sua tese sobre Hegel revela a influência da tradução de Jean Hyppolite, também mestre de Jacques Lacan. Além destes, filiou-se ao ensinamento da epistemologia com Gaston Bachelard, supervisor de sua tese. Foi nomeado para substituir Georges Gusdorf na preparação dos candidatos a serem agregados. Outra relação importante foi com Michel Foucault, a quem aconselhou não se internar em hospital psiquiátrico e influenciou para entrar no Partido Comunista. Mantinha-se bem relacionado com o grupo católico da Escola.
Althusser toma a decisão, ao lado da maioria dos universitáriios franceses, de aderir ao marxismo e ao Partido Comunista. Disse mais tarde que encontrava no Partido os meios para a realização da fraternidade universal. Sem dúvida era a maneira de manter-se fiel ao espírito do cristianismo. Declarou que as mulheres lhe haviam dado tudo: "Não sabem quanta capacidade têm para fazer política".
Em minhas fontes, foi Helène que lhe abriu, no campo de concentração, as portas do marxismo. Em 1950 Helène continuava a ser acusada, sem a menor prova, de manter contato com grupos ligados à Espanha republicana. Foi expulsa do Partido e Althusser teria sido instado a romper com ela. E sentiu-se obrigado a comprometer-se a fazê-lo. Esse também é o período de novas internações e da assistência de Diatkine. Helène, contudo, continuou a visitar Althusser na Escola. Mais uma vez, a versão de que era um doente tornava mais possível suportar a contradição entre a sua maneira de pensar e o seu ato de traição à Heléne e a si mesmo.
Todos esses eventos estavam ocorrendo nos bastidores do andamento das coisas que aparecem na peça de Escobar. Várias de suas convicções e afeições profundas entravam em choque dentro dele. Como compatibilizar sua fé cristã com a repulsa marxista à religião? Em parte, sem dúvida, tendo a esperança de encontrar no marxismo a caixa de ferramentas que faltava ao cristianismo. Mas, em sendo uma luta decididamente assumida como procurando o poder, teria de infligir as propostas do amor ao próximo como a si mesmo. É bem verdade que tinha como argumento que também a Igreja sempre o fez. Mas tinha por outro lado a formação filosófica que, incitando o pensamento, punha em crise a adesão incondicional à qualquer versão da verdade. A pedido de Alain Badiou, Sartre fez uma palestra na Escola Normal Superior e um interlocutor conseguiu encurralá-lo. Foi Louis Althusser. Para nossa lástima o debate nunca foi publicado.
Althusser era acusado, cada vez mais, de "pluralismo perigoso", que abala as bases "maoistas" do marxismo. A gana crítica de Althusser era considerada coqueteria. Ao suspender os seus seminários, em função das intervenções repressivas da maioria dos psicanalistas franceses da época, Jacques Lacan foi convidado por Althusser a prossegui-los na Escola Normal Superior.
Althusser foi acusado de "esquerdismo" e teve de declarar que a linha própria e adequada era a do Partido Comunista francês. Daí para a frente foi se tornando a fonte do pensamento estudantil marxista. Passa a deplorar a indigência teórica do pensamento operário e postula que cabe aos intelectuais devolver ao marxismo o seu rigor científico. Faz reparo, pois, ao "humanismo" de Sartre, como aliás ao de Heidegger. Como Lacan apresentava a "releitura de Freud", Althusser se propunha a reler Marx. Em 1964 publicou "Freud e Lacan", mantendo sempre um respeito pela psicanálise até 1980, quando irritou-se tremendamente contra Lacan, numa época em que essa irritação já se estendia em muitos meios.
Althusser e seus seguidores eram considerados a esquerda da esquerda em contraste com a esquerda insossa do Partido. Esta queixava-se da ausência, em seus escritos, de referências à literatura escrita pelo Partido e a abundância de articulação ao estruturalismo, considerado reacionário. Essa erupção incessante, que incluía sucesso e infortúnio, não era ignorada por Althusser, que procurava tomar iniciativas de articular todas as forças internas e externas para não perder a lucidez.
A peça de Escobar revela a constância de recorrer a Diatkine, sempre incerto da certeza deste último. Fontes revelam que queixava-se fundamentalmente de ser tratado com reverência pelo analista em prejuízo do cuidado analítico de que precisava. De algum modo, Diatkine pareceu apoiar-se no diagnóstico psiquiátrico de psicose maníaco-depressiva. Os episódios da peça de Escobar com respeito à sensibilidade ao sofrimento dos animais e a cena pungente de auto-culpabilização pela morte do bizarro pequeno animal que lhe haviam presenteado podem já estar influenciados pela assunção básica e não questionada da enfermidade mental. Não se pergunta se o patológico é a sensibilidade pelo sofrimento de qualquer ser vivo ou se é a frieza para a vida e a paixão pelos engenhos que contemplam o poder e que se alastra cada vez mais na humanidade.
O que a peça nos mostra é uma Helène profundamente comprometida com o analista que se mantinha também psiquiatra medicando e internando. Não se pergunta se essa medicalização visava de fato a preservação da pessoa real de Althusser, inteiro, sacudido pelas contradições da vida e da sociedade paradoxal em que vivemos, ou a preservação do seu prestígio em cima do qual tantas pessoas se apoiavam. Helène também apoiava-se em seu saber caleidoscópico e o apoiava emocionalmente como uma espécie de mãe emparceirada com Diatkine. Tudo bem. Mas a questão fundamental continua flutuando sem ponto de fixação. Todos nós suportamos essa revisão na esperança de saber por que Althusser matou Helène? Essa pergunta só faz lançar-nos no redemoinho de novas dúvidas.
Será porque Althusser padecia da enfermidade "maníaco-depressiva?" Mas será que existe essa doença e será que ela é de origem orgânica? E mesmo que exista, a melancolia move as pessoas que a sofrem a matar? O que se estuda nos tratados psiquiátricos é que o melancólico se mata por considerar-se culpado de tudo e carente de castigo. A não ser que sua aspiração de auto punição fosse a de morrer em seu prestígio. Diz-se muito que essa foi a primeira morte de Althusser. Mas com toda a sua sofisticação espiritual, teria podido arruinar o seu prestígio escrevendo contra as suas posições até então tomadas, despertando então o desprezo dos que o apoiavam. Os melancólicos mencionados nos tratados de psiquiatria usam constantemente este expediente de auto condenação. Não foi o que fez Althusser.
Terá sido uma vingança contra o psicanalista? Se este se apoiava em seu prestígio intelectual, o assassinato de Helène por um lado comprovava a tese de ser ele um doente mental submetendo-se ao analista e por outro ferrava a pretensão de Diatkine de saber o que estava fazendo com Althusser. Terá sido um pacto de morte entre os dois amantes como há tantos? É verdade que Helène revelava uma certa culpa de estar com Althusser e se imaginava por vezes responsável por seu sofrimento.
Por que Althusser assassinou Helène? Não se sentiria assassinado por ela que funcionava como veículo da intolerância da sociedade com quem não toma partido cego de uma causa? A resistência heróica de Althusser contra a pressão social de abortar sua capacidade crítica precisava ser quebrada. Não terá Helène, sem disso dar-se conta, se deixado levar pela pressão do meio ambiente em sendo induzida a matá-lo aos poucos com a medicação que diminui a lucidez crítica?
Por que, afinal, Althusser matou Helène? Terá sido um gesto piedoso, ligado à sua mania de grandeza? Uma espécie de eutanásia misericordiosa? Em alguns momentos da peça parece que isot fica insinuado.
Ainda nos faltam dados essenciais para perguntar mais ainda: o percurso da análise de Althusser, se for possível chamar essa intervenção de análise, como foi acompanhada e exercida por Diatkine. Dados deste cunho, contudo, não podem ser exigidos de um analista que tem como dever resguardar o segredo médico. A única resposta só pode ser: não sabemos senão que não sabemos. E o que sabemos guarda-se no fundo de nós sem sabermos que sabemos.
A vida, contudo, não se sustenta sem uma ilusão de saber. A autocrítica sistemática e a incerteza radical põe-nos impotentes e sem vigor. Saber que assassinou a sua própria mulher, da qual dependeu tanto para sustentar-se vivo, ficou sendo um saber inegável. A impotência, filha da incerteza, devanecia-se uma vez que agora tinha posto em prática um ato hediondo concreto. Libertava-se do encarceramento na teoria em que ele havia sido isolado.
_______________________________
Wilson de Lyra Chebabi é psicanalista
Wilson de Lyra Chebabi
(O presente artigo apresenta os comentários de Chebabi após a leitura dramatizada da peça "A tragédia de Althusser", de Carlos Henrique Escobar, dirigida por Dina Moscovici no Tablado, em 2000. Este artigo está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 161)
A experiência que vivemos ao assistir a leitura da peça é muito instigante porque permite compartilhar de uma etapa importantíssima da gestação de um evento teatral. A leitura pelos atores e o empenho em cada um de colocar-se no palco e no personagem, constitui uma espécie de metabolização do texto do autor. Evidentemente, esta metabolização vai permitir que o próprio autor se surpreenda com o que ele escreveu, ao verificar a pluralidade das nuanças possíveis em função da vivência de cada ator e do diretor. Esta vivência depende daquilo que o drama de cada personagem apresentado como que puxa de dentro da pessoa do ator e que vai permitir que ele vá, durante a representação, vindo a ser o personagem. Quanto melhor o ensaio conseguir essa espessura de experiência humana de representação, mais eficaz será a peça na proposta de colocar o espectador em contato com a teia do seu vivido e portanto compartilhar do drama com a sua inteligência e com a sua emoção.
Qual o valor de colocar-nos em conexão com o que a vida vem tatuando em nós? Qual a vantagem de nos reconhecermos em Louis Althusser, como nos foi apresentado por Carlos Henrique Escobar, que com isso representa-se também em novas facetas, além daquelas através das quais já o conhecemos?
Como todas as perguntas, estas foram feitas para não serem respondidas. Qualquer resposta interpor-se-ia entre o evento teatral que nos alcança, e sua força de emergência do que se acha velado dentro de nós. A pertinência da pergunta está em potencializar a força do que todos nós assistimos, cada um a seu modo, para que o acontecimento prossiga a sua vocação de despertar novas perguntas. Será então que o ator vai emprestar densidade ao personagem à medida que for se deixando tatuar por ele? Ou é o ator que tatua o personagem com a maneira como empresta a ele seus dramas pessoais? Qual dos dois é o tatuador e qual é o que está sendo tatuado? Não será que o que caracteriza esse animal estranho que é o ser humano, é justamente não poder escapar da tatuagem da cultiva e da mecessidade de praticar nos demais essas marcas indeléveis?
A tendência mais corrente é impingir marcas impressas com ferro e fogo, como se faz com gado, para classificar as pessoas, em vez de descobrir-lhes as múltiplas características. Esssa marca, que enxerta um estigma, visa ferir dolorosamente alguém para intimidar e com isso exercer o poder. Um proeminente professor da Sorbone, na época, declarou: "Eu lhes havia dito que aquela filosofia era homicida".
Essa obra que assistimos, de autoria de Carlos Henrique Escobar, e de seus metabolizadores desta noite, tem uma função valiosa: a de incentivar a ler Althusser como ele se empenhou em ler Marx e ainda Montesquieu, Spinoza, Gramsci, Freud e Lacan. É uma dedicação íntima, uma devoção de conhecimento que nos está trazendo a este evento. Que devoção teria levado Louis Althusser a assassinar Helène? Mais uma pergunta para não ser respondida e sim para acionar uma nova pergunta: que assassinato era praticado por Helène em sua devoção - mostrada abundantemente na peça - em cuidar de Althusser com tal constância e devoção?
A tragédia de Althusser é a tragédia do homem que pensa. Pensar é ponderar e ponderar é recusar a cegueira da adoção cega de uma facção. Pôr os dois pesos na balança. Pensar é recusar o sectarismo, isto é, recusar tentar invalidar os motivos dos setores aos quais não nos filiamos. Para isso ser tentado - pois não sei se é possível - torna-se indispensável manter uma vigilante capacidade crítica da posição que adotamos. Isto significa ter a coragem de não se sujeitar à pressão dos co-participantes para silenciar toda crítica que revela que a facção que adotamos ainda carreia em seu bojo núcleos profundos daquela facção da qual nos destacamos e contra a qual nos voltamos. Essa crítica é extremamente ameaçadora porque nos joga a todos no inferno da incerteza. E aí abre-se o abismo entre a atividade de pensar e a luta pelo poder.
Há uma diferença profunda entre pensar para saber e pensar para o poder. Do saber, sem a menor dúvida, surge também um poder, que é secundariamente alcançar conclusões que possam ser empregadas como armas que destroçam os adversários. A ilustração mais eloqüente disto é o desenvolvimento da física atômica. Pensar é, portanto, ponderar também a possibilidade dos usos destrutivos que possam ser feitos dos saberes alcançados pelo pensamento. Mas não há nenhum recurso do pensamento que garanta o bom uso de qualquer descoberta. E é por isso que só se pode pensar para valer se suportarmos pisar nas areias movediças da incerteza.
Para combater, contudo, é necessário contar, embora ilusoriamente, com o solo firme da certeza. É este solo que sustenta as guerras com as suas campanhas baseadas na sugestão e no hipnotismo das massas. Ninguém desconhece o fascínio criado pelo aparato de propaanda nazista, tanto mais bem sucedido quanto mais conseguia eleger um causador de todos os males: o judeu. Aí está o germe de todo racismo. Esta configuração de fatores estabelece um estado de coisas que não deve ser abalado a qualquer preço. O pensar é sem a menor dúvida o boicote mais perigoso, embora tardio, contra o status-quo. Para os que se apoiam na certeza que sustenta a conjuntura, pensar é trair.
Fervoroso católico em sua juventude, já nesta época Althusser via-se atormentado por dúvidas e pelo medo de estar sendo insincero. E por mais paradoxal que pareça, foi em fidelidade ao espírito da Igreja que tornou-se comunista. Teve de fazer a guerra, mobilizado em 1939 e foi preso em 1940, ficando cinco anos em campo de concentração. O cativeiro permitiu que tivesse a experiência do contato com proletários, camponeses e militantes comunistas, percebendo-se apaixonado pela política. Já em 1947 era hospitalizado em um estabelecimento psiquiátrico, por apresentar "sinais de desequilíbrio mental" e foi diagnosticado como "psicótico maníaco-depressivo". Como sabemos, esta assim chamada entidade nosológica é considerada causadora, pela psiquiatria tradicional, do que chamaram de "acessos melancólicos repetitivos".
Sujeitando-se a ficar marcado por essa tatuagem, podia ter um lugar na cultura. De outro modo sua inquietação cognitiva e a profunda dor pelo desperdício de vida na sociedade em que vivemos e a aguda consciênia da impotência em conseguir mudá-la, despertariam no meio social a desorientação e o caos. Com o selo de doente mental podia ser respeitado pelo seu meticuloso e profundo trabalho conceitual, que não teria nada a ver com os impasses a que chegaram o seu percurso cristão, o seu percurso marxista e o seu porte filosófico.
Na peça de Escobar não fica muito nítido a sua ânsia de encontrar uma síntese dessas vertentes que tivesse a possibilidade de mudar o mundo. Mas classificado como doente ficava invalidado como líder de qualquer movimento renovador. A doença que ele adotava permitia aplacar o desespero da sociedade ao ver denunciadas as razões gananciosas que movem os seus desastres. Como doente, seu pensamento ficava limitado ao universo teórico para ser respeitado e estudado, mas não para ser exercido. Aceitando esse estigma, aplacava o medo que os outros tinham da prática das suas propostas ideológicas.
Deste modo, foi possível então tornar-se professor de filosofia. Seus estudos nesse anos de 1948 na Escola Normal Superior em Paris deram-lhe o título de agregado de filosofia. Sua tese sobre Hegel revela a influência da tradução de Jean Hyppolite, também mestre de Jacques Lacan. Além destes, filiou-se ao ensinamento da epistemologia com Gaston Bachelard, supervisor de sua tese. Foi nomeado para substituir Georges Gusdorf na preparação dos candidatos a serem agregados. Outra relação importante foi com Michel Foucault, a quem aconselhou não se internar em hospital psiquiátrico e influenciou para entrar no Partido Comunista. Mantinha-se bem relacionado com o grupo católico da Escola.
Althusser toma a decisão, ao lado da maioria dos universitáriios franceses, de aderir ao marxismo e ao Partido Comunista. Disse mais tarde que encontrava no Partido os meios para a realização da fraternidade universal. Sem dúvida era a maneira de manter-se fiel ao espírito do cristianismo. Declarou que as mulheres lhe haviam dado tudo: "Não sabem quanta capacidade têm para fazer política".
Em minhas fontes, foi Helène que lhe abriu, no campo de concentração, as portas do marxismo. Em 1950 Helène continuava a ser acusada, sem a menor prova, de manter contato com grupos ligados à Espanha republicana. Foi expulsa do Partido e Althusser teria sido instado a romper com ela. E sentiu-se obrigado a comprometer-se a fazê-lo. Esse também é o período de novas internações e da assistência de Diatkine. Helène, contudo, continuou a visitar Althusser na Escola. Mais uma vez, a versão de que era um doente tornava mais possível suportar a contradição entre a sua maneira de pensar e o seu ato de traição à Heléne e a si mesmo.
Todos esses eventos estavam ocorrendo nos bastidores do andamento das coisas que aparecem na peça de Escobar. Várias de suas convicções e afeições profundas entravam em choque dentro dele. Como compatibilizar sua fé cristã com a repulsa marxista à religião? Em parte, sem dúvida, tendo a esperança de encontrar no marxismo a caixa de ferramentas que faltava ao cristianismo. Mas, em sendo uma luta decididamente assumida como procurando o poder, teria de infligir as propostas do amor ao próximo como a si mesmo. É bem verdade que tinha como argumento que também a Igreja sempre o fez. Mas tinha por outro lado a formação filosófica que, incitando o pensamento, punha em crise a adesão incondicional à qualquer versão da verdade. A pedido de Alain Badiou, Sartre fez uma palestra na Escola Normal Superior e um interlocutor conseguiu encurralá-lo. Foi Louis Althusser. Para nossa lástima o debate nunca foi publicado.
Althusser era acusado, cada vez mais, de "pluralismo perigoso", que abala as bases "maoistas" do marxismo. A gana crítica de Althusser era considerada coqueteria. Ao suspender os seus seminários, em função das intervenções repressivas da maioria dos psicanalistas franceses da época, Jacques Lacan foi convidado por Althusser a prossegui-los na Escola Normal Superior.
Althusser foi acusado de "esquerdismo" e teve de declarar que a linha própria e adequada era a do Partido Comunista francês. Daí para a frente foi se tornando a fonte do pensamento estudantil marxista. Passa a deplorar a indigência teórica do pensamento operário e postula que cabe aos intelectuais devolver ao marxismo o seu rigor científico. Faz reparo, pois, ao "humanismo" de Sartre, como aliás ao de Heidegger. Como Lacan apresentava a "releitura de Freud", Althusser se propunha a reler Marx. Em 1964 publicou "Freud e Lacan", mantendo sempre um respeito pela psicanálise até 1980, quando irritou-se tremendamente contra Lacan, numa época em que essa irritação já se estendia em muitos meios.
Althusser e seus seguidores eram considerados a esquerda da esquerda em contraste com a esquerda insossa do Partido. Esta queixava-se da ausência, em seus escritos, de referências à literatura escrita pelo Partido e a abundância de articulação ao estruturalismo, considerado reacionário. Essa erupção incessante, que incluía sucesso e infortúnio, não era ignorada por Althusser, que procurava tomar iniciativas de articular todas as forças internas e externas para não perder a lucidez.
A peça de Escobar revela a constância de recorrer a Diatkine, sempre incerto da certeza deste último. Fontes revelam que queixava-se fundamentalmente de ser tratado com reverência pelo analista em prejuízo do cuidado analítico de que precisava. De algum modo, Diatkine pareceu apoiar-se no diagnóstico psiquiátrico de psicose maníaco-depressiva. Os episódios da peça de Escobar com respeito à sensibilidade ao sofrimento dos animais e a cena pungente de auto-culpabilização pela morte do bizarro pequeno animal que lhe haviam presenteado podem já estar influenciados pela assunção básica e não questionada da enfermidade mental. Não se pergunta se o patológico é a sensibilidade pelo sofrimento de qualquer ser vivo ou se é a frieza para a vida e a paixão pelos engenhos que contemplam o poder e que se alastra cada vez mais na humanidade.
O que a peça nos mostra é uma Helène profundamente comprometida com o analista que se mantinha também psiquiatra medicando e internando. Não se pergunta se essa medicalização visava de fato a preservação da pessoa real de Althusser, inteiro, sacudido pelas contradições da vida e da sociedade paradoxal em que vivemos, ou a preservação do seu prestígio em cima do qual tantas pessoas se apoiavam. Helène também apoiava-se em seu saber caleidoscópico e o apoiava emocionalmente como uma espécie de mãe emparceirada com Diatkine. Tudo bem. Mas a questão fundamental continua flutuando sem ponto de fixação. Todos nós suportamos essa revisão na esperança de saber por que Althusser matou Helène? Essa pergunta só faz lançar-nos no redemoinho de novas dúvidas.
Será porque Althusser padecia da enfermidade "maníaco-depressiva?" Mas será que existe essa doença e será que ela é de origem orgânica? E mesmo que exista, a melancolia move as pessoas que a sofrem a matar? O que se estuda nos tratados psiquiátricos é que o melancólico se mata por considerar-se culpado de tudo e carente de castigo. A não ser que sua aspiração de auto punição fosse a de morrer em seu prestígio. Diz-se muito que essa foi a primeira morte de Althusser. Mas com toda a sua sofisticação espiritual, teria podido arruinar o seu prestígio escrevendo contra as suas posições até então tomadas, despertando então o desprezo dos que o apoiavam. Os melancólicos mencionados nos tratados de psiquiatria usam constantemente este expediente de auto condenação. Não foi o que fez Althusser.
Terá sido uma vingança contra o psicanalista? Se este se apoiava em seu prestígio intelectual, o assassinato de Helène por um lado comprovava a tese de ser ele um doente mental submetendo-se ao analista e por outro ferrava a pretensão de Diatkine de saber o que estava fazendo com Althusser. Terá sido um pacto de morte entre os dois amantes como há tantos? É verdade que Helène revelava uma certa culpa de estar com Althusser e se imaginava por vezes responsável por seu sofrimento.
Por que Althusser assassinou Helène? Não se sentiria assassinado por ela que funcionava como veículo da intolerância da sociedade com quem não toma partido cego de uma causa? A resistência heróica de Althusser contra a pressão social de abortar sua capacidade crítica precisava ser quebrada. Não terá Helène, sem disso dar-se conta, se deixado levar pela pressão do meio ambiente em sendo induzida a matá-lo aos poucos com a medicação que diminui a lucidez crítica?
Por que, afinal, Althusser matou Helène? Terá sido um gesto piedoso, ligado à sua mania de grandeza? Uma espécie de eutanásia misericordiosa? Em alguns momentos da peça parece que isot fica insinuado.
Ainda nos faltam dados essenciais para perguntar mais ainda: o percurso da análise de Althusser, se for possível chamar essa intervenção de análise, como foi acompanhada e exercida por Diatkine. Dados deste cunho, contudo, não podem ser exigidos de um analista que tem como dever resguardar o segredo médico. A única resposta só pode ser: não sabemos senão que não sabemos. E o que sabemos guarda-se no fundo de nós sem sabermos que sabemos.
A vida, contudo, não se sustenta sem uma ilusão de saber. A autocrítica sistemática e a incerteza radical põe-nos impotentes e sem vigor. Saber que assassinou a sua própria mulher, da qual dependeu tanto para sustentar-se vivo, ficou sendo um saber inegável. A impotência, filha da incerteza, devanecia-se uma vez que agora tinha posto em prática um ato hediondo concreto. Libertava-se do encarceramento na teoria em que ele havia sido isolado.
_______________________________
Wilson de Lyra Chebabi é psicanalista
terça-feira, 29 de setembro de 2009
A catástrofe do sucesso
Tennessee Williams
(Este ensaio, publicado pela primeira vez no New York Times, foi mais tarde reproduzido na revista Story)
Este inverno assinalou o terceiro aniversário da estréia, em Chicago, de À margem da vida, um evento que pôs término a uma parte de minha vida e começou outra tão diferente da precendente em todas as circunstâncias externas quanto será fácil imaginar. Fui arrancado do meu quase anonimato e atirado aos píncaros de uma fama repentina e, do precário aluguel de quartos mobiliados em várias regiões do país, fui trasladado para um apartamento de um hotel de primeira classe em Manhattan. Minha experiência não foi única, pois o sucesso muitas vezes já irrompeu, da mesma forma abrupta, na vida de muitos americanos. A história de Cinderela é nosso mito nacional favorito, a pedra fundamental da indústria cinematográfica, senão a própria Democracia.
Eu já a vira representada na tela tantas vezes que estava agora inclinado a recebê-la com um bocejo de enfado, não com descrença mas com a atitude de quem desse de ombros, exclamando: "Que bem me importa!". Qualquer pessoa dotada de dentes e cabelos tão lindos, como a protagonista cinematográfica de tal história, tinha, por força, que se divertir a valer, fosse como fosse. Você podia apostar seu último dólar e todo o chá da China em que aquela estrela nunca seria vista, viva ou morta, em qualquer tipo de reunião que exigisse um mínimo de consciência social.
Não, minha experiência não era exepcional, mas por outro lado não era tampouco comum e caso você esteja disposto a aceitar a tese um tanto eclética de que eu não escrevera tendo em mente tal experiência - e há muita gente não disposta a crer que um dramaturgo possa estar interessado em outra coisa que não seja o sucesso popular - talvez haja ceta razão para compararmos estas duas fases de minha vida.
A vida que eu levara antes de atingir esse sucesso de público era do tipo que exigia resistência e tenacidade, que me fazia agarrar-me à superfície cheia de arestas que me feriam e me obrigavam a prender-me firmemente, com unhas e dentes, a cada centímetro de pedra colocado mais alto que o precedente - mas era uma vida substancialmente boa porque era do tipo para o qual o organismo humano é criado. Eu sou me dei conta de quanta energia vital eu desprendera naquela luta quando esta cessou. Encontrei-me então num planalto, com meus braços ainda se agitando no ar e meus pulmões sorvendo sofregamente um ar que já não oferecia resistência. Isto era a segurança, afinal.
Sentei-me e olhei ao meu redor e de repente me senti muito deprimido. Pensei comigo mesmo: não é nada, é só o período de adaptação. Amanhã de manhã, acordarei neste hotel de luxo, pairando sobre o ruído discreto que sobe de um bulevar dos quarteirões elegantes do East Side e então apreciarei seu requinte e mergulharei em seu conforto, consciente de que cheguei ao nosso conceito americano do Olimpo. Amanhã de manhã, quando eu olhar para este sofá de cetim verde, me apaixonarei por ele. É só agora, temporariamente, que aquele cetim verde me dá a impressão de limo em água estagnada.
Mas na manhã seguinte o sofazinho inofensivo parecia ainda mais repugnante do que na noite anterior e eu já começava a engordar demais para usar o terno de 125 dólares que um conhecido elegante escolhera para mim. Na suíte que eu ocupava, objetos começaram a quebrar-se acidentalmente. Um braço saiu do sofá. Queimaduras de cigarro apareciam na superfície brilhante dos móveis. Eu deixava as janelas abertas e uma vez uma chuvarada inundou a suíte. Mas a empregada sempre endireitava tudo e a paciência do gerente do hotel era inextinguível. Só uma bomba de demolição, parecia-me, podia incomodar meus vizinhos.
Eu recebia minhas refeições no apartamento. Mas também isto também tinha seu quê de desencanto. No tempo que decorria entre o momento que eu escolhia o jantar pelo telefone e o momento em que ele entrava em meu quarto num carrinho, como um cadáver transportado numa mesa de rodas de borracha, eu perdia todo o interesse por ele. Um vez pedi um bife de filé e um sundae de chocolate, mas tudo estava disfarçado tão habilmente na mesa que confundi a cobertura de chocolate com o molho da carne e a derramei sobre o bife.
É claro que tudo isto era só o aspecto mais trivial de um deslocamento espiritual que começou a manifestar-se de formas muito mais perturbadoras. Logo notei que comecei a ficar indiferente às pessoas. Senti-me presa de uma onda de cinismo. As conversas que eu ouvia me pareciam todas gravadas há muitos anos e tocadas de novo num toca-discos. Parecia que a sinceridade e a bondade tinham desaparecido da voz dos meus amigos. Suspeitei que fossem hipócritas. Parei de telefonar-lhes, parei de vê-los. Não tinha mais paciência com o que me parecia ser os sintomas de uma adulação idiota.
Fiquei tão saturado de ouvir gente dizer "adorei sua peça!" que já nem podia mais agradecer. Eu me engasgava com aquelas palavras e virava as costas grosseiramente à pessoa geralmente sincera que as dissera. Já não sentia orgulho pela peça em si, ao contrário, comecei a enjoar dela, talvez porque me sentia demasiado morto por dentro para poder escrever outra. Eu caminhava como um zumbi, um morto conduzido pelos seus próprios pés. Sabia disso mas não contava então com amigos em quem confiasse o suficiente para levá-los para um canto e contar-lhes o que me estava acontecendo.
Esta situação estranha persistiu durante três meses, até quase fins da primavera, quando decidi submeter-me a outra operação na vista, principalmente devido ao pretexto que ela me oferecia de retirar-me do mundo detrás de uma máscara de gaze. Era já minha quarta operação na vista e talvez eu deva explicar que eu sofria há uns cinco anos de uma catarata no olho esquerdo que exigia uma série de operações torturantes e finalmente uma operação no músculo do olho (ainda tenho esse olho, agradeço).
Bem, a máscara de gaze teve sua serventia. Enquanto eu estava repousando no hospital, os amigos, que abandonara ou insultara de uma forma ou de outra, começaram a visitar-me e agora que eu jazia em meio à escuridão e às dores, suas vozes pareciam ter mudado. Ou melhor: aquela mutação desagradável, que eu suspeitara antes, desaparecera no presente e elas soavam agora como sempre nos dias saudosos de minha obscuridade perdida. Novamente eu as reconhecia como sendo vozes sinceras e bondosas, animadas por um tom inconfundível de verdade e pela virtude da compreensão que me fizera buscá-las desde o início.
No tocante à minha visão física, essa última operação tinha tido resultados só relativamente bons (embora me tivesse deixado com uma pupila aparentemente preta na posição devida ou quase) mas em outro sntido, figurado, da palavra, ela servira a um propósito muito mais profundo. Quando foi retirada a máscara de gaze, encontrei-me readaptado ao mundo. Deixei o apartamento elegante do hotel de luxo, guardei na mala meus papéis e alguns pertences e parti para o México, um país telúrico em que se podem esquecer rapidamente as falsas dignidades e as vaidades impostas pelo sucesso, um país em que vagabundos inocentes como crianças enrolam-se para dormir nas calçadas e as vozes humanas, principalmente quando a linguagem em que falam não é familiar aos nossos ouvidos, parecem-nos suaves como o gorjeio dos pássaros. Meu "eu" público, aquele artifício de espelhos sobrepostos, não existia aqui, e, portanto, eu voltava a meu "eu" natural.
Depois, como um ato final de restauração espiritual, permaneci durante algum tempo em Chapala, para trabalhar numa peça chamada A partida de pôquer, que se tornaria mais tarde Um bonde chamado desejo. É só no seu trabalho que um artista pode encontrar a realidade e a satisfação, pois o mundo ambiente, real, é menos intenso que o mundo de sua invenção e consequentemente sua vida, sem recorrer a desordens violentas, não lhe parece muito importante. A condição verdadeira de vida para um artista, é aquela em que seu trabalho é não só conveniente mas também inevitável.
Para mim, um lugar conveniente para trabalhar é um lugar distante, em meio a estranhos, onde eu possa dar umas braçadas. Mas a vida deve exigir um mínimo de esforço de nossa parte. Você não deve ter gente demais a servi-lo, ao contrário: você devia fazer sozinho a maioria das coisas. O serviço oferecido pelos hotéis é embaraçoso. As empregadas, os garçons, os boys e os porteiros etc. são as pessoas mais embaraçosas do mundo porque continuamente estão a recordar-nos as iniqüidades que nós aceitamos como coisas certas.
O quadro de uma velhinha ofegante que carrega com enorme esforço um balde pesado d'água por um corredor de hotel para limpar a imundice de um hóspede bêbado e cheio de privilégios sociais é um quadro que me faz ficar doente e oprime meu coração, fazendo-o murchar de vergonha deste mundo, em que essa situação é não só tolerada mas considerada a prova dos nove de que o mecanismo da Democracia está funcionando devidamente, sem interferência de cima ou de baixo. Ninguém deveria ter que limpar a imundice de outrem neste mundo. É intoleravelmente horrível para ambas as pessoas, mas talvez pior ainda para quem recebe esse tipo de serviço.
Fui tão corrompido quanto qualquer outra pessoa pelo número vastíssimo de serviços humilhantes que nossa sociedade se acostumou a esperar e do qual ela depende. Mas nós devíamos fazer tudo por nós mesmos ou deixar que as máquinas o fizessem por nós, a gloriosa tecnologia que garente ser o facho de luz do mundo futuro. Somos como um homem que comprou uma quantidade enorme de equipamento para acampar, que tem a canoa e a barraca, as linhas de pescar e o machado, os fuzis, os lençóis e os cobertores mas que agora, que todos os preparativos e providências estão empilhados, por mão de perito, uns sobre os outros, sente-se de repente demasiado tímido para inicar a jornada e fica-se onde estava ontem e antes de ontem e antes e antes, olhando com desconfiança, através das cortinas de renda branca, para o céu claro de que se suspeita.
Nossa grandiosa tecnologia é uma oportunidade, que Deus nos enviou, para gozarmos da aventura e do progresso que temos medo de arriscar. Nossas idéias e nossos ideais continuam sendo exatamente os mesmos, no mesmo ponto em que os deixamos, três séculos atrás. Não, desculpe! Já ninguém mais se sente seguro bastante para sequer afirmá-los! - esta foi uma digressão longa, partida de um tema pequeno para um imenso, que eu não tinha intenção, originalmente, de fazer, por isso voltemos ao que eu estava dizendo antes.
O que venho afirmando é uma simplificação extrema. Ninguém escapa assim tão facilmente da sedução de uma maneira de viver sibarítica. Você não pode arbitrariamente dizer a si mesmo, de um momento para o outro: agora vou continuar minha vida como ela era antes de esta coisa, o Sucesso, me acontecer. Mas logo que você aprender a vacuidade de uma vida sem lutas, você estará equipado com os meios básicos de salvação. Logo que você souber que isto é verdade, que o coração do ser humano, seu corpo e seu cérebro são forjados numa fornalha de brasas vivas especificamente para o propósito do conflito, do choque (a luta criadora), e que, uma vez desaparecendo esse conflito, o homem é uma mera espadinha de criança, boa para cortar margaridas, que não é a privação mas sim o luxo o lobo mau, que os dentes agudos do lobo são formados pelas vaidadezinhas e indolências pequeninas que constituem o legado do Sucesso - então, de posse desta certeza, você está pelo menos apto a saber onde reside o verdadeiro perigo.
Você sabe, então, que o "alguém" público que você é quando "tem um nome" é uma ficção criada por espelhos, e que o único alguém digno de você ser é o seu "eu" solitário, não visto pelos demais, que existiu desde a sua primeira respiração e que é a soma de todas as suas ações e, portanto, está sempre num estado de eterno devenir, moldado pela sua própria vontade - sabendo essas coisas, você poderá sobreviver até à catástrofe do Sucesso!
Nunca é tarde demais, a menos que você abrace a deusa-cadela, a Fama, como William James a alcunhou, com os braços abertos e ache em seus abraços sufocantes exatamente aquilo que o menininho inquieto dentro de você, com saudades de casa, queria: proteção absoluta e uma vida sem sacrifício e esforços de espécie alguma. A segurança é uma espécie de morte, creio, e pode atingi-lo numa enxurrada de cheques de direitos autorais, junto a uma piscina em forma de rim em Beverly Hills ou em qualquer outro lugar que esteja divorciado das condições que tornaram você um artista, se é isso que você é ou foi ou quis ser. Pergunte a qualquer pessoa que já passou pelo tipo de sucesso de que estou falando. Para que serve? Provavelmente para obter uma resposta honesta, você terá que dar-lhe uma injeção de soro da verdade, mas a palavra que ele emitirá finalmente, com um gemido, não pode ser publicada em publicações refinadas.
Então o que nos serve, afinal? O interesse obsessivo pelas vicissitudes humanas, além de uma certa dose de compaixão e de convicção moral, que pela primeira vez tornou a experiência de viver algo que deve ser traduzido em pigmento, música, movimentos corpóreos ou poesia ou prosa ou qualquer coisa dinâmica e expressiva. Isso é que lhe será útil se é que você tem objetivos sérios. William Saroyan escreveu uma grande peça sobre esse tema, o de que a pureza de coração é o único sucesso que vale a pena termos. "Durante sua vida - viva!". A vida é curta e não volta nunca mais. Ela está fluindo furtivamnte agora, enquanto eu escrevo isto e enquanto você me lê e o pêndulo do relógio, ao oscilar, repete somente: "Nunca mais, nunca mais, nunca mais", a menos que você se lance, de coração, em oposição a ele.
Tennessee Williams
(Este ensaio, publicado pela primeira vez no New York Times, foi mais tarde reproduzido na revista Story)
Este inverno assinalou o terceiro aniversário da estréia, em Chicago, de À margem da vida, um evento que pôs término a uma parte de minha vida e começou outra tão diferente da precendente em todas as circunstâncias externas quanto será fácil imaginar. Fui arrancado do meu quase anonimato e atirado aos píncaros de uma fama repentina e, do precário aluguel de quartos mobiliados em várias regiões do país, fui trasladado para um apartamento de um hotel de primeira classe em Manhattan. Minha experiência não foi única, pois o sucesso muitas vezes já irrompeu, da mesma forma abrupta, na vida de muitos americanos. A história de Cinderela é nosso mito nacional favorito, a pedra fundamental da indústria cinematográfica, senão a própria Democracia.
Eu já a vira representada na tela tantas vezes que estava agora inclinado a recebê-la com um bocejo de enfado, não com descrença mas com a atitude de quem desse de ombros, exclamando: "Que bem me importa!". Qualquer pessoa dotada de dentes e cabelos tão lindos, como a protagonista cinematográfica de tal história, tinha, por força, que se divertir a valer, fosse como fosse. Você podia apostar seu último dólar e todo o chá da China em que aquela estrela nunca seria vista, viva ou morta, em qualquer tipo de reunião que exigisse um mínimo de consciência social.
Não, minha experiência não era exepcional, mas por outro lado não era tampouco comum e caso você esteja disposto a aceitar a tese um tanto eclética de que eu não escrevera tendo em mente tal experiência - e há muita gente não disposta a crer que um dramaturgo possa estar interessado em outra coisa que não seja o sucesso popular - talvez haja ceta razão para compararmos estas duas fases de minha vida.
A vida que eu levara antes de atingir esse sucesso de público era do tipo que exigia resistência e tenacidade, que me fazia agarrar-me à superfície cheia de arestas que me feriam e me obrigavam a prender-me firmemente, com unhas e dentes, a cada centímetro de pedra colocado mais alto que o precedente - mas era uma vida substancialmente boa porque era do tipo para o qual o organismo humano é criado. Eu sou me dei conta de quanta energia vital eu desprendera naquela luta quando esta cessou. Encontrei-me então num planalto, com meus braços ainda se agitando no ar e meus pulmões sorvendo sofregamente um ar que já não oferecia resistência. Isto era a segurança, afinal.
Sentei-me e olhei ao meu redor e de repente me senti muito deprimido. Pensei comigo mesmo: não é nada, é só o período de adaptação. Amanhã de manhã, acordarei neste hotel de luxo, pairando sobre o ruído discreto que sobe de um bulevar dos quarteirões elegantes do East Side e então apreciarei seu requinte e mergulharei em seu conforto, consciente de que cheguei ao nosso conceito americano do Olimpo. Amanhã de manhã, quando eu olhar para este sofá de cetim verde, me apaixonarei por ele. É só agora, temporariamente, que aquele cetim verde me dá a impressão de limo em água estagnada.
Mas na manhã seguinte o sofazinho inofensivo parecia ainda mais repugnante do que na noite anterior e eu já começava a engordar demais para usar o terno de 125 dólares que um conhecido elegante escolhera para mim. Na suíte que eu ocupava, objetos começaram a quebrar-se acidentalmente. Um braço saiu do sofá. Queimaduras de cigarro apareciam na superfície brilhante dos móveis. Eu deixava as janelas abertas e uma vez uma chuvarada inundou a suíte. Mas a empregada sempre endireitava tudo e a paciência do gerente do hotel era inextinguível. Só uma bomba de demolição, parecia-me, podia incomodar meus vizinhos.
Eu recebia minhas refeições no apartamento. Mas também isto também tinha seu quê de desencanto. No tempo que decorria entre o momento que eu escolhia o jantar pelo telefone e o momento em que ele entrava em meu quarto num carrinho, como um cadáver transportado numa mesa de rodas de borracha, eu perdia todo o interesse por ele. Um vez pedi um bife de filé e um sundae de chocolate, mas tudo estava disfarçado tão habilmente na mesa que confundi a cobertura de chocolate com o molho da carne e a derramei sobre o bife.
É claro que tudo isto era só o aspecto mais trivial de um deslocamento espiritual que começou a manifestar-se de formas muito mais perturbadoras. Logo notei que comecei a ficar indiferente às pessoas. Senti-me presa de uma onda de cinismo. As conversas que eu ouvia me pareciam todas gravadas há muitos anos e tocadas de novo num toca-discos. Parecia que a sinceridade e a bondade tinham desaparecido da voz dos meus amigos. Suspeitei que fossem hipócritas. Parei de telefonar-lhes, parei de vê-los. Não tinha mais paciência com o que me parecia ser os sintomas de uma adulação idiota.
Fiquei tão saturado de ouvir gente dizer "adorei sua peça!" que já nem podia mais agradecer. Eu me engasgava com aquelas palavras e virava as costas grosseiramente à pessoa geralmente sincera que as dissera. Já não sentia orgulho pela peça em si, ao contrário, comecei a enjoar dela, talvez porque me sentia demasiado morto por dentro para poder escrever outra. Eu caminhava como um zumbi, um morto conduzido pelos seus próprios pés. Sabia disso mas não contava então com amigos em quem confiasse o suficiente para levá-los para um canto e contar-lhes o que me estava acontecendo.
Esta situação estranha persistiu durante três meses, até quase fins da primavera, quando decidi submeter-me a outra operação na vista, principalmente devido ao pretexto que ela me oferecia de retirar-me do mundo detrás de uma máscara de gaze. Era já minha quarta operação na vista e talvez eu deva explicar que eu sofria há uns cinco anos de uma catarata no olho esquerdo que exigia uma série de operações torturantes e finalmente uma operação no músculo do olho (ainda tenho esse olho, agradeço).
Bem, a máscara de gaze teve sua serventia. Enquanto eu estava repousando no hospital, os amigos, que abandonara ou insultara de uma forma ou de outra, começaram a visitar-me e agora que eu jazia em meio à escuridão e às dores, suas vozes pareciam ter mudado. Ou melhor: aquela mutação desagradável, que eu suspeitara antes, desaparecera no presente e elas soavam agora como sempre nos dias saudosos de minha obscuridade perdida. Novamente eu as reconhecia como sendo vozes sinceras e bondosas, animadas por um tom inconfundível de verdade e pela virtude da compreensão que me fizera buscá-las desde o início.
No tocante à minha visão física, essa última operação tinha tido resultados só relativamente bons (embora me tivesse deixado com uma pupila aparentemente preta na posição devida ou quase) mas em outro sntido, figurado, da palavra, ela servira a um propósito muito mais profundo. Quando foi retirada a máscara de gaze, encontrei-me readaptado ao mundo. Deixei o apartamento elegante do hotel de luxo, guardei na mala meus papéis e alguns pertences e parti para o México, um país telúrico em que se podem esquecer rapidamente as falsas dignidades e as vaidades impostas pelo sucesso, um país em que vagabundos inocentes como crianças enrolam-se para dormir nas calçadas e as vozes humanas, principalmente quando a linguagem em que falam não é familiar aos nossos ouvidos, parecem-nos suaves como o gorjeio dos pássaros. Meu "eu" público, aquele artifício de espelhos sobrepostos, não existia aqui, e, portanto, eu voltava a meu "eu" natural.
Depois, como um ato final de restauração espiritual, permaneci durante algum tempo em Chapala, para trabalhar numa peça chamada A partida de pôquer, que se tornaria mais tarde Um bonde chamado desejo. É só no seu trabalho que um artista pode encontrar a realidade e a satisfação, pois o mundo ambiente, real, é menos intenso que o mundo de sua invenção e consequentemente sua vida, sem recorrer a desordens violentas, não lhe parece muito importante. A condição verdadeira de vida para um artista, é aquela em que seu trabalho é não só conveniente mas também inevitável.
Para mim, um lugar conveniente para trabalhar é um lugar distante, em meio a estranhos, onde eu possa dar umas braçadas. Mas a vida deve exigir um mínimo de esforço de nossa parte. Você não deve ter gente demais a servi-lo, ao contrário: você devia fazer sozinho a maioria das coisas. O serviço oferecido pelos hotéis é embaraçoso. As empregadas, os garçons, os boys e os porteiros etc. são as pessoas mais embaraçosas do mundo porque continuamente estão a recordar-nos as iniqüidades que nós aceitamos como coisas certas.
O quadro de uma velhinha ofegante que carrega com enorme esforço um balde pesado d'água por um corredor de hotel para limpar a imundice de um hóspede bêbado e cheio de privilégios sociais é um quadro que me faz ficar doente e oprime meu coração, fazendo-o murchar de vergonha deste mundo, em que essa situação é não só tolerada mas considerada a prova dos nove de que o mecanismo da Democracia está funcionando devidamente, sem interferência de cima ou de baixo. Ninguém deveria ter que limpar a imundice de outrem neste mundo. É intoleravelmente horrível para ambas as pessoas, mas talvez pior ainda para quem recebe esse tipo de serviço.
Fui tão corrompido quanto qualquer outra pessoa pelo número vastíssimo de serviços humilhantes que nossa sociedade se acostumou a esperar e do qual ela depende. Mas nós devíamos fazer tudo por nós mesmos ou deixar que as máquinas o fizessem por nós, a gloriosa tecnologia que garente ser o facho de luz do mundo futuro. Somos como um homem que comprou uma quantidade enorme de equipamento para acampar, que tem a canoa e a barraca, as linhas de pescar e o machado, os fuzis, os lençóis e os cobertores mas que agora, que todos os preparativos e providências estão empilhados, por mão de perito, uns sobre os outros, sente-se de repente demasiado tímido para inicar a jornada e fica-se onde estava ontem e antes de ontem e antes e antes, olhando com desconfiança, através das cortinas de renda branca, para o céu claro de que se suspeita.
Nossa grandiosa tecnologia é uma oportunidade, que Deus nos enviou, para gozarmos da aventura e do progresso que temos medo de arriscar. Nossas idéias e nossos ideais continuam sendo exatamente os mesmos, no mesmo ponto em que os deixamos, três séculos atrás. Não, desculpe! Já ninguém mais se sente seguro bastante para sequer afirmá-los! - esta foi uma digressão longa, partida de um tema pequeno para um imenso, que eu não tinha intenção, originalmente, de fazer, por isso voltemos ao que eu estava dizendo antes.
O que venho afirmando é uma simplificação extrema. Ninguém escapa assim tão facilmente da sedução de uma maneira de viver sibarítica. Você não pode arbitrariamente dizer a si mesmo, de um momento para o outro: agora vou continuar minha vida como ela era antes de esta coisa, o Sucesso, me acontecer. Mas logo que você aprender a vacuidade de uma vida sem lutas, você estará equipado com os meios básicos de salvação. Logo que você souber que isto é verdade, que o coração do ser humano, seu corpo e seu cérebro são forjados numa fornalha de brasas vivas especificamente para o propósito do conflito, do choque (a luta criadora), e que, uma vez desaparecendo esse conflito, o homem é uma mera espadinha de criança, boa para cortar margaridas, que não é a privação mas sim o luxo o lobo mau, que os dentes agudos do lobo são formados pelas vaidadezinhas e indolências pequeninas que constituem o legado do Sucesso - então, de posse desta certeza, você está pelo menos apto a saber onde reside o verdadeiro perigo.
Você sabe, então, que o "alguém" público que você é quando "tem um nome" é uma ficção criada por espelhos, e que o único alguém digno de você ser é o seu "eu" solitário, não visto pelos demais, que existiu desde a sua primeira respiração e que é a soma de todas as suas ações e, portanto, está sempre num estado de eterno devenir, moldado pela sua própria vontade - sabendo essas coisas, você poderá sobreviver até à catástrofe do Sucesso!
Nunca é tarde demais, a menos que você abrace a deusa-cadela, a Fama, como William James a alcunhou, com os braços abertos e ache em seus abraços sufocantes exatamente aquilo que o menininho inquieto dentro de você, com saudades de casa, queria: proteção absoluta e uma vida sem sacrifício e esforços de espécie alguma. A segurança é uma espécie de morte, creio, e pode atingi-lo numa enxurrada de cheques de direitos autorais, junto a uma piscina em forma de rim em Beverly Hills ou em qualquer outro lugar que esteja divorciado das condições que tornaram você um artista, se é isso que você é ou foi ou quis ser. Pergunte a qualquer pessoa que já passou pelo tipo de sucesso de que estou falando. Para que serve? Provavelmente para obter uma resposta honesta, você terá que dar-lhe uma injeção de soro da verdade, mas a palavra que ele emitirá finalmente, com um gemido, não pode ser publicada em publicações refinadas.
Então o que nos serve, afinal? O interesse obsessivo pelas vicissitudes humanas, além de uma certa dose de compaixão e de convicção moral, que pela primeira vez tornou a experiência de viver algo que deve ser traduzido em pigmento, música, movimentos corpóreos ou poesia ou prosa ou qualquer coisa dinâmica e expressiva. Isso é que lhe será útil se é que você tem objetivos sérios. William Saroyan escreveu uma grande peça sobre esse tema, o de que a pureza de coração é o único sucesso que vale a pena termos. "Durante sua vida - viva!". A vida é curta e não volta nunca mais. Ela está fluindo furtivamnte agora, enquanto eu escrevo isto e enquanto você me lê e o pêndulo do relógio, ao oscilar, repete somente: "Nunca mais, nunca mais, nunca mais", a menos que você se lance, de coração, em oposição a ele.
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
Teatro/CRÍTICA
"A máquina de abraçar"
................................................
Poderosa metáfora da atualidade
Lionel Fischer
Sem dúvida uma das atividades mais relevantes exercidas pelo homem, posto que objetiva livrá-lo de todos os males que o afligem - tanto físicos como psicológicos -, e mesmo levando-se em conta seus inegáveis avanços, mesmo assim a Medicina ainda engatinha em muitos campos. Como, por exemplo, no que se refere ao Autismo. Doença até o momento incurável e de origem desconhecida - ainda que muitas hipóteses venham sendo formuladas -, em contrapartida dela conhecemos inúmeros sintomas, capazes de indicar que uma criança seja autista.
Dentre esses sintomas, podem ser citados: acentuada falta de reconhecimento da existência ou dos sentimentos dos demais, anormalidade na comunicação não verbal, marcada anomalia na emissão da linguagem com afetação, anomalia na forma e conteúdo da linguagem, movimentos corporais estereotipados, preocupação persistente por parte de objetos, intensa aflição em aspectos insignificantes do ambiente, insistência irracional em seguir rotinas com todos os seus detalhes, limitação marcada de interesses com concentração em um interesse particular e, finalmente, múltiplas ausências: de busca de consolo em momentos de aflição, de capacidade de imitação, de relação social e de vias de comunicação adequadas.
Embora um tanto extensa, a introdução acima me parece justificável na medida em que o presente texto, do espanhol José Sanchis Sinisterra, foi inspirado no relato de uma autista real ao neurologista Oliver Saks, que o converteu no livro Um antropólogo em Marte - mas é possível que Sinisterra tenha também se inspirado em Wilhelm Reich (1897-1957), médico e cientista natural alemão, em especial em uma das três técnicas terapêuticas que criou: "A vegetoterapia caractero-analítica". A partir desta leitura, Sinisterra escreveu A máquina de abraçar, ambientada em um congresso psicanalítico e protagonizada por uma terapeuta e sua paciente autista. Com direção de Malu Galli, a peça pode ser vista no Espaço Tom Jobim, interpretada por Marina Vianna (terapeuta) e Mariana Lima (autista)
A mola propulsora da ação seria a surpreendente recuperação da paciente - ainda que parcial -, que lhe permitiu, dentre outras coisas, escrever um livro sobre a vida afetiva das pantas, já em sua 11ª edição, e a criação da tal máquina de abraçar. No entanto, e salvo monumental engano de minha parte, o autor apenas se serviu da doença para convertê-la em poderosa e assustadora metáfora dos tempos que correm. Isto fica claro, em especial, quando a terapeuta denuncia os "tubarões" que dominam o mundo - banqueiros, empresários, empreiteiros, especuladores etc. - que, a exemplo dos autistas, não estabelecem com os demais mortais nenhum tipo de comunicação, carecem de uma mínima capacidade de escuta e apenas se empenham em materializar seus próprios interesses. O mundo estaria, portanto, dominado por um autismo inteiramente imune a quaisquer esforços terapêuticos convencionais.
Bem escrito, contendo ótimos personagens e mexendo em feridas que tendem cada vez mais a se agravar, o ótimo texto de Sinisterra recebeu uma versão cênica à altura de sua pertinência. Em sua primeira direção teatral, a excelente atriz Malu Galli impõe à cena uma dinâmica austera, seca, plena de nervosidade, provocando na platéia um permanente estado de inquietação. Mas tal feito, evidentemente, só se materializou graças à colaboração de todos os profissionais envolvidos neste mais do que oportuno projeto. A começar pelas duas atrizes.
Na pele da terapeuta, Marina Vianna consegue transmitir, com vigor e sensibilidade, as principais características da personagem, dentre elas sua determinação em tratar a paciente através de métodos nada ortodoxos e sua entrega absoluta à tarefa de tentar recuperar uma pessoa destinada à solidão e à indiferença - afinal, autismo não tem cura, não é mesmo?
Com relação a Mariana Lima, esta exibe aqui a melhor performance de sua carreira. E isto se deve não somente à sua notável capacidade de criar gestos que nos remetem aos dos autistas, tampouco às pausas e modulações de voz - certamente admiráveis - mas sobretudo porque a atriz dá a sensação de que o resultado de sua composição partiu de suas entranhas e não de mera imitação de pacientes portadores da doença. Certamente posso estar enganado, mas ouso supor que Mariana Lima deva ter feito uma exaustiva e, quem sabe, dolorosa pesquisa interna, buscando em si própria os elementos que mais tarde conseguiu converter em comoventes e emocionantes signos visuais e auditivos. Sem dúvida, estamos diante de um trabalho de exepcional qualidade, um dos melhores da atual temporada.
Na equipe técnica, Raul Mourão responde por irretocáveis cenografia, direção de arte e instalação, a mesma excelência aplicando-se à tradução de Eric Nepomuceno, à direção de imagens de Caetano Gotardo, aos figurinos de Domingos Alcântara, à direção de movimento de Denise Stuz, à direção musical de Rodrigo Marçal e à iluminação de Maneco Quinderé.
A MÁQUINA DE ABRAÇAR - Texto de José Sanchis Sinisterra. Tradução de Eric Nepomuceno. Direção de Malu Galli, Com Marina Vianna e Mariana Lima. Espaço Tom Jobim. Quinta e domingo, 19h. Sexta e sábado, 21h30.
"A máquina de abraçar"
................................................
Poderosa metáfora da atualidade
Lionel Fischer
Sem dúvida uma das atividades mais relevantes exercidas pelo homem, posto que objetiva livrá-lo de todos os males que o afligem - tanto físicos como psicológicos -, e mesmo levando-se em conta seus inegáveis avanços, mesmo assim a Medicina ainda engatinha em muitos campos. Como, por exemplo, no que se refere ao Autismo. Doença até o momento incurável e de origem desconhecida - ainda que muitas hipóteses venham sendo formuladas -, em contrapartida dela conhecemos inúmeros sintomas, capazes de indicar que uma criança seja autista.
Dentre esses sintomas, podem ser citados: acentuada falta de reconhecimento da existência ou dos sentimentos dos demais, anormalidade na comunicação não verbal, marcada anomalia na emissão da linguagem com afetação, anomalia na forma e conteúdo da linguagem, movimentos corporais estereotipados, preocupação persistente por parte de objetos, intensa aflição em aspectos insignificantes do ambiente, insistência irracional em seguir rotinas com todos os seus detalhes, limitação marcada de interesses com concentração em um interesse particular e, finalmente, múltiplas ausências: de busca de consolo em momentos de aflição, de capacidade de imitação, de relação social e de vias de comunicação adequadas.
Embora um tanto extensa, a introdução acima me parece justificável na medida em que o presente texto, do espanhol José Sanchis Sinisterra, foi inspirado no relato de uma autista real ao neurologista Oliver Saks, que o converteu no livro Um antropólogo em Marte - mas é possível que Sinisterra tenha também se inspirado em Wilhelm Reich (1897-1957), médico e cientista natural alemão, em especial em uma das três técnicas terapêuticas que criou: "A vegetoterapia caractero-analítica". A partir desta leitura, Sinisterra escreveu A máquina de abraçar, ambientada em um congresso psicanalítico e protagonizada por uma terapeuta e sua paciente autista. Com direção de Malu Galli, a peça pode ser vista no Espaço Tom Jobim, interpretada por Marina Vianna (terapeuta) e Mariana Lima (autista)
A mola propulsora da ação seria a surpreendente recuperação da paciente - ainda que parcial -, que lhe permitiu, dentre outras coisas, escrever um livro sobre a vida afetiva das pantas, já em sua 11ª edição, e a criação da tal máquina de abraçar. No entanto, e salvo monumental engano de minha parte, o autor apenas se serviu da doença para convertê-la em poderosa e assustadora metáfora dos tempos que correm. Isto fica claro, em especial, quando a terapeuta denuncia os "tubarões" que dominam o mundo - banqueiros, empresários, empreiteiros, especuladores etc. - que, a exemplo dos autistas, não estabelecem com os demais mortais nenhum tipo de comunicação, carecem de uma mínima capacidade de escuta e apenas se empenham em materializar seus próprios interesses. O mundo estaria, portanto, dominado por um autismo inteiramente imune a quaisquer esforços terapêuticos convencionais.
Bem escrito, contendo ótimos personagens e mexendo em feridas que tendem cada vez mais a se agravar, o ótimo texto de Sinisterra recebeu uma versão cênica à altura de sua pertinência. Em sua primeira direção teatral, a excelente atriz Malu Galli impõe à cena uma dinâmica austera, seca, plena de nervosidade, provocando na platéia um permanente estado de inquietação. Mas tal feito, evidentemente, só se materializou graças à colaboração de todos os profissionais envolvidos neste mais do que oportuno projeto. A começar pelas duas atrizes.
Na pele da terapeuta, Marina Vianna consegue transmitir, com vigor e sensibilidade, as principais características da personagem, dentre elas sua determinação em tratar a paciente através de métodos nada ortodoxos e sua entrega absoluta à tarefa de tentar recuperar uma pessoa destinada à solidão e à indiferença - afinal, autismo não tem cura, não é mesmo?
Com relação a Mariana Lima, esta exibe aqui a melhor performance de sua carreira. E isto se deve não somente à sua notável capacidade de criar gestos que nos remetem aos dos autistas, tampouco às pausas e modulações de voz - certamente admiráveis - mas sobretudo porque a atriz dá a sensação de que o resultado de sua composição partiu de suas entranhas e não de mera imitação de pacientes portadores da doença. Certamente posso estar enganado, mas ouso supor que Mariana Lima deva ter feito uma exaustiva e, quem sabe, dolorosa pesquisa interna, buscando em si própria os elementos que mais tarde conseguiu converter em comoventes e emocionantes signos visuais e auditivos. Sem dúvida, estamos diante de um trabalho de exepcional qualidade, um dos melhores da atual temporada.
Na equipe técnica, Raul Mourão responde por irretocáveis cenografia, direção de arte e instalação, a mesma excelência aplicando-se à tradução de Eric Nepomuceno, à direção de imagens de Caetano Gotardo, aos figurinos de Domingos Alcântara, à direção de movimento de Denise Stuz, à direção musical de Rodrigo Marçal e à iluminação de Maneco Quinderé.
A MÁQUINA DE ABRAÇAR - Texto de José Sanchis Sinisterra. Tradução de Eric Nepomuceno. Direção de Malu Galli, Com Marina Vianna e Mariana Lima. Espaço Tom Jobim. Quinta e domingo, 19h. Sexta e sábado, 21h30.
sexta-feira, 25 de setembro de 2009
Teatro/CRÍTICA
"Gorda"
..............................................
Divertida crítica ao preconceito
Lionel Fischer
Como todos sabemos, vivemos acossados por múltiplas tiranias - sociais, econômicas, políticas etc. Mas também por outras, digamos, menos atreladas à dinâmica da História, mas sem dúvida de caráter extremamente nocivo. Nos tempos que correm, a imagem é tudo. E no caso específico da mulher, ela pode reunir dezenas de qualidades - morais, espirituais, intelectuais, dentre muitas outras - mas estará a um passo da desgraça se não for magra.
Trata-se, evidentemente, de uma completa estupidez, posto que oriunda da bizarra crença de que a magreza seria uma espécie de passaporte para a felicidade. E o modelo a ser seguido seria o das manequins, em sua maioria anoréxicas, deprimidas e de curta sobrevida em uma profissão que impõe medicamentos que aniquilam a saúde.
No presente caso, estamos diante de uma gorda assumida e feliz, que se apaixona por um jovem e belo executivo - sendo plenamente correspondida - e com ele inicia um romance, certa de que ele é diferente de todos os homens, já que despido de preconceitos quanto ao conceito de beleza em voga. E a platéia também embarca nessa ilusão, pois o dito executivo tinha um caso com uma colega de trabalho perfeitamente enquadrada nos padrões vigentes - bonita e MAGRA! - e a troca pela gordinha. No entanto, ele acaba não resistindo às pressões e piadas dos amigos, assume sua fraqueza e o romance naufraga.
Eis, em resumo, o enredo de "Gorda", do norte-americano Neil Labute, em cartaz noTeatro das Artes. O argentino Daniel Veronese assina a direção do espetáculo, Kledir Ramil a tradução e a adaptação, estando o elenco formado por Fabiana Karla (Helena, a gorda), Michel Bercovitch (Tony, o jovem e belo executivo), Fávia Rubin (Joana, a magrinha) e Mouhamed Harfouch (Caco, colega de trabalho de Tony).
O presente texto pode ser definido como uma comédia e como tal desperta muitos risos. No entanto, acreditamos que tais risos não são apenas fruto das muitas piadas e passagens realmente engraçadas, mas de uma espécie de manifestação do inconsciente coletivo da platéia, que, embora torça pela Gorda, certamente compactua com os preconceitos de que ele é vítima. Se assim não fosse, todos ririam menos e se indignariam mais. E quando se chega a um final melancólico, certamente a platéia fica triste, mas no fundo deve acreditar que o desfecho não poderia ser outro. Ou seja: somos todos, ou quase todos, descaradamente preconceituosos e certamente não aprovaríamos que um filho nosso, belo e bem sucedido, se unisse a uma mulher que norteia sua vida a partir de valores que não podem ser aferidos numa balança.
Quanto ao espetáculo, Daniel Veronese impõe à cena uma dinâmica simples, basicamente centrada na relação entre os personagens. E tal escolha se revela totalmente adequada, pois aqui o que realmente interessa está muito mais ligado às palavras do que a marcações mirabolantes. E os conteúdos propostos pelo autor afloram de forma irrepreensível, graças ao ótimo rendimento que Veronese extraiu do elenco.
Na pele da Gorda, Fabiana Karla exibe performance irretocável, plena de humor e humanidade. A mesma excelência está presente na atuação de Michel Bercovitch, que materializa com grande sensibilidade um caráter não isento de impulsos salutares, mas essencialmente fraco. Mouhamed Harfouch também brilha encarnando aquele americano típico - brincalhão, aparentemente parceiro e solidário, mas no fundo um canalha inteiramente dominado por abjetos preconceitos. Finalmente, Flávia Rubin também apresenta uma performance em total sintonia com a idiota a quem dá vida.
Na equipe técnica, consideramos de bom nível o trabalho de todos os profissionais envolvidos nesta oportuna empreitada - Kledir Ramil (tradução e adaptação), Graciela Platek (direção musical), Alberto Negrin (cenografia), Vanessa Lopes (figurinos) e Gonzalo Cordova (iluminação, aqui adaptada e operada por Marcelo Andrade).
GORDA - Texto de Neil Labute. Direção de Daniel Veronese. Com Fabiana Karla, Flávia Rubin, Michel Bercovitch e Mouhamed Harfouch. Teatro das Artes. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h.
"Gorda"
..............................................
Divertida crítica ao preconceito
Lionel Fischer
Como todos sabemos, vivemos acossados por múltiplas tiranias - sociais, econômicas, políticas etc. Mas também por outras, digamos, menos atreladas à dinâmica da História, mas sem dúvida de caráter extremamente nocivo. Nos tempos que correm, a imagem é tudo. E no caso específico da mulher, ela pode reunir dezenas de qualidades - morais, espirituais, intelectuais, dentre muitas outras - mas estará a um passo da desgraça se não for magra.
Trata-se, evidentemente, de uma completa estupidez, posto que oriunda da bizarra crença de que a magreza seria uma espécie de passaporte para a felicidade. E o modelo a ser seguido seria o das manequins, em sua maioria anoréxicas, deprimidas e de curta sobrevida em uma profissão que impõe medicamentos que aniquilam a saúde.
No presente caso, estamos diante de uma gorda assumida e feliz, que se apaixona por um jovem e belo executivo - sendo plenamente correspondida - e com ele inicia um romance, certa de que ele é diferente de todos os homens, já que despido de preconceitos quanto ao conceito de beleza em voga. E a platéia também embarca nessa ilusão, pois o dito executivo tinha um caso com uma colega de trabalho perfeitamente enquadrada nos padrões vigentes - bonita e MAGRA! - e a troca pela gordinha. No entanto, ele acaba não resistindo às pressões e piadas dos amigos, assume sua fraqueza e o romance naufraga.
Eis, em resumo, o enredo de "Gorda", do norte-americano Neil Labute, em cartaz noTeatro das Artes. O argentino Daniel Veronese assina a direção do espetáculo, Kledir Ramil a tradução e a adaptação, estando o elenco formado por Fabiana Karla (Helena, a gorda), Michel Bercovitch (Tony, o jovem e belo executivo), Fávia Rubin (Joana, a magrinha) e Mouhamed Harfouch (Caco, colega de trabalho de Tony).
O presente texto pode ser definido como uma comédia e como tal desperta muitos risos. No entanto, acreditamos que tais risos não são apenas fruto das muitas piadas e passagens realmente engraçadas, mas de uma espécie de manifestação do inconsciente coletivo da platéia, que, embora torça pela Gorda, certamente compactua com os preconceitos de que ele é vítima. Se assim não fosse, todos ririam menos e se indignariam mais. E quando se chega a um final melancólico, certamente a platéia fica triste, mas no fundo deve acreditar que o desfecho não poderia ser outro. Ou seja: somos todos, ou quase todos, descaradamente preconceituosos e certamente não aprovaríamos que um filho nosso, belo e bem sucedido, se unisse a uma mulher que norteia sua vida a partir de valores que não podem ser aferidos numa balança.
Quanto ao espetáculo, Daniel Veronese impõe à cena uma dinâmica simples, basicamente centrada na relação entre os personagens. E tal escolha se revela totalmente adequada, pois aqui o que realmente interessa está muito mais ligado às palavras do que a marcações mirabolantes. E os conteúdos propostos pelo autor afloram de forma irrepreensível, graças ao ótimo rendimento que Veronese extraiu do elenco.
Na pele da Gorda, Fabiana Karla exibe performance irretocável, plena de humor e humanidade. A mesma excelência está presente na atuação de Michel Bercovitch, que materializa com grande sensibilidade um caráter não isento de impulsos salutares, mas essencialmente fraco. Mouhamed Harfouch também brilha encarnando aquele americano típico - brincalhão, aparentemente parceiro e solidário, mas no fundo um canalha inteiramente dominado por abjetos preconceitos. Finalmente, Flávia Rubin também apresenta uma performance em total sintonia com a idiota a quem dá vida.
Na equipe técnica, consideramos de bom nível o trabalho de todos os profissionais envolvidos nesta oportuna empreitada - Kledir Ramil (tradução e adaptação), Graciela Platek (direção musical), Alberto Negrin (cenografia), Vanessa Lopes (figurinos) e Gonzalo Cordova (iluminação, aqui adaptada e operada por Marcelo Andrade).
GORDA - Texto de Neil Labute. Direção de Daniel Veronese. Com Fabiana Karla, Flávia Rubin, Michel Bercovitch e Mouhamed Harfouch. Teatro das Artes. Quinta a sábado, 21h30. Domingo, 20h.
quinta-feira, 24 de setembro de 2009
"Nunca há satisfação,
nunca há sucesso"
(Um dos dramaturgos mais controvertidos e badalados dos Estados Unidos, diretor de um grupo que atende pelo curioso nome de Teatro Histérico Ontológico, Richard Foreman concedeu a entrevista que se segue - aqui parcialmente reproduzida - a Elinor Fuchs no St. Mark's Theatre, em Nova York, em novembro de 1993. Essa entrevista está publicada na íntegra na revista Cadernos de Teatro nº 154, assim como a peça de Foreman "Minha cabeça era uma marreta", tradução de Fernanda Espíndola).
* * *
FUCHS - Com muita frequência, os palcos de suas peças são "cercados" por textos escritos, seja por jornais, pôsteres ou slogans colados no cenário, e isso acontece nas formas mais abstratas de escrita.
FOREMAN - Eu costumava dizer que queria que a experiência de assistir uma peça fosse como a experiência da leitura. Não tenho pensado muito nisso ultimamente. Mas sempre quis que o que estivesse diante dos espectadores tivesse o maior número de camadas possível. E ler instruções de vários tipos, referências a uma língua que estava se dissolvendo, era apenas uma tentativa - eu acho, apesar de eu não conceitualizar nada se estiver tendo idéias - de indicar que sempre se vê alguma coisa, vêem-se também todas as interpretações e frações de interpretação que foram herdadas. O uso de letras, alfabetos e roteiro sugere, para mim, todos os tipos de comentários que se sobrepõem às visões que as pessoas têm do mundo. Em Hotel China, em 1971, usei retroprojetores com comentários de Brecht na peça, mas não eram os comentários tipicamente brechtianos. Lembro que as pessoas liam estas 12 pequenas placas coloridas, que eram cobertas com um pedaço de pano, e por baixo deste havia uma pedra, revelada quando o pano era retirado. Quando isso acontecia, a tela se acendia e dizia algo para a platéia, como "Não preste atenção nas pedras, mas nas cores das mesas".
FUCHS - Você citou Brecht quando falava de "visão complexa". Isto está nas anotações de A ópera dos três vinténs, onde ele fala da "literalização do teatro". Ele tenta explicar por que está dando título às cenas. Ele tem uma visão de que pode criar rodapés para a peça, mas não sabe como e então exclama: "É necessário algum exercício de visão complexa!".
FOREMAN - À medida que envelheço, adoto com firmeza uma postura quase anti-brechtiana no sentido de que não quero esclarecer nada, não quero dar idéias. O que quero expressar e evocar continuamente nas pessoas é a sede de sentido, o desejo que nos impulsiona de que as coisas poderiam fazer sentido e de que haveria um sentido final. No qual, obviamente, não acredito. Acredito que todas as explicações são contingentes. E ser capaz de aceitar isso sem deixar de se interessar por idéias é meu principal objetivo.
FUCHS - Se temos sede de sentido, sem sentido, sem um sentido fixo, que tipo de entendimento devemos ter quando você usa uma combinação de palavras no palco, como nas caras dos personagens de Eddie Goes to Poetry City, nos quais lemos "Teoria Poética". Como tratamos estas palavras? Tratamos como objetos, como um tapete persa? Tratamos o sentido como objeto? Pergunto isso porque acho que não devemos atribuir sentido a "Teoria Poética".
FOREMAN - Sinceramente, não sei. Acho que sou fundamentalmente um artista cômico, apesar de não fazer a platéia rolar de rir. Então eu ridicularizo minhas próprias pretensões de ter uma teoria poética e, novamente, ridicularizo minha sede de ser poeta e de ter uma teoria, sabendo que, numa análise final, nada disso vai mudar o mundo, emocioná-lo ou mesmo ser percebido por ele. Mas esta é a minha sede.
FUCHS - Vejo camadas de anotações nos seus cenários que transformam-se gradativamente em esferas bastante misteriosas. Primeiro, palavras em inglês, às vezes lemas ocultos e finalmente uma penumbra de letras hebraicas. É então que começo a associá-lo à cabala. É claro que as letras hebraicas não estão lá apenas para serem alegorizadas pela platéia. As letras têm estado lá por quase o mesmo tempo que conheço seu trabalho. Pode dizer algo sobre elas sem que eu faça uma pergunta floreada?
FOREMAN - Na verdade, posso dizer muito pouco. Não entendo hebraico, então não sei que letras uso. Acho que só estou escolhendo decoração. Quando era jovem, odiava ir à sinagoga. Nunca fui "crismado". Jurei nunca mais entrar numa sinagoga, larguei tudo. Contudo, ainda me fascinavam alguns aspectos da literatura judaica, alguns autores. Eric Gutkind foi um cara que influenciou muito os Becks que fez com que eu me interessasse pelo judaísmo esotérico. É claro que Scholem também. Há ainda uma figura bastante esquisita, Carlo Suares, um escritor judeu místico que começou como discípulo de Krishna Murti, se não me engano. Eu me interessei por alguns de seus livros sobre o significado místico das letras hebraicas. Recentemente, comecei a me interessar por Levinas. Baseio minhas escolhas em todas essas fontes, que são essencialmente literatos ocidentais, não verdadeiros "judeus"...
FUCHS - Então as letras estão lá como uma espécie de metáfora não atribuída e não como uma reflexão literal de um interesse pelo judaísmo.
FOREMAN - Eu simplesmente odiava a sinagoga, mas acho que escrevo a partir das minhas raízes de infância. Percebi que, nos cenários de minhas peças, acabo retornando obsessivamente a uma área entre paredes. De início, pensei que fossem cercadinhos de criança, recordações da infância. Agora, porém, acho que estas áreas sugerem a sinagoga, onde existe uma pequena área cercada para a leitura do Torá. Frequentemente, quando estou frustrado e não sei o que fazer com o cenário, dou uma olhada em fotos de sinagogas antigas e pego algumas idéias arquiteturais desse local de culto e ritual dominado pelo Livro, quer dizer, pela leitura.
nunca há sucesso"
(Um dos dramaturgos mais controvertidos e badalados dos Estados Unidos, diretor de um grupo que atende pelo curioso nome de Teatro Histérico Ontológico, Richard Foreman concedeu a entrevista que se segue - aqui parcialmente reproduzida - a Elinor Fuchs no St. Mark's Theatre, em Nova York, em novembro de 1993. Essa entrevista está publicada na íntegra na revista Cadernos de Teatro nº 154, assim como a peça de Foreman "Minha cabeça era uma marreta", tradução de Fernanda Espíndola).
* * *
FUCHS - Com muita frequência, os palcos de suas peças são "cercados" por textos escritos, seja por jornais, pôsteres ou slogans colados no cenário, e isso acontece nas formas mais abstratas de escrita.
FOREMAN - Eu costumava dizer que queria que a experiência de assistir uma peça fosse como a experiência da leitura. Não tenho pensado muito nisso ultimamente. Mas sempre quis que o que estivesse diante dos espectadores tivesse o maior número de camadas possível. E ler instruções de vários tipos, referências a uma língua que estava se dissolvendo, era apenas uma tentativa - eu acho, apesar de eu não conceitualizar nada se estiver tendo idéias - de indicar que sempre se vê alguma coisa, vêem-se também todas as interpretações e frações de interpretação que foram herdadas. O uso de letras, alfabetos e roteiro sugere, para mim, todos os tipos de comentários que se sobrepõem às visões que as pessoas têm do mundo. Em Hotel China, em 1971, usei retroprojetores com comentários de Brecht na peça, mas não eram os comentários tipicamente brechtianos. Lembro que as pessoas liam estas 12 pequenas placas coloridas, que eram cobertas com um pedaço de pano, e por baixo deste havia uma pedra, revelada quando o pano era retirado. Quando isso acontecia, a tela se acendia e dizia algo para a platéia, como "Não preste atenção nas pedras, mas nas cores das mesas".
FUCHS - Você citou Brecht quando falava de "visão complexa". Isto está nas anotações de A ópera dos três vinténs, onde ele fala da "literalização do teatro". Ele tenta explicar por que está dando título às cenas. Ele tem uma visão de que pode criar rodapés para a peça, mas não sabe como e então exclama: "É necessário algum exercício de visão complexa!".
FOREMAN - À medida que envelheço, adoto com firmeza uma postura quase anti-brechtiana no sentido de que não quero esclarecer nada, não quero dar idéias. O que quero expressar e evocar continuamente nas pessoas é a sede de sentido, o desejo que nos impulsiona de que as coisas poderiam fazer sentido e de que haveria um sentido final. No qual, obviamente, não acredito. Acredito que todas as explicações são contingentes. E ser capaz de aceitar isso sem deixar de se interessar por idéias é meu principal objetivo.
FUCHS - Se temos sede de sentido, sem sentido, sem um sentido fixo, que tipo de entendimento devemos ter quando você usa uma combinação de palavras no palco, como nas caras dos personagens de Eddie Goes to Poetry City, nos quais lemos "Teoria Poética". Como tratamos estas palavras? Tratamos como objetos, como um tapete persa? Tratamos o sentido como objeto? Pergunto isso porque acho que não devemos atribuir sentido a "Teoria Poética".
FOREMAN - Sinceramente, não sei. Acho que sou fundamentalmente um artista cômico, apesar de não fazer a platéia rolar de rir. Então eu ridicularizo minhas próprias pretensões de ter uma teoria poética e, novamente, ridicularizo minha sede de ser poeta e de ter uma teoria, sabendo que, numa análise final, nada disso vai mudar o mundo, emocioná-lo ou mesmo ser percebido por ele. Mas esta é a minha sede.
FUCHS - Vejo camadas de anotações nos seus cenários que transformam-se gradativamente em esferas bastante misteriosas. Primeiro, palavras em inglês, às vezes lemas ocultos e finalmente uma penumbra de letras hebraicas. É então que começo a associá-lo à cabala. É claro que as letras hebraicas não estão lá apenas para serem alegorizadas pela platéia. As letras têm estado lá por quase o mesmo tempo que conheço seu trabalho. Pode dizer algo sobre elas sem que eu faça uma pergunta floreada?
FOREMAN - Na verdade, posso dizer muito pouco. Não entendo hebraico, então não sei que letras uso. Acho que só estou escolhendo decoração. Quando era jovem, odiava ir à sinagoga. Nunca fui "crismado". Jurei nunca mais entrar numa sinagoga, larguei tudo. Contudo, ainda me fascinavam alguns aspectos da literatura judaica, alguns autores. Eric Gutkind foi um cara que influenciou muito os Becks que fez com que eu me interessasse pelo judaísmo esotérico. É claro que Scholem também. Há ainda uma figura bastante esquisita, Carlo Suares, um escritor judeu místico que começou como discípulo de Krishna Murti, se não me engano. Eu me interessei por alguns de seus livros sobre o significado místico das letras hebraicas. Recentemente, comecei a me interessar por Levinas. Baseio minhas escolhas em todas essas fontes, que são essencialmente literatos ocidentais, não verdadeiros "judeus"...
FUCHS - Então as letras estão lá como uma espécie de metáfora não atribuída e não como uma reflexão literal de um interesse pelo judaísmo.
FOREMAN - Eu simplesmente odiava a sinagoga, mas acho que escrevo a partir das minhas raízes de infância. Percebi que, nos cenários de minhas peças, acabo retornando obsessivamente a uma área entre paredes. De início, pensei que fossem cercadinhos de criança, recordações da infância. Agora, porém, acho que estas áreas sugerem a sinagoga, onde existe uma pequena área cercada para a leitura do Torá. Frequentemente, quando estou frustrado e não sei o que fazer com o cenário, dou uma olhada em fotos de sinagogas antigas e pego algumas idéias arquiteturais desse local de culto e ritual dominado pelo Livro, quer dizer, pela leitura.
quarta-feira, 23 de setembro de 2009
Conversa sobre teatro
Federico Garcia Lorca
(Em 31 de janeiro de 1935, os atores dos vários teatros de Madrid solicitaram a Margarita Xirgu, a genial criadora de "Yerma", que fizesse para eles um espetáculo extra, ao qual estaria presente o autor, o poeta e dramaturgo andaluz Federico Garcia Lorca. Após este espetáculo, Lorca proferiu as palavras que se seguem).
Queridos amigos: fiz, há tempos, a promessa firme de recusar toda a espécie de homenagens, festas ou banquetes que se fizessem à minha modesta pessoa. Em primeiro lugar, por entender que cada uma dessas cerimônias equivale à colocação de uma pedra sobre o nosso túmulo literário. E, em segundo lugar, porque notei que não há coisa mais desoladora que o discurso frio pronunciado em nossa honra, nem momento mais triste que o do aplauso organizado, ainda que inteiramente de boa fé.
Além disso - e isto é segredo - creio que banquetes e pergaminhos trazem maus agouros para o homem que os recebe; mau agouro proveniente da atitude descansada dos amigos que, ao homenageá-lo, pensam: "Com este já estamos quites". E mais: um banquete é uma reunião de profissionais que comem junto de nós e onde se encontram, normalmente, as pessoas que na vida menos gostam de nós. Para os poetas e dramaturgos, eu organizaria, em vez de homenagens, torneios e desafios nos quais fôssemos galharda e injuntivamente emprazados: "Aposto que não é capaz de fazer isto!", "Aposto que não é capaz de exprimir numa personagem a angústia do mar!" etc.
Os teatros estão cheios de enganadoras sereias coroadas de rosas de estufa, e o público sente-se satisfeito e aplaude quando vê corações de serradura e escuta diálogos à flor dos dentes. Mas o poeta dramático não deve esquecer, se quiser salvar-se do esquecimento, os campos de rosas molhadas pelo amanhecer, em que os lavradores sofrem, e essa pomba ferida por um misterioso caçador, que agoniza entre os juncos sem que ninguém ouça seus gemidos.
Fugindo das sereias, das solicitações e das vozes falsas, não aceitei qualquer homenagem por ocasião da estréia de Yerma; mas experimentei a maior alegria da minha breve vida de autor quando soube que a família teatral madrillena pediu à grande Margarita Xirgu, atriz de imaculada história artística, luzeiro do teatro espanhol e criadora admirável do papel, juntamente com a companhia que tão brilhantemente a secunda, uma representação especial para vê-la.
Pelo que isto significa de curiosidade e atenção para com um esforço notável de teatro, quero apresentar, agora que estamos reunidos, os melhores e mais sinceros agradecimentos a todos. Esta noite não falo como autor nem como poeta, nem sequer como simples estudante do panorama riquíssimo da vida do homem: falo como ardente apaixonado de um teatro de ação social.
O teatro é um dos instrumentos mais expressivos e úteis para a edificação de um país; é o barômetro que marca a sua grandeza ou a sua decadência. Um teatro sensível e bem orientado em todos os seus setores, da tragédia au vaudeville, pode em poucos anos modificar a sensibilidade do povo; e um teatro desordenado, em que as patas substituem as asas, pode abastardar e adormecer uma nação inteira. O teatro é uma escola de lágrimas e de riso, uma livre tribuna onde os homens podem pôr em evidência velhos ou equivocados princípios de moral e explicar, com exemplos vivos, normas eternas do coração e do sentimento do homem.
Um povo que não ajuda e não fomenta o seu teatro, se não morreu ainda, está moribundo; do mesmo modo que o teatro que não atende à pulsação social, à pulsação histórica, ao drama de seu povo e à genuína cor de sua paisagem e do seu espírito, através do riso ou das lágrimas, não tem o direito de se chamar teatro, mas antes sala de jogo ou lugar para fazer essa coisa medonha que se chama "matar o tempo". Não me refiro a ninguém em particular, nem quero ferir ninguém; não falo da realidade viva, mas o problema posto em tese.
Todos os dias ouço falar da crise do teatro, e penso sempre que o mal não está diante dos nossos olhos, mas sim no mais obscuro da sua essência; não é um mal de flor atual, mas de raiz profunda, ou seja, o mal não está nas obras mas sim na própria organização. Enquanto os atores e autores estiverem nas mãos de empresas absolutamente comerciais, entregues a sí próprias, e sem qualquer fiscalização literária ou estatal de nenhuma espécie, empresas carentes de todo o critério e sem garantia de nenhuma classe, os atores, os autores e todo o teatro cada dia mais se afundarão, sem salvação possível.
O delicioso teatro ligeiro de revista, o vaudeville e a comédia-bufa, gêneros de que sou afeiçoado espectador, poderiam defender-se e salvar-se ainda; mas o teatro em verso, o gênero histórico e a chamada zarzuela cada dia sofrerão mais reveses, porque são gêneros muito exigentes e que comportam autênticas inovações, e não há autoridade nem espírito de sacrifício para incorporá-las a um público que precisa ser dominado com elevação e em muitas ocasiões contraditado e atacado. É o teatro que deve impor-se ao público, e não o público ao teatro.
Para isto, autores e atores deverão revestir-se, mesmo à custa de sangue, de uma grande autoridade, porque o público de teatro é como as crianças nas escolas: adora o professor grave e austero que exige e faz justiça, e espeta agulhas cruéis nas cadeiras em que se sentam os professores tímidos e complacentes, que não ensinam nem deixam ensinar.
O público pode ser ensinado - repare-se que falo em público, não em povo -; pode ser ensinado, porque eu vi Debussy e Ravel serem vaiados há anos, e tempos depois assisti às clamorosas ovações que um público popular dirigia às obras que antes repudiara. Estes autores foram impostos por um alto critério de autoridade superior ao do público comum; o mesmo sucedeu a Wedekind na Alemanha e a Pirandello na Itália, e a tantos outros.
Há necessidade de assim proceder para o bem do teatro e para a glória e dignificação dos seus intérpretes. Há que manter atitudes dignas, com a certeza de que serão recompensadas com juros. O contrário é tremer de medo nos bastidores e matar a fantasia, a imaginação e a graça do teatro, que é sempre uma arte, e sempre há de ser uma arte excelsa, embora tenha havido uma época em que se chamava arte a tudo o que apenas servia para rebaixar a atmosfera e destruir a poesia.
Arte acima de tudo. Arte nobilíssima; e vós, queridos atores, artistas acima de tudo. Artistas dos pés á cabeça, pois que foi por amor e por vocação que haveis ascendido ao mundo fictício e doloroso das tábuas do palco. Artistas por ocupação e preocupação. No teatro mais modesto como no mais elevado deve sempre escrever-se a palavra "Arte" na sala e nos camarins, porque senão teremos que escrever a palavra "Comércio".
Não quero dar-vos uma lição, porque me encontro em condições de recebê-la. O entusiasmo e a certeza ditam as minhas palavras. Não sou um iludido. Pensei a fundo - e a frio - no que digo e, como andaluz, possuo o segredo da frieza, porque tenho sangue antigo. Sei que a verdade não a detém aquele que repete "hoje, hoje, hoje" enquanto come o seu pão junto à lareira, mas sim o que serenamente olha à distância as primeiras luzes da alvorada no campo.
Sei que não tem razão aquele que diz "Agora mesmo, agora, agora" com os olhos postos na garganta estreita da bilheteria, mas sim o que diz "Amanhã, amanhã, amanhã" e sente aproximar-se a vida nova que avança sobre o mundo.
_______________________________
Extraído de Teatro Moderno, Luiz Francisco Rebello, 1964. Este artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 72/1977, edição já esgotada.
Federico Garcia Lorca
(Em 31 de janeiro de 1935, os atores dos vários teatros de Madrid solicitaram a Margarita Xirgu, a genial criadora de "Yerma", que fizesse para eles um espetáculo extra, ao qual estaria presente o autor, o poeta e dramaturgo andaluz Federico Garcia Lorca. Após este espetáculo, Lorca proferiu as palavras que se seguem).
Queridos amigos: fiz, há tempos, a promessa firme de recusar toda a espécie de homenagens, festas ou banquetes que se fizessem à minha modesta pessoa. Em primeiro lugar, por entender que cada uma dessas cerimônias equivale à colocação de uma pedra sobre o nosso túmulo literário. E, em segundo lugar, porque notei que não há coisa mais desoladora que o discurso frio pronunciado em nossa honra, nem momento mais triste que o do aplauso organizado, ainda que inteiramente de boa fé.
Além disso - e isto é segredo - creio que banquetes e pergaminhos trazem maus agouros para o homem que os recebe; mau agouro proveniente da atitude descansada dos amigos que, ao homenageá-lo, pensam: "Com este já estamos quites". E mais: um banquete é uma reunião de profissionais que comem junto de nós e onde se encontram, normalmente, as pessoas que na vida menos gostam de nós. Para os poetas e dramaturgos, eu organizaria, em vez de homenagens, torneios e desafios nos quais fôssemos galharda e injuntivamente emprazados: "Aposto que não é capaz de fazer isto!", "Aposto que não é capaz de exprimir numa personagem a angústia do mar!" etc.
Os teatros estão cheios de enganadoras sereias coroadas de rosas de estufa, e o público sente-se satisfeito e aplaude quando vê corações de serradura e escuta diálogos à flor dos dentes. Mas o poeta dramático não deve esquecer, se quiser salvar-se do esquecimento, os campos de rosas molhadas pelo amanhecer, em que os lavradores sofrem, e essa pomba ferida por um misterioso caçador, que agoniza entre os juncos sem que ninguém ouça seus gemidos.
Fugindo das sereias, das solicitações e das vozes falsas, não aceitei qualquer homenagem por ocasião da estréia de Yerma; mas experimentei a maior alegria da minha breve vida de autor quando soube que a família teatral madrillena pediu à grande Margarita Xirgu, atriz de imaculada história artística, luzeiro do teatro espanhol e criadora admirável do papel, juntamente com a companhia que tão brilhantemente a secunda, uma representação especial para vê-la.
Pelo que isto significa de curiosidade e atenção para com um esforço notável de teatro, quero apresentar, agora que estamos reunidos, os melhores e mais sinceros agradecimentos a todos. Esta noite não falo como autor nem como poeta, nem sequer como simples estudante do panorama riquíssimo da vida do homem: falo como ardente apaixonado de um teatro de ação social.
O teatro é um dos instrumentos mais expressivos e úteis para a edificação de um país; é o barômetro que marca a sua grandeza ou a sua decadência. Um teatro sensível e bem orientado em todos os seus setores, da tragédia au vaudeville, pode em poucos anos modificar a sensibilidade do povo; e um teatro desordenado, em que as patas substituem as asas, pode abastardar e adormecer uma nação inteira. O teatro é uma escola de lágrimas e de riso, uma livre tribuna onde os homens podem pôr em evidência velhos ou equivocados princípios de moral e explicar, com exemplos vivos, normas eternas do coração e do sentimento do homem.
Um povo que não ajuda e não fomenta o seu teatro, se não morreu ainda, está moribundo; do mesmo modo que o teatro que não atende à pulsação social, à pulsação histórica, ao drama de seu povo e à genuína cor de sua paisagem e do seu espírito, através do riso ou das lágrimas, não tem o direito de se chamar teatro, mas antes sala de jogo ou lugar para fazer essa coisa medonha que se chama "matar o tempo". Não me refiro a ninguém em particular, nem quero ferir ninguém; não falo da realidade viva, mas o problema posto em tese.
Todos os dias ouço falar da crise do teatro, e penso sempre que o mal não está diante dos nossos olhos, mas sim no mais obscuro da sua essência; não é um mal de flor atual, mas de raiz profunda, ou seja, o mal não está nas obras mas sim na própria organização. Enquanto os atores e autores estiverem nas mãos de empresas absolutamente comerciais, entregues a sí próprias, e sem qualquer fiscalização literária ou estatal de nenhuma espécie, empresas carentes de todo o critério e sem garantia de nenhuma classe, os atores, os autores e todo o teatro cada dia mais se afundarão, sem salvação possível.
O delicioso teatro ligeiro de revista, o vaudeville e a comédia-bufa, gêneros de que sou afeiçoado espectador, poderiam defender-se e salvar-se ainda; mas o teatro em verso, o gênero histórico e a chamada zarzuela cada dia sofrerão mais reveses, porque são gêneros muito exigentes e que comportam autênticas inovações, e não há autoridade nem espírito de sacrifício para incorporá-las a um público que precisa ser dominado com elevação e em muitas ocasiões contraditado e atacado. É o teatro que deve impor-se ao público, e não o público ao teatro.
Para isto, autores e atores deverão revestir-se, mesmo à custa de sangue, de uma grande autoridade, porque o público de teatro é como as crianças nas escolas: adora o professor grave e austero que exige e faz justiça, e espeta agulhas cruéis nas cadeiras em que se sentam os professores tímidos e complacentes, que não ensinam nem deixam ensinar.
O público pode ser ensinado - repare-se que falo em público, não em povo -; pode ser ensinado, porque eu vi Debussy e Ravel serem vaiados há anos, e tempos depois assisti às clamorosas ovações que um público popular dirigia às obras que antes repudiara. Estes autores foram impostos por um alto critério de autoridade superior ao do público comum; o mesmo sucedeu a Wedekind na Alemanha e a Pirandello na Itália, e a tantos outros.
Há necessidade de assim proceder para o bem do teatro e para a glória e dignificação dos seus intérpretes. Há que manter atitudes dignas, com a certeza de que serão recompensadas com juros. O contrário é tremer de medo nos bastidores e matar a fantasia, a imaginação e a graça do teatro, que é sempre uma arte, e sempre há de ser uma arte excelsa, embora tenha havido uma época em que se chamava arte a tudo o que apenas servia para rebaixar a atmosfera e destruir a poesia.
Arte acima de tudo. Arte nobilíssima; e vós, queridos atores, artistas acima de tudo. Artistas dos pés á cabeça, pois que foi por amor e por vocação que haveis ascendido ao mundo fictício e doloroso das tábuas do palco. Artistas por ocupação e preocupação. No teatro mais modesto como no mais elevado deve sempre escrever-se a palavra "Arte" na sala e nos camarins, porque senão teremos que escrever a palavra "Comércio".
Não quero dar-vos uma lição, porque me encontro em condições de recebê-la. O entusiasmo e a certeza ditam as minhas palavras. Não sou um iludido. Pensei a fundo - e a frio - no que digo e, como andaluz, possuo o segredo da frieza, porque tenho sangue antigo. Sei que a verdade não a detém aquele que repete "hoje, hoje, hoje" enquanto come o seu pão junto à lareira, mas sim o que serenamente olha à distância as primeiras luzes da alvorada no campo.
Sei que não tem razão aquele que diz "Agora mesmo, agora, agora" com os olhos postos na garganta estreita da bilheteria, mas sim o que diz "Amanhã, amanhã, amanhã" e sente aproximar-se a vida nova que avança sobre o mundo.
_______________________________
Extraído de Teatro Moderno, Luiz Francisco Rebello, 1964. Este artigo consta da revista Cadernos de Teatro nº 72/1977, edição já esgotada.
Assinar:
Postagens (Atom)