quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A tragédia de Althusser

Wilson de Lyra Chebabi


(O presente artigo apresenta os comentários de Chebabi após a leitura dramatizada da peça "A tragédia de Althusser", de Carlos Henrique Escobar, dirigida por Dina Moscovici no Tablado, em 2000. Este artigo está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 161)


A experiência que vivemos ao assistir a leitura da peça é muito instigante porque permite compartilhar de uma etapa importantíssima da gestação de um evento teatral. A leitura pelos atores e o empenho em cada um de colocar-se no palco e no personagem, constitui uma espécie de metabolização do texto do autor. Evidentemente, esta metabolização vai permitir que o próprio autor se surpreenda com o que ele escreveu, ao verificar a pluralidade das nuanças possíveis em função da vivência de cada ator e do diretor. Esta vivência depende daquilo que o drama de cada personagem apresentado como que puxa de dentro da pessoa do ator e que vai permitir que ele vá, durante a representação, vindo a ser o personagem. Quanto melhor o ensaio conseguir essa espessura de experiência humana de representação, mais eficaz será a peça na proposta de colocar o espectador em contato com a teia do seu vivido e portanto compartilhar do drama com a sua inteligência e com a sua emoção.

Qual o valor de colocar-nos em conexão com o que a vida vem tatuando em nós? Qual a vantagem de nos reconhecermos em Louis Althusser, como nos foi apresentado por Carlos Henrique Escobar, que com isso representa-se também em novas facetas, além daquelas através das quais já o conhecemos?

Como todas as perguntas, estas foram feitas para não serem respondidas. Qualquer resposta interpor-se-ia entre o evento teatral que nos alcança, e sua força de emergência do que se acha velado dentro de nós. A pertinência da pergunta está em potencializar a força do que todos nós assistimos, cada um a seu modo, para que o acontecimento prossiga a sua vocação de despertar novas perguntas. Será então que o ator vai emprestar densidade ao personagem à medida que for se deixando tatuar por ele? Ou é o ator que tatua o personagem com a maneira como empresta a ele seus dramas pessoais? Qual dos dois é o tatuador e qual é o que está sendo tatuado? Não será que o que caracteriza esse animal estranho que é o ser humano, é justamente não poder escapar da tatuagem da cultiva e da mecessidade de praticar nos demais essas marcas indeléveis?

A tendência mais corrente é impingir marcas impressas com ferro e fogo, como se faz com gado, para classificar as pessoas, em vez de descobrir-lhes as múltiplas características. Esssa marca, que enxerta um estigma, visa ferir dolorosamente alguém para intimidar e com isso exercer o poder. Um proeminente professor da Sorbone, na época, declarou: "Eu lhes havia dito que aquela filosofia era homicida".

Essa obra que assistimos, de autoria de Carlos Henrique Escobar, e de seus metabolizadores desta noite, tem uma função valiosa: a de incentivar a ler Althusser como ele se empenhou em ler Marx e ainda Montesquieu, Spinoza, Gramsci, Freud e Lacan. É uma dedicação íntima, uma devoção de conhecimento que nos está trazendo a este evento. Que devoção teria levado Louis Althusser a assassinar Helène? Mais uma pergunta para não ser respondida e sim para acionar uma nova pergunta: que assassinato era praticado por Helène em sua devoção - mostrada abundantemente na peça - em cuidar de Althusser com tal constância e devoção?

A tragédia de Althusser é a tragédia do homem que pensa. Pensar é ponderar e ponderar é recusar a cegueira da adoção cega de uma facção. Pôr os dois pesos na balança. Pensar é recusar o sectarismo, isto é, recusar tentar invalidar os motivos dos setores aos quais não nos filiamos. Para isso ser tentado - pois não sei se é possível - torna-se indispensável manter uma vigilante capacidade crítica da posição que adotamos. Isto significa ter a coragem de não se sujeitar à pressão dos co-participantes para silenciar toda crítica que revela que a facção que adotamos ainda carreia em seu bojo núcleos profundos daquela facção da qual nos destacamos e contra a qual nos voltamos. Essa crítica é extremamente ameaçadora porque nos joga a todos no inferno da incerteza. E aí abre-se o abismo entre a atividade de pensar e a luta pelo poder.

Há uma diferença profunda entre pensar para saber e pensar para o poder. Do saber, sem a menor dúvida, surge também um poder, que é secundariamente alcançar conclusões que possam ser empregadas como armas que destroçam os adversários. A ilustração mais eloqüente disto é o desenvolvimento da física atômica. Pensar é, portanto, ponderar também a possibilidade dos usos destrutivos que possam ser feitos dos saberes alcançados pelo pensamento. Mas não há nenhum recurso do pensamento que garanta o bom uso de qualquer descoberta. E é por isso que só se pode pensar para valer se suportarmos pisar nas areias movediças da incerteza.

Para combater, contudo, é necessário contar, embora ilusoriamente, com o solo firme da certeza. É este solo que sustenta as guerras com as suas campanhas baseadas na sugestão e no hipnotismo das massas. Ninguém desconhece o fascínio criado pelo aparato de propaanda nazista, tanto mais bem sucedido quanto mais conseguia eleger um causador de todos os males: o judeu. Aí está o germe de todo racismo. Esta configuração de fatores estabelece um estado de coisas que não deve ser abalado a qualquer preço. O pensar é sem a menor dúvida o boicote mais perigoso, embora tardio, contra o status-quo. Para os que se apoiam na certeza que sustenta a conjuntura, pensar é trair.

Fervoroso católico em sua juventude, já nesta época Althusser via-se atormentado por dúvidas e pelo medo de estar sendo insincero. E por mais paradoxal que pareça, foi em fidelidade ao espírito da Igreja que tornou-se comunista. Teve de fazer a guerra, mobilizado em 1939 e foi preso em 1940, ficando cinco anos em campo de concentração. O cativeiro permitiu que tivesse a experiência do contato com proletários, camponeses e militantes comunistas, percebendo-se apaixonado pela política. Já em 1947 era hospitalizado em um estabelecimento psiquiátrico, por apresentar "sinais de desequilíbrio mental" e foi diagnosticado como "psicótico maníaco-depressivo". Como sabemos, esta assim chamada entidade nosológica é considerada causadora, pela psiquiatria tradicional, do que chamaram de "acessos melancólicos repetitivos".

Sujeitando-se a ficar marcado por essa tatuagem, podia ter um lugar na cultura. De outro modo sua inquietação cognitiva e a profunda dor pelo desperdício de vida na sociedade em que vivemos e a aguda consciênia da impotência em conseguir mudá-la, despertariam no meio social a desorientação e o caos. Com o selo de doente mental podia ser respeitado pelo seu meticuloso e profundo trabalho conceitual, que não teria nada a ver com os impasses a que chegaram o seu percurso cristão, o seu percurso marxista e o seu porte filosófico.

Na peça de Escobar não fica muito nítido a sua ânsia de encontrar uma síntese dessas vertentes que tivesse a possibilidade de mudar o mundo. Mas classificado como doente ficava invalidado como líder de qualquer movimento renovador. A doença que ele adotava permitia aplacar o desespero da sociedade ao ver denunciadas as razões gananciosas que movem os seus desastres. Como doente, seu pensamento ficava limitado ao universo teórico para ser respeitado e estudado, mas não para ser exercido. Aceitando esse estigma, aplacava o medo que os outros tinham da prática das suas propostas ideológicas.

Deste modo, foi possível então tornar-se professor de filosofia. Seus estudos nesse anos de 1948 na Escola Normal Superior em Paris deram-lhe o título de agregado de filosofia. Sua tese sobre Hegel revela a influência da tradução de Jean Hyppolite, também mestre de Jacques Lacan. Além destes, filiou-se ao ensinamento da epistemologia com Gaston Bachelard, supervisor de sua tese. Foi nomeado para substituir Georges Gusdorf na preparação dos candidatos a serem agregados. Outra relação importante foi com Michel Foucault, a quem aconselhou não se internar em hospital psiquiátrico e influenciou para entrar no Partido Comunista. Mantinha-se bem relacionado com o grupo católico da Escola.

Althusser toma a decisão, ao lado da maioria dos universitáriios franceses, de aderir ao marxismo e ao Partido Comunista. Disse mais tarde que encontrava no Partido os meios para a realização da fraternidade universal. Sem dúvida era a maneira de manter-se fiel ao espírito do cristianismo. Declarou que as mulheres lhe haviam dado tudo: "Não sabem quanta capacidade têm para fazer política".

Em minhas fontes, foi Helène que lhe abriu, no campo de concentração, as portas do marxismo. Em 1950 Helène continuava a ser acusada, sem a menor prova, de manter contato com grupos ligados à Espanha republicana. Foi expulsa do Partido e Althusser teria sido instado a romper com ela. E sentiu-se obrigado a comprometer-se a fazê-lo. Esse também é o período de novas internações e da assistência de Diatkine. Helène, contudo, continuou a visitar Althusser na Escola. Mais uma vez, a versão de que era um doente tornava mais possível suportar a contradição entre a sua maneira de pensar e o seu ato de traição à Heléne e a si mesmo.

Todos esses eventos estavam ocorrendo nos bastidores do andamento das coisas que aparecem na peça de Escobar. Várias de suas convicções e afeições profundas entravam em choque dentro dele. Como compatibilizar sua fé cristã com a repulsa marxista à religião? Em parte, sem dúvida, tendo a esperança de encontrar no marxismo a caixa de ferramentas que faltava ao cristianismo. Mas, em sendo uma luta decididamente assumida como procurando o poder, teria de infligir as propostas do amor ao próximo como a si mesmo. É bem verdade que tinha como argumento que também a Igreja sempre o fez. Mas tinha por outro lado a formação filosófica que, incitando o pensamento, punha em crise a adesão incondicional à qualquer versão da verdade. A pedido de Alain Badiou, Sartre fez uma palestra na Escola Normal Superior e um interlocutor conseguiu encurralá-lo. Foi Louis Althusser. Para nossa lástima o debate nunca foi publicado.

Althusser era acusado, cada vez mais, de "pluralismo perigoso", que abala as bases "maoistas" do marxismo. A gana crítica de Althusser era considerada coqueteria. Ao suspender os seus seminários, em função das intervenções repressivas da maioria dos psicanalistas franceses da época, Jacques Lacan foi convidado por Althusser a prossegui-los na Escola Normal Superior.

Althusser foi acusado de "esquerdismo" e teve de declarar que a linha própria e adequada era a do Partido Comunista francês. Daí para a frente foi se tornando a fonte do pensamento estudantil marxista. Passa a deplorar a indigência teórica do pensamento operário e postula que cabe aos intelectuais devolver ao marxismo o seu rigor científico. Faz reparo, pois, ao "humanismo" de Sartre, como aliás ao de Heidegger. Como Lacan apresentava a "releitura de Freud", Althusser se propunha a reler Marx. Em 1964 publicou "Freud e Lacan", mantendo sempre um respeito pela psicanálise até 1980, quando irritou-se tremendamente contra Lacan, numa época em que essa irritação já se estendia em muitos meios.

Althusser e seus seguidores eram considerados a esquerda da esquerda em contraste com a esquerda insossa do Partido. Esta queixava-se da ausência, em seus escritos, de referências à literatura escrita pelo Partido e a abundância de articulação ao estruturalismo, considerado reacionário. Essa erupção incessante, que incluía sucesso e infortúnio, não era ignorada por Althusser, que procurava tomar iniciativas de articular todas as forças internas e externas para não perder a lucidez.

A peça de Escobar revela a constância de recorrer a Diatkine, sempre incerto da certeza deste último. Fontes revelam que queixava-se fundamentalmente de ser tratado com reverência pelo analista em prejuízo do cuidado analítico de que precisava. De algum modo, Diatkine pareceu apoiar-se no diagnóstico psiquiátrico de psicose maníaco-depressiva. Os episódios da peça de Escobar com respeito à sensibilidade ao sofrimento dos animais e a cena pungente de auto-culpabilização pela morte do bizarro pequeno animal que lhe haviam presenteado podem já estar influenciados pela assunção básica e não questionada da enfermidade mental. Não se pergunta se o patológico é a sensibilidade pelo sofrimento de qualquer ser vivo ou se é a frieza para a vida e a paixão pelos engenhos que contemplam o poder e que se alastra cada vez mais na humanidade.

O que a peça nos mostra é uma Helène profundamente comprometida com o analista que se mantinha também psiquiatra medicando e internando. Não se pergunta se essa medicalização visava de fato a preservação da pessoa real de Althusser, inteiro, sacudido pelas contradições da vida e da sociedade paradoxal em que vivemos, ou a preservação do seu prestígio em cima do qual tantas pessoas se apoiavam. Helène também apoiava-se em seu saber caleidoscópico e o apoiava emocionalmente como uma espécie de mãe emparceirada com Diatkine. Tudo bem. Mas a questão fundamental continua flutuando sem ponto de fixação. Todos nós suportamos essa revisão na esperança de saber por que Althusser matou Helène? Essa pergunta só faz lançar-nos no redemoinho de novas dúvidas.

Será porque Althusser padecia da enfermidade "maníaco-depressiva?" Mas será que existe essa doença e será que ela é de origem orgânica? E mesmo que exista, a melancolia move as pessoas que a sofrem a matar? O que se estuda nos tratados psiquiátricos é que o melancólico se mata por considerar-se culpado de tudo e carente de castigo. A não ser que sua aspiração de auto punição fosse a de morrer em seu prestígio. Diz-se muito que essa foi a primeira morte de Althusser. Mas com toda a sua sofisticação espiritual, teria podido arruinar o seu prestígio escrevendo contra as suas posições até então tomadas, despertando então o desprezo dos que o apoiavam. Os melancólicos mencionados nos tratados de psiquiatria usam constantemente este expediente de auto condenação. Não foi o que fez Althusser.

Terá sido uma vingança contra o psicanalista? Se este se apoiava em seu prestígio intelectual, o assassinato de Helène por um lado comprovava a tese de ser ele um doente mental submetendo-se ao analista e por outro ferrava a pretensão de Diatkine de saber o que estava fazendo com Althusser. Terá sido um pacto de morte entre os dois amantes como há tantos? É verdade que Helène revelava uma certa culpa de estar com Althusser e se imaginava por vezes responsável por seu sofrimento.

Por que Althusser assassinou Helène? Não se sentiria assassinado por ela que funcionava como veículo da intolerância da sociedade com quem não toma partido cego de uma causa? A resistência heróica de Althusser contra a pressão social de abortar sua capacidade crítica precisava ser quebrada. Não terá Helène, sem disso dar-se conta, se deixado levar pela pressão do meio ambiente em sendo induzida a matá-lo aos poucos com a medicação que diminui a lucidez crítica?

Por que, afinal, Althusser matou Helène? Terá sido um gesto piedoso, ligado à sua mania de grandeza? Uma espécie de eutanásia misericordiosa? Em alguns momentos da peça parece que isot fica insinuado.

Ainda nos faltam dados essenciais para perguntar mais ainda: o percurso da análise de Althusser, se for possível chamar essa intervenção de análise, como foi acompanhada e exercida por Diatkine. Dados deste cunho, contudo, não podem ser exigidos de um analista que tem como dever resguardar o segredo médico. A única resposta só pode ser: não sabemos senão que não sabemos. E o que sabemos guarda-se no fundo de nós sem sabermos que sabemos.

A vida, contudo, não se sustenta sem uma ilusão de saber. A autocrítica sistemática e a incerteza radical põe-nos impotentes e sem vigor. Saber que assassinou a sua própria mulher, da qual dependeu tanto para sustentar-se vivo, ficou sendo um saber inegável. A impotência, filha da incerteza, devanecia-se uma vez que agora tinha posto em prática um ato hediondo concreto. Libertava-se do encarceramento na teoria em que ele havia sido isolado.
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Wilson de Lyra Chebabi é psicanalista

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