segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Teatro/CRÍTICA

"A máquina de abraçar"

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Poderosa metáfora da atualidade


Lionel Fischer


Sem dúvida uma das atividades mais relevantes exercidas pelo homem, posto que objetiva livrá-lo de todos os males que o afligem - tanto físicos como psicológicos -, e mesmo levando-se em conta seus inegáveis avanços, mesmo assim a Medicina ainda engatinha em muitos campos. Como, por exemplo, no que se refere ao Autismo. Doença até o momento incurável e de origem desconhecida - ainda que muitas hipóteses venham sendo formuladas -, em contrapartida dela conhecemos inúmeros sintomas, capazes de indicar que uma criança seja autista.

Dentre esses sintomas, podem ser citados: acentuada falta de reconhecimento da existência ou dos sentimentos dos demais, anormalidade na comunicação não verbal, marcada anomalia na emissão da linguagem com afetação, anomalia na forma e conteúdo da linguagem, movimentos corporais estereotipados, preocupação persistente por parte de objetos, intensa aflição em aspectos insignificantes do ambiente, insistência irracional em seguir rotinas com todos os seus detalhes, limitação marcada de interesses com concentração em um interesse particular e, finalmente, múltiplas ausências: de busca de consolo em momentos de aflição, de capacidade de imitação, de relação social e de vias de comunicação adequadas.

Embora um tanto extensa, a introdução acima me parece justificável na medida em que o presente texto, do espanhol José Sanchis Sinisterra, foi inspirado no relato de uma autista real ao neurologista Oliver Saks, que o converteu no livro Um antropólogo em Marte - mas é possível que Sinisterra tenha também se inspirado em Wilhelm Reich (1897-1957), médico e cientista natural alemão, em especial em uma das três técnicas terapêuticas que criou: "A vegetoterapia caractero-analítica". A partir desta leitura, Sinisterra escreveu A máquina de abraçar, ambientada em um congresso psicanalítico e protagonizada por uma terapeuta e sua paciente autista. Com direção de Malu Galli, a peça pode ser vista no Espaço Tom Jobim, interpretada por Marina Vianna (terapeuta) e Mariana Lima (autista)

A mola propulsora da ação seria a surpreendente recuperação da paciente - ainda que parcial -, que lhe permitiu, dentre outras coisas, escrever um livro sobre a vida afetiva das pantas, já em sua 11ª edição, e a criação da tal máquina de abraçar. No entanto, e salvo monumental engano de minha parte, o autor apenas se serviu da doença para convertê-la em poderosa e assustadora metáfora dos tempos que correm. Isto fica claro, em especial, quando a terapeuta denuncia os "tubarões" que dominam o mundo - banqueiros, empresários, empreiteiros, especuladores etc. - que, a exemplo dos autistas, não estabelecem com os demais mortais nenhum tipo de comunicação, carecem de uma mínima capacidade de escuta e apenas se empenham em materializar seus próprios interesses. O mundo estaria, portanto, dominado por um autismo inteiramente imune a quaisquer esforços terapêuticos convencionais.

Bem escrito, contendo ótimos personagens e mexendo em feridas que tendem cada vez mais a se agravar, o ótimo texto de Sinisterra recebeu uma versão cênica à altura de sua pertinência. Em sua primeira direção teatral, a excelente atriz Malu Galli impõe à cena uma dinâmica austera, seca, plena de nervosidade, provocando na platéia um permanente estado de inquietação. Mas tal feito, evidentemente, só se materializou graças à colaboração de todos os profissionais envolvidos neste mais do que oportuno projeto. A começar pelas duas atrizes.

Na pele da terapeuta, Marina Vianna consegue transmitir, com vigor e sensibilidade, as principais características da personagem, dentre elas sua determinação em tratar a paciente através de métodos nada ortodoxos e sua entrega absoluta à tarefa de tentar recuperar uma pessoa destinada à solidão e à indiferença - afinal, autismo não tem cura, não é mesmo?

Com relação a Mariana Lima, esta exibe aqui a melhor performance de sua carreira. E isto se deve não somente à sua notável capacidade de criar gestos que nos remetem aos dos autistas, tampouco às pausas e modulações de voz - certamente admiráveis - mas sobretudo porque a atriz dá a sensação de que o resultado de sua composição partiu de suas entranhas e não de mera imitação de pacientes portadores da doença. Certamente posso estar enganado, mas ouso supor que Mariana Lima deva ter feito uma exaustiva e, quem sabe, dolorosa pesquisa interna, buscando em si própria os elementos que mais tarde conseguiu converter em comoventes e emocionantes signos visuais e auditivos. Sem dúvida, estamos diante de um trabalho de exepcional qualidade, um dos melhores da atual temporada.

Na equipe técnica, Raul Mourão responde por irretocáveis cenografia, direção de arte e instalação, a mesma excelência aplicando-se à tradução de Eric Nepomuceno, à direção de imagens de Caetano Gotardo, aos figurinos de Domingos Alcântara, à direção de movimento de Denise Stuz, à direção musical de Rodrigo Marçal e à iluminação de Maneco Quinderé.

A MÁQUINA DE ABRAÇAR - Texto de José Sanchis Sinisterra. Tradução de Eric Nepomuceno. Direção de Malu Galli, Com Marina Vianna e Mariana Lima. Espaço Tom Jobim. Quinta e domingo, 19h. Sexta e sábado, 21h30.

Um comentário:

  1. Como pai de Mariana Lima fiquei muito orgulhoso e muito emocionado. Não vi a peça ainda. Vou vê-la na sexta-feira e, com certeza, me emocionar ainda mais.
    Sergio Lima

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