quinta-feira, 3 de setembro de 2009

O trágico imperador

Aurora Fornoni Bernardini


Quanto mais leio Henrique IV, mais me surpreendo com a engenhosidade de sua construção. Aparentemente trata-se de uma quase história gótica: "um tratado germânico semifilosófico" e no meio dele, "um libreto de amor, ciúme e revanche", como a definiu Eric Bentley.

Durante o carnaval, numa festa a caráter, em que cada convidado escolheu representar uma figura histórica da época de Henrique IV (imperador da Alemanha, conhecido pelo episódio de Canossa, de 1071), ocorre um acidente. O jovem fantasiado de Henrique IV cai do cavalo e perde parcialmente a razão: depois de socorrido ele continua a acreditar que é Henrique IV. Sua irmã transforma a villa onde vivem, no palácio desse imperador, e seus moradores em outras tantas personagens que passam a constituir sua corte, secundados pelos amigos do jovem que concordam em se disfarçar toda vez que o visitam. A irmã morre depois de alguns anos. Pouco antes, porém, tivera a impressão de que o já não tão jovem irmão poderia se recuperar de sua loucura e transmitira sua esperança ao filho dela, Carlo. Outros anos se passam.

Já são vinte os que separam nesse momento os acontecimentos do início da peça, do acidente que ocorreu durante a cavalgada fatal. A situação é essa. Carlo, já noivo de Frida, filha da mulher que vinte anos antes representara o papel de Matilde de Toscana (o amor secreto do falso-verdadeiro Henrique IV), chamou um psiquiatra ao palácio, satisfazendo o antigo desejo da mãe e porque, realmente, há indícios de sanidade nas falas entremeadas do imperador.

Há na parede da sala do palácio o retrato do "imperador" e da jovem Matilde que este amava, da época da fatídica cavalgada. Ao vê-los, o psiquiatra propõe o seguinte tratamento de choque: substituir os quadros dos protagonistas dos fatos de vinte anos antes por duas pessoas vivas vestidas a caráter, que por coincidência se parecem incrivelmente com os originais: o sobrinho Carlo como Henrique IV e sua noiva Frida como Matilde de Toscana. Vendo-os e vendo simultaneamente a si próprio e à mãe da jovem já agora além da casa dos quarenta, Henrique IV recuperaria - pensa o psiquiatra - a noção do tempo e com ela a sanidade total.

É claro que o plano do médico não vai funcionar, pois já há 12 anos, sem que ninguém o saiba, "Henrique IV" deixou de ser louco e só agora acaba de revelá-lo a seus valetes que correm a anunciá-lo a todo mundo. Entretanto, a cena dos quadros ocorre antes que os disfarçados tenham podido ser informados pelos criados do equívoco e Henrique IV fica tão chocado com a jovem viva no quadro, como se esta fosse realmente a sua Matilde de outrora. O amante da mãe da moça, Belcredi, antigo rival do jovem Henrique IV e que fora o causador da queda do cavalo, irrompe arrancando a jovem dos braços de quem, ele insiste, é perfeitamente são e capaz de controlar-se. São? - diz Henrique IV, atravessando-o com a espada. Agora não tem mais jeito. Será "louco" para sempre.

A intriga é essa. O que acontece à sua sombra é um dos mais ricos e complexos mananciais de fruição estética contemporânea. Pode ser visto, segundo Claudio Vicentini (L'Estetica di Pirandello, Mursia, 1970), como uma obra que se organiza, se desenvolve em torno de algumas sensações iniciais - as hegelianas encarnações de conceitos - "que desligando-se da indeterminação abstrata do pensamento puro, assumem uma força vital" e a obra torna-se então "pensamento condensado numa forma viva"; ou então, como faz Eric Bentley, em seu penetrante estudo sobre Il tragico imperatore, como o desenvolvimento da relação amor-ódio de Henrique para com Matilde jovem, que aglutina à sua volta os acontecimentos e se oferece como a chave de uma interpretação possível da peça. De fato, de acordo com a História, quando Henrique IV tinha 26 anos é que se deu o episódio de Canossa que o tornaria célebre.

O imperador alemão vira-se obrigado a implorar uma audiência ao papa Gregório VII (cuja aliada era justamente Matilde de Toscana) ajoelhado na neve, junto com sua mulher, a imperatriz Berta. "Eu queria - conta Pirandello - uma situação em que a personagem histórica estivesse apaixonada por uma mulher, sua inimiga". - "Nenhum historiador jamais fez menção à paixão secreta de Henrique IV" - estranha Landolfo, um dos valetes do imperador, e com esse reparo insere na trama o elemento histórico que faltava e que para a peça era fundamental.

Isso porque, continua Bentley, uma vez sabiamente traçado o caráter dos protagonistas (as rubricas, nesse sentido, são verdadeiros achados), Henrique IV é construído sobre a sequência de certos momentos traumáticos, visões obcecantes, como as "cenas fundamentais" em psicanálise: primeiro a queda do cavalo do jovem fantasiado, depois o choque de recuperar a sanidade repentinamente, doze anos mais tarde, e verificar que não é o Imperador, em seguida, oito anos depois, a emoção de rever os protagonistas do drama de sua juventude. Finalmente, o episódio dos quadros, a perturbação de ver em Frida a Matilde jovem, e o assassínio de Belcredi.

Por baixo desses traumas, finalmente, o mais importante de todos, sem o qual possivelmente os outros não teriam acontecido:

Ai, se vocês se aprofundassem, como eu, a considerar esta coisa horrível, de deixar realmente louco: estar ao lado de certa pessoa, fitá-la nos olhos - como eu fitava outrora certos olhos - e sentir-se como um mendigo diante de uma porta que jamais se abrirá para deixá-lo entrar...

Uma vez isso posto, qual é realmente o tema da peça? - pergunta Bentley. E num lance pirandelliano, assim o interpreta: é o tema da personagem em busca de um poeta trágico. Só que é o protagonista quem deseja a tragédia, não o autor. Na peça toda, o desejo da personagem é sempre o de ser levada a sério, e o seu drama gira em torno do fato que isso não ocorre:

Eles sim, todos os dias, a cada momento, pretendem que os outros sejam como eles querem; por acaso isso não é abuso? Mas é assim que eles pensam, é assim que eles sentem; cada um tem seu modo de ver! Vocês também, não é? Certamente. Mas qual pode ser o seu? O do rebanho! Mesquinho, instável, hesitante...E eles se aproveitam, obrigam-nos a aceitar o deles, fazem vocês verem e sentirem como eles! Pelo menos, é assim que pensam! Por que afinal o que é que eles impõem? Palavras! Palavras que cada um entende e repete como quer. Mas é assim que se forma a chamada opinião corrente! Ai de quem, um dia, se encontrar marcado por uma dessas palavras que todos ficam repetindo. Por exemplo, "louco!". Por exemplo, "idiota!". Digam-me, pode-se ficar quieto pensando que existe alguém que insiste em convencer os outros, que você é como ele acha, e quer que os outros o julguem conforme o juízo que ele faz de você? - "Louco", "Louco"!. Não digo agora, que faço por brincadeira, mas antes, antes que batesse a cabeça ao cair do cavalo...

Tido como louco (de brincadeira, dirá Belcredi) antes de sê-lo realmente, o jovem sério, que olhava para Matilde com algo de "duradouro" no olhar, é por ela ridicularizado, por medo, por fraqueza. A partir desse momento, "todos os outros, imbecis, passam a zombar dele" e tudo o que acontece pode ser visto como uma brincadeira, boa ou má, que seja.

A idéia da cavalgada, a queda do cavalo, o travestimento inicial que se perpetua nos disfarces da villa, transformada em palácio de Goslar. A farsa dos quadros, o psiquiatra, digno doutor de Molière ou de Ben Jonson que age como um improvisador da commedia dell'arte, mais do que propriamente como médico, e Belcredi se incumbe de elucidá-lo. Os valetes que descobrem a farsa em que viveram no momento em que Henrique IV lhes revela a simulação da loucura. "Como viver depois de são - pergunta Henrique IV - com todos me apontando o dedo? Como viver, se todos já me achavam louco antes?" "Mas era por brincadeira", arrematará Belcredi, achando que com isso tudo se resolve e, na verdade, deslancha as circunstâncias que para Henrique IV se preservam em toda a sua tragicidade, mesmo que o autor não queira.

Em particular, esse tema privilegiado permite-nos focalizar outros aspectos da "forma" pirandelliana à qual nos referimos previamente. Uma das máscaras, justamente, que irão compor a "forma" de Henrique IV, enquanto são, é constituída pela incorporação da imagem que os outros fazem dele.

O que ocorre com Henrique IV tem semelhança com aquela antiga carta que Pirandello escrevera à mulher: ele se vê espelhado nos olhos dos outros e, mesmo que ele não queira, sofre as consequências desse reflexo: "Já que é isso o que você acha de mim, - é como se dissesse - vou sê-lo realmente, e com você!"

Esse é o desafio final e ao mesmo tempo a vingança de Henrique IV, quando, em nome justamente da "exaltação a frio" que lhe fora atribuída, ele mata Belcredi e não tendo outra saída, se refugia no mundo irresponsável da, agora pretensa, loucura. Henrique IV está são, nesse momento, e perfeitamente lúcido. Apenas, por um lado, sucumbiu àquela exaltação súbita que vira nele Belcredi, e por outro, foi arrastado pela inércia daquela sua ficção que durara oito anos e que aqueles que o circundavam vacilam em aceitar como consciente. É que a ilusão tem força ativa, diz Pirandello, ela vai forçando a formação de uma realidade de contornos fluidos, passíveis de serem continuamente borrados.

A figura deste trágico imperador condenado à aparência, que no começo é louco e parece louco, depois parece sem sê-lo e não é mais ninguém, pois os anos devoraram o que ele poderia ter sido, condensa dentro de si uma série de teorias caras a Pirandello, que conservam uma grande atualidade.
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Texto extraído, e aqui um pouco resumido, do livro Henrique IV e Pirandello (coleção Criação & Crítica, Editora da Universidade de São Paulo/1990). O volume contém outros ensaios e a versão integral de Henrique IV.

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