Aspectos da Farsa
Eric Bentley
Gilbert Murray fala da “semelhança estreita entre Aristóteles e Freud” e, de fato, Freud transmitiu a idéia de catarse além do que nenhum crítico de Aristóteles jamais sonhou. Nos anos de 1800-1900, a nova terapia escapou de ser denominada catártica, em lugar da psicanalítica, apenas por um triz. Para Freud, as piadas são fundamentalmente catárticas: um alívio, não um estímulo. É por esse motivo que ele, ao contrário de nossos moralistas de plantão, “os deixaria zombar do casamento” – ele sabia, também, que jamais conseguiria detê-los. É um tipo de segredo de polichinelo, diz Freud em seu livro sobre piadas: “o casamento é apenas um arranjo para satisfazer as exigências sexuais do marido,” além do que esse segredo é meio guardado, meio contado, dentre um milhão de piadas masculinas contra o casamento.
Eu acrescentaria que a forma suprema de piada sobre o casamento leva algumas horas para ser contada e possui um elenco de três personagens, conhecidas como le mari, la femme, et l’amant – por isso, o termo “farsa do quarto”. No momento exato em que a Comédia da Restauração foi provocada pelos puritanos e está sempre dedicada à sua memória, a farsa do adultério, durante toda a época do Protestantismo burguês, foi estimulada por maridos fiéis e somente terminará quando eles se tornarem infiéis por princípio.
Escuridão
Geralmente, a farsa proporciona uma oportunidade extraordinária: protegidos por uma escuridão divertida e sentados em tranqüilidade calorosa, nós apreciamos o privilégio de ficarmos totalmente passivos, enquanto que, no palco, os desejos que mais conservamos na memória, os mais indecentes, aqueles que mais emanam da imaginação humana, são realizados diante de nossos olhos pelos seres humanos mais violentamente ativos. Nesta aplicação da forma, que constitui a farsa do quarto, nós saboreamos a aventura do adultério, ingenuamente exagerado no mais alto grau, tudo sem ter a responsabilidade ou levar a culpa. As nossas esposas podem estar conosco, conduzindo o riso.
Torrente
Por que rimos de piadas? A graça de uma piada pode ser explicada, mas a explicação não é engraçada. O conteúdo intelectual não é o ingrediente fundamental. O que conta é a experiência, a qual chamamos “entender” a piada ou “perceber” a graça. Esta experiência não constitui um tipo de choque. Contudo, ao passo que, geralmente, choques são desagradáveis, estes abrem uma comporta em algum lugar, que resulta numa súbita manifestação efusiva de prazer. O prazer do riso não é contínuo com a leve graça que o antecede. Uma piada é uma torrente de murmúrios que, de repente, de um de seus poços, faz surgir um verdadeiro gêiser.
O fenômeno parece menos misterioso se o considerarmos limitado aos seres humanos adultos, sendo eles repletos de ansiedades e culpa. Nem o super-homem, nem os bebês têm senso de humor. Não é necessário. Homens e Mulheres têm porque possuem inibidos muito de seus desejos mais profundos.
Desejos
Como o senso de humor se realiza? O seu objetivo consiste em satisfazer alguns dos desejos proibidos. Mas o que é reprimido, é reprimido. Não podemos chegar a ele. A nossa ansiedade e nossa culpa cuidam dessa parte. Porém, há estratagemas para se fugir da ansiedade da culpa, e o mais comum, ou menos artificial, é o senso de humor. As preliminares um tanto surpreendentes de uma piada suavizam os nossos medos, enfraquecem a nossa resistência.
A realização do desejo proibido nos é, então, revelada com uma surpresa. Antes que a nossa culpa e a nossa ansiedade tenham tempo de entrar em ação, o prazer proibido é alcançado. As inibições são, momentaneamente, postas de lado, os pensamentos reprimidos são admitidos na consciência e nós temos aquele sentimento de poder e prazer, geralmente denominado exaltação. Aqui reside uma das poucas formas de alegria, que são facilmente acessíveis. Daí, a imensa contribuição do humor para a sobrevivência da raça humana.
Paradoxo
Conseqüentemente, também, um paradoxo. Através do cômico, nós controlamos fontes infantis do prazer, nos tornamos crianças novamente, encontramos a satisfação mais intensa nas menores coisas, o êxtase pleno nos pensamentos mais vulgares. No entanto, bebês não têm senso de humor. Mas o paradoxo não é uma contradição, pelo fato de que, no fundo, nenhuma experiência poderia estar mais à parte do que o retorno no momentâneo à infância, a partir da sensação de ser criança. A verdadeira inocência da infância nunca é recuperada; contudo, no que diz respeito ao prazer, há um desenvolvimento da nostalgia pura. Nenhuma menina consegue amar a meninice como Lewis Carroll amou. Nenhuma criança compartilha do prazer do adulto em voltar, ou ter a impressão de voltar, à infância.
Distância
O humor tem muito a ver com a distância entre a infância para a qual se retorna e o ponto a partir do qual a jornada de volta é empreendida. Na verdade, a premissa de que as crianças não têm senso de humor, útil no início, necessita de qualificação numa etapa posterior da investigação. As crianças desenvolvem um senso de humor à medida que elas saem da primeira inocência. Elas apenas têm que ouvir algumas das “canções de conhecimento pessoal”, que são canções de retrocesso, decepção, ilusão: e a alegria sincera do sorriso de uma criança pode dar lugar ao sorriso agressivo, ou de lado, ao meio sorriso de frustração, estampado no rosto de uma criança de três anos de idade. A “inocência” é perfeita e única. Com a “experiência”, vem a divisão e a dualidade, sem as quais não há humor, não há graça, nem farsa nem comédia.
Piadas e Teatro
Um dos insights-chave tanto de Bergson quanto de Freud se baseia no fato de que contar piadas é criar teatro. Bergson diz que todo chiste, mesmo se não for articulado, acaba por se articular em cenas – que compõem uma comédia incompleta. Freud ressalta que é necessário não uma ou duas, e sim três pessoas para contar uma piada. São elas o piadista, o alvo da piada e o ouvinte. O trio é familiar na forma do comediante, do ator que contracena com ele e da platéia. Este trio de vaudeville pressupõe, por sua vez, o zombeteiro, o impostor e a platéia do teatro cômico tradicional.
Dizer que o piadista precisa de um alvo é dizer apenas que ele precisa de uma piada. Ela é mesmo tão necessária quanto um ouvinte? Que cada um de nós pergunte a ele por que, num dado momento, ele deseja contar uma piada. Não pode ser pelo fato de que alguém deseja ser entretido por ela, uma vez que elas não são engraçadas na Segunda vez e não se pode contar uma piada que já não tenha sido ouvida – eu excluo da consideração todo super-homem que consiga inventar a piada à medida que prossegue. De qualquer forma, se uma pessoa precisa ouvir uma piada, ela poderia contá-la pra si mesma. É inevitável que a necessidade não esteja, de modo algum, na piada e sim na platéia.
Necessidade
Qualquer pessoa que tenha conhecido comediantes fora do palco pode confirmar isto. Eu acho que, muitas vezes, eles são homens com uma necessidade de aplauso e valorização que transcende a de outros atores. Existe uma razão pela qual os indivíduos com esta necessidade – sendo eles humoristas talentosos ou não – tentem a profissão de comediante. Somente a piada consegue da platéia uma reação cujo teor é inconfundível e entusiástico: o riso. O ator da tragédia não recebe indicação, no final de sua fala “ser ou não ser”, de que ele obteve êxito. Ele se apraz do silêncio da platéia, mesmo que ele possa se surpreender ao saber depois que todas as pessoas adormeceram. Talvez ele pense que a sua impressão de que houve êxito é uma ilusão. Mas não existe tal coisa, como coloca Ramon Fernandez: uma “ilusão” de que a platéia está rindo. Assim, o riso é curiosamente atraente para uma pessoa que precisa de reação da platéia a cada minuto, e precisa ter a certeza de que ela é extremamente favorável. Na noite em que a platéia não ri, o palhaço sai e pensa em se matar, já que a única coisa para a qual ele vive, “aquela graça”, não lhe foi concedida.
Faladores
Eu penso ser o comediante o indivíduo cuja necessidade de aplauso é a mais persistente e a menos confiável também. Uma interpretação alternativa é a de que ele é o mais talentoso dos faladores compulsivos. Toda festa diverte muitas pessoas que não param de falar enquanto tiverem platéia. O piadista é um falador muito compulsivo que escapa impune, pelo fato de que o que ele fala é engraçado. A gargalhada que acolhe cada história é uma afirmação que ele conseguiu não entediar a platéia. Agora, ele pode ser estimulado a contar suas histórias para grupos cada vez maiores. Se ele acabar num palco falando para pessoas que nunca viu, ele é um comediante profissional.
No entanto, é lamentável que, o que poderiam ser estudos da comédia, muitas vezes passam apenas a ser estudos do riso. Mas isso reflete fielmente a mentalidade do comediante. O seu desejo é captar e manter cativa a platéia, e ele o realiza somente quando ela ri. Portanto, embora o riso talvez caracterize por si só a comédia, ele chancela as piadas. Por esse motivo, produtores de teatros podem ser perdoados de uma certa histeria sobre o assunto, e nós deveríamos receber com mais pena do que raiva a notícia de que o pessoal da televisão está medindo a duração e o volume de risos com “medidores” de riso. Se os filósofos podem reduzir a arte cômica ao riso, então, certamente, os empresários podem reduzir o riso ao barulho que ele faz. Porém, em ambos os casos, esse enfoque é por demasiado restrito.
Curva
O estudioso do riso tem que estudar a curva inteira do riso, do qual a explosão do “barulho” é apenas a polegada final. Antes que as pessoas desatem a rir, elas têm que estar preparadas para tal. A única preparação segura é um estado individual de expectativa e sensibilidade, que se eleva a uma espécie de euforia. Isso pode ser mais importante que a piada em si. Pode-se chegar a um estado de excitação em que a pessoas riam de qualquer coisa. O ator talvez tenha que se perguntar do que elas não riem, se ele tiver que impedir o caos. Ele tem que observar que as moças dão risadinhas reprimidas e que as senhoras ficam histéricas.
Por tudo isso, o teatro fica com a arte de contar piadas, não com a arte de escrever livros. Nós lemos quando estamos sozinhos e achamos notável se, de vez em quando, rimos alto. Nisso reside uma gargalhada única, e se for alta, uma tosse autoconsciente, única. O resto da família tem certeza de que isso foi feito pra chamar a atenção e pergunta qual é a graça. Mas quando um comediante num teatro nos conta as suas piadas engraçadas, podemos realmente nos soltar e, em dez minutos, nós estamos tão “altos” quanto qualquer uísque poderia nos deixar. Essa é a psicologia do comediante no teatro.
Teatro
Nesse aspecto, assim como em outros, a arte da farsa se torna, além da piada, teatro – a piada inteiramente articulada com personagens e cenas teatrais. É correto dizer que o seu objetivo é o riso, mas isso não é dizer uma coisa simples. O riso pode significar isto ou aquilo, e em todo o caso, tem que se preparado mais cuidadosamente, bem como adaptado. Os futuros estudiosos do assunto fariam bem em deixar a piada individual e as razões pelas quais ela é engraçada, e se reportarem para a pergunta: qual é, exatamente, a graça em contextos específicos? O que se descobrirá é algo que, às vezes, quase não é engraçado e que, outras vezes, o é realmente. É uma questão da maneira pela qual a platéia foi conduzida ao ponto em que o riso deveria irromper e a graça ser comprovada.
Estou falando de uma gargalhada preparada, e mesmo num evento tão insignificante, há muito ser observado. Contudo, qualquer farsa que tenha mais de um minuto ou dois de duração, tem que fazer com que a platéia ria alto um número considerável de vezes. Isso não pode ser feito apenas com o encadeamento de uma piada na outra. A exaltação do público é tão mais forte que qualquer graça, que se pode começar a perguntar: o que é uma piada?
Eventos
Conforme eu disse, se alguém consegue um bom resultado numa primeira piada, a platéia pode chegar a um estado de espírito em que tudo parece engraçado. A única coisa que se precisa é de uma nova tomada de eventos, e esta será recebida com uma outra gargalhada. Mas este estado de espírito não permanece sem alguma ajuda por muito tempo. Além disso, talvez não seja sensato tentar mantê-lo indefinidamente, para que não resulte em exaustão absoluta. Aquele que organiza uma noite inteira de “diversão” tem, realmente, que ser um “organizador”. Nada poderia ser mais fatal do que arriscar tudo, criando um bom início, e em seguida, deixar que os eventos fluam naturalmente. Esta é uma coisa que todo bom produtor de vaudeville sempre soube e que todo autor de farsa tem que ter em mente – ou melhor, nos ossos.
Uma informação obtida por acaso é dada por algo que John Gielgud disse uma vez sobre a produção de A importância de ser prudente, de Oscar Wilde, no sentido de que o diretor tem que saber como evitar que a platéia ria em muitas partes. Aqueles que assistiram à produção da peça de John sabem o que ele quis expressar. A temperatura cômica atingiu um nível tão elevado, a exaltação da platéia foi tão intensa que, em muitas partes, o desempenho quase não podia ter continuidade. Wilde escreveu um diálogo tão espirituoso que qualquer linha podia ser o início para novos gritos e risadas. A desintegração do desemprenho – mesmo em risadas de alegria – não constitui um objetivo desejável. O que os atores tiveram que fazer foi o oposto de “explorar” cada linha pela graça nela contida. Foi necessário se desfazer de boa parte da graça das linhas isoladas, em prol da graça mais relevante.
Estratégia
O objetivo da estratégia de John não consistia simplesmente em evitar o tumulto, mas no mais pleno divertimento da ocasião. O espectadores são crianças que não sabem do que gostam. Se os deixarmos, riem tanto que, posteriormente, conseguem apenas ficar histéricos ou de mau humor. Eles têm que evitar a violentação do próprio sistema nervoso. O riso não pode ser regular e ininterrupto. Ele não pode começar pianíssimo, e em seguida, se tornar gradativamente mais alto ad infinitum, nem pode manter a mesma intensidade constantemente, como uma sirene de fábrica. Ele está ligado a sistemas respiratórios e vocal, que são bastante limitados, isso para não mencionar a psicologia.
Se um metro de riso pudesse medir o mérito do espetáculo, então, o ideal seria aquele que provocasse uma única gargalhada, que durasse de nove às onze horas. Consistiria, portanto, de uma peça que não somente não poderia prosseguir, bem como não poderia começar. Na verdade, não existe nenhuma relação entre o divertimento e a duração do riso audível. Porém, muito pouco riso é melhor do que em excesso. Se nenhuma comédia, apesar de esplêndida, conseguirá fazer com que as pessoas riam o tempo inteiro, poderia existir uma ótima comédia que nunca, de modo algum, os fizesse rir.
Com que freqüência, acidentalmente, se ouve, de fato, o riso?
Feiúra
Ele emite um som bastante feio. Quantas vezes alguém olha para as pessoas no momento em que estão rindo? Não é um quadro muito bonito. Além disso, há pouco riso no palco de um bom teatro! O riso pertence ao auditório. Talvez uma razão seja a de que, lá, não se tem que vê-lo. São os atores o que se vê. Eles riem raramente, e sobretudo, para efeitos negativos. Outro dia, abri uma revista e me surpreendi com o riso mais expressivo no rosto de um ator. A legenda informava que era Gustav Gruendgens – como Mefistófeles!
Gêneros
Freud distingue dois gêneros de piadas, uma inocente e inofensiva e a outra que é dotada de um propósito, uma tendência, um fim em vista. Ele diferencia, por sua vez, dois tipos de propósito: destruir e expor – arruinar e desnudar. Piadas destrutivas se enquadram em rótulos tais como o sarcasmo, escândalo e sátira, desnudando piadas sob tais rótulos como obscenidade e irreverência.
Eu acho que a única coisa surpreendente a respeito desta classificação consiste no fato que ela coloca a obscenidade lado a lado com a sátira. Se concordarmos, podemos dar outro passo, observando que há influência destrutiva, também, na piada que expõe. Ela é hostil ao elemento exposto, à platéia que assiste ao desmascaramento ou a ambos. Modificando a formulação de Freud, concluo que tanto a sátira quanto a obscenidade se incluem no rótulo de agressão.
Nós temos, portanto, piadas agressivas e não agressivas. Na verdade, todos assumem uma preferência, bastante comum em nossa cultura de classe-média, pela piada que não é agressiva. Nós não somos uma civilização cristã? Eu mesmo fui educado com base num pequeno hino que dizia:
“Ensine-nos o prazer nas coisas simples
E a alegria que não venha de fontes amargas!”
Parecia um pedido bastante razoável, sobretudo porque, na época, eu não tinha me dado conta de que a alegria, às vezes, tem fontes amargas. Certamente, eu não sabia que o autor daquele hino era um homem de pugnacidade descomedida – ele foi composto por um certo Kipling..
Farsante
Algumas pessoas querem que suas piadas sejam divertidas e inofensivas, e outras que as suas farsas também o sejam. De fato, é comum interpretar a farsa como sendo precisamente a abordagem divertida daquilo que, do contrário, seria um tema ofensivo. Aqui segue o grande crítico de teatro da França do século XIX, Sarcey, discutindo o maior farsante da França da época:
“Muitas vezes reclamei que eles me perturbavam constantemente com a questão do adultério que, hoje em dia, é o tema de três quartos das peças. Por que, perguntei, ter o prazer de retratar seus lados escuros e tristes, se estendendo nas conseqüências desagradáveis que elas trazem consigo na realidade? Os nossos pais levam a coisa de forma mais alegre no teatro, e até chamavam o adultério por um nome que despertava na consciência apenas idéias do ridículo, assim como uma alegria jovial...Por acaso, conheci Labiche. ‘Fiquei muito impressionado’, ele me disse, ‘pela sua observação de adultério e sobre o que poderia se originar disso... pelo fato de que a farsa... eu concordo... eu tinha quase esquecido dessa conversa, quando vi o título afixado do lado de fora do Palais Royal... era a minha peça: o adultério abordado de forma alegre...’”.
Produto
A crítica anglo-saxônica vem sendo contra a aceitação de temas, como adultério, no drama que não é sério, e apesar disso, existe um crítico inglês que, antes de Sarcey, conduziu o argumento deste ainda além. É ele Charles Lamb no seu ensaio outrora famoso sobre a Comédia da Restauração. Na essência, embora não seja esse seu vocabulário, ele argumenta que a questão do tema da Comédia da Restauração se torna aprazível se consideramos o produto final como farsa, em vez de sátira. Deve ser criticada com tolerância, porque é uma peça, e não severamente, como se faria na vida real.
Eu nunca consegui, em nenhum aspecto, unir estes divertimentos de uma imaginação espirituosa a qualquer efeito que pudesse deles ser extraído, para imitação na vida real. Eles compõem um mundo que pertence a eles mesmos, quase tanto quanto o reino encantado... os Fainalls e os Mirabells, os Dorimants e as Lady Touchwoods, na sua própria esfera, não ofendem o meu senso moral...
Eles não transgridem nenhuma lei ou limitações conscienciosas. Eles não conhecem nenhuma. Eles saíram da Cristandade para a terra – de que devo chamá-los? de corno – a Utopia do galanteio, onde prazer é dever, e a educação consuma a liberdade. Conjuntamente, uma cena de elementos especulativos, que não tem nenhuma referência para qualquer que seja o mundo.
Chateação
Agora, tanto Sarcey como Lamb dizem coisas que são incontestavelmente verdadeiras. Se o adultério no drama está se tornando uma séria chateação, então, certamente, seria engraçado tentar a abordagem do farsante. Se pais se tornam chatos ao sugerirem que a Comédia da Restauração pode exercer uma influência imoral sobre suas filhas, é bom lembrá-los da distinção entre a arte e a vida, ficção e realidade. Onde começa a discussão genuína e o ponto a partir do qual Freud recomeça na sua monografia sobre piadas.
Admitindo a existência de piadas “inocentes”, Freud prossegue para dizer que somente as tendenciosas, aquelas dotadas de um propósito, conseguem fazer com que as pessoas desatem a rir. As piadas inocentes não acumulam muita graça. Nós não as sentimos tão intensamente. Não precisamos tanto delas. Nós ansiamos por uma carne mais sólida. Nós queremos sátira. Queremos irreverência. Nós queremos criticar e expor. E me parece que, se analisarmos as farsas, descobriremos que elas contém muito pouco das piadas “inofensivas” e muitas “tendenciosas”. Sem agressão a farsa não se realiza. Os efeitos que denominamos “farsescos” se dissolvem e desaparecem. O que acontece nas farsas? Numa de Noel Coward, um homem dá uma bofetada na sogra e ela desmaia. A farsa é a única forma da arte na qual tal incidente poderia ocorrer normalmente.
Sadismo
Ninguém jamais negou que os filmes de W.C. Field fossem agressivos. O público se conscientizou tanto das agressões que passou a se distanciar dos filmes de Field. No caso de Charlie Chaplin, diziam que o admiravam por ser menos violento. Ele dava a impressão de ser menos violento, porque colocava a violência nas outras personagens. Ela era feia a ele, não por ele, e a farsa masoquista sempre parece mais cavalheiresca do que sádica. Mas o Vagabundo de Chaplin não é exclusivamente masoquista. Além disso, ele é sádico.
Quem não lembra o que acontece em O garoto, quando Chaplin está com a criança nos braços? Ele faz de tudo para ser um pai de criação sensível e encantador, mas no momento que senta no meio-fio com a criança nos braços e olha para o bueiro, ele quase joga a criança ali, passando-se alguns segundos até que volte a ser o personagem cativante de sempre. É através de toques como esse – e nunca do sentimento isolado – que Chaplin se revelou um grande cômico.
Ensine-os o prazer das coisas complexas:
A alegria vem de fontes doces e amargas.
Dialética
Para os simples, todas as coisas são simples. No entanto, a farsa pode parecer uma coisa simples, não somente para os simples de espírito, mas até para aqueles que reconhecem a sua profundidade. A farsa é simples, sob o ponto de vista, pelo fato de que ela vai direto às coisas. Você derruba a sua sogra sem rodeios. Certamente, se pode imaginar se esta não é a visão absolutamente direta, instintiva, sem aquela dualidade de máscara e rosto, símbolo e objeto, que caracteriza o restante da literatura dramática.
A segunda maneira pela qual a farsa pode parecer simples reside na aceitação das aparências cotidianas e das interpretações diárias destas aparências. Ela não expõe as imagens ampliadas do melodrama. Não, a farsa pode explorar o meio ambiente comum, que não se amplia, e os homens de rua descuidados, medíocres. O problema consiste no fato que ela é simples de ambas as formas ao mesmo tempo, deixando, assim, de ser simples. A farsa une as fantasias pessoais e extravagantes às realidades cotidianas e monótonas. A interação das duas constitui a verdadeira essência desta arte – a dialética farsesca.
Na verdade, a fim de avançar a análise um passo mais adiante, a superfície da farsa é , ao mesmo tempo, séria e alegre. As cambalhotas divertidas do Arlequim são conduzidas com a seriedade de um cara-de-pau. Tanto a alegria quanto a seriedade são visíveis e fazem parte do estilo. Se continuarmos a falar do contraste, na farsa, entre a máscara e o rosto, o símbolo e o elemento simbolizado, a aparência e a realidade, este não será um contraste de estilo, mas entre a seriedade ou a alegria na superfície, e o que quer que se encontre sob ela.
Comunhão
O que a seriedade e a alegria têm em comum? Ordem e suavidade. Por outro lado, o que está sob a superfície é desordenado e violento. É uma dialética dupla. Na superfície, o contraste de alegre e sério, em seguida, o contraste da superfície e do que se encontra sob ela. O segundo contraste é maior e ainda mais dinâmico.
Este contraste maior é percebido melhor através da comparação com o que a comédia faz. Esta dá grande importância às aparências: ela se especializa , de fato, em mantê-las. Na comédia, o desmascaramento se dá, caracteristicamente, através de uma única personagem, numa cena climática – como aquela de Tartufo. Na farsa, o desmascaramento ocorre do princípio ao fim. O desempenho predileto do farsante é quebrar as aparências, sendo o efeito favorito o impacto para a platéia, no momento em que o faz. Traga para o palco um cômico farsesco como Harpo Marx, e todas as aparências estarão em perigo. Para ele, todos os invólucros existem para ser desnudados, e tudo o que é frágil, para ser quebrado. Seria um equívoco chamá-lo para uma comédia de sala de visitas: ele destruiria a sala de visitas.
Essência
Se o que a farsa propõe é a interação da violência e algo mais, acontece que esta, por ela mesma, não constitui a essência da farsa. A violência de Chaplin é dramatizada por um contexto de muita bondade. E a de Harpo Marx é contrabalançada por algo igualmente importante para os seus papéis: as suas performances perfeitamente autênticas no mais delicado dos instrumentos, a harpa. Um erro comum consiste em pensar que os efeitos de Chaplin e Harpo são atenuados pela bondade e delicadeza, como se o objeto fosse chegar a um compromisso entre a violência e a sensatez. Mas o s compromissos pertencem à vida, não à arte. O propósito dessa bondade e delicadeza é intensificar, e não enfraquecer , o efeito da violência e vice-versa.
Em geral, a arte dramática é uma arte de extremos e a farsa, um caso extremo do extremo. Caracteristicamente, ela cria e explora os contrastes mais diversos possíveis entre entonação e conteúdo, superfície e essência, e no momento em que um dos dois elementos não está presente na dialética, na sua forma extrema ou pura, é provável que haja um enfraquecimento do drama. Isto poderia ser exemplificado pela peça de Noel Coward na qual, enquanto uma extrema delicadeza de entonação é alcançada, batidas de leve são dadas (mais ou menos, literalmente), onde uma virada de queixo era só o que ele precisava.
Instintos
Na farsa, nós dizemos : “Eu vou matar você com minhas próprias mãos”, de brincadeira, ou com aquela mistura de seriedade e alegria que define a entonação como farsesca. No entanto, pelo menos através de uma palavra ou ato, tem que se tornar evidente que instintos assassinos existem nesse mundo – e nesse momento. Se eles existem em Noel Coward, ele foi muito amável em deixar que o público soubesse. No nosso teatro, talentos tais quais o seu se distanciaram da farsa sem ir ao encontro da comédia autêntica, desembarcando no pior dos dois mundos, a sentimental “comédia ligeira” do West End e da Broadway.
Se é perigoso tentar uma conciliação entre os dois opostos antagônicos de uma dialética, é desastroso aceitar um e esquecer do outro. A agressão pura é realmente opressora, como muitas caricaturas de filme ilustram. A irreverência absoluta é simplesmente tediosa, como a maior parte da “comédia ligeira” ilustra. A relação dialética consiste de conflito e desenvolvimento ativos. Um diálogo tem que ser estabelecido entre agressão e a irreverência, entre a hostilidade e a pureza de coração.
(Artigo extraído do livro A experiência viva do teatro, tradução de Álvaro Cabral e apresentação de Paulo Francis, Zahar Editores. O texto é uma compilação de dois tópicos: Catarse cômica e Piadas e teatro)
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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
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