A natureza do drama
Martin Esslin
Em grego, a palavra drama significa apenas ação. Drama é ação mimética, ação que imita ou representa comportamentos humanos (à exceção dos poucos casos extremos de ação abstrata). O que é crucial é a ênfase sobre a ação. De modo que o drama não é simplesmente uma forma de literatura (muito embora as palavras usadas em uma peça, ao serem escritas, possam ser tratadas como literatura). O que faz com que o drama seja drama é precisamente o elemento que reside fora e além das palavras, e que tem que ser visto como ação - ou representação - para que os conceitos do autor alcancem sua plenitude.
Ao falarmos a respeito de uma forma de arte - e ao tentarmos usufruir dela o máximo de prazer e enriquecimento - é de importância fundamental compreender em que essa forma de arte específica poderá contribuir para a soma total do instrumental de expressão do homem, bem como, na verdade, para sua capacidade de conceituação e pensamento. Se em música lidamos com a capacidade do som em fazer-nos recriar o fluxo e o refluxo da emoção humana; se na arquitetura e na escultura somos capazes de explorar as potencialidades expressivas da organização dos materiais e das massas no espaço; se a literatura preocupa-se com os modos pelos quais somos capazes de manipular - e reagir a - linguagem e conceitos; se a pintura, em última análise, concerne aos relacionamentos e ao impacto de cores, formas e texturas sobre uma superfície plana, qual será, então, a província específica do drama? Por que, por exemplo, haveríamos de representar um incidente, em vez de apenas contar uma história a respeito?
Roteiros
Permitam-me começar com um depoimento absolutamente pessoal. Nas décadas de 40 e 50, eu trabalhei como autor de roteiros para a BBC. Os programas que se esperava que escrevêssemos tinham como objetivo dar a um grande número de ouvintes que não falavam inglês uma idéia do que fosse a vida na Inglaterra. Esperava-se que fossem programas documentários, o mais próximo possível da realidade. Contudo, se quiséssemos, por exemplo, descrever como funcionava uma agência de empregos, em razão da barreira da língua não nos era possível simplesmente sair de gravador em punho e produzir uma gravação das inúmeras coisas que aconteciam ali. Lembro-me de me terem mandado fazer um programa exatamente assim. Visitei uma agência de empregos e fiquei impressionado com a mescla de formalidade burocrática, cortesia e bondade genuína por parte dos funcionários públicos que lá trabalhavam. Como poderia transmitir da melhor maneira possível minhas impressões? Poderia ter escrito uma descrição puramente literária, discursiva, mais ou menos assim:
“O funcionário pede ao candidato ao emprego que lhe dê informações relevantes. Não deixa de ser amigável, embora mantenha certa reserva e distância; ao mesmo tempo, porém, torna-se perfeitamente aparente, pelo tom de voz que usa, que ele está realmente interessado em auxiliar a pessoa que está à sua frente...” - e assim por diante. Tal descrição jamais seria muito convincente, porque sempre soaria como uma interpretação com intenções puramente propagandísticas. E seria, também, extremamente prolixa - uma interminável análise psicológica. Em vez disso, resolvi dramatizar a cena:
Funcionário - Sente-se, por favor.
Candidato - Obrigado.
Funcionário - Vamos ver. Seu nome é...?
Candidato - John Smith.
Funcionário - E seu último emprego foi de...
Candidato - Torneiro mecânico.
Funcionário - Compreendo. (...e assim por diante)
Relacionamento
Quando esse pequeno diálogo é representado no espírito adequado, o tom de voz - a representação, a ação - transmite incomparavelmente mais do que as palavras que efetivamente são ditas. Na realidade, as palavras (o componente literário do fragmento dramático) são secundárias. A informação real transmitida pela pequena cena quando representada reside no relacionamento, na interação dos dois personagens, pelo modo como reagem um ao outro. Mesmo no rádio isso era comunicado apenas por meio do tom de voz. No palco, o modo de os olhares se encontrarem ou não, o modo pelo qual o funcionário pode indicar uma cadeira ao convidar o candidato a sentar-se, seriam igualmente significativos e importantes.
Nas páginas do roteiro, esse pequeno diálogo transmite apenas uma pequena fração do que a cena representada expressará. Isso ilustra a importância dos atores e diretores na arte do drama. E indica também o fato de que um dramaturgo realmente bom precisa de uma enorme habilidade para transmitir o clima dos gestos, do tom de voz que deseja de seus atores através dos diálogos que escreve. Tais considerações conduzem-nos, porém, a áreas muito mais técnicas e complexas. De momento, permaneçamos com os conceitos básicos.
Navalha
Nas artes, como na filosofia, o princípio da navalha de Occam continua a ter validade permanente - a expressão de pensamento mais econômica, a que consumir menos tempo, a mais elegante, será a mais próxima da verdade. Para expressar climas imponderáveis, tensões e simpatias ocultas, as sutilezas dos relacionamentos e da interação humanos, o drama é incomparavelmente o meio de expressão mais econômico.
Raciocinemos nos seguintes termos: um romancista tem de descrever o aspecto de seu personagem. Numa peça, a aparência e o aspecto do personagem são imediatamente transmitidos pelo corpo do ator, suas roupas e sua maquilagem. Os outros elementos visuais do drama, o quadro da ação, o ambiente no qual ela se desenrola podem, igualmente, ser instantaneamente comunicados pelos cenários, iluminação, marcações dos atores no palco - o mesmo se aplica ao cinema e ao teleteatro.
Estas são as considerações mais primárias. Muito mais profundo e sutil é o modo pelo qual o drama é capaz de operar simultaneamente em vários níveis. A literatura, o romance, o conto, o poema épico, operam, a cada momento, apenas segundo uma única dimensão. Sua narrativa é linear. Complexidades tais como a ironia e o double-take* estão naturalmente ao alcance dos escritos discursivos, mas têm que ser construídos mediante o acúmulo do panorama global pela adição sucessiva de elementos. E há um alto grau de abstração em qualquer história narrada de tal modo: o autor pode ser visto constantemente a trabalhar na seleção de seu material, a decidir-se a respeito do elemento a ser introduzido a cada etapa. O drama, por ser uma representação concreta de uma ação à medida que ela efetivamente se desenrola, é capaz de mostrar-nos vários aspectos simultâneos da mesma e também de transmitir, a um só tempo, vários níveis de ação e emoção.
Por exemplo: uma linha de diálogo como “Bom dia, meu querido amigo!” pode ser dita em grande variedade de tons de voz e expressões. Segundo esses tons, a platéia pode perguntar-se se a pessoa que disse tais palavras foi sincera, se usou-as com sarcasmo ou se não haveria nelas uma nota de hostilidade oculta. Num romance, o autor teria de dizer algo assim:
“Bom dia, meu querido amigo”- disse ele. Mas Jack teve a impressão de que ele não queria dizer exatamente aquilo. Estaria ele sendo sarcástico, perguntou-se, ou estaria reprimindo alguma hostilidade profundamente sentida...”
Subtexto
A forma dramática de expressão deixa o espectador livre para decidir por si mesmo a respeito do subtexto escondido por trás do texto ostensivo - em outras palavras, ele o coloca na mesma situação em que se encontra o personagem a quem são dirigidas aquelas palavras. E por isso mesmo permite que o espectador experimente diretamente a emoção do personagem, em vez de ter que aceitar uma simples descrição dele. Além do mais, essa necessidade de os espectadores decidirem por si mesmos como interpretar a ação acresce ao suspense com que a platéia acompanhará a história. Ao invés de serem informados a respeito de uma situação, como inevitavelmente acontece ao leitor de um romance ou conto, os espectadores do drama são efetivamente colocados dentro da situação em questão, sendo diretamente confrontados com ela.
De modo que podemos dizer que o drama é a forma mais concreta na qual a arte pode recriar situações e relacionamentos humanos. E essa sua natureza concreta deriva do fato de que, enquanto que qualquer outra narrativa de comunicação tende a relatar acontecimentos que se deram no passado e já estão agora terminados, a concretividade do drama acontece em um terreno presente: não então e lá, mas agora e aqui.
Exceção
Há uma aparente exceção a essa idéia: a técnica moderna do monólogo interior, no qual o romancista nos coloca dentro da mente de seu personagem e segue seus pensamentos à medida que ocorrem. Porém o próprio termo monólogo, que vem do drama, revela que o monólogo interior é, de fato, uma forma tão dramática quanto narrativa. Monólogos interiores são, essencialmente, drama; e portanto podem ser representados - como freqüentemente o são, particularmente no rádio. Um escritor como Beckett, cujas narrativas são, em sua maior parte, monólogos interiores, deve ser considerado, acima de tudo, como um notável escritor dramático, fato esse comprovado por seu imenso sucesso como escritor tanto para o palco como para o rádio.
Além de forçar o espectador a interpretar o que está acontecendo à sua frente em uma multiplicidade de níveis, fazendo com que ele seja obrigado a decidir se o tom de voz do personagem era amigável, ameaçador ou sarcártico, o drama tem todas as qualidades do mundo real, das situações reais que encontramos na vida - porém com uma diferença fundamental: na vida as situações são reais; no teatro - ou nas outras formas de drama (rádio, cinema, TV) - são apenas representação, faz-de-conta, jogo.
Ora, a diferença entre a realidade e o jogo dramático é que o que acontece na realidade é irreversível, enquanto que em uma peça, que é um jogo, é possível começar-se tudo de novo, da estaca zero. Uma peça é um simulacro da realidade. Isto, longe de fazer de uma peça um passatempo frívolo, na realidade sublinha a imensa importância de toda atividade lúdica para o bem-estar e desenvolvimento do homem.
Instinto
As crianças brincam para familiarizar-se com os esquemas de comportamento que terão de usar e vivenciar na vida, na realidade. Os filhotes de animais brincam para aprender a caçar, a fugir, a orientar-se. Toda atividade lúdica desse tipo é essencialmente dramática, porque consiste em mimese, em imitação de situações da vida real e de esquemas de comportamento. O instinto lúdico é uma das forças básicas da vida, essencial à sobrevivência do indivíduo tanto quando da espécie. De modo que o drama pode ser considerado como mais do que mero passatempo. Ele é profundamente ligado aos comportamentos básicos de nossa espécie.
É possível objetar que isso é verdade quando se fala do jogo das crianças e dos animais; mas pode-se dizer o mesmo a respeito de uma comédia de Noel Coward ou uma farsa da Broadway? Eu argumentaria que, por estranho que pareça, o caso é exatamente o mesmo, por mais indiretamente que seja, ou por mais que seja o número de diferenciações necessárias.
Encaremos o problema do seguinte modo: em seu jogo, as crianças experimentam e aprendem os papéis (notem a terminologia, que vem do teatro) que desempenharão na vida adulta. Boa parte dos debates atuais a respeito da igualdade para as mulheres, por exemplo, está ligada à demonstração de que as menininhas recebem uma espécie de lavagem cerebral, que as reduz a uma posição de inferioridade ao aprenderem um determinado tipo de comportamento feminino na infância, em grande parte por serem levadas a jogar (brincar) de modo diferente dos meninos. Se esse é o caso, é igualmente evidente que a sociedade continua a instruir (ou, se preferem, a aplicar lavagens cerebrais) seus membros nos diferentes papéis sociais que terão de desempenhar através de suas vidas. O drama é um dos mais poderosos instrumentos desse processo de instrução ou lavagem cerebral - os sociólogos chamam a isso o processo por meio do qual internalizam seus papéis sociais.
Códigos
As formas dramáticas de apresentação - e em nossa sociedade todo e qualquer indivíduo é submetido a elas diariamente por intermédio de veículos de comunicação de massa - são um dos principais instrumentos por meio dos quais a sociedade comunica a seus membros seus códigos de comportamento. Tal comunicação funciona tanto pelo estímulo à imitação quanto pela apresentação de exemplos de comportamento que devem ser evitados ou repudiados. Mas às vezes ocorrem casos graves de linhas cruzadas: o filme sobre gangsters, que foi concebido para demonstrar que o crime não compensa, pode, na verdade, demonstrar a um gangster em potencial como deve proceder na prática. Mas seja por estímulo ou repúdio, é pela atividade vicária do jogo (que é o que o drama representa, para o adulto) que muitos desses esquemas de comportamento são transmitidos, de forma positiva ou negativa.
A comédia de ambiente requintado à Noel Coward também transmite claramente esquemas de comportamento sob a forma de costumes, normas sociais e códigos sexuais exibidos; e mesmo a farsa de adultério, ao fazer com que se ria dos chocantes maus passos de cléricos encontrados em bordéis, também reforça códigos de comportamento. O riso é uma forma de liberação de ansiedades subconscientes. E a farsa trata das ansiedades nutridas por muita gente em torno de possíveis deslizes de comportamento, aos quais as pessoas podem ficar expostas por intermédio de vários tipos de tentação.
Mas além de tudo isso, o drama pode ser mais do que um instrumento por meio do qual a sociedade transmite a seus membros normas de comportamento. Ele pode também ser instrumento de reflexão, um processo cognitivo. Pois o drama não é apenas a mais concreta - isto é, a menos abstrata - imitação artística do comportamento humano real, mas também a forma mais concreta na qual podemos pensar a respeito de situações humanas. Quanto mais alto o nível de abstração, mais remoto da realidade humana se torna o pensamento. Uma coisa é argumentar que, por exemplo, a pena de morte possa ser eficaz ou não, e outra bem diversa traduzir esse conceito abstrato, que pode ser corroborado por estatísticas, em termos de realidade humana. Isto só poderemos fazer imaginando o caso de um ser humano que esteja envolvido com a pena de morte - e o melhor caminho para fazê-lo será escrever uma peça a respeito e representá-la.
Epidemias
Não é apenas por coincidência que as cúpulas pensantes que tentam elaborar planos de ação para as mais variadas contingências futuras, tais como epidemias ou guerras nucleares, o façam em termos de elaboração de cenários (roteiros cinematográficos) para a possível seqüência dos acontecimentos. Em outras palavras, eles traduzem suas estatísticas, seus dados de computador, para a forma dramática, para situações concretas que precisam ser representadas com a inclusão de todos os imponderáveis, tais como as reações psicológicas dos indivíduos que participam do processo decisório.
A maior parte do drama sério, desde as tragédias gregas até Samuel Beckett, compartilha dessa natureza. Trata-se de uma forma de filosofar, em termos não abstratos mas concretos; no jargão contemporâneo da filosofia, diríamos em termos existenciais. É significativo que um filósofo existencialista da importância de Jean-Paul Sartre se tenha sentido compelido a escrever peças, bem como romances. A forma dramática era o único método pelo qual ele poderia dar forma a algumas das implicações concretas de seu pensamento filosófico abstrato.
Bertolt Brecht, um marxista, também encarava o drama como um método científico, o teatro como um laboratório experimental concebido para se testar comportamentos humanos em certas circunstâncias dadas. “O que aconteceria se...?” é a premissa da maioria das peças dessa natureza. A maior parte dos problemas sociais dos últimos cem anos foram não só divulgados como também efetivamente investigados nas peças de escritores como Ibsen, Bernard Shaw ou Brecht; muitos problemas filosóficos profundos tiveram tratamento semelhante nas obras de Strindberg, Pirandello, Camus, Sartre e Beckett.
Porém - será possível objetar - em uma peça tais problemas são solucionados arbitrariamente, segundo os caprichos de um dramaturgo, enquanto que em um laboratório eles são testados objetivamente. Entretanto, estou convencido de que tal possibilidade existe igualmente no teatro; pois, também no teatro, há maneiras objetivas de se testar experiências de comportamento humano.
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A natureza do drama é o segundo capítulo do livro Uma anatomia do drama, de Martin Esslin (Editora Zahar, 1978, tradução de Barbara Heliodora)
* Não há expressão em português para esse recurso cênico em que A vê B, passa adiante o olhar e só então percebe quem é, voltando-se rápido; o mesmo recurso pode ser usado em relação a uma fala, só compreendida na “segunda tomada”. (N. da T.)
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quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009
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