quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

A grande aventura do ator,
segundo Stanislávski

Bernard Dort

O presente artigo foi extraído do livro
O Teatro e sua Realidade
(Editora Perspectiva, 1977, Coleção Debates)

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Conhecemos Stanislávski. É uma questão que não colocamos com suficiente freqüência. Para a maior parte dos homens de teatro francês, Stanislávski é uma espécie de santo, herói, sábio ou louco; basta citar religiosamente o seu nome em todas as ocasiões solenes e ficamos quites com ele. Em resumo, escamoteamos Stanislávski debaixo de seu mito (o que Copeau já reconhecia no prefácio que escreveu para Minha Vida na Arte: “Durante longos anos a lenda de Constantin Stanislávski brilhou para mim numa distância que me parecia inacessível”.1 Isto não aconteceu somente conosco, franceses, mas também com aqueles que, mais legitimamente, proclamam sua ligação com Stanislávski: norte-americanos e soviéticos.
Na URSS, depois de mantido sob suspeita durante os primeiros anos que se seguiram à Revolução de Outubro, Stanislávski foi reposto em seu pedestal e transformado, para o bem e para o mal, no temível “pai” do realismo socialista; nos Estados Unidos, ao contrário, tornou-se uma espécie de grande feiticeiro do teatro, uma espécie de minotauro, ao qual convinha sacrificar a cada ano, no templo adaptado do Actors Studio, alguns jovens escolhidos entre os melhores da tribo (aqueles que escapam a este sacrifício têm direito senão ao título de herói ao menos ao de star, e aos contratos dourados de Hollywood). O que é ainda uma maneira de se desembaraçar de Stanislávski.

Ambição
Mas então, como conhecer Stanislávski? É preciso confessar que não é fácil. Ele sem dúvida escreveu muito. Para Stanislávski, fazer teatro não era natural. Suas primeiras experiências como ator e encenador, tanto na Sociedade Moscovita de Arte e Literatura como no Teatro de Arte de Moscou, que fundou em 1898 com seu amigo Nemirovitch- Dantchenko, convenceram-no imediatamente: o teatro não é uma arte se não preencher a condição de questionar, incessantemente, seus próprios processos - caso contrário, cai na categoria de “um conjunto de efeitos convencionais” ou se degrada como “imitação pura e simples”. Convinha portanto acrescentar à prática uma reflexão sobre esta mesma prática. E também comunicar os resultados desta reflexão aos demais. Pois se é impossível suscitar o aparecimento de criadores, é possível e mesmo indispensável indicar aos homens de teatro, sobretudo aos atores, os caminhos através dos quais poderão atingir este “estado criador”, fora do qual não existe a arte do teatro.
Daí o grande projeto de Stanislávski, o mais ambicioso que um encenador jamais concebeu: redigir uma Suma que pudesse abranger totalmente sua experiência na realização e na pesquisa. Mas Stanislávski está longe de ter conseguido concretizar seu plano. Na verdade esta Suma permanece inacabada. Como assinala Nina Gourfinkel, a Suma deveria compreender ao menos oito volumes: O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo, O Trabalho do Ator Sobre a Personagem; A Passagem do Ator ao Estado Criador do Palco; A Arte de Representar; A Arte do Encenador; A Ópera e, como conclusão, A Arte Revolucionária, tudo acompanhado de um manual de exercícios: Treinamento e Disciplina.2 Ora, apenas o primeiro, O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo foi quase que inteiramente redigido por Stanislávski. O segundo, O Trabalho do Ator Sobre a Personagem ficou em notas, esboços, “fragmentos de um livro”, que acabaram sendo reunidos sob esta forma e somente bem mais tarde publicados. Os outros não foram escritos.

Inconvenientes
No caso da maioria dos textos escritos por homens de teatro, tal fato não teria grandes inconvenientes: em geral estes textos não passam de fragmentos rabiscados no ensejo de uma encenação ou pomposamente improvisados com o objetivo único de rivalizar com os literatos. No caso de Stanislávski, o fato do projeto ter ficado inacabado compromete o sentido dos textos que hoje nos são acessíveis. Eles se organizam segundo uma perspectiva de conjunto. Fazem parte de um Sistema e só valem enquanto partes dele. A ambição de Stanislávski era totalizante, como a dos grandes romancistas do século passado. Falta-nos o ponto essencial do conjunto stanislavskiano: esta visão unitária da criação teatral acabada como um organismo perfeitamente constituído que, do artificial, acede ao natural. Bem sei que cada etapa deste processo de criação apenas repete, em outro nível, a fase precedente - podemos assim inferir uma da outra - mas isto não impede que, por ausência de uma visão de conjunto, estejamos fora da possibilidade de apreciar o lugar que cada uma das partes, respectivamente, ocupa no conjunto do Sistema.
Além disso, o leitor francês ainda enfrentou outra dificuldade, que sem dúvida pesou bastante para o nosso desconhecimento de Stanislávski: seus escritos nos chegaram com considerável atraso e na maior desordem. É verdade que a autobiografia Minha Vida na Arte, escrita em 1923-1925, existe editada em francês desde 1934. Mas em seguida foi necessário esperar até 1958 para que surgisse o primeiro volume de O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo, com o título talvez demasiado geral de A Preparação do Ator 3, ao passo que A Encenação de Otelo 4, que lhe é bastante posterior, fora traduzido dez anos antes. A título de comparação, acrescentemos que An Actor Preparer (versão inglesa de A Preparação do Ator) apareceu nos Estados Unidos em 1936, ou seja, cerca de vinte anos antes e teve imediatamente a mais ampla difusão.
Mais ainda, e neste ponto é idêntica a situação na França e nos Estados Unidos, durante muito tempo A Preparação do Ator foi considerada a expressão completa da reflexão de Stanislávski sobre a arte do ator. Ignorou-se ou negligenciou-se o fato de que o volume na verdade era apenas a primeira parte de O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo: a parte onde Stanislávski trata do que denominava “o processo criador de reviver” (que, aliás, é o título exato da edição soviética desta obra). A segunda parte, A Construção da Personagem 5, teve seu texto em francês estabelecido por Charles Antonetti (a partir da edição inglesa de Elisabeth Hopgood, publicada nos EUA em 1949 com o título Building a Character): versão realizada com as exigências e os conhecimentos do psicólogo, homem de teatro e pedagogo que é Antonetti.

Encarnação
Ora, esse livro se não modifica radicalmente a imagem que se poderia ter (a partir da leitura de A Preparação do Ator) do ator segundo Stanislávski, ao menos a completa e enriquece de maneira decisiva. Sobretudo é um desmentido categórico às interpretações abusivas, oriundas de uma leitura ao mesmo tempo demasiado literária e parcial de A Preparação do Ator. Refiro-me principalmente à imagem de um Stanislávski preocupado apenas com “o instrumento psíquico interior” do ator, desprezando tudo aquilo que é forma e expressão exterior da personagem - imagem transformada em lei sob o nome de “Método” no Actors Studio, onde estudos e exercícios stanislavskianos muitas vezes se converteram em psicodrama. Aliás, desde 1934, quando Stella Adler – uma das atrizes do Group Theatre – visitou Paris, Stanislávski advertiu seus “discípulos” americanos contra o abuso do recurso exclusivo à “memória emotiva” e aos exercícios de “lembrança dos sentimentos”. Ora, por essencial que seja a “técnica interior” do ator, que lhe permite mobilizar o “eu” mais profundo em favor da personagem, isto ainda não é suficiente para que possa interpretar a personagem. É necessário ainda “encontrar uma forma física da personagem, correspondente à imagem interior que se faz dela, sem o que é impossível transmitir aos demais a própria vida desta imagem interior”.
É este o objetivo de A Construção da Personagem: não se trata mais de apenas chegar à vida interior da personagem, ou então - para empregar termos mais exatos - de pôr o intérprete em condições de colocar a sua própria vida afetiva a serviço da vida afetiva da personagem (o ator deverá então “sentir sua própria vida no interior da vida da personagem e a vida da personagem como idêntica à sua prórpia vida”), mas sim de dar uma forma cênica visível a esta criação, ou seja, de encarnar a personagem no palco, em vez de contentar-se em revivê-la. Mesmo que Stanislávski não mude nada nas grandes linhas de seu Sistema, este sofre um desvio: não mais negligencia os exercícios de dicção, de respiração, de expressão corporal, de canto e de ritmo (que antes parecia excluir como processos que apenas refaziam o que chamava com desdém de “a escola da representação”). Esses exercícios agora passam a ser integrados. É certo que essas técnicas não valem por si mesmas: o falar bem, o andar bem etc. são e continuam estranhos a Stanislávski. Mas também constituem meios para atingir o objetivo do processo criador do ator: o nascimento natural da personagem.

Jogo
Paralelamente, descobrimos como que um jogo no interior do Sistema: este não se fundamente numa rigorosa e por assim dizer hermética identificação entre o ator e a personagem. Stanislávski nos sugere: o ator elabora a personagem – com sua própria carne, seus próprios sentimentos e toda a sua alma – mas não se transforma integralmente na personagem. A própria sinceridade com a qual o ator se dá à personagem, não exclui o controle e a crítica de si mesmo: “Uma metade da alma do ator é absorvida pelo superobjetivo, pela linha de ação, pelo subtexto, pelas imagens interiores, elementos que concorrem para construir o estado de criação ativa. Mas a outra metade continua a funcionar segundo os métodos que lhe ensinei. Quando um ator interpreta, ele está dividido. É esta dupla existência, este equilíbrio entre a vida e a interpretação dramática que condiciona toda a obra de arte”.6
Sem dúvida o “reviver” e a “encarnação” não possuem senão um único e mesmo objetivo: dar ao ator a possibilidade de criar naturalmente uma personagem fictícia. Mas em A Construção da Personagem se esboça já a evolução que conduzirá Stanislávski, se não a modificar totalmente o seu Sistema, ao menos a proceder a uma espécie de inversão dos termos do mesmo. A encarnação passa então para o primeiro plano; não é mais concebida como o necessário complemento ao “estado interior” do intérprete; é a própria condição que o ator deve preencher para atingir este resultado. Será o “método das ações físicas”. Stanislávski dedicou os últimos anos de sua vida a precisar esta teoria, principalmente quando trabalhava sobre o teatro lírico.
Desta vez a ênfase é dada às tarefas propriamente físicas do ator, à “vida corporal do papel”, pois será através destas, literalmente apoiando-se nelas, que se realizará a criação da personagem. Na cena, a “vida espiritual do papel” não surge do nada: existe em relação estreita com a vida corporal “que constitui o terreno favorável” para seu desenvolvimento. O corpo, a realização de necessidades estritamente materiais, são o ponto de partida; anteriormente se fez mesmo tábua rasa do texto e de toda idéia de interpretação preconcebida.

Perspectiva
Em A Construção da Personagem, Stanislávski ainda não chegou a este ponto. Mas o resumo que faz de seu ensinamento, no fim da obra (ver capítulo XV: Perspectiva do Caminho Percorrido) deixa uma impressão bem diferente do que se impunha na conclusão de A Preparação do Ator. A perspectiva mudou: ao lado da maneira de viver um papel, Stanislávski concede um lugar, igual, à maneira de encarná-lo, de mostrá-lo. O Sistema não está mais fechado em si mesmo como um círculo mágico ao qual o ator remeteria ao papel e o papel ao ator. Ele não mais desconhece o espaço físico próprio do palco – o espaço aberto para uma sala, para um público. Inscreve o processo de “reviver” num contexto: o contexto de uma comunicação (de olhar, participação e julgamento) entre uma personagem e o público; o contexto da produção, pelo ator, de uma personagem viva e compreensível para este público.
Diante dos espectadores, vida interior e vida exterior da personagem se sustentam mutuamente: “Quanto mais a passagem da forma interior para a forma exterior for imediata, espontânea, viva, precisa, mais a compreensão da vida interior da personagem que vocês interpretam será, para o público, justa, ampla e plena. É para atingir este resultado que as peças foram escritas e que o teatro existe”.7 A identificação, encarnação e representação são partes ligadas. Longe de ser apenas um problema de sentimento entre o ator e sua personagem, o teatro solicita também o olhar do espectador, sua emoção e seu julgamento.

Romance
Detenhamo-nos agora diante de uma última dificuldade: a que se refere à forma semi-romanceada conferida por Stanislávski aos dois volumes de O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo. Com efeito, em vez de nos entregar diretamente suas reflexões ou de nos propor um manual de exercícios práticos, recorreu a uma fabulação: é através da narração ou de reflexões um tanto ingênuas de Kostya, um aprendiz de ator que freqüenta o curso do professor Tortsov, que, em A Preparação do Ator e em A Construção da Personagem, o ensinamento de Stanislávski-Tortsov nos é entregue. Que Stanislávski escreva com repetições tediosas e com falta de habilidade, que às vezes, em sua preocupação de contar a história de Kostya e seus companheiros, de torná-la mais plausível e mais exemplar, tenha sido levado a introduzir na obra várias cenas inúteis ou então comentar seu próprio ensinamento com uma aparente falta de modéstia...isto é bastante evidente.
Já foi assinalado e lamentado: “Stanislávski teve a deplorável idéia de redigir O Trabalho do Ator sob a forma romanceada de um diário íntimo de um aluno de escola de arte dramática, esperando assim melhor mostrar as hesitações dos principiantes, assim como os diferentes tipos e temperamentos dos alunos. Infelizmente isto o incita a introduzir mil detalhes cansativos, nos quais se perdem as observações justas, preciosas, e os exercícios que servem como ilustrações”.8 E muitas vezes sentimos a tentação de saltar esta ou aquela página, ou mesmo reescrever para nosso próprio uso, em vez deste semi-romance, um tratado no qual os comentários não mais corrompam os exercícios.

Sentido
Entretanto, a forma adotada por Stanislávski é menos incongruente do que parece à primeira vista: ela possui um sentido, é a expressão de seu próprio andamento e nos remete à sua ambição mais profunda. Não tenhamos dúvida de que Stanislávski tinha condições de escrever seja uma coletânea de aforismos sobre o teatro, seja um guia destinado às escolas de interpretação. Mas não era este seu objetivo. Já sublinhei: o que desejava escrever era efetivamente uma Suma teatral, isto é, não a reunião de uma série de preceitos ou de receitas, mas um livro que, segundo a definição de Suma que consta no Littré, “trata resumidamente de todas as partes de uma ciência” (aqui, de uma arte). E se experimentou a necessidade de esboçar duas personagens, não foi somente para tornar seu livro mais “vivo”, mas ainda para extrair daí toda a evolução de sua reflexão e de sua prática – pois estas duas personagens são na verdade duas imagens do próprio Stanislávski: um, Tortsov, é Stanislávski no momento em que escreve; o outro, Kostya, é o jovem Stanislávski, aquele que, ator amador no Círculo Alexeiev ou na Sociedade Moscovita de Arte e Literatura e mesmo fundador do Teatro de Arte de Moscou, começava a interrogar-se sobre sua arte ao mesmo tempo que a transformava fundamentalmente.
Com efeito, para ele o teatro não é um mistério que convém celebrar a golpes de fórmulas sibilinas, nem uma técnica cujas regras poderíamos fixar de uma vez por todas. É uma experiência contínua, uma educação que não acaba nunca. Uma formação do próprio homem. Assim, o que Stanislávski quis escrever foi o que ele mesmo chamava um “romance pedagógico”- um destes bildungs-romance tão caros aos escritores alemães do século XIX (e um de seus modelos, o Wilhelm Meister, de Goethe, compreende justamente numerosos episódios dedicados à vida de uma companhia teatral). O romance da chegada do ator, e, mais amplamente ainda, do homem de teatro, à sua verdade – à verdade do teatro e à sua verdade confundidas – através dos artifícios e das falsas aparências da cena.
Certamente, a questão inicial é esta: como ser verdadeiro quando tudo no teatro é artificial, desde a obrigação de interpretar uma outra personagem que não a si mesmo e pronunciar palavras escritas por uma terceira pessoa, até a necessidade de se entregar a esta espécie de uso do falso ou de substituição de personalidade não na intimidade, entre a própria pessoa e seu espelho, mas diante de um público? A Preparação do Ator e A Construção da Personagem nos descrevem a conquista desta verdade – a exemplo de Wilhelm Meister narrando como Wilhelm tem acesso, através das ilusões (inclusive a do teatro) e das formas da vida social, ao domínio de si.

Educação
Seria preciso retomar nesta perspectiva do “romance de educação” o que Stanislávski diz de seu Sistema (ver principalmente o capítulo XVI e o último: Algumas Conclusões a Respeito da Arte do Ator). Contentemo-nos em notar que efetivamente existe um sistema, pois se trata de encontrar um método que, ao mesmo tempo, possa abranger completamente a atividade teatral e permitir regularizá-la. Mas que este Sistema “não é como uma roupa feita com que podemos passear assim que a vestimos”; não possui valor em si, não proclama mandamentos estéticos absolutos. Não existe senão para ser superado, para ser negado enquanto conjunto de regras, de exercícios etc. Isto é, para permitir ao ator chegar à sua liberdade e à sua verdade. Estabelece um processo de educação, não um código estético. Stanislávski não se cansa de sublinhar “o caráter progressivo de seu treinamento”. “É todo um estilo de vida no qual é preciso acreditar e se educar durante anos”.9
Compreender-se-á assim que O Trabalho do Ator Sobre Si Mesmo não poderia ter a forma de um manual, por mais enxuto que fosse, sobre a formação e a profissão do ator: é bem mais que isso, é o livro da liberação do ator pelo domínio de técnicas de sua profissão, o romance pedagógico da transformação do ator que representa sem as limitações de seus instrumentos. E isto não através de alguma misteriosa e repentina metamorfose, mas através do próprio aperfeiçoamento deste instrumento, pela técnica consciente. O Sistema é o meio para o ator passar da condição de indivíduo absolutamente alienado por seu trabalho à condição de homem inteiro – mais homem mesmo que os demais homens, pois, nesta operação, adquire um poder sobre aquilo que Stanislávski denomina o “subconsciente”.

Valor
Ainda hoje uma tal reflexão sobre a prática teatral conserva, além das incertezas da formulação (principalmente no que toca às noções de ordem psicanalítica), um valor fundamental. É certo que os exercícios que Stanislávski propõe aos atores asseguram a fecundidade do ensinamento de numerosas escolas: se é possível criticá-lo por ter deformado o stanislavskismo, o Actors Studio, mais que qualquer outro curso de formação de ator, contribui para a renovação das companhais e grupos teatrais norte-americanos. E não resta a menor dúvida de que a aparição recente na Inglaterra de numerosos jovens atores de talento, dotados para interpretar Shakespeare tanto quando para interpretar modernos dramaturgos neonaturalistas, é resultado da aplicação de métodos stanislavskianos no teatro anlgo saxão (ao contrário, justamente, do que acontece na França).
Mas sua lição é ainda mais ampla: denunciando como falsa a opinião habitualmente admitida, segundo a qual o trabalho do ator não seria “regido por leis, técnicas, teorias e muito menos por um sistema” (“os atores curvam-se sob seu gênio entre aspas”, diz Tortsov, não sem ironia 10), afirma a inteligibilidade deste trabalho. Converte-o numa verdadeira produção humana. Através dele, longe de submeter o ator, torna-o dono de sua própria atividade. Ao mesmo tempo não submete esta atividade a leis, técnicas, teorias ou sistemas: estes últimos, para o ator, não constituem senão meios de atingir o estado criador por excelência, aquele no qual ele empresta sua própria vida à personagem, o ator se produz livremente a si mesmo: como escreveu Louis Jouvet, “encontrando o sentido de sua profissão, pode então dar um sentido à sua vida”.11 (Jouvet comenta: “Até aqui o ator quis representar para ser outro ou mais que ele mesmo. Agora representa para ser melhor. Sente que a peça que interpreta não é um estado de exercício, não apenas um meio de educação ou sucesso pessoal, mas o próprio objetivo de sua vida”12). O ator ao qual “o sistema ajudou a restaurar as leis naturais confundidas pelo fato de o ator ser obrigado a trabalhar diante de um público” pode, assim, reencontrar “o estado criador de um ser humano normal”13.
O teatro não é nem uma mágica nem um exercício de cães amestrados à disposição do chicote do encenador-domador. O ator não é nem um possesso ignorante de seus próprios poderes nem um escravo que vendeu o corpo, o rosto e até mesmo a alma (ou a sombra) ao encenador para que este os mostre ao público. Aqui Stanislávski e Brecht, o outro grande teórico moderno que procurou pensar integralmente o “trabalho” do teatro coincidem. Ambos, a despeito dos caminhos bem diferentes que seguiram, nos propõe a visão (não é também, um pouco, uma utopia?) de um teatro plenamente adulto – entendamos por isto uma atividade criadora responsável onde reproduzindo imagens e sentimentos, o homem se faz também a si mesmo. A Suma inacabada de Stanislávski é exatamente o romance desta grande aventura.

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1. Constantin Stanislávski, Ma vie dans l’art, tradução de Nina Gourfinkel e Léon Chancerel, prefácio de Jacques Copeau, 1934 - segunda edição revista e corrigida, paris, Librairie Théâtrale, 1950.
2. Nina Gourfinkel, Constantin Stanislávski, coleção Le théâtre et les jours 5, Paris, L’Arche, 1951, p. 183.
3. Constantin Stanislávski, La formation de lacteur, traduzido do inglês por Elisabeth Janvier, introdução de Jean Villar, paris, Olivier Perrin Editor, 6.d.
4. Shakespeare, Othello - mise en scène et commentaires de Constantin Stanislávski, traduzido do russo por Nina Gourfinkel, prefácio de Pierre-Aimé Touchard, coleção Mise en scène, Paris, Le Seuil, 1948.
5. Constantin Stanislávski, La construction du personnage, tradução de Charles Antonetti, prefácio de Bernard Dort, Paris, Olivier Perrin Editor, 1966.
6. Constantin Stanislávski, La construction du personnage, op. cit, p. 181.
7. Constantin Stanislávski, La construction du personnage, op. cit, p. 294.
8. Nina Gourfinkel na obra, já citada, dedicada a Stanislávski, p. 185
9. Constantin Stanislávski, La construction du personnage, op. cit, p. 302.
10. Constantin Stanislávski, La construction du personnage, op. cit, p. 304.
11. Louis Jouvet, Témoignages sur le théâtre, Bibliothèque d’Esthétique, Paris, Flammarion, 1952, p. 227.
12. Constantin Stanislávski, La construction du personnage, op. cit, p. 301.

* O francês Bernard Dort é crítico e ensaísta.

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