Teatro/CRÍTICA
“O estrangeiro”
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Obra-prima em versão imperdível
Lionel Fischer
“A minha mãe morreu hoje. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: ‘Mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames’. Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem”. Assim começa aquele que muitos consideram como o melhor romance de Albert Camus (1913-1960), “O estrangeiro”, que agora chega à cena (Espaço Sesc) com adaptação de Morten Kirkskov, tradução de Liane Lazoski, direção de Vera Holtz e Guilherme Leme, e interpretação deste último.
De fato, trata-se de uma obra extraordinária, protagonizada por um homem (Meursault) apagado, modesto, que ama a vida nas suas facilidades fáceis, não sentindo nenhum dever para com a sociedade onde não tem qualquer papel, e tanto mais espontaneamente silencioso quanto é certo que pouco tem a dizer. Em resumo: ele é a materialização da simplicidade – ou da insignificância. Mas algo o distingue de todos: a sua inaptidão profunda para a mentira, o que lhe confere grandeza e, ao mesmo tempo, acarretará sua perda.
A narrativa se apóia em três momentos. No primeiro, Mersault vela o cadáver da mãe, fuma, toma café; e no dia seguinte, não chora no enterro. No segundo, em um incidente para o qual não encontra explicação – e nem julga possível haver uma explicação seja para o incidente como também para muitas outras coisas – mata um árabe a tiros de revólver – já no primeiro disparo, o árabe tomba morto, mas Mersault lhe dá ainda mais quatro tiros. E finalmente, é julgado por seu crime e condenado à morte.
E é justamente neste terceiro momento que reside o essencial. Na realidade, Mersault não é condenado exatamente por seu crime, mas por negar-se a se comportar de acordo com as normas vigentes, por recusar-se terminantemente a usar a máscara da hipocrisia e assim representar o papel de cidadão em sintonia com a sociedade em que vive. Em resumo: Mersault morre não por ter matado alguém, mas por não haver chorado no enterro de sua mãe, este sim um crime realmente intolerável... – qualquer sociedade consegue conviver razoavelmente com algumas diferenças, mas não com um “estrangeiro” aos seus valores essenciais.
Apoiados em uma adaptação impecável, que consegue condensar em uma hora de espetáculo toda a densidade do romance, e em irretocável tradução, os diretores criaram uma montagem irrepreensível sob todos os pontos de vista, cabendo ressaltar a austeridade e secura das marcações, todas elas voltadas para explicitar o mais possível os principais conteúdos e idéias do autor.
Com relação a Guilherme Leme, este exibe performance notável, alternando momentos de contenção (a maioria) com alguns poucos em que o personagem expõe sua perplexidade e revolta de forma mais incisiva. Trata-se, sem dúvida, de um trabalho de ator que merece ser aplaudido sem restrições, posto que construído a partir de escolhas plenas de inteligência e sensibilidade.
No que concerne ao restante da equipe técnica, destacamos com entusiasmo a refinada iluminação de Maneco Quinderé, que através de alterações sutis consegue enfatizar todos os climas emocionais em jogo. Também merecem aplausos a cenografia de Aurora Campos, a trilha e música incidental de Marcelo H, a preparação vocal de Maria Silvia Siqueira Campos e a preparação corporal de Miwa Yanagizawa.
O ESTRANGEIRO – Texto de Albert Camus. Adaptação de Morten Kirkskov. Tradução de Liane Lazoski. Direção de Vera Holtz e Guilherme Leme. Com Guilherme Leme. Espaço Sesc. Quinta e domingo, 20h. Sexta e sábado, 21h30.
domingo, 15 de fevereiro de 2009
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