segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Verborragia,
Reflexos e
Passado

por Lionel Fischer


Em seus quase 50 anos de magistério, Maria Clara Machado sempre fez questão de alertar seus alunos para o perigo da “verborragia”. O que vem a ser isto? Trata-se, simplesmente, de um mecanismo inconsciente de defesa: ao invés de tentar sentir as emoções de cada situação proposta, o aluno pouco experiente busca camuflar seu embaraço e compreensível timidez despejando sobre a cena uma torrente de palavras. Tal artifício, ao menos na fase inicial de aprendizado, chega a ser quase inevitável. Mas converte-se em problema quando o aluno, já tendo adquirido alguma prática, ainda insiste no mesmo mecanismo. Aí algumas providências precisam ser tomadas. Por quê?
Por uma razão muito simples: as palavras (sobretudo em excesso) nem sempre podem revelar todas as emoções em causa. Elas são um dos recursos do ator, mas não o único - há que se levar em conta o potencial expressivo do corpo, do gestual, de uma pausa que pode eventualmente dizer muito mais do que uma infinidade de palavras etc. Portanto, todo aluno de teatro - de qualquer nível - deve prestar muita atenção ao que diz em cena durante uma improvisação. Deve procurar lançar mão somente das palavras indispensáveis, sem jamais descuidar-se dos demais recursos que têm à disposição. Mas como descobrir as tais “palavras indispensáveis”?
É óbvio que seria impossível fazer aqui uma lista prévia, pois tudo depende do contexto em que se dá a ação. Mas talvez possamos prestar algum tipo de auxílio neste sentido através de um exercício que, aparentemente inviável, produz resultados surpreendentes, desde que realizado com adequado grau de concentração.

Limite de Palavras
(Exercício)

Vamos imaginar a seguinte situação: um casal se separando. A decisão já foi tomada, a mulher está na sala e vê o marido recolher seus últimos pertences, que vai colocando numa mala. Ambos poderiam permanecer em silêncio, mas aí eclodem inesperadamente mágoas, queixas, mútuas acusações, enfim, coisas típicas de uma ruptura amorosa. Pois bem: a proposta consiste na obrigatoriedade de cada um dos atores só utilizar no máximo quatro palavras por frase. Em seguida, uma outra dupla faz a mesma cena com um limite de três palavras. E assim até chegarmos a uma única palavra de cada vez.
Parece impossível, mas esse esforço em busca das palavras essenciais - capazes de traduzir de forma visceral as emoções do momento - acabará se revelando um excelente antídoto contra a verborragia - na dúvida, imagine esta cena sendo feita de forma convencional por alunos pouco experientes: não é verdade que o mais provável é que tudo acabasse num falatório insuportável?

Reação Instantânea

Outro aspecto que nos parece fundamental no processo de aprendizado teatral diz respeito à capacidade de reagir rapidamente tanto a estímulos como a eventuais imprevistos, como um branco em cena, uma deixa que não é dada ou vem no tempo errado, a constatação de que um objeto importante não está no lugar combinado etc. Mas veja bem: essa capacidade de reação imediata não significa que o ator deve se condicionar a agir sem pensar, automaticamente, como se fosse um robô. Em absoluto: quer dizer apenas que, em dadas circunstâncias, torna-se indispensável uma resposta instantânea, física e/ou vocal, capaz de dar um novo rumo a uma improvisação, salvar uma cena apresentada para uma platéia ou até mesmo uma vida em perigo! - como no exemplo que damos a seguir para ilustrar com clareza nossos objetivos.
Imagine que você vem andando por uma viela escura e de repente salta um sujeito à sua frente com uma faca, com intenções obviamente sinistras. Pois bem: você pensa e corre, ou você corre e depois pensa? Se você optar pela primeira alternativa, o mais provável é que seu pensamento seja mais lento do que a facada iminente - e aí você morre, antes de ter tido tempo de correr. Já no segundo caso, ao reagir instintivamente, por reflexo, sua chance de escapar aumenta muito, pois o fascínora certamente não poderia esperar uma reação tão rápida e surpreendente, já que sua expectativa era de que você ficasse paralisado de medo.
E agora, supondo que você já esteja razoavelmente convencido da necessidade de apurar seus reflexos, vamos esquecer becos, facas e fascínoras e trabalhar o seguinte exercício:

Bombardeio Circular
(Exercício)

Um grupo de uns 10 ou 12 alunos faz um círculo em torno de alguém. A pessoa que fica no centro deve reagir imediatamente e com uma frase curta às ofensas que lhe são dirigidas, sucessivamente e o mais rápido possível, pelos integrantes da roda - essas ofensas devem se limitar a uma única palavra, como idiota, ladrão, cínico etc. A cada ofensa, portanto, corresponde uma resposta.
Quando chegar a vez do primeiro que ofendeu, este agora parte para o elogio - inteligente, sensível, gostosa etc., obedecendo-se ao mesmo mecanismo. Finalmente, e sem interrupção, o primeiro que ofendeu - e mais adiante deu início aos elogios - diz uma palavra numa língua incompreensível, com os demais agindo da mesma forma.
Neste caso, o aluno do centro reagirá (sempre com uma fala curta, em português) em função da entonação utilizada pelos integrantes do grupo, como se tivesse entendido perfeitamente o que lhe é dito - esta última variante costuma produzir resultados muito engraçados, pois nem sempre a resposta corresponde à intenção daquele que falou numa língua estranha.

O que aconteceu antes?

Toda peça que obedece a uma estrutura narrativa convencional (com os fatos se sucedendo em ordem cronológica) exibe a grosso modo o seguinte esquema: apresentação dos personagens, definição do contexto em que atuam, exposição dos principais conflitos, exacerbamento dos mesmos, címax e desfecho- este último pressupõe a resolução dos temas conflitantes. Mas quando se trabalha uma cena isolada - e sobretudo quando desconhecemos a totalidade da narrativa -, é muito importante imaginar as circunstâncias que levaram os personagens àquele lugar específico e a estabelecer determinadas relações. Ou seja: o que aconteceu antes - fora de cena! - não deve ser desprezado, ao contrário, deve ser imaginado pelos atores, que assim atuarão a partir de uma base mais sólida.
Vamos supor a seguinte situação: um texto curto - ou uma improvisação - que tenha como ambiente um restaurante e por objetivo exibir os conflitos de um jovem casal de namorados, digamos, Paula e Roberto. Eles combinaram se encontrar porque sabem que precisam aparar algumas arestas que estariam pondo em risco o prosseguimento do namoro. É claro que o diálogo vai nos mostrar as razões do mútuo descontentamento, mas certamente não nos dirá como estariam Paula e Roberto nos momentos que antecedem à cena, o estado de espírito de cada um, o grau de insegurança, a ansiedade ante a perspectiva de um rompimento etc. Assim, diante de um texto ou improvisação dessa natureza, um exercício de aquecimento (de preferência sem palavras) pode ajudar os dois intérpretes a iniciar a cena:

Aquecendo o encontro
(Exercício)

Isolados em cada uma das extremidades do palco, Paula e Roberto estão acabando de se vestir para o encontro - ajeitando o cabelo, colocando ou não perfume, retocando a maquiagem, olhando-se no espelho com atenção ou indiferença etc. Ou seja: a forma como ultimam os preparativos deve revelar o grau de interesse e expectativa de cada um - se Paula, por exemplo, acredita que seu poder de sedução pode ser fundamental, ela certamente tentará sair de casa o mais linda possível; se, ao contrário, já não alimenta maiores esperanças de prosseguir namorando Paulo, dará pouca importância à sua aparência, o mesmo mecanismo - com infinitas variantes - podendo ocorrer com ele. Ou seja: o sucesso de uma cena isolada ou de uma improvisação não depende exclusivamente do que é dito e feito na hora, mas também da compreensão de tudo que veio antes - é claro que nem sempre as circunstâncias permitem esse tipo de aquecimento, mas sempre que possível é recomendável fazê-lo.

Voltando a fita
(Exercício)

No exercício anterior, sugerimos uma possibilidade de aquecimento para uma cena a ser feita em seguida. Agora, partimos de um fato consumado e vamos tentar justificá-lo, criando uma espécie de enredo de trás para a frente.
O trabalho envolve seis alunos. Dois deles - sem o conhecimento dos demais - fazem uma cena de no máximo 30 segundos, centrada na resolução de um conflito. Por exemplo: Bernardo hospeda em sua casa um amigo de infância, Antonio, que passa por um momento difícil e não tem onde ficar. Mas embora goste do amigo, Bernardo já a algum tempo vem se sentindo incomodado por algumas atitudes de Antonio - como, por exemplo, usar suas roupas, mesmo que proibido de fazê-lo. Uma noite, ao chegar em casa inesperadamente - só deveria voltar no dia seguinte -, Bernardo surpreende Antonio no seu quarto, diante do espelho, vestindo um terno novo que ele ainda nem usara. Bernardo perde de vez a paciência, não aceita as justificativas do amigo e o expulsa de casa, ameaçando mesmo agredí-lo fisicamente. No segundo anterior à agressão, a cena congela.
Em seguida, dois outros atores ilustram a passagem em que Bernardo mostra ao amigo a necessidade de se manter uma convivência respeitosa, o que inclui não se apropriar de coisas que pertençam ao outro, entre outros possíveis fatos a serem mencionados - essa passagem já indica que algo não vai bem entre ambos e pode durar em torno de dois minutos. A cena congela no ponto em que a conversa ameaça descambar para um conflito mais sério.
Finalmente, a terceira dupla faz o momento em que Bernardo acolhe o amigo em sua casa, dá atenção aos seus problemas e se dispõe a ajudá-lo, tudo levando a crer que a convivência entre ambos não terá maiores problemas - essa passagem pode durar uns três minutos e serve sobretudo para que a platéia conheça o drama do que pede, a generosidade do que acolhe e o grau de amizade entre os dois personagens. A cena também termina com os atores congelando.
A finalidade deste exercício é estimular as duplas que sucedem à primeira a construir situações - sem nenhum tempo de preparação! - que justifiquem o que já foi visto, ou seja, as conseqüências geradas têm que ser fruto de causas verossímeis. No fundo, é como se fosse a investigação de um crime, em que se parte de um fato consumado e se tenta descobrir aquilo que lhe deu origem. É também interessante experimentar a seqüência em sua cronologia natural, uma vez concluído o exercício proposto, que pode ser feita pelos seis atores ou por apenas uma dupla.
(Artigo publicado na revista Cadernos de Teatro nº 157)

* * *

Um comentário:

  1. Acredito que conheço um texo que corrobora com a colocação de Maria Clara Machado. Segue aí:

    " MEU PAI E A CARROÇA

    Certa manhã, meu pai, muito sábio, convidou-me a dar um passeio no bosque e eu aceitei com prazer. Ele se deteve numa clareira e, depois
    de um pequeno silêncio, me perguntou:
    - Além do cantar dos pássaros, você está ouvindo mais alguma coisa?
    Apurei os ouvidos alguns segundos e respondi:
    - Estou ouvindo um barulho de carroça.
    - Isso mesmo, e de uma carroça vazia...
    Perguntei-lhe, então:
    - Como o senhor sabe que a carroça está vazia, se ainda não a vimos?
    - Ora - respondeu ele - é muito fácil saber se uma carroça está vazia por causa do barulho. Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho que ela faz.
    Tornei-me adulto, e até hoje, quando vejo uma pessoa falando demais, tratando o próximo com grossura, prepotente, interrompendo a conversa dos outros ou querendo demonstrar que é a dona da verdade, tenho a impressão de ouvir a voz do meu pai, dizendo:

    "Quanto mais vazia a carroça, maior é o barulho que ela faz..."

    Podemos assim traduzir: quanto menos sentimento (emoções) mais palavras se utiliza.

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