Miscelânea III:
‘Não vejo uma linha divisória
entre imaginação e realidade’
por Federico Fellini
Extraído do livro Fellini por Fellini (L&PM Editores, 1983), o presente artigo – traduzido por Zilá Bernd – oferece uma bela amostra do pensamento daquele que muitos consideram o mais ousado e criativo cineasta do século XX, cujas reflexões certamente serão muito úteis a você que estuda ou faz teatro.
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Terapêutico
Não sou um autor do tipo “terapêutico”; em meus filmes não sugiro soluções, métodos, não proponho ideologias, limito-me a ser testemunha do que me acontece, a interpretar e expressar a realidade que me rodeia. Se através de meus filmes, quer dizer, reconhecendo-se neles, os espectadores alcançam uma plena consciência de si mesmos, supõe-se ter realizado esta condição de lúcida separação de si mesmos que é essencial para poder continuar fazendo escolhas, realizar modificações e transformações.
Chamas
Meus filmes não possuem o que se chama cena final. A história nunca chega a sua conclusão. Por quê? Creio que isto depende do que eu faço com meus personagens (é difícil explicar) - uma espécie de “fio condutor”; são como chamas que, sem mudança, exprimem do início ao fim, um único sentimento do autor. Eles não podem evoluir, e isto também por uma outra razão. Não tenho a intenção de ser moralista, mas considero que um filme é mais moralizante quando não oferece ao espectador a solução encontrada pelo personagem cuja história estamos contando.
Na realidade, o espectador que acaba de ver um personagem resolver seus problemas, ou tornar-se bom quando antes era mau, encontra-se em uma situação muito cômoda. Ele dirá tranqüilamente: “Só me resta continuar a ser o crápula que eu sou, a enganar minha mulher, a trair meus amigos, pois, em um dado momento, como nos filmes, a boa solução aparecerá...”.
Meus filmes, ao contrário, dão aos espectadores uma responsabilidade muito específica. Eles terão, por exemplo, que decidir qual será o fim de Cabíria. A sorte de Cabíria está nas mãos de cada um de nós. Se o filme nos emocionou, nos perturbou, devemos imediatamente, desde o primeiro encontro com nossos amigos, ou com nossa mulher (porque qualquer um pode ser Cabíria, isto é, uma vítima), devemos começar a manter relações novas com nosso próximo. Se filmes como I Vitelloni, La Strada, Il Bidone, deixam no espectador esta emoção misturada com um leve mal-estar, penso que atingiram seu objetivo.
Sinto e posso mesmo afirmar hoje, sem hesitação, que todas as histórias que imagino são para representar uma inquietação, um desconforto, um estado de fricção nas relações que deveriam ser normais entre as pessoas. Definitivamente, não quero dizer, com meus filmes, nada a não ser que, com maior ou menor obstinação, deve haver uma maneira de melhorar as relações entre os homens.
Se eu fosse político, para explicar isto, faria reuniões, ou me inscreveria em um partido: ou ainda, iria descalço, dançar nas praças públicas. Se eu tivesse encontrado uma solução e se fosse capaz de expô-la de boa fé e convincentemente, é claro, não seria contador de fábulas nem cineasta.
Feiúra
Com boas intenções, com sentimentos honestos, com uma fé apaixonada nos próprios ideais, sem dúvida pode fazer-se uma bela política, ou uma fecunda obra social – coisas talvez mais úteis do que o cinema – mas não necessariamente bons filmes. E, no fundo, não há nada mais feio, e penoso, principalmente por ser inútil e ineficaz, do que um filme político de má qualidade.
Aversão
O engajamento, na minha opinião, impede o desenvolvimento do indivíduo. Meu “antifascismo” é de ordem biológica. Jamais poderia esquecer o isolamento no qual a Itália fechou-se durante vinte anos. Hoje sinto uma profunda aversão – sobre este ponto sou muito vulnerável – por todas as idéias que podem traduzir-se em fórmulas. Engajei-me no desengajamento. Adoro engajar-me nas coisas frívolas. De fato, engajo-me a fundo em tudo o que faço.
Infantil
Sou contra as pessoas e as coisas que tendem a definir-se de modo muito preciso. A palavra “engajado” me irrita. Então, reajo de modo infantil e exagerado insurgindo-me contra os que fazem profissão de engajamento. Vocês sabem, os que têm mais de 45 anos hoje, foram educados à sombra do fascismo e da Igreja. Durante toda a minha infância ouvi falar em termos de dever. De engajamento idealizado. Então, quando ouço os jovens de hoje propor e desenvolver o mesmo gênero de bobagens que Mussolini e os bispos, fico realmente louco de raiva. Vejo nisto uma ameaça à liberdade real. Isto é, ao crescimento individual autêntico.
O cinema engajado, em que se engaja? Este tipo de terminologia marxista ou chinesa deixa-me desconfiado. Não em relação ao que seria uma anarquia individual, mas ao que é realmente uma experiência pessoal. O fascismo era propriamente a ignorância e a estupidez em sua onipotência. Não posso dizer que militei nas colunas do antifascismo, não seria exato, nunca fiz política.
Palavrão
Realismo é um palavrão. Num certo sentido tudo é realista. Não vejo uma linha divisória entre imaginação e realidade. Acho que existe muito de realidade na imaginação. Não acredito que seja minha obrigação dispor tudo claramente em um único nível universalmente válido. Possuo uma infinita capacidade de assombro e não vejo porque tenha que levantar um escudo pseudo-racional para proteger-me do realismo. O realismo não é nem um recinto nem um panorama de uma única superfície.
Uma paisagem, por exemplo, tem muitas dimensões, e a mais profunda, aquela que somente uma linguagem poética pode revelar, não é a menos real. O que eu quero mostrar atrás da epiderme das coisas e das pessoas, dizem-me que é irreal. Chama-se isto, gosto do mistério. Aceitaria de bom grado este termo se pudesse grafá-lo com um M maiúsculo.
Para mim, os mistérios são os do homem, as grandes linhas irracionais de sua vida espiritual, o amor, a salvação...No centro das diversas dimensões da realidade está, para mim, Deus, a chave dos mistérios. O homem não é somente um ser social, ele é divino.
Espelho
Não tenho ainda a suficiente humildade para abstrair-me em meus filmes. Procuro esclarecer-me a respeito do que em mim mesmo não compreendo, mas, como sou um homem, outros homens, sem dúvida, podem descobrir-se a si mesmos neste espelho.
O que é autobiográfico, é a história de uma espécie de apelo que chega até mim quando minha alma está entorpecida e que me desperta. Gostaria muito de ficar neste estado, nestes momentos em que sinto este apelo. Então tenho a impressão de ouvir bater à porta e eu não vou abrir. Naturalmente, um dia ou outro, será preciso decidir abri-la. No fundo, devo ser um vitellone espiritual.
Humor
Creio que não existem temas humorísticos e temas não-humorísticos. O Humor, como o dramático, o trágico e o imaginário, é a colocação da realidade em um clima determinado. O humor é um tipo de ponto de vista, de comunicação, de percepção das coisas e, sobretudo, é uma característica pessoal que se tem ou não se tem.
Nesta medida, falar em utilizar o humor para equilibrar certas atmosferas ou situações, sugere, ainda que de modo vago, uma idéia de premeditação, de dose calculada, que é totalmente alheia ao fenômeno do humor. Na verdade, sua própria negação.
Cancerígeno
Acho que o cinema atual encontra-se na mesma situação que o restante das experiências artísticas. O diagnóstico global desta situação, esquecendo o prodigioso número, a prodigiosa reprodução a um nível cancerígeno das diversas motivações de ordem social, política, ética e estética que estão em sua origem, já é clássico: confusão, impotência, vazio, crise, transição, desaparecimento de todas as regras e valores que chegaram até nós. Acho que tal diagnóstico apresenta um grave vício de conteúdo; ainda me parece ser o resultado de um juízo de valor que, com relação ao mesmo diagnóstico, deveria ter sido descartado, ao mesmo tempo em que os outros.
Resumidamente: aplicamos aos experimentos, às buscas, às novas expressões de qualquer forma de arte, inclusive o cinema, um critério crítico que determina a impotência, a confusão, a invalidade, que é absolutamente tradicional. Afinal de contas, diante de um quadro abstrato, de uma antinovela, da pop-art, de um filme experimental, deixamo-nos levar por um mesmo e idêntico julgamento que formularia, a respeito, um homem há dois mil anos atrás.
Naufrágios
Na minha opinião, a decadência é a condição indispensável do renascimento. Já disse que amava os naufrágios. Sinto-me, portanto, muito feliz de viver em uma época onde tudo naufraga. É uma época maravilhosa porque é justamente o naufrágio de uma série de ideologias, de conceitos, de convenções. O homem foi à Lua, não é? Então, falar de bandeiras, de fronteiras e moedas diferentes é totalmente absurdo. É preciso modificar por completo tudo isto.
Liberdade
Acredito – vejam bem: é uma suposição – que o que mais me interessa é a liberdade do homem, a libertação de cada homem das travas, das redes, dos convencionalismos morais e sociais em que acredita, ou melhor, em que pensa acreditar e que o angustiam, o limitam, fazem-no parecer menor, e até mais malvado.
Se quiserem colocar-me, a todo custo, uma bandeira, uma bandeira pedagógica, resumam-na neste lema: ser o que se é, quer dizer, descobrirmo-nos a nós mesmos para poder amar a vida. A vida para mim, com todas as suas dores e tragédias, é bela, me agrada, me diverte, me comove. Faço o possível para que também os demais possam compartilhar meu modo de sentir.
Túnel
Todo período de empedernido materialismo é sucedido por épocas de espiritualidade. Agora estamos vivendo como em um túnel escuro e angustiante, incapazes de nos comunicar entre nós mesmos, mas já tenho a impressão de ver, ao longe, um resplandecer, um sentido de uma nova liberdade: temos que nos esforçar para acreditar nesta possibilidade de salvação.
Mariposa
Se afirmo ser confiante, não quero parecer uma alegre mariposa voando de flor em flor, mas uma pessoa que se sente viva, que ainda não esgotou sua aventura humana. No fundo, tudo na vida me agrada, e às vezes sinto-me cheio de uma eletrizante curiosidade, como se ainda não tivesse nascido. Sim, ainda não perdi a confiança na viagem, embora muitas vezes esta viagem possa parecer desesperante e escura.
O importante, para o homem de hoje, é manter não esconder a cabeça, mas acima de tudo olhar além do túnel, criando, inclusive, um ponto de salvação, com fantasia, vontade e, principalmente, com confiança. Neste sentido, creio que a obra dos artistas de hoje em dia é indispensável.
Monstros
Talvez a queda dos mitos não seja mais do que um carnaval, mas sente-se que a energia pura passa através. Vemos desfilar as máscaras e os monstros; há os que perdem, e os que caem; aqueles sobre os quais mais nada se sabe. Os moralistas escandalizam-se, mas ao menos adquirimos esta experiência: uma certa ordem se impôs.
Continuamos a projetar imagens idealizadas sobre todas as coisas que vemos. Os ideais escondem a realidade. Não há nada ideal: não há mulher ideal, nem casal ideal, nem lugar ideal, nem situação ideal: é preciso aprender a viver tudo com seus problemas. Continuamos a respeitar valores, princípios gerais que não nos são mais úteis. Na vida, há apenas os casos particulares aos quais precisamos tentar nos adaptar. O processo atual de decomposição da sociedade parece-me perfeitamente normal: para mim não é um sinal de morte, mas de vida.
A vida é feita de transformações. Seria mesmo necessário acelerar esta transformação. A revolta é sempre fecunda. Só a revolta traz em si a necessidade orgânica da expressão. Ao contrário, a aprovação leva à indiferença.
Adormecemos.
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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009
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