Ator e método
Eugênio Kusnet
Podemos dizer que as quatro características fundamentas da ação - tanto na vida real, como em teatro - são as seguintes:
1) A ação sempre obedece à lógica.
2) A ação é sempre contínua e ininterrupta.
3) A ação sempre tem, simultaneamente, dois aspectos: ação interior e ação exterior.
4) Não existe ação sem objetivos.
O conhecimento dessas características é de extrema importância no trabalho do ator. Mas o conhecimento teórico não basta, é preciso saber utilizá-lo na prática quando começamos a trabalhar com um determinado material dramatúrgico, seja ele um simples exercício ou um complicado papel numa determinada peça.
Por onde vamos começar?
Já sabemos que no palco devemos agir em nome do personagem; que devemos aceitar, como se fossem nossos, tanto a situação em que o personagem se encontra como também os objetivos de sua ação. Mas para começar a agir no lugar do personagem é necessário, em primeiro lugar, estabelecer com a máxima clareza quem é o personagem, quais são suas características. Como ele é? Bom, mau, jovem, velho, inteligente, burro? Onde ele vive e para que vive? E, principalmente, o que ele quer?
Resposta
A resposta para tudo isso pode ser encontrada, em parte, no material dramatúrgico com o qual estamos trabalhando. Este material, cujos componentes devem ser cuidadosamente analisados e selecionados, servirá de base para o nosso trabalho. No método de Stanislávski ele é denominado com o termo Circunstâncias Propostas. Para nós, atores, esse termo significa a verdade, a realidade da vida do personagem nas situações que o autor da obra dramática nos propõe. Portanto, não se trata da verdade da vida real e sim da “verdade cênica”, especificamente teatral como o é a “fé cênica”.
A mesma verdade da vida real, isto é, a realidade objetiva, pode ser interpretada e apresentada por dois artistas de maneira muito diferente, sem que essa diferença prejudique a “verdade artística”, ou seja, a realidade subjetiva de cada um deles. Assim, quando encontramos um cavalo vivo, esse “mamífero doméstico solípede”, cujas especificações ninguém discute por achá-las óbvias, estamos diante de uma realidade objetiva.
Entretanto, quando apreciamos, por exemplo, os quadros de Delacroix com seus famosos cavalos fogosos e, em seguida, vemos Guernica, de Picasso, com aquele cavalo mutilado pelo terror, há enorme diferença entre os dois, e ainda maior diferença entre eles e um cavalo real. Mas isso não nos impede de aceitar a “verdade artística”, isto é, a realidade subjetiva dos dois pintores.
Assim, o problema do ator é descobrir nas Circunstâncias Propostas a sua verdade artística.
Detalhes
Eu disse acima que a resposta às nossas perguntas sobre a natureza da ação do personagem pode ser encontrada, em parte, no material dramatúrgico. Disse “em parte” porque geralmente os dramaturgos são muito econômicos em suas explicações. Eles preferem deixar os detalhes à nossa imaginação para não limitar a nossa criatividade. Se numa peça encontramos, por exemplo, a seguinte rubrica:
João (Entrando) - Bom dia!”, nunca podemos nos limitar a executar a ação como está escrito: entrar e dizer bom dia. Precisamos imaginar de onde João entra, o que aconteceu com ele antes, o que ele quer. Porque o “bom-dia” pode ser dito a uma pessoa a quem o João traz um presente ou a quem ele vai matar logo em seguida.
Quantas vezes, em grandes teatros, uma omissão nas Circunstâncias Propostas mudava todo o sentido de uma cena, de um ato ou até mesmo da peça inteira! E não somos apenas nós, pobres mortais, que cometemos esses erros - os grandes mestres também os cometiam. Stanislávski conta que num dos ensaios de Tio Vânia, de Anton Tchekhov, o autor ficou indignado quando soube que o intérprete do papel- título estava vestido como um homem do campo (Stanislávski o imaginou assim porque ele era um administrador de fazenda). Tchekhov disse: “Mas eu expliquei isso tão claramente! E vocês não entenderam nada”. Mostrou, em seguida, uma frase no meio da qual havia a rubrica: Endireita sua gravata fina. Realmente, daí se deveria concluir que Vóisnitski não podia ter aspecto nem hábitos de um grande camponês, o que é de enorme importância para a peça inteira.
Assim, Stanislávski confessou sua omissão e com isso deixou de completar as Circunstâncias Propostas com sua imaginação.
Imaginação
Mas vejamos um exemplo bem simples de como deve funcionar a imaginação de um aluno num exercício com as Circunstâncias Propostas.
Digamos que ele receba como tema do exercício o seguinte: “Eu vou pedir dinheiro emprestado a um amigo”. Só isso, nenhum outro detalhe. Para executar essa ação sem nenhum trabalho preparatório, o aluno diria: “Ó Fulano, quer me emprestar cem mil cruzeiros?”. A não ser a estranha leveza com que o personagem pede uma bolada dessas, nada de interessante encontramos nessa ação. Em vez disso, o aluno deve completar as circunstâncias tão vagas com sua imaginação, dentro das características da ação, que há pouco verificamos. Ele raciocinará da seguinte maneira:
1) A lógica da ação. “Ao imaginar tudo o que podia ter acontecido com o personagem e o que o levou a pedir dinheiro, tomarei o máximo cuidado para evitar toda e qualquer lógica”.
2) Ação contínua, ou seja, ação anterior e ação posterior. “Agora eu vou imaginar o que aconteceu: o personagem tirou cem mil cruzeiros do caixa do banco onde trabalha e deve depositá-los novamente amanhã, na primeira hora, senão será preso”. (Notem que o seu “ontem” é: “tirei o dinheiro”; o seu “amanhã”: “serei preso”; o seu “hoje”: “estou pedindo dinheiro emprestado”.
Estará tudo certo do ponto de vista da lógica? Parece que sim. E ele continua:
3) Ação interna. “O personagem tem medo do que possa acontecer, mas embora ansioso por conseguir o empréstimo, não deve deixar o amigo adivinhar do que se trata, porque este seria capaz de denunciá-lo”.
4) Ação externa. Por isso o personagem procura parecer muito calmo, pensando: “Afinal de contas, não é uma coisa tão grave! Eu sei que vou me safar”.
Mas, e a lógica? Desta vez ela parece um pouco manca: como pode ele parecer muito calmo ao pedir um empréstimo de cem mil cruzeiros? Mas é exatamente essa calma que poderia parecer suspeita. Então o personagem não deve procurar esconder a sua excitação, mas deve inventar uma razão plausível para justificar o seu nervosismo. Por exemplo: uma grande oportunidade comercial que ele perderia se não conseguisse esse dinheiro imediatamente.
5) Objetivo da ação. “Sei que o objetivo da ação do personagem deve ser bastante atraente para excitar a minha imaginação. Se eu estivesse no lugar do personagem, que fato poderia induzir-me a roubar uma importância tão grande? Já sei! O personagem tomou esse dinheiro para salvar a vida de sua mãe que está à morte e deve ser operada por um médico muito caro. Se o personagem for preso, essa desgraça vai matar a sua mãe”.
Vejam como o sentimento filial, próprio de todos os seres humanos, criou a necessária atratividade do objetivo. E quanto à lógica, há alguma falha? Parece que não.
É claro que muitos outros detalhes, que deixo de procurar para não fugir da simplicidade do exemplo, entrariam no jogo, mas digamos que o trabalho com as Circunstâncias Propostas seja considerado completo. Que fazer agora? Como assumir os problemas e os objetivos do personagem? Stanislávski oferece um elemento do Método que ele chama de o mágico “SE FOSSE”.
Uma vez estabelecidas, analisadas e selecionadas as Circunstâncias Propostas, como no nosso exemplo, o aluno se perguntaria: “E se eu fosse aquela pessoa? Se a minha mãe estivesse à morte? Se o único lugar onde pudesse arranjar dinheiro na hora fosse o caixa do banco? Etc., etc., etc.,... como eu iria agir?”. Stanislávski chama esse “SE FOSSE” de mágico porque ele quase que automaticamente desperta a VONTADE DE AGIR.
Sensação
Para experimentar a sensação ao usar o mágico SE FOSSE, basta que o leitor repita os pequenos exercícios citados anteriormente, mas desta vez, só depois de estudar as Circunstâncias Propostas e completá-las com a sua imaginação. Não comece antes de pensar sobre o que se segue:
1) Como eu me comportaria, ao atravessar uma rua, se fosse cego?
2) Que faria eu se fosse pai (ou mãe) de uma menina raptada, que leva o dinheiro do resgate?
3) Que pensaria eu se estivesse acompanhando de longe o enterro de uma pessoa muito querida?
4) Se eu, extremamente cansado, fosse obrigado a divertir alguém, como contaria uma piada?
Nessas condições, você sentirá muito mais vontade de agir do que nas experiências anteriores.
Nunca é demais insistir em esclarecer o verdadeiro significado de certos termos do Método. Stanislávski foi freqüentemente acusado de procurar impor ao ator a aceitação total da realidade da vida do personagem, aquela mística metamorfose do ator em personagem. O próprio Bertold Brecht fez essas acusações. Mas se isso fosse verdade, Stanslávski usaria no seu Método o termo “EU SOU” e não “SE EU FOSSE”. Esse condicional é muito significativo. Ele presume a aceitação simultânea da realidade - eu, o ator que sou - e do imaginário – o personagem que eu, o ator, poderia ser.
Ainda em 1937, quando essa dúvida pairava no mundo inteiro, o famoso ator do elenco do teatro de Stanislávski, L.M.Leonidov, num encontro com os elencos dos teatros de Moscou deu uma idéia bastante clara sobre esse problema. Ele disse: “Seria um verdadeiro absurdo se eu dissesse: Eu, Leonidov, sou o governador da cidade (um personagem de O inspetor Geral, de Gógol ). Eu sou simplesmente Leonidov. Mas o que importa é o que eu faria se fosse o governador da cidade”.
Mas tarde veremos como o termo SE FOSSE é interpretado e denominado pela psicologia científica moderna. Por enquanto, usaremos os termos como os encontramos no Método dando apenas esclarecimentos necessários para evitar que haja uma interpretação errônea do seu significado.
Vontade
Dissemos acima que o uso do mágico SE FOSSE normalmente desperta a vontade de agir. Mas digamos que isso não aconteça, que, apesar da máxima boa vontade, o leitor não consiga imaginar o que ele faria se fosse...etc.etc.
Creio que isso só poderia acontecer se o leitor não soubesse usar a sua imaginação, ou melhor, se ele interpretasse mal o significado da palavra imaginação.
O que significa imaginar coisas?
Vamos recorrer a um exemplo prático. Você poderia imaginar sua viagem à lua? Não deve ser difícil – você deve ter visto em fotografias ou em cinema as astronaves, tanto em vôo como em terra firme, e não deve ter dificuldade em imaginar os detalhes. Você está dentro da cabine. O foguete acaba de partir. Conte o que é que você está vendo! Para avivar sua imaginação, peça que alguém lhe faça perguntas sobre a sua viagem: o que está vendo dentro da cabine? O que está vendo pela janela? etc., e responda com o maior número possível de detalhes. Desta maneira você constatará que imaginar (como você acaba de fazer) significa ver as coisas ausentes, inexistentes ou irreais, contanto que as veja mentalmente.
Experiência
Vamos fazer mais uma pequena experiência. Olhe para um objeto, um rádio, por exemplo, e, sem tirar os olhos dele, responda a uma série de perguntas feitas por um amigo seu, como, por exemplo, essas: “De que cor é o rádio? Tem algum detalhe em outra cor? De que material é feito? Para que serve aquele botão à esquerda?”. Nessas condições, ao responder a essas perguntas, você dirá o que perceberá através da sua visão física.
Logo em seguida, o seu amigo deverá passar para uma outra série de perguntas que você terá que responder também sem tirar os olhos do rádio: “Onde foi fabricado esse rádio? É uma fábrica brasileira ou estrangeira? Como é essa fábrica? Como é a sala em que se montam os rádios? Quem está trabalhando na montagem? Como estão vestidos os operários? De que cor são os macacões? etc.
Desta vez, ao responder, você estará falando não sobre o que estiver presente diante dos seus olhos - o rádio – e sim sobre o que você imaginou ao ouvir a pergunta, ou seja, sobre o que você viu mentalmente naquele momento.
Se o seu amigo de repente perguntar: “Este rádio tem algum defeito na pintura?”, você constatará que, para responder a esta pergunta, será necessário um pequeno lapso de tempo para tornar a ver o rádio que, embora sempre presente diante dos seus olhos, você quase não enxergou enquanto seu amigo lhe fez perguntas sobre a fábrica, os operários, etc.
Constatamos, portanto, que vendo as coisas imaginárias, irreais, deixamos de ver as coisas reais que estão diante de nós, e vice-versa: basta prestar atenção às coisas físicas para que desapareçam as coisas imaginárias. Isso nos mostra que podemos manobrar a visão física à nossa vontade, no sentido de transformá-la em visão interior. Desta maneira, a nossa imaginação adquire agora um aspecto menos abstrato, mais palpável para nós atores: imaginar significa ver de maneira concreta o que nos é oferecido nas Circunstâncias Propostas.
Visualização
Essa maneira de usar a “visão interna” Stanislávski chama de Visualização.
Depois de recorrer ao mágico SE FOSSE e de se perguntar “Como eu estaria agindo nessas condições?”, o ator vai procurar visualizar essa ação. Gostaria de dar um exemplo de como se processa o uso desse elemento do Método no trabalho prático de um teatro.
O ator Renato Borghi, na primeira peça encenada no Teatro Oficina, A vida impressa em dólar, fez o papel de Ralph Berger, filho de uma família judia muito pobre. O personagem, apesar de estar ganhando um pequeno ordenado, nunca tem um vintém no bolso - ele entrega tudo que ganha à mãe. O intérprete do papel, filho de uma família abastada, nunca teve dificuldade financeira como, por exemplo, o problema de levar sua namorada ao cinema, enquanto que Ralph Berger nunca teve dinheiro para oferecer à sua noiva um pequeno divertimento como esse. Para fazer esse papel o Renato, rico, deve aceitar as circunstâncias em que vive o Ralph, pobre. Como estaria agindo o ator SE FOSSE POBRE?
Para entender a situação em que se encontra o personagem resolvemos improvisar uma cena fora da ação da peça. Imaginamos um encontro de Ralph com a sua noiva na rua. Durante o passeio, a noiva de repente diz: “Ralph, leve-me ao cinema”. Eu perguntei a Renato Borghi: “Que faria se fosse Ralph?”
Antes de responder, Renato visualizou - conforme explicou mais tarde - o pobre rostinho de sua noiva, visualizou a rua em que estava morando, visualizou os seus bolsos vazios, chegou a “ver” uma curva da rua e, de repente, agiu como Ralph Berger. Ele não teve coragem de confessar sua pobreza, preferiu mentir e disse: “Vamos ao cinema amanhã, está bem? Porque hoje...eu me lembrei agora - quantas vezes eu queria lhe mostrar a vista maravilhosa que se abre daquela curva, e sempre me esquecia! Vamos dar um passeio, você vai ver que maravilha!”.
Através desse pequeno “laboratório” o ator descobriu o que ele faria se fosse o personagem.
O importante nesse exemplo é que, dentro de sua visualização, Renato se viu no lugar de Ralph; não o viu com os olhos de um espectador, e sim se viu agindo no lugar de Ralph. A isso nós chamamos de Visualização Ativa, para diferenciá-la de uma simples contemplação da ação alheia.
Cuidado
É preciso tomar muito cuidado para não confundir as duas.
Lembro-me de um aluno que, durante um exercício para o qual ele escolheu uma cena de ciúme, procurou pôr em prática o uso da visualização. O resultado foi mais do que lamentável: o seu “terrível” amante ciumento não passava de uma ridícula caricatura que fez rir todos os seus colegas da turma. Diante desse resultado eu afirmei que ele não tinha visualizado coisa alguma. Para me provar o contrário, ele jurou que “tinha visualizado o personagem com tanta clareza que até podia ir tomar café com ele!”.
Vocês compreenderam? Esse “Otelo” produzido pela sua imaginação, ou seja, visualizado por ele, vivia completamente à parte, e ele, o aluno, não passava de um simples espectador que, depois de observar (contemplar) a ação do personagem, em vez de, ao menos, responder à pergunta “Que faria eu SE FOSSE esse homem ciumento?”, resolve simplesmente macaquear o seu comportamento. Daí o ridículo do resultado desse exercício.
E agora, para dar um exemplo diametralmente oposto ao anterior, gostaria de exemplificar o efeito do uso da visualização sobre o trabalho de uma grande atriz. Refiro-me à Greta Garbo.
Consciência
Tive muita sorte em regravar um disco norte-americano que, na época, não se encontrava no Brasil. Esse disco continha trechos principais dos filmes interpretados por Greta Garbo.
O que me impressionou particularmente e me fez lembrar uma cena do filme em todos os seus detalhes foi um trecho de Rainha Cristina. Ao ouvir o disco eu tive a impressão nítida de que a genial atriz, enquanto dizia o texto, usava visualização conscientemente. As próprias Circunstâncias Propostas dessa cena exigiam a conscientização da visualização, conforme explicarei abaixo.
Do trecho escolhido destaquei duas partes em que a personagem, depois de passar uma noite de amor com Antônio, o embaixador espanhol junto à sua corte, fala com ele. O texto da primeira parte é o que se segue:
“I’ve been memorising this room...In a future...In my memory... I shall live a great deal in this room...”
Dentro das Circunstâncias Propostas desse texto o objetivo da rainha é reter na memória o aspecto desse quarto para usá-lo depois em suas recordações. Portanto, essa fase representa, como problema para a intérprete do papel, o uso da memória. E o que é a memória, senão a visualização consciente do passado?
As reticências que vocês encontraram no texto acima foram postas por mim para assinalar as pequenas pausas existentes na interpretação de Greta Garbo. Quem assistiu ao filme certamente se lembrará dos olhos de Greta Garbo naqueles momentos. Eles fitavam o futuro da rainha quando ela estaria sozinha, “vendo” o seu passado...
A genial interpretação dessa parte, que nos fazia sentir todo o drama da pobre rainha, era certamente resultado dessa visualização. E agora, cito a segunda parte da mesma cena:
Antônio - Tell me - you said you would - why had you come to this inn dressed as a man?
Cristina - In my home... I’m very constrained... Everything is arranged very formally...
Antônio - Ah!... A conventional house-hold?
Cristina - Very.
Depois da primeira fala de Antônio, Greta Garbo mantém uma pausa de seis segundos antes de começar a falar. As reticências representam pausas menores. A Razão da pausa maior contém mil detalhes: a impossibilidade de revelar a verdade; a vontade de responder a pergunta, mas de uma forma que não a comprometa; a sensação do ridículo dessa situação; o protesto interior contra a vida que a obrigam levar; a sua impotência para modificar as coisas e, ao mesmo tempo, a aceitação das condições de sua vida como um compromisso de honra E provavelmente muitos outros detalhes que eu não saberia citar. Tudo isso nós sentimos e tudo isso é resultado daquela pausa de seis segundos.
No final, antes de responder “Very”, há também uma pequena pausa que deve ser resultado de uma visualização muito complexa e cujo resultado poderíamos chamar simplesmente de triste resignação da rainha.
O uso correto da visualização ativa é de imensa importância no trabalho do ator. Seu efeito se reflete tanto na “ação exterior” (mímica, gestos, falas), como na “ação interior” (pensamentos, emoções).
Influência
A influência da “ação interior” do personagem sobre o estado psíquico do espectador se efetua, às vezes, dentro da imobilidade e do silêncio total em cena. Todos nós sabemos que esse tipo de ação freqüentemente é mais impressionante do que a ação física. Basta lembrar, por exemplo, do excelente filme Perdidos na noite em que os dois intérpretes principais aparecem mudos e imóveis em muitas cenas. E, entretanto, justamente nessas cenas é que nós sentíamos maiores emoções: parecia-nos que estávamos vendo nos olhos dos atores o que eles “visualizavam”.
O diretor soviético A. Popov, durante muitos anos também professor, criou um estudo profundo do que ele chamava de “zonas de silêncio”, ou seja, o estudo do funcionamento e da realização das pausas em teatro.
Um exemplo disso encontramos num artigo publicado na revista “Teatro”, de Moscou, sob o título A respeito de uma pausa (janeiro de 1971). A autora do artigo, A. Polevítscaia, uma das mais velhas e famosas atrizes russas, descreve em mínimos detalhes todas as ações físicas do personagem criado por ela, numa cena em que ela, durante sete minutos, não pronuncia uma palavra sequer. Vocês podem imaginar o que aconteceria se a atriz, ao executar essas ações físicas, deixasse de usar a “visualização ativa” da situação e dos problemas do personagem? Tenho certeza de que a platéia toda estaria dormindo no terceiro minuto. E, entretanto, Stanislávski, que várias vezes assistiu ao espetáculo, recomendava ao seus alunos que prestassem especial atenção a essa cena como um exemplo da “arte de sentir”.
Experiências
E agora, com os poucos elementos que até o momento conhecemos, podemos fazer algumas experiências de sistematização do uso desses elementos, a exemplo do que fizemos, há pouco, no trabalho com as quatro características da ação em relação às Circunstâncias Propostas. Desta vez, porém, incluiremos no trabalho dois novos elementos do Método: o mágico SE FOSSE e a VISUALIZAÇÃO.
Digamos que o assunto escolhido seja bastante simples: um rapaz (ou uma moça) escreve à sua namorada (ou namorado) uma cartinha marcando um encontro. Terminada a carta, ele (ou ela) a dobra, põe-na no envelope e sai para enviá-la. (Para fazer esse exercício procurem não usar objetos reais, papel, caneta, etc. – deixem tudo à sua imaginação, usem objetos imaginários).
Por onde vamos começar? Em primeiro lugar, temos que analisar o tema para compreendê-lo claramente. Isso significa: estabelecer e fixar as Circunstâncias Propostas e completá-las com a nossa imaginação. Quem é o personagem? Ele é jovem, velho, bonito, feio, inteligente, burro, rico, pobre? Quem é sua namorada? Como ela é? Em que pé estão suas relações? Quais são as intenções do namorado? O que é que ele escreve na carta? O que é que ele alega para marcar um encontro? Ele é sincero nessa alegação? O que é que ele pretende na realidade?
Tratando-se de um exercício, não devemos esquecer que, para transformar em ação o resultado da análise das circunstâncias propostas, que acabamos de fazer, cabe-nos usar todos os elementos até agora conhecidos. Por isso:
1º Verifiquemos se os detalhes por nós estabelecidos obedecem à lógica, se não há algum absurdo, e não deixemos de examinar através da lógica todos os detalhes do trabalho posterior.
2° Sabendo que a ação deve ser contínua e, portanto, deve ter o seu passado e o seu futuro, temos que improvisar mentalmente o que aconteceu antes do personagem começar a escrever a carta: Como se passou o último encontro? Houve alguma conversa no telefone?...E logo em seguida: Que vai acontecer depois do encontro? O que é que o encontro pode alterar nas suas relações de hoje? O que é preciso evitar ou conseguir?
3° Pensando na ação exterior desse exercício devemos desempenhar com a máxima atenção a nossa ação física: procurar sentir a realidade da presença dos objetos imaginários – do papel na mesa, da caneta na mão, do movimento da pena, do aparecimento das linhas escritas, etc.
4° Pensando na ação interior- que evidentemente deve se processar simultaneamente com a ação exterior - devemos ter presentes os pensamentos naturais que acompanham a ação física dentro das Circunstâncias Propostas. Ao segurar a folha de papel: “Será que ela vai achar esse papel muito barato? O envelope não devia ser mais bonito?”; ao segurar a caneta: “Esta pena arranha um pouco. É bom experimentar antes”; antes de começar a escrever: “Preciso encontrar palavras que a convençam... que a comovam...vou escrever assim!”; ao escrever pare para reler, pensando: “Será que saiu bom?”; ao fechar o envelope, visualize o rosto dela quando ela estiver lendo a carta, etc.
5° Pensando no objetivo da ação, devemos estabelecer não apenas o que o personagem quer que aconteça, o que representa a sua vontade, mas também o que ele não quer que aconteça – ou seja, a sua contra-vontade. Esse confronto do objetivo e do obstáculo, conforme verificaremos detalhadamente mais tarde, é de grande importância no trabalho do ator: ele cria a luta interior do personagem e representa a base da dialética da vida, da natural condição do espírito humano.
6° Uma vez completada essa parte do trabalho, devemos perguntar a nós mesmos: “Se eu fosse esse rapaz, se eu tivesse uma namorada tão bonita e desejada, se eu tivesse a esperança de conseguir o encontro que agora vou pedir, o que eu escreveria para ela?” Complete isso com outras perguntas úteis para despertar-lhe a vontade de escrever, e quando chegar a sentir essa vontade, basta começar a agir escrevendo.
7° Agora, digamos que contra toda a expectativa, você não chegue a sentir realmente essa vontade. Então recorra à visualização, isto é, repasse alguns detalhes do trabalho com os elementos anteriores, na base da “visualização”. Comece por visualizar os objetos que usa - o papel, a caneta, etc. Depois procure “materializar” os seus pensamentos em formas de “visão interna”. Por exemplo, quando você se pergunta quem é a namorada, como ela é, procure “vê-la” em maiores detalhes até que chegue a sentir realmente atração por ela; quando pensar no próximo encontro, visualize-o em todos os detalhes para sentir necessidade de pedir esse encontro; e, principalmente, quando estiver pensando no objetivo da ação, isto é, no que o personagem quer que aconteça, procure “materializar” essa luta interior ao máximo através da visualização. E não esqueça que só poderá conseguir algum resultado positivo se a sua visualização for realmente ativa, ou seja, se você conseguir “se ver” agindo dentro das circunstâncias que visualiza.
A capacidade de usar a visualização é primordial na arte do teatro, pois ela equivale à capacidade de usar a imaginação, sem o que nenhuma arte existe. Por isso não é suficiente compreender a mecânica da visualização e fazer algumas experiências práticas para constatar a validez desse elemento. Na realidade, os exercícios de visualização devem tornar-se parte integrante de vida inteira do ator, a começar pelos exercícios mais primitivos, e a terminar por complicadas “visões cósmicas” dos personagens criados pelos dramaturgos geniais. Esses exercícios devem transformar-se em ginástica diária da imaginação. Sem ela o ator não poderá exercer a sua arte, como não o poderá um dançarino, um cantor, um pianista, sem fazer exercícios diários de dança, vocalises, solfejo, etc.
Quanto aos exercícios de que falei acima, quero propor aqui, apenas a título de exemplificação, alguns temas que os meus leitores poderão transformar em exercícios de imaginação, isto é, criar em redor dos mesmos Circunstâncias Propostas concretas (situações em que o personagem se encontra) e os objetivos (necessidade que deverá satisfazer).
Exercícios
É preferível fazer esses exercícios em companhia de alguns amigos, pois esse trabalho torna-se mais útil quando submetido à observação, controle e críticas alheias.
1) Imagine uma folha de papel em cima de sua mesa. Procure visualizá-la nitidamente, em todos os detalhes e, em seguida, dobre-a em várias direções, executando com precisão todos os movimentos das mãos como SE FOSSE uma folha de papel real.
Quando conseguir um resultado satisfatório, por exemplo, quando chegar a convencer o seu amigo de que está realmente lidando com um “pedaço de papel”, acrescente a esse exercício Circunstâncias Propostas e os Objetivos do personagem. Por exemplo: uma moça trabalha numa fábrica de envelopes ganhando muito pouco; enquanto dobra o papel ela pensa - e, portanto, visualiza - a situação de miséria em que se encontra sua família. Ela precisa desse emprego, ela precisa produzir mais para ser aumentada.
2) Você acompanha com o olhar um cortejo fúnebre. Procure visualizar nitidamente todos os detalhes: o carro, o caixão, as coroas, os acompanhantes . Em seguida, estabeleça as Circunstâncias Propostas e os Objetivos. Quem era o falecido? Quais eram as suas relações com ele? Por que veio ver o enterro? O que impede de acompanhar o enterro junto aos outros?
3) Um homem examina as ruínas de um teatro que ele conhecia antes da demolição. Acrescente as Circunstâncias Propostas e os Objetivos. Por exemplo: um ex-ator alcoólatra, que há dez 10 anos foi expulso do elenco desse teatro. Ele veio para ver se poderia tentar de novo a sua antiga profissão. Ele revive muito momentos da sua vida artística.
4) Uma mulher muito feia atende a uma chamada telefônica. Um desconhecido que não quer se identificar marca um encontro num jardim público da cidade. Ela vai. No banco do jardim, enquanto espera, ela procura adivinhar qual dos muitos transeuntes seria o seu “namorado”. De repente descobre, escondido atrás de um arbusto, um rapaz que a observa rindo às gargalhadas. Depois da volta para a casa, ela examina o seu rosto no espelho.
A imaginação do leitor poderá criar muitos outros temas mais próximos da sua vivência e, portanto, mais atraentes, mais excitantes. E não fique decepcionado se, apesar de todo esforço, não conseguir o resultado desejado. Lembre-se que você está apenas no início da leitura de uma matéria cujo estudo prático exige muito tempo. Nas páginas seguintes você encontrará outros elementos do Método que, certamente, lhe facilitarão as experiências.
(O presente artigo, aqui um pouco reduzido, é o 3º capítulo do livro Ator e método, de Eugênio Kusnet, leitura obrigatória para profissionais e estudantes de teatro (Editora Hucitec, Funarte, São Paulo-Rio de Janeiro, 2003). Os entretítulos são de minha responsabilidade.
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quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
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