T a l v e z...
Texto de Lionel Fischer
Gênero peça teatral
Nº atos 1
Personagens
ANA - ex-mulher de Paulo. Em torno de 40 anos.
PAULO - mesma idade da ex-mulher.
RODRIGO - 16 anos. Filho de Paulo e Ana.
CECÍLIA - amiga de Rodrigo. Mesma idade dele.
ANDRÉ - 28 anos. Amante de Paulo.
VERA - 45 anos. Irmã de Ana.
FELIPE - 50 anos. Delegado.
MARLI - 23 anos. Prostituta.
VITINHO - 25 anos. Amigo de Marli.
CABEÇA - 27 anos. Marginal.
BANDIDOS - entre 25 e 30 anos.
Cenário
Palco nu. Quando indispensável, alguns elementos podem ser utilizados, mas convém evitar uma ambientação realista.
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CENA 1
Sala da casa de Ana
(Paulo está acabando de guardar alguns papéis numa maleta. Em seguida, caminha um pouco pela sala, olhando com atenção o ambiente, como se procurasse retê-lo na memória. Está visivelmente angustiado. Uma música sublinha esta passagem. Num dado momento, ele escuta um ruído na porta de entrada. Cessa a música. Ana entra)
ANA - O que é que você está fazendo aqui?
PAULO - Eu esqueci alguns papéis.
ANA - E como é que você entrou? Eu não sabia que você tinha ficado com uma cópia das chaves da casa.
PAULO - É claro que não fiquei. O Rodrigo abriu para mim.
ANA - Ah, ele está aí? Que ótimo! Então não foi à aula outra vez.
PAULO - Ele não tem ido à escola?
ANA - Não tem ido a lugar nenhum.
PAULO - Desde quando?
ANA - Há três dias ele praticamente não sai do quarto.
PAULO - Três dias? E você não me fala nada!?
ANA - Não há nada que você possa fazer. Agora é uma questão de tempo.
PAULO - Eu vou falar com ele.
ANA - Não, Paulo.
PAULO - Por que não?
ANA - O que ele precisava saber, ele já sabe. Pelo menos o essencial: que há duas semanas o pai saiu de casa e foi cuidar da própria vida. E isso é tudo que importa. Os detalhes são dispensáveis.
PAULO - Eu não pretendia tocar nos detalhes.
ANA - E o que é que você pretendia? Desenvolver uma brilhante argumentação para demonstrar que, mais cedo ou mais tarde, quase todos os casais acabam mesmo se separando? E que portanto não vale a pena sofrer muito por uma coisa que é inevitável?
PAULO - Eu não ia fazer nada disso, Ana. Eu sei que ele está muito abatido e é minha obrigação ao menos tentar diminuir esse sofrimento.
ANA - E como é que você conseguiria esse milagre?
PAULO - Não sei...talvez deixando claro para ele, mais uma vez, que nada mudou entre nós. Nem vai mudar. Que a nossa separação...
ANA - Aí é que está, Paulo. Para que nada mude entre vocês será preciso mentir. Sempre! Como eu fiz quando ele perguntou o que tinha acontecido com a gente.
PAULO - O que foi que você disse?
ANA - O que nós combinamos. Dei aquela surrada desculpa de que o tempo havia provocado um certo desgaste na nossa relação. Que nós já não sentíamos o mesmo entusiasmo um pelo outro, a mesma cumplicidade, a mesma atração. E que então achamos melhor nos separar antes que inevitáveis agressões começassem a acontecer, o que não seria bom para nenhum de nós, muito menos para ele etc. etc.
PAULO - E como é que ele reagiu?
ANA - Ficou me olhando, muito sério, com uma expressão cada vez mais incrédula. Como se tudo que estava escutando fosse uma grande novidade para ele. E como era mesmo, eu tinha que me esforçar cada vez mais para ser o mais convincente possível. Mas no fundo eu sabia que todo aquele discurso era inútil, porque não correspondia em nada à nossa realidade. Nós sempre fomos um casal feliz, não é verdade? Ou pelo menos aparentávamos ser...
PAULO - Nós não aparentávamos nada. Sempre fomos muito felizes.
ANA - É possível...Afinal, nós raramente discutíamos e quando isso acontecia, quase sempre por um motivo bobo, logo em seguida nós nos reconciliávamos. Ele nunca sofreu os efeitos das nossas esporádicas desavenças, porque elas simplesmente não deixavam marcas. Não geravam rancores ou ressentimentos. Tudo se resolvia rapidamente, quase sempre em meio a boas gargalhadas. Por isso ele devia achar que nós éramos um casal pra sempre. E por isso, enquanto eu me esforçava para demonstrar o contrário, ele me olhava tão sério, tão incrédulo, como se estivesse ouvindo uma história que não era a dele. E mais: como se estivesse tentando descobrir porque eu me empenhava tanto em mentir.
PAULO - E depois dessa conversa ele te procurou para perguntar alguma coisa? Ou de alguma forma deu a entender que não acreditou na tua história?
ANA - Depois dessa conversa ele passou a me evitar. Mal responde quando falo com ele. Está fazendo absoluta questão de mostrar que ficou magoado comigo. E no fundo ele tem razão, porque eu traí um pacto que a gente sempre teve de nunca mentir um para o outro. Por mais dolorosa que a verdade pudesse ser. Nós o educamos assim, Paulo. E justamente nós, num momento tão delicado, estamos sendo obrigados a mentir. Eu acho que isso vai marcá-lo muito mais do que a nossa separação.
PAULO - É...talvez você tenha razão. Mas eu, pelo menos, não menti para você. E eu sei o que isso me custou. Como foi difícil para mim...
ANA - Não mentiu? Mas...você ficou louco?
PAULO - Eu te contei tudo, Ana. Sem omitir nenhum detalhe.
ANA - O que você fez é monstruoso. Será que você não se dá conta?
PAULO - Ana, por favor...
ANA - Paulo, se você tivesse dito que não me amava mais, é claro que eu teria ficado muito triste, mas acabaria me conformando. Se você tivesse confessado que estava apaixonado por outra mulher, eu também me sentiria arrasada, mas terminaria aceitando. Porque essas coisas podem acontecer: o amor acabar ou a pessoa que a gente ama se encantar por outra. Mas você se deu ao luxo de sustentar uma farsa durante 17 anos!
PAULO - Não é verdade. Enquanto nós estivemos casados eu...
ANA - Casados?
PAULO - Por que essa ironia, Ana? Você sabe que eu sempre te amei. Apenas...
ANA - Continua, Paulo. Eu adorei esse "apenas". Ao escutá-lo me dá a sensação de que a minha vida desmoronou por causa de um detalhe, de uma sutileza sem a menor importância...
PAULO - Esse teu sarcasmo não leva a nada. Eu também estou sofrendo. Tanto ou mais que você.
ANA - Eu espero que seja muito mais. Na verdade, e sem querer ser mais cruel do que me caberia por direito, eu te desejo um longo tempo de absoluta infelicidade.
PAULO - O que você está dizendo!?
ANA - Eu sei que todo sentimento de vingança é inútil, porque não refaz aquilo que se perdeu. Mas me agradaria muito saber que durante alguns meses, que seja, todos os dias, você será atormentado pela mesma pergunta: por que eu fiz isso com ela?
PAULO - Ana, eu já admiti não sei quantas vezes que eu devia ter te contado, logo da primeira vez!?
ANA - É evidente. Eu tinha todo o direito de saber.
PAULO - É claro que sim. Isso não se discute. Mas eu não consegui!?
ANA - E por quê?
PAULO - Porque eu não sabia como você ia reagir. Eu tive medo de te perder.
ANA - Esse era um risco que você tinha que correr. Era tua obrigação abrir o jogo comigo e então deixar que eu resolvesse o que seria melhor pra mim.
PAULO - Ana, tenta entender. Foi uma coisa tão inesperada, tão assustadora que...
ANA - Pode ter sido uma coisa inesperada e assustadora da primeira vez. Mas o que você me diz das outras?
PAULO - Eu sempre achava que nunca mais ia acontecer.
ANA - Mas continuou acontecendo e você permaneceu calado.
PAULO - Isso eu já sei. Não é preciso você ficar...
ANA - E você sabe por que agiu assim?
PAULO - Eu venho tentando desesperadamente entender.
ANA - Pois então pode parar com esse esforço tão comovente, porque a resposta é simplíssima: você nunca se deu ao trabalho de me contar porque foi mais cômodo.
PAULO - O quê?
ANA - É isso mesmo. Você deve ter pensado: "Bem, isso está acontecendo na minha vida e não é de todo desagradável. Portanto, por que não seguir em frente? Se eu agir com toda a cautela, a minha adorável e ingênua mulher jamais vai descobrir".
PAULO - Ana, como é que você pode achar que eu...
ANA - E não é que funcionou, Paulo? Você foi tão hábil, tão dissimulado que a imbecil aqui jamais deixou de acreditar que era uma mulher de sorte.
PAULO - Ana, por favor...
ANA - Sim, uma mulher verdadeiramente abençoada. Porque se apaixonou praticamente na adolescência...porque se entregou sem reservas ao seu primeiro e único amor, que parecia aumentar à medida que os anos iam passando...Meu Deus, que ironia!?
PAULO - Escuta...
ANA - E nós cada vez mais cúmplices, mais amigos, construindo uma intimidade que nos permitia, entre outras coisas, fazer amor desprezando tudo que contrariasse os nossos desejos. Aí, um belo dia, chega você e me diz: "Acorda, Cinderela, e olha à tua volta!"
PAULO - Pára com isso, Ana.
ANA - "As roupas que você veste seriam dignas de uma princesa? Mas como, se não passam de andrajos?"
PAULO - Ana, por favor.
ANA - "E que carruagem é essa em que você imagina deslizar suavemente pelas alamedas floridas de um palácio, puxada por magníficos corcéis? Cai na real, meu amor: são ratos que te rebocam e abóboras servem de apoio para o teu rabo".
PAULO (Agarrando-a pelo braço) - Já chega! Pelo amor de Deus!
ANA - Me larga, seu escroto! (Paulo a solta) E some daqui. Nesse segundo!
PAULO - Fala baixo! Você quer que o Rodrigo escute? Bem...eu vou indo. Depois a gente conversa com mais calma. Eu te ligo.
ANA - Liga para o teu filho. Mas cuidado com o que você vai dizer.
PAULO - Fica tranqüila. (E começa a se afastar)
ANA - Só mais uma coisa! (Paulo se volta) Vê se seleciona com bastante critério os lugares que você vai passar a freqüentar. Tenta ser o mais discreto possível. Se você for visto num desses... enfim...logo todo mundo vai ficar sabendo. O Rodrigo, inclusive...(Paulo sai. Ana começa a chorar. Vai até o bar, serve uma dose de gim. Rodrigo surge. Ao vê-lo, Ana tenta disfarçar, esboça um sorriso canhestro)
RODRIGO - Mãe...por que você falou pro pai ser o mais discreto possível?
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CENA 2
Sala da casa de André
(Paulo está sentado. André caminha pela sala, lentamente, bebendo vodka. Já está um tanto alterado)
ANDRÉ - É, meu caro. A partir de agora você vai ter que se tornar um sujeito muito criterioso. E sobretudo, discreto! Já pensou se você for visto num desses...o que mesmo? Bom, ela não chegou a especificar. Mas eu imagino que estivesse se referindo a algo parecido com um antro...o único lugar em que criaturas desajustadas se sentem à vontade para dar vazão às suas perversões!
PAULO - É melhor você parar de beber.
ANDRÉ - Desculpe, Paulo, mas essa tua mulher é uma escrota.
PAULO - Ex-mulher.
ANDRÉ - Sinceramente...esses "conselhos" que ela te deu?! Mas o que será que ela imagina? Que nós somos um bando de degenerados?
PAULO - Ela estava nervosa, André. Com raiva. É preciso dar um desconto.
ANDRÉ - Eu não dou desconto nenhum. Já cansei de tentar entender porque pessoas como nós vivem sendo agredidas. E não fica achando que ela só disse esse tipo de coisa porque estava com raiva ou nervosa. Não senhor: ela falou exatamente o que pensa, o que por sinal não me surpreende nem um pouco.
PAULO - Eu posso te garantir que a Ana não tem esse tipo de preconceito.
ANDRÉ - Tá legal...sou eu que tenho.
PAULO - Você acha que eu teria ficado casado 17 anos com uma mulher que...
ANDRÉ - Paulo, do teu casamento quem sabe é você. E sinceramente, ele não me interessa. E pode ficar certo que eu não estou empenhado em fazer nenhuma cruzada contra a Ana. Ela não representa nenhuma ameaça para mim. (André serve outra dose)
PAULO - Será?
ANDRÉ - Você tem alguma dúvida?
PAULO - Não sei...sempre que eu falo dela você fica tão exaltado. Por quê?
ANDRÉ - Porque você sempre tenta suavizar as merdas que ela diz.
PAULO - Que história é essa, André? Quando foi que eu fiz isso?
ANDRÉ - Sempre! Mas tudo bem, isso é problema teu. Eu só queria entender o seguinte: será que nunca passou pela cabecinha dessa senhora que o isolamento dos gays não é uma questão de opção, mas de sobrevivência? Porra, se a gente freqüenta ambientes fechados é porque só neles nós conseguimos respirar! Sabe, eu adoraria poder chegar para a tua mulher...ex-mulher...e contar a seguinte historinha. (Paulo se levanta) Você está indo embora?
PAULO - Não seja infantil, André.
ANDRÉ - Que ótimo. Assim, ao menos de vez em quando, eu posso olhar para você e fingir que estou me dirigindo a ela. (Paulo volta a se sentar) Vamos lá.
(André simula conversar com Ana) Querida Ana: não faz muito tempo, eu estava com um namorado - nada a ver com seu ex-marido - num restaurante tradicional. De repente, me deu uma vontade incrível de beijá-lo. Nada mais natural, não é mesmo, darling? Afinal, você e Paulo devem ter feito isso dezenas de vezes. Pois bem: me deu vontade de beijar meu namorado e eu o beijei, completamente esquecido de que estava num lugar "normal". E tão enlevado me achava que não me dei conta de que nossa singela demonstração de afeto tivera testemunhas. Você saberia me dizer o que aconteceu em seguida? Não adivinha? Não faz a menor idéia?
PAULO - Eu já conheço essa história, André.
ANDRÉ - Você sim, mas a Ana não. E é com ela que eu estou falando. Continuando: o maître se aproximou da nossa mesa e, tentando falsamente ser discreto, nos intimou a parar com "aquilo", sob pena de sermos sumariamente enxotados daquele sacrossanto lugar. No primeiro momento, nós ficamos perplexos, chegamos mesmo a esboçar um tímido protesto. Mas logo nos demos conta de que várias pessoas nos olhavam e de forma extremamente "carinhosa e solidária"... Então, o que fizeram os dois desamparados gays? Exatamente o que deles se esperava: pagaram rapidamente a conta e se retiraram cabisbaixos, como se tivessem cometido um crime. E assim que atingiram a rua, inteiramente aparvalhados, eles começaram a chorar ao mesmo tempo, como se tivessem ensaiado. É claro que discretamente, pois do contrário poderiam ser vítimas de novas humilhações...E então, querida Ana? O que é que eu faço quando tenho vontade de beijar alguém? Tudo bem, procuro um restaurante adequado. E quando me der na veneta dançar? Claro, me enfurno numa boate apropriada, daquelas que vivem repletas de velhotes gordos e michês. Não resta dúvida. Mas ...e quando eu estiver a fim de transar, sem ser na minha casa ou na casa da pessoa? Como? Me arranjo num carro? É, não deixa de ser uma opção. Mas se eu quiser fazer como você e o Paulo, e decidir trepar num motel? Aí não é tão simples, Aninha, pois são raríssimos os locais que aceitam hóspedes do mesmo sexo. E quando aceitam, impõem a seguinte e esdrúxula condição: cada um tem que pedir um quarto, como se fossem dois estranhos que tivessem chegado ao mesmo tempo e nutrido uma súbita, irresistível e inadiável atração...Ahnn? Por que eu não me contento com uma sauna? Mas eu estou falando de amor, sua estúpida! De privacidade! Suruba passa longe das minhas cogitações! Será que você é tão preconceituosa que não consegue aceitar o fato de que eu sou igualzinho a você? Que eu tenho as mesmas aspirações e direitos? Vê se me poupa, sim, Aninha? E aproveita e vá se foder!
PAULO (Levantando) - Já chega, André! Esse teatrinho está ficando ridículo!
ANDRÉ - Ridícula é a tua esposa! Ridículas são as idéias dela! Ridículos são os valores que ela defende! (Paulo começa a se afastar) E ridículo está você agora, indo embora com esse ar de concubina ofendida! (Paulo pára, vai até André)
PAULO - Concubina é a puta que te pariu, ouviu bem? (Dá um soco em André, que cai) E tem mais uma coisa: eu nunca mais quero te ver na minha frente! (E vira-se para a saída)
ANDRÉ - Mas Paulo...pelo amor de Deus!? (Consegue se levantar, vai até Paulo) Eu não acredito que você esteja terminando tudo apenas por que eu...
PAULO - Eu adorei esse "apenas"...Sabe, André? Eu usei essa palavra hoje com a Ana e me fodi. Agora é você quem está se fodendo por causa dela.
ANDRÉ - Se é só por isso...eu te peço desculpas!? E juro que nunca mais...
PAULO - É claro que não é só por isso, André. Não seja estúpido.
ANDRÉ - Mas então...
PAULO - Escuta: eu fui casado 17 anos com a Ana e nós sempre nos respeitamos. E agora me chega você, a quem eu conheço há apenas três meses, e se permite falar comigo desse jeito!
ANDRÉ - É que eu estou meio bêbado, Paulo. Leva isso em conta!?
PAULO - Eu e a Ana também costumávamos beber. Mas nem por isso...
ANDRÉ - Ana...sempre a Ana! Ela é a tua única referência, não é verdade?
PAULO - E se for? Qual é o problema?
ANDRÉ - Qual é o problema? Cara, você terminou um casamento de 17 anos pra ficar comigo!? E desde que você saiu de casa não teve um único dia que você não falasse nela, não citasse a Ana como exemplo de alguma coisa! Você acha justo comigo?
PAULO - Se eu falei tanto assim na Ana é porque ela ainda está muito presente na minha vida.
ANDRÉ - Tudo bem, mas até quando?
PAULO - Não faço a menor idéia. Mas isso agora é um problema só meu.
ANDRÉ - Paulo, presta atenção: você vai acabar se apaixonando outra vez!
PAULO - É possível.
ANDRÉ - E tudo vai se repetir!
PAULO - Tudo o que, André?
ANDRÉ - Será que você não percebe? Você jamais vai ser feliz com alguém enquanto essa mulher não desaparecer da tua vida!?
PAULO - Pode ser que ela nunca desapareça e eu nunca consiga ser feliz com ninguém. É só isso ou você ainda tem mais algum precioso conselho pra me dar?
ANDRÉ - Paulo...por que você está falando comigo desse jeito? Por que esse cinismo, esse deboche? Porra, cara...até meia-hora atrás eu significava tanto pra você!? E agora...parece que eu me tornei a pessoa mais detestável do mundo. Será que eu mereço isso?
PAULO - Olha, André...realmente você não merece. Como também não merecia o soco que eu te dei. Eu perdi a cabeça. Me desculpa.
ANDRÉ - Eu também peço desculpas. Eu não devia ter dito aquilo.
PAULO - Certamente. Mas eu nunca teria uma reação como aquela se...enfim...
eu não estivesse me sentindo tão confuso.
ANDRÉ - Como assim, Paulo?
PAULO - Deixa pra lá. Conversar agora sobre isso não faz mais sentido.
ANDRÉ - Claro que faz. Se a gente está se separando, eu acho que é esse o momento pra se dizer tudo.
PAULO - Nada vai alterar a minha decisão, André.
ANDRÉ - Eu não estou pedindo pra você alterar nada. Mas eu tenho o direito de saber porque eu estou te perdendo.
PAULO - Tudo bem...(Serve uma dose de vodka) Sabe, André... quando eu saí de casa, eu achei que estava tomando a única atitude que me cabia. Porque até então tudo se resumia a sexo. Você sabe, sexo pago, com caras que eu não conhecia e nunca voltava a ver. Eu sabia que estava agindo errado, mas ainda assim eu conseguia encontrar uma atenuante para isso: a ausência total de afeto. E se não havia sentimento, se tudo se resumia a um impulso incontrolável, na minha cabeça era quase como se eu não estivesse traindo a Ana. Eu sei que esse raciocínio é insustentável, mas eu o usava pra me defender daquilo que eu não conseguia evitar. Mas aí surgiu você...eu me apaixonei e tudo mudou. Eu tive que contar para ela e...
ANDRÉ - Desculpa eu te interromper, Paulo. Mas tudo isso eu já sei. Não é a primeira vez que você...
PAULO - Mas tem uma coisa que você não sabe.
ANDRÉ - O que?
PAULO - Eu não deixei de amar a Ana.
ANDRÉ - Ah, não?
PAULO - Não. E acho até que estou gostando dela cada vez mais.
ANDRÉ - Bem...isso é realmente uma novidade pra mim.
PAULO - E eu não estou sabendo como lidar com isso: ela de um lado, você do outro...essa divisão está me matando.
ANDRÉ - Mas você não acha que com o tempo...
PAULO - Eu não sei, André. Se eu tivesse certeza de que a Ana iria sumir aos poucos da minha vida eu...você entende?
ANDRÉ - Claro. Agora eu estou entendendo tudo. A nossa separação não tem nada a ver com o fato de eu ter bebido, com a frase infeliz que eu disse, com a porrada que você me deu. Tem a ver com essa paixão que, ao invés de diminuir com o tempo, como seria o normal, só faz aumentar...
PAULO - Escuta, André...
ANDRÉ - E pensar que tudo estava indo tão bem entre nós...nada indicava que a gente iria se separar. Ontem mesmo você falou que estava pensando em sair do teu apart e vir morar aqui, lembra?
PAULO - Claro que lembro.
ANDRÉ - E agora você vai sair por aquela porta e nunca mais vai voltar. Eu nunca mais vou aparecer no teu escritório...e provavelmente a gente nunca mais vai se ver. É, doutor Paulo...eu fui mesmo muito ingênuo em acreditar que havia alguma coisa de especial entre nós...
PAULO - O que é que você está dizendo, André? Claro que havia!?
ANDRÉ - Será?
PAULO - Eu não tenho nenhuma dúvida.
ANDRÉ - Pois agora eu passei a ter todas. Inclusive uma que me ocorreu agora. E que eu gostaria que você tirasse.
PAULO - Fala.
ANDRÉ - Me responde com toda a franqueza: será que você não me usou?
PAULO - Usei? Como assim?
ANDRÉ - Bem, até onde eu sei, você já estava um tanto esgotado daquele frenesi de garotos de programa. Você inclusive me disse que estava se arriscando demais, não é verdade?
PAULO - E daí?
ANDRÉ - E daí que você pode ter resolvido dar um tempo. Descansar com alguém como você. Alguém que você não precisava pagar. Que escutava todas as tuas histórias, tentava te entender e exigia muito pouco em troca.
PAULO - Olha, André...eu não sei se você acredita mesmo no que acaba de dizer. Mas se acredita, então pra você eu não passo de um bom filho da puta. É isso?
ANDRÉ - Talvez você seja mesmo. Não sei se exatamente um filho da puta, mas pelo menos alguém que se aproveitou muito da situação.
PAULO - Me aproveitei do quê?
ANDRÉ - Ora, Paulo...foi tudo muito cômodo pra você, muito fácil. Você estava precisando de alguém como eu e de repente eu estava ali, bem ao teu alcance, à disposição. Eu era gay, te admirava pra caralho e ainda por cima...
PAULO - Termina!
ANDRÉ - Precisava desesperadamente daquele emprego.
PAULO - Se você soubesse, André...como eu gostaria de não ter escutado tudo isso...eu não mereço. Não mereço mesmo.
ANDRÉ - Pode ser que eu esteja enganado. Mas é assim que eu estou pensando agora. Se um dia eu chegar à conclusão que fui injusto, eu encontro uma forma de me desculpar contigo. E agora vai embora. Eu estou precisando ficar sozinho. (Paulo sai. André pega a garrafa de vodka, bebe pelo gargalo. Começa a chorar)
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CENA 3
Calçadão da praia
CECÍLIA - A noite tá linda...
RODRIGO - É.
CECÍLIA - Amanhã vai dar um praião. Vamos bater um frescobol?
RODRIGO - Não tô a fim não, Cecília.
CECÍLIA - Vai ser legal pra você, cara. Você não pode ficar em casa entubado, feito um ermitão. Tem que reagir!?
RODRIGO - Pra você é fácil falar assim. Tem pai e mãe em casa, tudo certinho...
CECÍLIA - Escuta...vamos sentar um pouco? Já tô morta de tanto andar.
RODRIGO - Tudo bem. (Eles se sentam num banco)
CECÍLIA - Quer tomar uma água de côco?
RODRIGO - Não.
CECÍLIA - E um baseado? Tá a fim de apertar um?
RODRIGO - Que babaquice é essa, Ciça? Apertar um baseado no meio da rua, na frente de todo mundo!
CECÍLIA - Tô brincando, Rô. Pôxa...
RODRIGO - Desculpa. É que eu tô meio...sei lá...essa separação dos meus pais tá fodendo com a minha cabeça.
CECÍLIA - E com a escola também. Há três dias você não aparece lá, tá todo mundo super preocupado. E na segunda tem teste de uma matéria que você adora: Física!
RODRIGO - Eu tô cagando pra escola, pra essa Física...se der, faço segunda chamada. Se não der, foda-se.
CECÍLIA - Você tem que fazer um esforço, cara. Pra superar. Eu sei que deve tá sendo muito difícil...
RODRIGO - Difícil? Tá sendo impossível, Ciça! Eu não consigo entender!?
CECÍLIA - Essas coisas acontecem. E é foda mesmo.
RODRIGO - Bota foda nisso.
CECÍLIA - Sabe..teve uma vez que meus pais quase separaram. Eu tinha uns sete, oito anos. Cara, eu chorei tanto! Eu não podia imaginar minha casa sem o meu pai! Só que ele e minha mãe acabaram se acertando. Graças a Deus.
RODRIGO - E você ficou sabendo o que tava rolando?
CECÍLIA - Claro! Quando a separação parecia que ia mesmo acontecer, os dois me chamaram e abriram o jogo.
RODRIGO - E eles falaram o quê?
CECÍLIA - Ah...um montão de coisas. Que eles achavam que não sentiam mais a mesma atração, o mesmo entusiasmo, a mesma...
RODRIGO - Cumplicidade...
CECÍLIA - Isso! Como é que você adivinhou?
RODRIGO - Esquece.
CECÍLIA - Bem...e que também não queriam que eu ficasse vendo eles brigando toda hora, que isso não seria legal pra mim. Enfim, essas coisas.
RODRIGO - E eles se pegavam muito?
CECÍLIA - Pô, cara! Teve um dia que eu pensei que o meu pai ia enfiar a mão na mãe. Eu até acho que ele só não fez isso porque eu entrei no quarto deles, já chorando pra cacete, porque eles gritavam tanto um com o outro que eu logo saquei que alguma parada péssima tinha que estar rolando entre eles. E fui até lá.
RODRIGO - E aí?
CECÍLIA - Quando eles me viram...porra, cara, o pai tava segurando a mãe pelo braço e ela tentando se afastar. Eu dei o maior grito e corri pros dois!
RODRIGO - E eles fizeram o quê?
CECÍLIA - Ah...se soltaram na mesma hora. Minha mãe sentou na cama e começou a chorar. E o meu pai, coitado. Tava tão baratinado que não sabia o que fazer. Mas me abraçou, me levou pra sala, sentou comigo no sofá e tentou me acalmar dizendo umas frases que não tinham nada a ver, tipo "Olha, filhinha, sua mãe e eu só estávamos discutindo, viu? E a gente se descontrolou um pouco..."
RODRIGO - E você?
CECÍLIA - Eu continuei chorando um tempão. E ele buzinando no meu ouvido. Depois a mãe chegou, sentou junto e falou mais ou menos as mesmas coisas.
RODRIGO - Mas foi aí que eles disseram que tavam pensando em se separar?
CECÍLIA - Não, foi mais pra frente. Até que o clima, depois daquele barraco, ficou menos tenso. Mas eu sacava que alguma coisa não tava legal entre eles. Até que um dia eles me chamaram e disseram que tavam pensando seriamente em se separar. E foi aí que falaram aquelas coisas tipo cumplicidade, atração etc.
RODRIGO - Mas eles não se separaram.
CECÍLIA - Não é que não, cara? Eu sei lá por quê, mas de repente tudo foi se amansando. Eles voltaram a ser carinhosos um com o outro. E tão juntos até hoje.
RODRIGO - Que bom.
CECÍLIA - E os teus pais...não falaram nada?
RODRIGO - Mais ou menos a mesma coisa. Sabe, Ciça? Eu acho que as pessoas, quando se casam, recebem tipo um "modelo de separação", sacou? Uma espécie de manual com uma porrada de frases feitas pra usar quando chega a hora de separar. Só pode ser. Porra, o que os teus pais disseram pra você é a mesma coisa que eu escutei. Por isso eu falei de "cumplicidade", lembra?
CECÍLIA - Isso não tem nada a ver, Rô.
RODRIGO - Tá. Então é uma puta coincidência.
CECÍLIA - E como é que você reagiu quando escutou o "manual"?
RODRIGO - Aí é que tá o caô, Ciça. No caso dos teus pais, até que fazia sentido, porque eles tavam se pegando direto. Mas lá em casa...você acredita que eu nunca vi meus pais brigando? Eles tavam sempre tão contentes um com o outro, eram tão carinhosos!? E de repente...meu pai sai de casa!?
CECÍLIA - O que é que ele disse?
RODRIGO - Falou que eles tavam dando um tempo.
CECÍLIA - E tua mãe?
RODRIGO - Foi ela que tentou me convencer que eles não podiam mais ficar juntos. Mas eu tenho certeza que nada que ela falou é verdade. Porra, eu sou filho único, sempre vivi grudado nos dois. Eu teria sacado se alguma coisa estranha tivesse rolando.
CECÍLIA - Mas teus pais são super legais, Rô. Por que eles iriam mentir pra você?
RODRIGO - E eu é que sei?
CECÍLIA - Será que pintou alguém na vida do teu pai ou da tua mãe?
RODRIGO - E se pintou? Não era pra abrir o jogo, ao invés de vir com esse papo ensaiado e falso pra caralho?
CECÍLIA - Se isso aconteceu, sei lá...eles podem ter achado que seria melhor não contar pra você. Pelo menos agora.
RODRIGO - Então, amiga, meu pai e minha mãe são dois filhos da puta! Porque eles sempre me disseram pra não mentir nunca. Aí, na hora do vamo ver, os dois fazem tudo ao contrário.
CECÍLIA - Você não pode afirmar isso.
RODRIGO - Posso sim. Mas tudo bem: minha mãe tá que nem uma louca atrás de mim e eu não tô nem aí pra ela. E o meu pai eu só vi duas vezes depois que ele saiu de casa. A última vez foi hoje de tarde...Sabe, Ciça, aconteceu um lance que me deixou super grilado.
CECÍLIA - Fala.
RODRIGO - Ele foi lá em casa pegar umas paradas que tinha esquecido. Logo depois minha mãe chegou e eles começaram a quebrar o maior pau. Eu fiquei tão nervoso que fechei correndo a porta do quarto e enfiei a cabeça embaixo do travesseiro. Eu não queria escutar nada, sacou? Só queria ficar quieto, no meu canto. Mas aos poucos foi me dando um aperto no coração...então eu te liguei, pra gente conversar. Só que pra sair, eu tinha que passar pela sala. Eu até pensei em descer pelos fundos, mas eu acho que desisti porque...sei lá, de repente, me vendo, eles se tocavam e paravam com aquilo. E meu pai até podia ir embora comigo. Mas quando eu já tava quase entrando na sala...porra, Ciça, eu escutei minha mãe falando umas coisas sinistras pra ele!
CECÍLIA - Tipo o quê?
RODRIGO - Ah, ela falou que ele devia escolher com cuidado os lugares que ia passar a freqüentar...que ele precisava ser discreto, senão todo mundo ia descobrir, até eu.
CECÍLIA - Descobrir o quê?
RODRIGO - Sei lá!
CECÍLIA - Que estranho! E aí?
RODRIGO - Logo em seguida ele foi embora. Aí eu dei um tempo e entrei na sala. Porra, Ciça...a mãe tava bebendo, chorando pra cacete...Quando eu cheguei perto dela, ela levou o maior susto e tentou disfarçar. Mas eu não quis nem saber: perguntei na lata porque o pai tinha que ser discreto.
CECÍLIA - E ela?
RODRIGO - Não disse nada...me abraçou...e continuou chorando.
CECÍLIA - E você?
RODRIGO - Bem, eu fiquei na minha, esperando pra ver se ela se acalmava e então me respondia. Mas de repente ela saiu da sala batidona e se trancou no quarto. O que é que você acha?
CECÍLIA - Não sei...
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CENA 4
Sala da casa de Ana
VERA - Já chega, Ana. Não adianta você ficar se culpando de não ter lembrado de fechar aquela bendita porta. Já aconteceu, não há nada que você possa fazer.
ANA - Mas eu não precisava ter dito aqueles coisas pro Paulo.
VERA - Você não podia adivinhar que o Rodrigo estava entrando na sala.
ANA - Tudo bem: mas, e agora? O que é que eu falo pra ele?
VERA - Nada. Se ele tocar de novo no assunto, você inventa alguma coisa.
ANA - Mas o que?
VERA - Sei lá. Diz que não lembra exatamente o que você falou.
ANA - E você acha que ele vai ficar satisfeito com essa resposta?
VERA - Eu não sei, irmã. Mas depois a gente pensa nisso. Vamos descer que o Renato já deve estar chegando.
ANA - Eu não estou nem um pouco a fim de sair pra jantar.
VERA - Vai te fazer bem. Você precisa arejar um pouco. Sobretudo depois do que aconteceu hoje.
ANA - Tudo bem. Mas me responde só isso: você acha que eu não quis ver?
VERA - Ana, se a gente começar a falar sobre esse assunto só vai parar amanhã de manhã...
ANA - Por favor!
VERA - Irmã, eu já te disse várias vezes. Pra mim é muito estranho você ter ficado casada tanto tempo e nunca ter notado nada.
ANA - Mas você também nunca notou nada de diferente no Paulo. E você convive com ele desde sempre.
VERA - Sim, mas o nosso contato sempre foi muito superficial. Mas vocês se conheceram praticamente na adolescência, estudaram na mesma faculdade, casaram com 23 anos. Viviam grudados. E você nunca percebeu nada!?
ANA - Nunca.
VERA - Nenhum gesto, nenhuma frase, qualquer atitude que indicasse alguma coisa fora do normal.
ANA - Eu já falei, Vera! Nunca notei nada de anormal nele!?
VERA - Pois é isso que eu acho estranho.
ANA - Mas por que, estranho? O que você quer dizer com isso, exatamente?
VERA - Ana, vamos admitir, apenas como hipótese, que em algum momento você possa ter percebido alguma coisa.
ANA - Ai, que inferno...
VERA - Ou ter tido um pressentimento, uma intuição, sei lá...algo nesse sentido.
ANA - Muito bem: e aí?
VERA - Se isso tivesse acontecido, que alternativas você teria? Só duas: checar até que ponto esse pressentimento ou essa intuição poderiam ser verdadeiros ou então negá-los, pura e simplesmente.
ANA - Mas por que eu faria isso?
VERA - Pra se defender de uma possível revelação que te faria sofrer muito. E eu acho que foi isso que você fez: optou por não querer ver.
ANA - Raciocínio brilhante, minha irmã. Só que ele exclui um pequeno detalhe: a possibilidade do Paulo ter sido hábil o suficiente para não deixar transparecer nada, nunca.
VERA - Essa possibilidade não existe. Nem o melhor ator do mundo conseguiria representar um papel tão difícil por quase duas décadas!?
ANA - É...talvez não. A menos que tivesse como platéia uma imbecil como eu. É mais ou menos nessa categoria que eu devo me enquadrar?
VERA - Irmã...será que a gente vai brigar por uma coisa que...
ANA - Quem é que está brigando?
VERA - Eu só estou tentando te ajudar a compreender o que aconteceu. Eu não sei se eu estou certa ou errada, mas é assim que eu penso.
ANA - Tudo bem. Eu até acho que o teu diagnóstico deve estar correto. Afinal, você é uma psicóloga de renome, com uma clientela...
VERA - Ana, vamos parar com isso?
ANA - E é até provável que essa minha cegueira patológica conste de um desses manuais que vocês tanto prezam e que têm a curiosa capacidade de explicar tudo sem a menor possibilidade de engano!
VERA - Ana, por favor...
ANA - E quando você disse “não sei se estou certa ou errada, mas é assim que eu penso”...olha, irmã, me deu uma vontade de rir!?
VERA - Por quê?
ANA -Você reparou no tom que você usou? Ele tinha...sei lá, uma espécie de ternura terapêutica tão ridícula! E depois era uma frase tão falsa!?
VERA - Falsa?
ANA - É claro! Porque você não tem a menor dúvida de que está absolutamente certa. E que portanto nada mais me resta a não ser concordar com você.
VERA - Ana, escuta...
ANA - Escuta você! Na tua opinião, o Paulo apresentou, sim, sinais claríssimos de que era bissexual. E se esses sinais não foram assim tão claros, de qualquer forma eles têm que ter existido, ainda que sutis. E na hipótese de que não tenham sido nem claros nem sutis, restariam pressentimentos, intuições ou qualquer merda parecida. Em resumo: a pobre Ana não tem como escapar dessa arguta e infalível senhora chamada Psicologia, aqui brilhantemente representada pela doutora Vera Albuquerque! (Toca o interfone)
VERA - Deve ser o Renato. Eu digo que você janta conosco outro dia. A gente se fala...(E começa a se afastar)
ANA - Vera! (Corre até ela, a abraça) Me desculpa, irmã! Me desculpa! Eu não queria te magoar. Eu sei que você está tentando me ajudar e....
VERA - Tudo bem. (Novamente o interfone)
ANA - É que...eu...não estou agüentando!? (Começa a chorar)
VERA - Calma, querida...calma. Vai passar.
ANA - Não vai passar nunca!
VERA - Escuta, vamos fazer o seguinte: eu falo para o Renato que você não está se sentindo bem e que eu vou ficar por aqui mais um pouco. (Interfone)
ANA - Não...o Renato foi tão gentil em me convidar pra jantar com vocês...
VERA - A gente janta amanhã.
ANA - Não...vamos hoje mesmo. Vai me fazer bem.
VERA - Você tem certeza?
ANA - Tenho. Deixa só eu jogar uma água no rosto, dá uma retocada na maquiagem, ajeitar um pouco os cabelos...
VERA - Se você for fazer tudo isso, a gente só sai amanhã...
ANA - É só um minutinho. (Ana sai. Toca o interfone. Vera liga o celular)
VERA - A gente já está descendo, amor. E aproveita e fala para o porteiro parar de tocar essa merda, sim? Beijo.
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CENA 5
Calçada em frente ao prédio de Rodrigo
CECÍLIA - Então a gente faz assim, Rô: a praia de amanhã a gente dispensa, mas você vai hoje na festa comigo.
RODRIGO - Eu não tô com cabeça pra festa, Ciça!?
CECÍLIA - Toda a galera vai, cara! Vai ser super animado!
RODRIGO - Tomara...
CECÍLIA - Pôxa, Rô...se você soubesse como eu tô a fim de te ajudar!?
RODRIGO - Eu sei...você tá sendo um barato comigo...(Eles se abraçam)
CECÍLIA - Então vamos fazer assim: a festa vai rolar no play da Mônica. Eu vou tá lá tipo meia-noite. Vou levar o celular e deixar ele ligado direto. Se você quiser falar comigo, é só discar. E se você não ligar, pode deixar que eu mesma ligo!
RODRIGO - Valeu, Ciça. Obrigadão mesmo! (Eles dão um beijinho)
CECÍLIA - Então...inté! Quem sabe?
RODRIGO - Quem sabe? (Ela sai. Rodrigo senta num banco) Mas que merda...
(Rodrigo tira a camisa. Olha em torno. Acende um baseado. Uma música triste sublinha este momento. Surge André. Cessa a música. Ele não parece estar bêbado, mas tem um ar estranho. Ao ver Rodrigo, ele pára, como se hesitasse. Mas depois caminha em sua direção)
ANDRÉ - Pegando uma brisa, Rodrigo? (Rodrigo se assusta e instintivamente tenta esconder o baseado) Fica tranqüilo, amigo. Eu não sou polícia.
RODRIGO - Eu te conheço, cara?
ANDRÉ - Ué, já me esqueceu? Pôxa...e não tem nem um mês que a gente foi apresentado!? E chegamos até a levar um papo muito simpático.
RODRIGO - Não tô me lembrando de papo nenhum contigo, meu irmão.
ANDRÉ - No escritório do teu pai. Você foi até lá pegar uma grana. Como ele não tinha na hora, mandou o boy buscar. E enquanto isso, nós ficamos conversando.
RODRIGO - Ah...agora tô me lembrando. Quando eu entrei pra falar com meu pai você tava na sala dele.
ANDRÉ - Nós trabalhamos juntos. E se você quer saber, eu nunca tive um chefe como teu pai. Ele é uma pessoa maravilhosa.
RODRIGO - É...ele é muito legal mesmo.
ANDRÉ - Escuta...(Pega um cigarro) Me empresta teu isqueiro? (Rodrigo passa o isqueiro, André acende o cigarro) Obrigado. (Devolve o isqueiro) Pode continuar fumando o teu. A barra está limpa.
RODRIGO - Não tô mais a fim não. Eu já tava mesmo pensando em ir pra casa.
ANDRÉ - Você mora nesse prédio, não é?
RODRIGO - Moro.
ANDRÉ - Prédio lindo...
RODRIGO - Pode crer. Bem, amigo, eu vou nessa.
ANDRÉ - Rodrigo, me diz uma coisa: por acaso teu pai está aí?
RODRIGO - Meu pai não mora mais aqui.
ANDRÉ - Eu sei.
RODRIGO - Como é que você sabe?
ANDRÉ - Ele comentou comigo que havia se separado.
RODRIGO - Ah é? Então ele já espalhou a novidade pra todo mundo...
ANDRÉ - Pra todo mundo eu não sei. Mas pra mim ele contou.
RODRIGO - Então...além de trabalhar juntos, vocês são amigos.
ANDRÉ - Muito.
RODRIGO - Há quanto tempo vocês se conhecem?
ANDRÉ - Três meses. Desde que ele me aceitou como estagiário no escritório.
RODRIGO - E...como é o teu nome?
ANDRÉ - André.
RODRIGO - Valeu, cara. Agora eu...
ANDRÉ - Me faz um favor?
RODRIGO - Pode dizer.
ANDRÉ - Se por acaso você falar com seu pai, diz pra ele que eu estive aqui.
RODRIGO - Eu não devo mais falar com meu pai hoje.
ANDRÉ - Ele pode telefonar.
RODRIGO - Acho que não. É melhor você ligar pra ele.
ANDRÉ - Eu já liguei. Mas o celular está desligado. Ou fora de área, sei lá.
RODRIGO - Tenta mais tarde.
ANDRÉ - É o que eu vou fazer. Mas de qualquer forma...me empresta de novo o teu isqueiro, por favor.
RODRIGO - Você ainda tá fumando, cara.
ANDRÉ (Joga fora o resto do cigarro) - Me deu vontade de fumar outro, posso?
RODRIGO - Por mim...(Rodrigo entrega o isqueiro, André acende outro cigarro. Traga profundamente. Devolve o isqueiro)
ANDRÉ - Desculpe...é que eu estou meio nervoso.
RODRIGO - Aconteceu alguma coisa?
ANDRÉ - Como assim?
RODRIGO - Sei lá. Entre você e meu pai.
ANDRÉ - Por que teria acontecido?
RODRIGO - Bem...vocês trabalham juntos. Devem ter se visto hoje. E você parece tão fissurado pra falar com ele...
ANDRÉ - E estou mesmo.
RODRIGO - Então por que você não espera ele no apart? Ele deve ter te dito que está morando num apart.
ANDRÉ - Disse.
RODRIGO - Você sabe onde fica?
ANDRÉ - Sei.
RODRIGO - Então vai lá e marca uma presença na recepção. Aí não tem erro.
ANDRÉ - É uma idéia. Mas...e se ele resolveu passar o fim de semana fora?
RODRIGO - Aí, meu irmão, só mesmo na segunda, no escritório.
ANDRÉ - Eu não vou mais aparecer lá.
RODRIGO - Por quê?
ANDRÉ - Porque eu fui despedido. Quer dizer: despedido não é bem o termo. O mais correto seria dizer “dispensado”.
RODRIGO - Meu pai te dispensou?
ANDRÉ - Ele mesmo. Mas as razões não ficaram muito claras pra mim. Por isso estou querendo tanto falar com ele. Quem sabe dá pra reverter a situação. Eu preciso muito...desse emprego.
RODRIGO - Ele sabe disso?
ANDRÉ - Claro. Eu disse isso a ele. Mas talvez não tenha sido muito convincente.
RODRIGO - Tenta de novo.
ANDRÉ - É o que eu vou fazer.
RODRIGO - De qualquer forma, se ele ligar, eu dou o teu recado.
ANDRÉ - Eu te agradeço.
RODRIGO - Até mais, meu irmão. (Rodrigo começa a se afastar)
ANDRÉ - Espera! (Rodrigo pára) Só mais uma coisa...
RODRIGO - Fala.
ANDRÉ - Você é muito parecido com seu pai, sabia?
RODRIGO - Todo mundo diz isso.
ANDRÉ - Os olhos...o feitio do rosto...esse jeito de falar com a cabeça meio de lado...As meninas não devem te deixar em paz, não é mesmo?
RODRIGO - Até que deixam.
ANDRÉ - Com o Paulo devia ser a mesma coisa. Só que, para a desgraça das meninas da época, ele renunciou muito cedo a uma promissora carreira de sedutor. E a culpada é a sua mãe, sabia?
RODRIGO - Deve ter sido.
ANDRÉ - Olha, Rodrigo...eu não tive o prazer de conhecer sua mãe, mas nas poucas vezes em que seu pai falou dela, eu tive a impressão de que ele a amava profundamente. E que ela devia ser uma mulher maravilhosa.
RODRIGO - Ela é uma mulher maravilhosa.
ANDRÉ - Eu acredito. E no entanto...
RODRIGO - O quê?
ANDRÉ - Como é que pode? Tudo parecia indicar que os dois ficariam juntos pra sempre e de repente...cada um vai pro seu lado!?
RODRIGO - Isso acontece.
ANDRÉ - E ninguém fica sabendo as razões da separação!? Não é estranho?
RODRIGO - Não acho não. Ninguém tem nada com isso.
ANDRÉ - Você tem. E eu aposto que eles falaram tudo pra você, menos a verdade. Estou errado?
RODRIGO - Escuta aqui, André: eu não tô nem um pouco interessado em falar da separação dos meus pais contigo, sacou?
ANDRÉ - Por que não? Talvez eu possa te ajudar a entender o que aconteceu.
RODRIGO - E eu tô te pedindo alguma ajuda? Qual é, meu camarada, se situa!
ANDRÉ - Nossa...mas quanta agressividade!? Eu só estava querendo...
RODRIGO - E tem mais uma coisa: eu tô começando a achar que você não veio até aqui pra encontrar meu pai, não.
ANDRÉ - Ah, não? E pra que foi que eu vim?
RODRIGO - Não faço a menor idéia.
ANDRÉ - Será que eu vim até aqui pensando em encontrar você?
RODRIGO - Se foi isso, já encontrou. E aí?
ANDRÉ - E aí...foi um prazer enorme! Você é realmente um menino encantador!?
RODRIGO - É o que todo mundo diz. Mais alguma coisa? (André solta uma risada) Tá rindo de quê, meu irmão?
ANDRÉ - Da tua...como é que eu posso dizer? Ingênua arrogância!? Eu acho que essa é a expressão mais adequada. Sim, porque você tem que ser muito ingênuo e arrogante pra falar comigo nesse tom. Logo comigo...
RODRIGO - E o que é que você tem de tão especial?
ANDRÉ - Eu? De repente, eu não tenho nada mesmo de especial. E se tenho, é melhor que você nunca venha a saber o que é.
RODRIGO - Olha aqui, André: se você veio até aqui falar com o meu pai, ele não está. Se teu assunto é comigo, a hora é essa. E se não é nem uma coisa nem outra, segue teu rumo, meu irmão, que esse papo já tá começando a ficar sinistro!
ANDRÉ - Sinistro ele ficaria, ô pirralho, se eu resolvesse...
RODRIGO - Resolvesse o quê?
ANDRÉ - Foder com a tua vida, por exemplo.
RODRIGO - Ah é? Quer dizer que você pode foder com a minha vida?
ANDRÉ - Não só com a tua. Com a da tua mãe também. E com a do teu pai nem se fala!
RODRIGO - É mesmo? Pois então fode, que eu quero ver!
ANDRÉ - Não vale a pena. É melhor a gente parar por aqui.
RODRIGO - Agora? Nem pensar! Tu só sai daqui depois de me dizer qual é a tua!
ANDRÉ - Eu não tenho nada pra te dizer!
RODRIGO - E pra minha mãe? Ela deve estar em casa. Eu posso chamar!?.
ANDRÉ - Escuta, Rodrigo...
RODRIGO - Melhor que isso: eu interfono, ela desce e vamos nós três até o apart do meu pai. Quando ele chegar, você aproveita e fode com toda a família de uma vez! Que tal?
ANDRÉ - Esquece o que disse, cara. Eu falei sem pensar.
RODRIGO - Problema teu. Agora se vira!
ANDRÉ - Eu te peço desculpas, ok?
RODRIGO - Eu tô cagando pras tuas desculpas!
ANDRÉ - Pelo amor de Deus, Rodrigo! Vamos acabar com isso!
RODRIGO - Só depende de você.
ANDRÉ - Mas eu já disse que falei sem pensar. Também já me desculpei. Que mais você quer?
RODRIGO - Eu quero que você não me obrigue a te enfiar a porrada!
ANDRÉ - O que é isso? Ficou maluco?
RODRIGO - Porque é isso que eu vou fazer se você não puser todas as cartinhas na mesa...agora!
ANDRÉ - Você não vai me forçar a fazer o que eu não quero! Nem que você me enfie a porrada, como o seu pai fez hoje!
RODRIGO - Ah...o meu pai te enfiou o cacete? Mas ele não levanta a mão nem pra espantar uma mosca!? O que é que tu fez pra ele perder a cabeça? Ameaçou foder com a vida dele também?
ANDRÉ - Eu não ameacei nada. E se alguém fodeu com a vida de alguém, foi ele com a minha!
RODRIGO - Só porque ele te dispensou do escritório?
ANDRÉ - Ele me dispensou da vida dele, seu idiota!
RODRIGO - Como é que é?
ANDRÉ - Mas você não sabia? Nem ao menos desconfiava?
RODRIGO - Desconfiava de quê, porra?
ANDRÉ - Rodrigo, meu querido! Teu pai não era só meu chefe: era meu amante!
RODRIGO - Mentira!
ANDRÉ - Ele largou a otária da tua mãe pra ficar comigo!
RODRIGO - Cala essa boca!
ANDRÉ - E fica sabendo que ele sempre transou com garotos de programa!
RODRIGO - Filho da puta! (Rodrigo dá um soco em André. Eles se atracam. Entra uma música desesperada, só interrompida quando André perde o equilíbrio, bate com a cabeça na quina do banco e cai no chão, ali permanecendo imóvel. Cessa a música. Rodrigo olha fixamente o corpo)
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CENA 6
Sala da casa de Ana
ANA - Eu não entendo, Paulo!? Será que foi uma tentativa de assalto? Ele pode ter reagido e...
PAULO - Não teve nada a ver com assalto.
ANA - E se ele usava drogas sem a gente saber? O rapaz podia ser o fornecedor!? Eles se desentenderam e...
PAULO - O que aconteceu não tem nenhuma relação com drogas.
ANA - Mas tem a ver com o quê?
PAULO - Ana...o rapaz que morreu...é o André.
ANA - O André? O teu...
PAULO - Ele mesmo.
ANA - Mas...ele não sabia que você saiu de casa?
PAULO - Claro que sabia.
ANA - Então..o que ele veio fazer aqui?
PAULO - Se vingar. Só pode ser.
ANA - Se vingar? (Toca a campainha. Ana abre a porta. Cecília entra) Ah, meu amor! Que bom que você veio! (Ana se abraça com Cecília, começa a chorar)
CECÍLIA - Calma, dona Ana. Tudo vai se resolver.
PAULO - Querida, a Ana me disse que ele ligou pra você.
CECÍLIA - Isso.
PAULO - E ele falou onde está?
CECÍLIA - Falou o nome de uma rua.
PAULO - Onde é que fica?
CECÍLIA - Ele não sabe direito.
PAULO - E como é que ele chegou nesse lugar?
CECÍLIA - Ele pegou um táxi e rodou até o dinheiro acabar. Aí ligou pra mim de um orelhão. Pediu pra eu ir até lá.
ANA - Eu vou com você!
CECÍLIA - Não, dona Ana.
ANA - Por que não?
CECÍLIA - Ele foi muito claro: falou pra eu ir sozinha.
PAULO - Mas isso não faz sentido. Nós temos direito de saber onde o Rodrigo está. Você não pode nos negar essa informação.
CECÍLIA - Posso sim! Posso e vou!
PAULO - A polícia já deve estar atrás dele, Ciça! E se ele for encontrado...
CECÍLIA - Ele não vai ser encontrado. A não ser por mim.
ANA - Meu amor, escuta...
CECÍLIA - Escutem vocês: eu só vim aqui pra saber se vocês têm algum dinheiro pra me dar. Meus pais ainda não sabem de nada. Eles pensam que eu estou numa festa. Mas eu só tenho trinta reais. E essa grana não deve dar nem pro táxi.
PAULO - Ciça, eu te dou o dinheiro que for preciso. Mas eu acho que você...
CECÍLIA - Não há tempo a perder, doutor Paulo! Será que o senhor não entende? O Rodrigo tá sozinho, desesperado, me esperando! Eu preciso ir pra lá agora!
ANA - Eu vou ver o que eu tenho na minha bolsa.
PAULO - Não precisa, Ana. Eu tenho aqui. (Dá o dinheiro a Cecília) Toma! Trezentos...será que dá?
CECÍLIA - Deve dar. Pelo menos até amanhã.
PAULO - Eu vou te dar os meus cartões!
CECÍLIA - Não é preciso. Tchau! (Saindo)
ANA - Liga pra gente, Ciça! Pelo amor de Deus!
CECÍLIA - Se der, eu ligo. (E sai. Paulo e Ana ficam um tempo em silêncio)
ANA - E então, Paulo? O rapaz era o André...ele veio aqui pra se vingar...qual é o sentido de tudo isso?
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CENA 7
Rua sombria
(Rodrigo caminha de um lado para o outro, olhando ansiosamente à sua volta. Num dado momento, surge Marli, vestida como uma típica prostituta de classe baixa. Examina Rodrigo de passagem, mas segue como se não fosse parar. No entanto, alguns passos adiante, ela pára e vai até ele)
MARLI - E aí, boyzinho? Esqueceu o caminho de casa?
RODRIGO - Eu...tô esperando uma pessoa.
MARLI - Sei...e o que é tu pretende fazer enquanto essa pessoa não chega?
RODRIGO - Ela já deve estar chegando.
MARLI - Tua namorada?
RODRIGO - Uma amiga.
MARLI - Sei...um boyzinho cheirando a Zona Sul tá aqui, nesse fim de mundo, esperando a gatinha...
RODRIGO - A gente vai numa festa.
MARLI - É mesmo? Aqui no bairro?
RODRIGO - Acho que sim.
MARLI - Porra, mas que otária que eu sou!? Saindo pra viração lá na Lapa, longe pra caralho, em vez de...Mas até que tu podia me ajudar...Vê só: te pago um boquete rapidinho e com a grana tiro essa noite de folga! E aí vamo nós três - eu, você e a tua amiguinha - pra essa tal festa! Que é que tu acha?
RODRIGO - Eu tô sem dinheiro.
MARLI - Ah, isso é mal. E aí eu já nem tô mais pensando em mim, boyzinho. Tô pensando no que os cara vão fazer quando sacarem que tu tá durinho. Vai ser moleza não...
RODRIGO - Eu...não estou entendendo.
MARLI - Mas vai entender. Já já...tchau, boyzinho...(E começa a se afastar)
RODRIGO - Escuta! (Ela pára e se vira)
MARLI - Que que é? Descobriu que tinha uma graninha, no fundo do bolsinho, dessa bermudinha linda?
RODRIGO - Olha...
MARLI - Mudou de idéia e tá a fim de levar uma chupadinha maravilhosa?
RODRIGO - Amiga...como é o teu nome?
MARLI - Tenho vários...mas pode me chamar de Marli.
RODRIGO - Marli...eu não tenho dinheiro mesmo. Se tivesse...
MARLI - Então, boyzinho, começa a rezar...(Nesse momento, se escuta um canto funk. Marli olha na direção de onde vem o som e depois para Rodrigo) Presta atenção: faz o que eu mandar e fala o menos possível! (Os que cantam já estão quase em cena. Marli abraça Rodrigo e o beija)
RODRIGO - Que que você tá fazendo?
MARLI - Finge ao menos que tu gosta, ô viadinho! Tua vida depende disso, porra! (Eles começam a se beijar. Surgem três marginais: gorro preto, armas pesadas à mostra etc. Eles param e olham a cena)
CABEÇA - Grande Marli! (Marli se vira para ele) Quer dizer que agora tu fatura aqui mesmo? Em pé e no sereno?
MARLI - Pô, Cabeça, que susto tu me deu!?
CABEÇA - Te assustei? Então é porque tu tá devendo...
MARLI - Eu? Devendo pra tu? Eu tô mais é esperando meu troco! (Bandidos riem)
CABEÇA - E aí, maninha? Onde é que tu descolou essa preciosidade?
MARLI - O boyzinho aqui é meu cliente. A gente se conheceu lá na Zona Sul e já saiu várias vezes. E ele ficou tão amarradão que hoje veio até aqui pra me buscar.
CABEÇA - Não diga!? E veio como? A cavalo? Voando?
MARLI - Tu tá a fim de curtir com a minha cara, ô Cabeça?
CABEÇA - Que é isso, maninha!? É que eu não tô vendo nenhum carro na parada. Daí...
MARLI - Ele veio de táxi, Cabeça. Mas é que ele chegou um pouco cedo, eu ainda não tinha acabado a produção. Então ele dispensou. A gente tava justamente indo pro ponto. Só que bateu o maior tesão e a gente deu uma paradinha. Não é, amor? (Rodrigo tenta esboçar um sorriso)
CABEÇA - Tu é um cara de sorte, pivete. Porque a Marli aqui é nossa mana. A gente até foi meio que criado junto. Se não...ia ficar meio esquisito pro teu lado.
RODRIGO - Por quê? (Os marginais riem)
CABEÇA - Por quê? Me diz uma coisa, neném: tu sabe onde é que tu tá?
RODRIGO - O bairro? (Os marginais riem)
MARLI - Dá um tempo, Cabeça. Porra! Já deu pra tu ver que o menino é a maior inocência. Segue teu rumo, mano, e deixa a gente curtir a vida!
CABEÇA - Tudo bem, maninha. Mas deixa eu te dar um alerta: hoje não é bom tu ficar azarando na área.
MARLI - Por quê?
CABEÇA - Sabe o Zé Maluco, lá do Zacarezinho?
MARLI - Sei. Que que tem ele?
CABEÇA - Pois é: ele andou espalhando que vinha aqui hoje pra ganhar as boca. E nós tamo numa de prontidão, sacou? Some daqui com o teu boyzinho, porque de repente a cobra pode fumar.
MARLI - Valeu, Cabeça.
CABEÇA - Fica na paz, maninha. (E os três saem cantando a mesma música)
MARLI - Agora tu já deve ter sacado aonde é que tu veio parar.
RODRIGO - Quem são essas caras?
MARLI - São da Comlurb. Só que tão sem uniforme. Vamo nessa, porra!
RODRIGO - Eu não posso sair daqui. Tô esperando minha amiga e...
MARLI - Escuta aqui, seu mané: tu não ouviu o que o Cabeça falou? A qualquer momento isso aqui pode virar a filial do inferno!
RODRIGO - Eu sei, mas a Ciça já deve estar chegando!?
MARLI - Então foda-se, boyzinho! Eu é que não vou ficar aqui de bobeira pra levar tiro! (Ela começa a se afastar. Cecília chega apressada e muito assustada)
RODRIGO - Ciça!
CECÍLIA - Rô! (Eles se abraçam. Marli olha a cena à distância)
RODRIGO - Já tava achando que você não ia conseguir chegar!
CECÍLIA - É que o motorista me deixou a umas cinco quadras daqui. Disse que daquele ponto ele não passava. Por que será?
MARLI - Porque ele já deve saber que pode ter festa de São João no bairro...
CECÍLIA - Quem é ela?
MARLI - Nossa Senhora da Conceição...só que vestida pra nigth!
RODRIGO - Depois eu te explico.
MARLI - Explica logo, boyzinho. Se não, pode não dar tempo.
CECÍLIA - Eu não estou entendendo.
RODRIGO - Me ajuda, Marli. Eu preciso de um lugar pra ficar. Pelo menos até amanhã.
MARLI - Por quê? Tá fugindo de alguém?
RODRIGO - Mais ou menos.
MARLI - Já saquei. Tu engravidou a menina, o pai dela descobriu e agora tá te caçando...(Sons de tiros. Música frenética. Homens com armas de grosso calibre cruzam a cena. Rodrigo e Cecília se abraçam, apavorados. Após alguns instantes...)
MARLI - Vamo sair daqui, caralho!
RODRIGO - Pra onde?
MARLI - Lá pra casa! (Ela corre. Rodrigo e Cecília a seguem)
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CENA 8
Sala da casa de Ana
PAULO - Me diz uma coisa: alguém viu o que aconteceu?
ANA - Só o Severino. Ele estava na portaria e viu eles conversando. E contou que de repente começaram a brigar. Ele correu pra apartar, mas quando chegou perto o André já estava caído, numa poça de sangue.
PAULO - E o Rodrigo? Disse alguma coisa pra ele?
ANA - Não. Saiu correndo, pegou um táxi e sumiu.
PAULO - Mas o que será que ele falou pro Rodrigo, a ponto dele perder a cabeça desse jeito?
ANA - O que é que você acha, Paulo? Só pode ter falado de vocês!?
PAULO - Mas por que o André faria isso?
ANA - Pra se vingar. Não foi o que você disse?
PAULO - Sim, mas eu posso estar enganado.
ANA - É pouco provável. Pensa bem, Paulo: que vingança poderia ser mais devastadora do que contar para um adolescente que o pai é gay!?
PAULO - Tudo bem: mas o que é que ele esperava com isso? Que eu me reconciliasse com ele?
ANA - Ele não esperava mais nada, Paulo. A não ser sair da tua vida acabando com ela. E com a minha também. E talvez com a do Rodrigo.
PAULO - Filho da puta!
ANA - Mas meu filho e eu ainda temos uma pequena chance, dependendo do que venha a acontecer. Mas você não tem nenhuma.
PAULO - Como assim?
ANA - Você nunca vai se livrar da culpa, Paulo.
PAULO - Culpa?
ANA - Exatamente. De ter mentido pra mim durante 17 anos. De ter saído de casa por causa de um sujeito que você mal acabara de conhecer. E mais: de não ter percebido que esse tal de André não valia nada!
PAULO - Ana, eu não podia adivinhar que...
ANA - Como não? O que você esperava de um garoto recém saído da faculdade, que além de conseguir um estágio num dos mais importantes escritórios de arquitetura da cidade, ainda por cima vislumbra a chance de arrebatar o coração do patrão, o que facilitaria sua ascensão profissional? Será que nunca passou pela sua cabeça que você estava sendo usado?
PAULO - Você não pode afirmar isso.
ANA - É claro que posso.
PAULO - Todo esse teu raciocínio é fruto de uma única coisa: preconceito!
ANA - Não diga!?
PAULO - Se fosse uma estagiária você não pensaria dessa forma.
ANA - Isso não altera nada. Em vez de um michê, teríamos uma puta, que tentaria manipular você do mesmo jeito. Mas seria menos vergonhoso, concorda?
PAULO - Olha, Ana...eu nem sei o que te dizer...
ANA - Não diz nada. Porque eu não estou nem um pouco interessada em continuar essa conversa. Tudo que eu quero é que você vá embora agora.
PAULO - Eu gostaria de ficar. A Cecília pode telefonar.
ANA - Se ela ligar eu te aviso.
PAULO - Tem certeza?
ANA - O que você quer dizer com isso?
PAULO - Bem...depois de tudo que você disse, não me surpreenderia nem um pouco se você tentasse resolver tudo sozinha.
ANA - Por que eu faria isso?.
PAULO - Por quê? Mas é tão óbvio: pra me punir!
ANA - Que estupidez é essa, Paulo?
PAULO - Estupidez? Mas eu não sou o único responsável por toda essa tragédia? Então, nada mais natural que eu seja excluído de todos os esforços para remediar o mal que causei!?
ANA - Olha, Paulo: que você é responsável por tudo que está acontecendo eu não tenho a menor dúvida. Mas isso não significa que você tenha deixado de ser pai do Rodrigo. E muito menos que eu deseje que você se ausente num momento tão delicado como este.
PAULO - É mesmo? Que ótimo! Eu fico muito aliviado...
ANA - Mas quando tudo isso acabar, aí sim eu espero nunca mais precisar te ver na minha vida.
PAULO - Eu também. Ao menos nisso nossos desejos coincidem...
ANA - Agora vai embora. Por favor...
PAULO - Nesse segundo. Mas se eles ligarem, não esquece de dizer que o Rodrigo deve permanecer onde está por mais 24 horas. Pra evitar o flagrante.
ANA - Eu digo.
PAULO - E fala também que...eu não vou deixar ele ser preso de jeito nenhum. Diz pra ele que eu posso pagar o melhor advogado e...
ANA - Ele sabe. (Toca o interfone) Ah, meu Deus! Quem será? (E sai para atender. Após alguns instantes, ouve-se sua voz) Sim...ele está aqui. Tudo bem, pode mandar subir. (Ana retorna à sala) O porteiro falou que é um sujeito da polícia. Disse que tinha urgência em falar com você.
PAULO - Comigo? Mas o que será que ele quer?
ANA - Como é que eu vou saber?
PAULO - Não ficou acertado da gente comparecer amanhã na delegacia para prestar outro depoimento?
ANA - Foi o que eu entendi. (Soa a campainha)
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CENA 9
Sala da casa de André
(André está falando num gravador)
ANDRÉ - Eu nem sei porque é que eu estou fazendo isso, Paulo. Falando comigo mesmo num gravador. É tão ridículo. Mas eu não estou agüentando. Não tem nem duas horas que você saiu daqui e eu já te liguei uma dez vezes. No apart disseram que você ainda não tinha voltado e o teu celular está desligado. Mas eu preciso muito falar com você. Na verdade, eu só queria te dizer uma coisa: tudo isso só aconteceu porque você está com medo, entende? Medo da decisão que você tomou de acabar um casamento de 17 anos pra ficar comigo. E essa decisão, não custa lembrar, você tomou sozinho, certo? Em nenhum momento eu tentei te influenciar. Nunca te pedi pra fazer isso. Porque eu sabia que só você podia resolver se queria ou não mudar radicalmente a tua vida. Muito bem: e o que eu recebo em troca? Inicialmente, uma porrada. Depois, uma explicação ridícula: “Eu estou amando a Ana cada vez mais e essa divisão está me matando!”. Porra, Paulo...o que está te matando é a tua covardia. E é ela que vai te fazer recomeçar aquela vida que você já não suportava mais. E isso que você quer? Voltar a caçar garotos pela rua? Contratar garotos em agências? Se é isso, tudo que eu posso fazer é te desejar sorte. Porque você vai precisar muito dela. O tempo vai passar, você vai envelhecer e vai se tornar cada vez mais difícil encontrar alguém que queira alguma coisa de você além do teu dinheiro. Você sabe como é esse meio, Paulo. Não tem ninguém nele disposto a qualquer troca que seja boa para ambas as partes. Mas enfim...isso será problema teu. De qualquer forma, eu quero te dizer tudo isso pessoalmente. Mesmo sabendo que dificilmente você me dará razão ou voltará atrás na tua decisão. Mas eu faço absoluta questão que você me escute. É tudo que eu peço. Por favor, Paulo, não me negue isso...não me obrigue a tomar uma decisão desesperada...(André desliga o gravador, toma um gole de vodka)
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CENA 10
Sala da casa de Ana
FELIPE - Boa noite. Eu sou o delegado Felipe Mello, da 25ª DP. Eu comando a equipe que está cuidando do...
ANA - Entre, por favor.
FELIPE - Obrigado. (Felipe entra. Vai até Paulo, estende a mão) Boa noite.
PAULO - Como vai? (Eles trocam um rápido aperto de mão)
ANA - Bem...o senhor disse que tinha urgência em falar com meu marido.
FELIPE - Sim. Eu passei no endereço que o senhor nos forneceu. Mas como não o encontrei lá, imaginei que o senhor pudesse estar aqui.
PAULO - Alguma notícia do meu filho?
FELIPE - Ainda não. Mas surgiram algumas novidades. E eu achei que seria conveniente, para o senhor, ter uma conversa, digamos, não oficial comigo...(Ana indica uma cadeira a Felipe)
ANA - Por favor. (Ana e Paulo se sentam, mas Felipe fica de pé)
FELIPE - Eu preferia falar em particular com o doutor Paulo.
ANA - Em particular? Mas por quê?
PAULO - Tem alguma relação com o Rodrigo?
FELIPE - Em parte.
ANA - Como assim?
FELIPE - Bem...o que eu tenho a revelar pode ser muito útil na defesa do seu filho, porque sugere que ele possa ter reagido a uma provocação intolerável. Mas ao mesmo tempo...
PAULO - Escuta: qualquer coisa relativa ao Rodrigo diz respeito a nós dois. Não há nenhuma razão para a minha esposa ser excluída dessa conversa.
FELIPE - Ex-esposa, se não me engano...
ANA - Isso não altera nada. Nós fomos casados 17 anos e estamos separados a apenas duas semanas. Por favor, diga o que tem a dizer. São duas da manhã e nós estamos muito cansados.
FELIPE - Tudo bem...(Ele se senta) Eu estava apenas tentando preservá-la.
PAULO - Do quê?
FELIPE (Exibindo uma fita cassete) - Disso aqui. Essa fita cassete foi encontrada no apartamento da vítima. E ela contém uma série de revelações...algumas, como eu já disse, poderão ser muito úteis para o seu filho. Mas nem todas...
PAULO - Escuta: nós estamos passando por uma situação terrível. E eu não vejo a menor necessidade de torná-la ainda mais penosa. Portanto, eu peço ao senhor que seja totalmente franco e nos diga o que está pretendendo.
FELIPE - Como assim?
PAULO - O senhor sugere que essa fita pode ser útil na defesa do meu filho, mas ao mesmo tempo dá a entender que ela contém revelações que seria melhor não divulgar. Estou enganado?
FELIPE - Nem um pouco.
PAULO - E que revelações são essas?
FELIPE - De caráter pessoal. Eu diria que até mesmo de...natureza íntima.
PAULO - Nós podemos ouvir?
FELIPE - É claro. Mas eu volto a insistir que seria melhor ela...
ANA - Coloque a fita, por favor.
FELIPE - Tudo bem...(Felipe instala a fita num pequeno gravador) Eu só tomei a liberdade de adiantar um pouco a fita, porque ela é muito longa. Mas o que vale a pena ser escutado está neste pequeno trecho que eu selecionei. Podemos? (Ana e Paulo trocam um olhar angustiado) Então, vamos lá...(Felipe aciona o gravador)
VOZ ANDRÉ - “Então é isso, doutor Paulo. São quase dez horas e eu já estou cansado desse monólogo ridículo. Quando você e a Ana discutiram hoje, você veio para a minha casa. Como nós brigamos, é possível que você tenha voltado para a casa dela. Deve ser um hábito que você cultiva: ter uma briga numa casa e procurar refúgio em outra. Enfim, como você não está no apart, vou fazer uma visitinha ao teu antigo lar. Mas não se preocupe: eu pergunto por você na portaria e se me disserem que você não está, eu vou embora. Mas se estiver, peço ao porteiro para interfonar e espero que você se digne a descer. Eu prometo não tomar mais do que cinco minutos do teu precioso tempo. Espero que você não se aborreça com essa última e desesperada tentativa de te fazer entender que você está tomando uma decisão completamente equivocada. Ainda ontem, você lembra do que me disse quando a gente fazia amor? Pouco antes de gozar, você disse que eu era uma pessoa maravilhosa e que você nunca ia deixar eu ir embora da tua vida! E depois, enquanto a gente descansava abraçados, você tornou a dizer pela milésima vez que eu era completamente diferente de todos aqueles garotos de programa com quem você transou. E era diferente porque te amava. E você também se sentia outro, porque estava amando. E então? Nada disso era verdade? (Ana sai da sala transtornada. Felipe desliga o gravador, volta a guardá-lo num dos bolsos da jaqueta, mas permanece com a fita nas mãos)
FELIPE - Eu avisei que era melhor ela não estar presente.
PAULO - Tem mais o quê aí na fita?
FELIPE - Nada de muito importante. Alguns palavrões...mais alguns detalhes da intimidade de vocês...Ah, lá pelas tantas ele ameaça aparecer no seu escritório pra fazer um escândalo. Mas eu não acredito que chegasse a tanto. Eu acho que ele queria apenas intimidar o senhor. Enfim, até dá para compreender...ele estava desesperado por ter sido, segundo ele, injustamente abandonado.
PAULO - Muito bem. Então podemos ir direto ao assunto. Qual é o seu plano?
FELIPE - Plano?
PAULO - Com relação a essa fita.
FELIPE - Entregá-la ao senhor!?
PAULO - E quanto isso vai me custar?
FELIPE (Depois de um tempo) - Quanto o senhor acha que ela vale?
PAULO - Não sei. Eu nunca fiz chantagem com ninguém.
FELIPE - Bem...em função do que ela contém - provas irrefutáveis de que o senhor era amante desse tal de André - e também considerando o fato de que fica claro que o senhor sempre teve relações com garotos de programa, embora fosse casado...E levando também em conta que o senhor é um arquiteto de grande projeção...Enfim, somando tudo isso eu acho que...digamos...uns 250 mil dólares estariam de bom tamanho. O que é que o senhor acha? No seu lugar, doutor Paulo, eu analisaria essa proposta com bastante carinho. Afinal, se essa gravação for anexada ao inquérito ou cair nas mãos da imprensa, a sua vida estará liquidada. E não apenas a sua: a da sua esposa também...perdão, ex-esposa...e a do seu filho. Pense bem, doutor Paulo: será que vale a pena pôr em risco tanta coisa importante por causa de uma quantia que não vai fazer a menor falta ao senhor?
PAULO - Vamos supor que eu aceite a sua proposta. Mas...e quanto ao meu filho? Mesmo que a gente chegue a um acordo, ele não impede que o Rodrigo seja preso e talvez condenado. E evitar que isso aconteça é muito mais importante pra mim do que tomarem conhecimento dessa fita.
FELIPE - Concordo plenamente. Eu, se fosse pai, e estivesse no seu lugar, pensaria da mesma forma. E é por isso que eu já tomei algumas providências. Três, para ser mais preciso.
PAULO - E quais são elas?
FELIPE (Guarda a fita) - A primeira diz respeito ao seu filho. Eu dei ordem pra que ninguém saia na caça dele. Pelo menos por enquanto...A segunda envolve o porteiro, o caríssimo Severino. Veja bem: em seu primeiro depoimento, assim que a polícia chegou, ele declarou que viu o Rodrigo atracado com o André, que portanto só poderia ter morrido em função dessa briga. Assim sendo, o seu filho seria o único responsável. No entanto, alguma coisa me dizia que o senhor Severino poderia ter se equivocado. Afinal, ele estava muito abalado e podia perfeitamente ter relatado não o que de fato aconteceu, mas o que supôs ter acontecido. Então, eu mandei trazê-lo à delegacia. E aí, doutor Paulo, produziu-se um verdadeiro milagre! Em seu novo depoimento - o que está valendo, o oficial - a única testemunha do que se imaginava ser um crime declarou que nem chegou a haver uma briga!? E não contente em admitir que havia se enganado, o prezado Severino teve a gentileza suplementar de declarar que foi o André quem partiu pra cima do seu filho, mas escorregou e bateu com a cabeça na quina daquele banco, tendo sido essa pancada a causa da sua morte. Donde se conclui que se o Rodrigo sequer teve tempo de encostar no rapaz, é claro que não pode ser responsabilizado por coisa alguma.
PAULO - E por que então ele teria fugido?
FELIPE - Ora, doutor Paulo: ele ficou desnorteado, o que é perfeitamente compreensível, já que se trata de um adolescente.
PAULO - E qual a razão do Severino ter alterado de forma tão radical o seu depoimento?
FELIPE - Em minha opinião, foram duas as razões. A primeira, uma elevada dose de bom senso...indispensável em situações como esta. Quanto à outra...o senhor por acaso sabia que a mãe dele está muito doente, precisando urgentemente de um tratamento que ele jamais poderia pagar?
PAULO - Não...não sabia.
FELIPE - Mas eu fiquei sabendo. Então disse a ele que uns dez mil reais seriam suficientes para devolver a saúde de sua querida mãezinha e ainda sobraria um belo troco. E que ele teria essa quantia imediatamente, desde que embarcasse ainda hoje para a vilazinha miserável lá no Nordeste onde a dita senhora agoniza. Olha, doutor Paulo: ele aceitou na mesma hora! E ficou tão feliz e agradecido que tudo indica que o seu condomínio terá que providenciar com urgência alguém para substituir esse filho tão devotado...
PAULO - E quanto à terceira providência?
FELIPE - Bem...uma vez resolvida a questão Severino, restava encontrar uma justificativa plausível para a presença do André em frente ao seu prédio, semi-embriagado e provavelmente disposto a fazer um escândalo. Por que ele estaria ali? É simples: porque acabara de ser despedido.
PAULO - Como é que o senhor sabe que eu havia despedido o André?
FELIPE - Ele menciona isso na fita. Mas é claro que, no seu depoimento que eu tomarei amanhã, o senhor terá que justificar essa demissão em termos estritamente profissionais. Não interessa a ninguém, muito menos ao senhor, que os verdadeiros motivos venham à tona...E então, doutor Paulo? Fechamos o negócio? (Ana reaparece)
PAULO - Quanto tempo eu tenho para lhe dar uma resposta?
FELIPE - Bem...se não me engano, o depoimento de vocês está marcado para 14 horas, não é mesmo?
PAULO - Certo.
FELIPE - Então...este fica sendo o prazo limite.
PAULO - Mas...
FELIPE (Entregando um cartão a Paulo) - Aí tem o telefone da minha casa e o meu celular. Eu aguardo um chamado seu. Tenham um bom descanso. (E sai)
ANA - O que aconteceu, Paulo? Que resposta é essa que ele está querendo?
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CENA 11
Sala da casa de Marli
(Rodrigo e Cecília estão agachados num canto. Marli em outro. Os tiros, já esparsos, acabam cessando. Batem à porta)
VOZ DE VITINHO (OFF) - Abre essa porta, Marli! Pelo amor de Deus! (Marli vai até a porta)
MARLI - Quem é que tá aí?
VOZ DE VITINHO (OFF) - Sou eu, porra! Abre! (Ela abre. Vitinho entra com uma saca) Que que foi, amiga? Será que o tiroteio comprometeu teus tímpanos e você não reconhece mais a minha voz? (Vê Rodrigo e Cecília, solta um grito)
MARLI - Que é isso, cara? Pirou?
VITINHO - Quem são essas crianças, Marli? É seqüestro?
MARLI - Não fala merda, Vitinho!
VITINHO - Tu agora virou carcereira?
MARLI - Qual é, meu irmão? Tá me estranhando?
VITINHO - Mas como é que você foi entrar nesse caminho, criatura desgarrada? Tu já tá devendo os caralho lá no Céu, desde que virou puta!
MARLI - Ô Vitinho, quer dá um tempo?
VITINHO - Eu vou orar por você, irmã em Cristo! Deus é pai e vai escutar as minhas preces! (Vitinho se ajoelha e começa a rezar em voz baixa)
MARLI (Para Rodrigo e Cecília) - Uma bicha crente...pode?
VITINHO - Amiga: mais uma vez você revela desprezo tanto pelos gays como por aqueles que professam uma religião. Você se cuide, viu? Porque nada escapa ao olhar implacável do Senhor! (E volta a rezar, só que agora num tom muito alto)
MARLI - Porra, Vitinho! Baixa um pouco a rotação! Tu tá me atordoando, cara!?
VITINHO - Atordoado estou eu, prostituta insensível! Eu corri pra tua casa, à procura de conforto!? Mas agora percebo que...
MARLI - Tudo bem, Vitinho...tô te ouvindo. Fala. Que que te fez entrar aqui como se o demo tivesse na tua cola?
VITINHO - Ah, irmã! Uma tragédia!? (E chora)
MARLI - O que foi? Acertaram alguém da tua família?
VITINHO - É como se tivessem acertado!
MARLI - Então conta, porra!
VITINHO - Sabe o busto da Carmem Miranda que eu roubei daquele antiquário, há uns dois anos?
MARLI - Claro que sei. Eu tava junto...
VITINHO - Pois é, você tava!?
MARLI - Mas e aí? Que que tem ele?
VITINHO - Olha! (Tira da saca o que restou do busto)
MARLI - Gente!? O que que aconteceu com a Carmem?
VITINHO - Uma rajada de balas, Marli! Elas quebraram o basculante da cozinha, atingiram a minha deusa e ela ficou assim, reduzida a caquinhos!? (Chora)
MARLI - Fica assim não, Vitinho. De repente dá pra colar os pedaços!
VITINHO - Que pedaços, Marli? A Carmem virou farelo!
MARLI - E não é que virou mesmo!?
VITINHO - E agora, amiga? O que é que eu faço da minha vida?
MARLI - Quer um café?
VITINHO - Eu quero é que esse tiroteio recomece e uma bala perdida fure essa porta e se aloje bem no meu coração! (Torna a chorar)
MARLI - Escuta, Vitinho: com sorte, a gente descobre outro busto da Carmem e...
VITINHO - Como o que eu tinha? Não existe outro, meu amor! Era uma raridade!
MARLI - Eu sei, gracinha, mas...vê só: Deus é pai, não é?
VITINHO - Pai Todo-Poderoso!
MARLI - E Ele tá vendo o teu sofrimento...
VITINHO - Com certeza!
MARLI - Então Ele vai te ajudar!?
VITINHO - Você acha, amiga?
MARLI - Tu tem alguma dúvida?
VITINHO - Ah, Marlizinha...eu bem que sabia que na tua casa encontraria conforto!?
MARLI - Mas agora me diz, Vitinho: como é que tá a parada lá fora?
VITINHO - Metade do pessoal do Jacarezinho dançou e a outra metade fugiu.
MARLI - Graças a Deus!
VITINHO - Mas a galera do Cabeça tá fuçando tudo quanto é beco, pra ver se encontra mais algum jacaré pra furar!
MARLI - Tomara que encontre! Pode? Querer tomar na marra o que é dos outros!?
VITINHO - É o maior desaforo, eu também acho.
MARLI - Bem, Vitinho: agora eu vou te pedir pra dá uma circulada. Tô aqui com uns amiguinhos...e parece que eles tão precisando de um help.
VITINHO - Tu jura que não é seqüestro?
MARLI - Juro, Vitinho. Agora vaza, irmão. Na boa...
VITINHO - Tudo bem. (Põe os restos da Carmem na saca) Mas depois eu quero saber direitinho porque esse cafofo virou berçário, ok?
MARLI - Fica tranquilo.
VITINHO - Inté! (E sai. Marli acende um cigarro, se esparrama num sofá)
MARLI - Bem, boyzinho...a hora é essa. Que que tu fez?
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CENA 12
Sala da casa de Ana
ANA - Você não pode aceitar a chantagem desse homem, Paulo!
PAULO - Eu não tenho escolha, Ana. E não se trata só de evitar um escândalo. Ele armou as coisas de tal forma que talvez nada aconteça ao Rodrigo. E isso é tudo o que interessa. Ao menos por ora.
ANA - Tudo bem. Mas e se ele tiver feito uma cópia da fita e daqui a algum tempo tentar novamente te chantagear?
PAULO - Esse é um risco que eu tenho que correr.
ANA - Paulo, será que você não percebe? Pro resto da vida você vai estar nas mãos desse crápula!?
PAULO - E o que é eu posso fazer?
ANA - Pensar mais um pouco antes de aceitar. Talvez exista uma alternativa.
PAULO - Ana: só nos resta pagar e rezar pra que essa armação dê certo.
ANA - Mas você não tem toda essa quantia. Não assim, de uma hora pra outra.
PAULO - Eu arranjo.
ANA - Como?
PAULO - Como? Mas eu não sou um cliente super especial de uma porrada de bancos? Então eles vão ter que me emprestar essa grana. De qualquer maneira.
ANA - Mas os bancos só abrem às dez, Paulo. E às duas nós temos que estar na delegacia. Não vai dar tempo.
PAULO - Tem que dar, Ana!? Tem que dar...(O telefone toca)
ANA - Ah, meu Deus...(Ana atende) Alô? (A Paulo) É uma ligação a cobrar!
PAULO - Deve ser a Ciça!
ANA - Alô? Ciça? Alô! Fala mais alto, eu não estou ouvindo direito! Quem? Não...não é daqui não...(Ela desliga)
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CENA 13
Sala da casa de Marli
RODRIGO - E agora...eu não sei o que que eu faço!?
MARLI - Olha, boyzinho, o que tu vai fazer eu também não sei. Mas o que tu fez qualquer um faria, cara!? Tô até vendo a cena: tu esparramado naquele banco, tranqüilão, apertando o teu baseado. Aí chega o pilantra e diz que tua mãe é otária e teu pai, viado. Porra, que que tu tinha pra fazer? Tomar uma atitude. Partir pra dentro e encher ele de porrada. Até aí, tudo dentro dos conforme. Tu só deu o azar dele bater com a porra da cabeça naquela porra daquele banco! Isso é que foi foda...
CECÍLIA - Você não teve intenção de matar, Rô. Isso conta muito.
RODRIGO - Conta sim...pra quem?
MARLI - Porra, boyzinho: pros cara que vão te julgar. A lindinha aí tá certa. Eles levam muito em consideração esse lance de intenção. Pelo menos quando o cara que despachou o outro tem grana. Agora, se ele é duro, meu irmão...by by intenção. E se ainda por cima for preto...
CECÍLIA - Você sempre foi um menino super legal. Nunca se meteu em nada de violência. Por que então, de repente, você ia partir pra uma atitude como essa? Só se tivesse sido muito provocado, se fosse impossível evitar. E foi o que aconteceu!?
RODRIGO - Mas eu podia ter evitado. O sujeito tinha a maior cara de maluco, tava meio bêbado. Era só eu ter cagado pro que ele falou e...
MARLI - Aí não, boyzinho. Tenha a santa paciência! Se tu tivesse feito isso nunca mais ia poder se olhar no espelho, que nem os vampiro. Porra, cara, qual é? Pai e mãe, como bem disse mestre Djavan, são “ouro de mina!”. Se tu escuta o que tu escutou e esconde o pau no meio dos bago, aí maninho, mais vale desencarnar duma vez, que pro mundo tu tá mortinho.
CECÍLIA - Tenta entender, Rô: foi um acidente. Ninguém vai te condenar por isso.
MARLI - E não é que não vai mesmo? Tu até que é esperta, hein, lindinha? Vê só, boyzinho: teu pai contrata um puta advogado e o sujeito sai mandando que tu não teve intenção. E tome de não teve intenção. De repente até inventa que tu só tentou se defender!? E defender a honra da tua família! Quer melhor que isso?
RODRIGO - E se ele não tava mentindo?
CECÍLIA - Como assim, Rô?
RODRIGO - E se o meu pai era mesmo amante dele e também transava com garotos de programa?
CECÍLIA - O teu pai? Cara, você pirou? Isso não faz o menor sentido!?
RODRIGO - O pior é que faz, Ciça!
CECÍLIA - Rodrigo, como é que você pode imaginar que o teu pai...
RODRIGO - Lembra que eu te contei que a mãe falou pra ele ser discreto e prestar atenção nos lugares que ele ia passar a freqüentar?
CECÍLIA - Lembro, mas isso não quer dizer que...
RODRIGO - Quer sim, Ciça! Por isso eu fiquei paralisado quando o cara falou aquelas coisas. Na mesma hora eu me lembrei do que tinha escutado no corredor. E de repente...tudo se encaixava!? Aí me deu um desespero...Foi por isso que eu parti com tanta raiva pra cima dele. E se ele não tivesse batido com a cabeça no banco, eu arrebentava ela de qualquer jeito! (Rodrigo começa a chorar. Ciça o abraça)
MARLI - Eu vou fazer um café...(E sai)
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CENA 14
Sala da casa de Ana
(Manhã do dia seguinte. Paulo dorme num sofá. Ana entra)
ANA - Mas Paulo, não é possível. Eu já te chamei três vezes!
PAULO - Que horas são?
ANA - Quase nove!?
PAULO - Já? Ah, meu Deus!?
ANA - Eu falei com o Rodolfo.
PAULO - Que Rodolfo?
ANA - Do Bradesco. Ele está indo pro banco esperar a gente.
PAULO - Você falou o que com ele?
ANA - Que você ia precisar de um empréstimo para hoje.
PAULO - Ele perguntou de quanto?
ANA - Não.
PAULO - Melhor assim. Mas ele não vai ter como liberar todo o dinheiro.
ANA - Ele libera o que for possível. E aquele crápula que se dê por satisfeito.
PAULO -Duvido que ele aceite menos do que o combinado.
ANA - Aceita sim. E agora lava o rosto, ajeita o cabelo e vamos embora.
PAULO - Tudo bem.
ANA - Tem café fresco na cozinha! (Paulo sai. Ana caminha pela sala, acende um cigarro. De repente, escuta o ruído de uma chave girando na fechadura. Ela olha sobressaltada para a porta. Entram Cecília e Rodrigo. Ana corre até o filho e o abraça) Meu filho! Onde é que você estava? Por que não telefonou pra sua mãe? (Rodrigo a contempla com ar ausente) Ciça, você prometeu ligar!?
CECÍLIA - Não deu.
ANA - Onde é que vocês passaram a noite?
CECÍLIA - Na casa de uma amiga.
ANA - Que amiga?
RODRIGO - Isso não importa, mãe. Escuta...eu precisava falar com o pai.
ANA - Ele está aqui.
RODRIGO - Ah é? Que bom. Vocês se reconciliaram?
CECÍLIA - Rô, por favor...
RODRIGO - Ué, milagres acontecem. Ou não?
PAULO (Entrando) - Ana, será que você podia me arranjar um...(Ao ver Rodrigo e Cecília, ele se imobiliza e por um momento fica sem saber o que fazer. Depois, corre até o filho e o abraça) Meu filho! Onde é que você estava? Por que você não telefonou pro seu pai? (Rodrigo contempla o pai como se estivesse diante de um estranho) Ciça, você prometeu ligar!?
RODRIGO - E você prometeu não mentir nunca pra mim. Vocês dois prometeram. E não cumpriram.
PAULO - Não cumprimos? Como assim?
RODRIGO - Você e minha mãe são dois hipócritas.
ANA - Rodrigo!
RODRIGO - Por que não me falaram a verdade?
PAULO - Que verdade?
RODRIGO - Que o casamento de vocês foi uma farsa.
ANA - Meu filho, o que é que você está dizendo?
RODRIGO - Eu estou enganado, pai?
PAULO - Rodrigo, fica calmo, por favor.
RODRIGO - Calmo? Depois do que eu escutei daquele cara? Depois do que eu fiz?
PAULO - Escuta, meu filho: eu despedi o André, ele ficou inconformado e...
ANA - O que foi que ele te disse?
RODRIGO - Disse que você era uma otária. (Ao pai) E que vocês eram amantes.
ANA - Mas isso é um absurdo!
RODRIGO - E falou também que você sempre transou com garotos de programa.
PAULO - Rodrigo, você não pode levar isso a sério. O André era completamente desequilibrado.
RODRIGO - É mesmo? E como é que ele conseguiu emprego num dos mais badalados escritórios de arquitetura do Rio? Se não me engano, como teu assistente direto...
PAULO - Ele parecia ser um bom profissional.
RODRIGO - Esse é que é o problema, não é, meu pai? Nem sempre as coisas são o que parecem ser. Eu, por exemplo, achava que tinha pais maravilhosos. Porque vocês pareciam ser pais maravilhosos. E agora eu vejo o quanto me enganei.
ANA - Meu filho...
RODRIGO - Não adianta, mãe. Agora é tarde demais. (E Rodrigo caminha em direção à porta. Ciça o segue)
ANA - Tarde demais...como assim? Eu não estou entendendo.
RODRIGO - Eu estou atrasado.
PAULO - Atrasado?
RODRIGO - Eu vou me entregar.
ANA - O quê?
RODRIGO - Não é assim que devem agir as pessoas de bem? Eu cometi um crime. E devo pagar por ele.
PAULO - Você não vai fazer nada disso, Rodrigo. Antes eu vou contratar o melhor advogado e é ele quem vai nos dizer como agir.
RODRIGO - Você pode contratar quem você quiser. Pra mim, tanto faz. (E torna a caminhar na direção da porta. Paulo se posta à sua frente)
PAULO - Não faz isso com a gente, meu filho. Por favor!?
RODRIGO (Depois de um tempo) - Tudo bem: eu não me entrego agora, desde que você concorde com o que eu vou te propor.
PAULO - O que você quiser.
RODRIGO - Eu vou te fazer uma pergunta, pai. Só uma. E essa pergunta só pode ter uma resposta: sim ou não. Aceita?
PAULO - Pode perguntar.
RODRIGO - Seja o que for?
PAULO - Eu não vou te mentir.
RODRIGO - Tudo bem. Então, é o seguinte: é verdade o que o André falou?
ANA - Meu filho, como é que você pode achar que seu pai...
PAULO - Por favor, Ana. (Paulo encara o filho) É verdade.
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TRANSIÇÃO
(Paulo surge sob a luz de um único foco)
PAULO - Essa pergunta me foi feita há exatamente 10 anos. Mas até hoje eu fico espantado com a reação do Rodrigo. Ele poderia ter tido uma crise de choro, um ataque de raiva...poderia sair me xingando ou até partir pra cima de mim. Naquelas circunstâncias, qualquer coisa que ele fizesse eu entenderia. Mas ele não fez absolutamente nada!? Ficou me olhando, com um ar ausente, como se eu fosse um estranho que tivesse feito uma confissão bizarra, incompreensível. Depois, sem dizer uma só palavra, foi para o seu quarto. E desde então, nunca mais falou comigo. Nem naquelas datas que favorecem o entendimento, a reconciliação, como aniversário, Natal, Ano Novo, esse tipo de coisa. Eu simplesmente desapareci da vida dele. É claro que eu tentei desesperadamente reverter essa situação e a Ana também fez o que pôde. Mas ele se manteve irredutível. Então, chegou um momento em que eu tive que admitir que havia perdido meu filho para sempre. Foi muito difícil pra mim...muito. Mas talvez ainda exista uma possibilidade da gente ao menos se olhar uma última vez, quem sabe trocar duas ou três palavras. É que há mais ou menos um ano, durante um exame de rotina, ficou constatado que eu tenho um tumor numa região de difícil acesso. Eu consultei os melhores especialistas e todos disseram que não dava para operar. É claro que eu fiquei muito deprimido. Não conseguia me conformar com essa morte anunciada de forma tão unânime e categórica. Até que há um mês atrás surgiu uma esperança: um amigo médico descobriu que um cirurgião americano havia feito uma operação muito parecida com a que eu teria que fazer. Eu entrei em contato com esse médico, mandei todos os exames e ele respondeu que poderia fazer a cirurgia. Mas deixou claro que ela seria muito arriscada, que havia a possibilidade de eu morrer na mesa de operação. Mas que também havia uma chance de dar certo e que caberia a mim decidir se queria ou não correr esse risco. E eu resolvi arriscar. Amanhã eu embarco para os Estados Unidos com a Ana, a quem eu havia pedido que não contasse a ninguém a razão dessa viagem, especialmente ao Rodrigo. Aliás, eu fiz questão de esconder a doença de todo mundo, com exceção da Ana. Mas quando ela soube sua primeira providência foi contar para o Rodrigo e a Cecília, que por sinal estão casados e muito felizes. Eu acho que ela fez isso na esperança de que ele, nem que fosse por compaixão, resolvesse mudar de atitude comigo. Mas não foi o que aconteceu. E agora a Ana fez nova investida: falou dos riscos da cirurgia e disse que achava inadmissível ele sequer me desejar boa sorte. Ele não disse nada, mas pode ser que resolva me fazer uma visita de surpresa. Ou ao menos dar um telefonema. Eu adoraria... (Acende-se um outro foco e nele surge Ana. Sai o foco em Paulo)
ANA - Logo depois que o Rodrigo saiu da sala, a Cecília foi embora. E eu e o Paulo ficamos literalmente paralisados, sem saber o que fazer. De repente, o olhar dele brilhou de uma forma estranha...como se ele tivesse sido tomado por uma necessidade imperiosa de agir. Então ele ligou para o tal delegado e marcou um encontro na casa dele para dali a 15 minutos. Eu quis ir junto, mas ele não deixou. Depois ele me contou que, assim que entrou na casa daquele verme, a primeira coisa que fez foi dar um murro na sua cara e em seguida, com o homem ainda estirado no chão, disse que aquela tal fita não provava nada e mesmo que provasse, ele estava pouco se importando. Mas garantiu ao policial que se ele a usasse de alguma forma sua carreira estaria encerrada, graças à intervenção de alguns de seus amigos muito ligados ao poder. E citou vários deles, deixando aquele crápula petrificado de medo. E terminou a conversa dizendo que se por acaso esse expediente falhasse, ainda assim ele não viveria o bastante para testemunhar a sua desgraça, porque ele simplesmente o mataria. (Tempo) Eu não sei se o Paulo faria mesmo tudo que prometeu. Talvez ele estivesse agindo mais como um jogador desesperado que, já tendo perdido uma fortuna, investe o pouco que lhe resta numa única e definitiva aposta. Eu não sei. Mas o que importa é que funcionou. O tal policial, um homem sem nenhum escrúpulo e habituado a tirar proveito de pessoas acuadas, mudou completamente de atitude: devolveu a fita, tomou nosso depoimento de acordo com o plano traçado e manteve inalterado o segundo depoimento do porteiro, que foi decisivo para livrar o Rodrigo de qualquer condenação. (Tempo) Depois disso, o Paulo passou muito tempo deprimido. Recusava projetos, não atendia os amigos, praticamente não saía do apart. Até que as coisas, pouco a pouco, foram se ajeitando. Ele comprou um apartamento, recomeçou a trabalhar. Se envolveu com uns dois ou três sujeitos, mas nada de muito importante. Eu também tive alguns casos, mas como os dele, nada de especial. E de uns cinco anos pra cá nós passamos a nos encontrar com uma freqüência cada vez maior. E aos poucos fomos conseguindo reatar muitos laços que pareciam irremediavelmente perdidos. De vez em quando passamos a noite juntos, como se fôssemos namorados. E é sempre maravilhoso. Mas não passa pela nossa cabeça, ao menos por enquanto, voltar a viver como marido e mulher. Não mesmo. O que está acontecendo conosco é algo que nenhum de nós está preocupado em explicar, analisar, tentar entender. Está acontecendo e pronto. O que nos interessa é que essa proximidade está nos fazendo muito bem. E depois que foi diagnosticado esse tumor, aí mesmo é que passamos a nos ver praticamente todos os dias, como se acreditássemos que isso tivesse o poder de ao menos adiar o que parecia inevitável. E agora surgiu a possibilidade dele ser operado nos Estados Unidos. Eu tenho muita esperança que dê certo. Muita...
(Um novo foco em Cecília. Sai o foco em Ana)
CECÍLIA - O que aconteceu em seguida era mais ou menos previsível. Mesmo tendo escapado de uma possível condenação, e ainda que ninguém tenha ficado sabendo da vida dupla que o pai levava, durante dois anos a vida do Rodrigo virou um inferno. Ele largou a escola, começou a se drogar, se afastou dos amigos e até mesmo de mim. Só que eu botei na minha cabeça que faria tudo para trazer de volta o homem da minha vida. Sim, porque eu sempre soube, e ele também, que nós havíamos sido feitos um pro outro. Então eu passei a ir todos os dias na casa dele, embora na maioria das vezes ele sequer me recebesse. Mas quando ele se dignava a me conceder, digamos, uns cinco minutos, eu implorava a ele para que se deixasse ajudar. Não por mim, que era tão imatura como ele, mas por um especialista, quem sabe um psicólogo, que certamente o faria entender o que estava acontecendo com ele e o ajudaria a retornar a uma vida normal. Nessas ocasiões, ele me ouvia impassível, e quando eu finalmente me calava, quase sempre já prestes a chorar ou já chorando mesmo, ele passava por mim sem dizer nada e ia embora. E isso aconteceu não sei quantas vezes, tanto na casa dele como em qualquer lugar em que eu o encontrasse. Até que um dia eu percebi que estava me matando por causa dele e que isso não era justo. Então eu resolvi que, sem renunciar a tudo que estivesse ao meu alcance para ajudar o Rodrigo, eu precisava tocar a minha vida. Um ano depois, fiz vestibular e entrei para a faculdade de medicina, enquanto ele continuava se drogando. A coisa chegou num tal ponto que eu acabei perdendo toda a esperança de que ele se recuperasse. Mas aí aconteceu um milagre. Eu estava no terceiro período na faculdade e uma noite resolvi dar uma caminhada na praia para relaxar - no dia seguinte eu tinha uma prova que estava me aterrorizando. Eu me lembro como se fosse hoje...o céu estava lindo...repleto de estrelas...eu comecei a caminhar pelo calçadão e depois fui para a areia, pertinho do mar. De repente, eu vi o Rodrigo vindo na minha direção, o andar meio oscilante, como se estivesse bêbado. Então eu fui ao seu encontro. Quando já estávamos a poucos metros um do outro, ele tentou acelerar o passo, mas caiu. Eu corri até ele, me sentei na areia, apoiei sua cabeça nas minhas pernas e fiquei esperando ele parar de chorar. Quando isso aconteceu, tudo que ele conseguiu dizer foi...“me ajuda”. Nesse momento, eu o amei tanto que cheguei a ter medo que ele morresse ali, sem que eu pudesse fazer nada. Mas ele sobreviveu. Passou três meses numa clínica para viciados e depois começou a fazer análise. E aos poucos tudo foi se normalizando. Ele voltou a estudar, depois fez vestibular para Direito e está se tornando um ótimo advogado. Quanto a nós dois, logo que foi possível fomos morar juntos e estamos muito felizes. Eu só lamento que ele ainda não tenha reatado com o pai. Mas ele me prometeu falar com o Paulo antes da viagem. Talvez eles consigam se reaproximar. Seria maravilhoso...(Foco em Rodrigo. Sai o foco em Cecília)
RODRIGO - Quando meu pai admitiu o que mais me atemorizava, nenhuma palavra ou gesto me ocorreu. É como se aquele fatídico “é verdade”, que ele pronunciou sem a menor hesitação, tivesse me privado de toda energia. A partir daí, nós nunca mais nos falamos. Porque eu não quis. Talvez tenha sido a forma que eu encontrei de me vingar, pois eu sabia que isso o faria sofrer muito. Só que eu acabei sofrendo tanto ou mais que ele, porque no fundo eu sabia que estava agindo errado. Deve ter sido por isso que eu comecei a me drogar...com certeza uma punição maior do que aquela que eu impus ao meu pai. Até que chegou um momento em que eu não agüentei mais e saí de casa disposto a me matar - drogado como eu estava, bastava me atirar na água que o mar se encarregaria do resto. Mas aconteceu um milagre: eu vi a Ciça caminhando na praia e então tive certeza que Deus estava me concedendo uma última oportunidade. E esse encontro tão improvável acabou marcando o início do meu retorno à vida. Mas mesmo depois que as coisas foram se ajeitando, eu não consegui me reaproximar do meu pai. Nem quando soube que ele tinha um câncer. E amanhã ele embarca para os Estados Unidos...ninguém sabe se vai sobreviver à cirurgia...e eu fico aqui, me martirizando... quando tudo que eu mais quero é me encontrar agora com esse homem tão fundamental na minha vida...(Sai o foco em Rodrigo)
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CENA 15
Sala da casa de Ana
PAULO - É...parece que ele não vem mesmo.
ANA - Vem sim, Paulo. Eu tenho certeza. Nessas coisas, mãe não se engana.
PAULO - Já é quase meia-noite, Ana. Nosso avião sai às oito. E eu nem acabei de arrumar a mala.
ANA - Isso a gente faz em dez minutos.
PAULO - Eu vou fazer agora. Não adianta ficar se iludindo com uma coisa que não vai acontecer.
CECÍLIA - Ele estava muito agitado, Paulo. Andava de um lado para o outro, sem conseguir parar em nenhum lugar. Parecia que havia perdido alguma coisa muito importante. Mas eu sei que o que ele mais quer encontrar não está na nossa casa. Está aqui. E é você!
PAULO - Quem dera, Cecília...mas vocês duas se enganaram. E eu também me enganei. Até cinco minutos atrás eu acreditei que a qualquer momento ele poderia entrar por aquela porta...ou ao menos ligar pra mim...mas nada disso vai acontecer. (Rodrigo aparece, Paulo não o vê) As coisas são como são. Eu perdi o Rodrigo há muito tempo. E agora, mais do que nunca, eu sei que é pra sempre.
RODRIGO - Talvez não, meu pai...
PAULO - Filho!
RODRIGO - Tudo bem?
PAULO - Que bom que você veio se despedir de mim!
RODRIGO - Eu não vim me despedir.
PAULO - Não?
RODRIGO - Não...vim te agradecer.
PAULO - Agradecer? Mas...o quê? (Rodrigo olha para a mãe e a mulher, deixando claro que gostaria de ficar sozinho com o pai. Elas saem)
RODRIGO - Agradecer tudo que você fez por mim. Tudo que você foi pra mim. E também me desculpar por tudo que eu não pude ser pra você, quando você mais precisava.
PAULO - Que bobagem, Rodrigo. Você sempre foi um filho maravilhoso.
RODRIGO - Talvez eu tenha sido até dez anos atrás. Mas depois...
PAULO - Você não tem que se culpar de nada. No seu lugar, eu teria feito a mesma coisa. Talvez até pior.
RODRIGO - E o que poderia ser pior do que esse silêncio obstinado?
PAULO - Eu acho que eu pensaria em me matar.
RODRIGO - Eu quase fiz isso.
PAULO - Eu sei. A Cecília me falou daquele encontro na praia. Mas ela só me contou isso quando a tua vida já estava se normalizando.
RODRIGO - A minha vida nunca voltou ao normal, pai. Tudo bem que eu larguei as drogas, voltei a estudar, me formei. Mas eu nunca consegui me sentir inteiramente feliz. Porque eu sabia que estava te devendo esse encontro.
PAULO - Você não me deve nada, filho. E se esse encontro só está acontecendo agora, é porque não podia ter ocorrido antes.
RODRIGO - Quer dizer que eu precisava que você ficasse doente, tivesse que fazer uma cirurgia super arriscada...
PAULO - Talvez isso tenha contribuído. Mas o que importa é que você está aqui. E que a gente está se falando depois de tanto tempo.
RODRIGO - É verdade...(Tempo) E como é que você está se sentindo?
PAULO - Bem...eu andei meio deprimido ultimamente. Mas essa cirurgia me deu alguma esperança, embora o médico tenha dito que eu posso morrer na mesa de operação.
RODRIGO - E se isso não acontecer?
PAULO - Aí eu tenho uma grande chance de me recuperar completamente.
RODRIGO - Então vamos torcer. Vai dar tudo certo.
PAULO - Tomara.
RODRIGO (Depois de um tempo) - Escuta...eu estou sabendo que você e a mãe têm se encontrado.
PAULO - Muito. Aliás, a gente nunca deixou de se ver.
RODRIGO - Vocês estão...namorando?
PAULO - A gente “fica”, de vez em quando...
RODRIGO - E é bom?
PAULO - Maravilhoso. Como se nada tivesse acontecido.
RODRIGO (depois de um tempo) - Pai...eu posso te perguntar uma coisa?
PAULO - Claro.
RODRIGO - Na verdade, não é bem uma pergunta. É mais uma ajuda tua que eu estou precisando. Pra ver se eu consigo entender o que aconteceu com você. Que talvez ainda aconteça, eu não sei. Enfim...você se importa de falar sobre isso?
PAULO - Nem um pouco. Aliás, eu sempre quis ter essa conversa com você.
RODRIGO - Eu sei. Bem...a mãe deve ter contado que eu fiz análise um tempo.
PAULO - Uns dois anos, não foi isso?
RODRIGO - Quase três. E durante todo o tratamento eu tentei encontrar uma explicação para a tua forma de agir. Mas quanto mais eu conversava com o meu analista, mais confuso eu ficava. Porque eu achava que você devia se enquadrar em algum...como se diz? sei lá, modelo de personalidade gay. Mas o meu analista dizia que isso não existe. O máximo que ele admitia é que alguns gays têm em comum uma infância marcada por um pai fraco ou ausente, e uma mãe de personalidade forte, que acaba se tornando uma referência muito marcante. Mas isso, segundo ele, não determinava necessariamente uma conduta homossexual no futuro. E então eu pensava: mas o que é que determina? Algo puramente físico? Algum tipo de trauma? Quem sabe as duas coisas misturadas? Enfim...E aí eu saía fazendo um monte de conjecturas e ele ficava me ouvindo, sem dizer nada. Ou por outra, quando eu dava uma brecha, ele repetia sempre a mesma coisa: que o importante não era descobrir porque alguém se tornar gay, mas como é que eu deveria lidar com a tua homossexualidade. E eu acabei abandonando a análise sem saber como agir com você. E muito menos sem entender o que te levou a se interessar por...(Tempo) Sabe, pai...tem sido muito difícil pra mim. Sempre que eu penso nisso, a única coisa que me ocorre é que você casou porque quis, com uma mulher que te amava loucamente e com quem você tinha uma relação maravilhosa, inclusive na cama, como a mãe me disse várias vezes. Então...por quê, pai? O que foi que aconteceu?
PAULO - Bem...eu não cheguei a fazer análise, como você, mas também tentei desesperadamente entender. Porque eu realmente casei porque quis e sempre me dei maravilhosamente com sua mãe, na cama e fora dela. Então, não havia nenhum motivo para eu buscar esse outro tipo de envolvimento. Mas aconteceu uma primeira vez. Aquilo me chocou muito e eu só não entrei em pânico total porque achei que não se repetiria. No entanto, aconteceu de novo, e uma vez mais, e aos poucos eu fui me chocando cada vez menos. Comecei a achar que isso fazia parte da minha natureza, que não havia como evitar. Ao mesmo tempo, eu sempre soube que deveria abrir o jogo com sua mãe, que não era certo eu levar uma vida dupla. Mas eu não consegui. Eu tinha certeza que ela não aceitaria, porque não tinha mesmo porque aceitar. E a última coisa que eu queria era perder sua mãe. Até que um dia surgiu o André. E aí eu me senti...enfim... completamente perdido. Porque ele não era como os outros. Não era um cara que eu pagava. Eu me envolvi seriamente com ele. Então, eu não tive outra alternativa a não ser contar para a Ana. E aconteceu o inevitável.
RODRIGO - E depois disso...você se envolveu com mais alguém?
PAULO - Com umas duas ou três pessoas. Mas muito rapidamente. E nenhuma delas significou nada.
RODRIGO - E essas pessoas...você pagou para estar com elas?
PAULO - Não. Eram pessoas como eu.
RODRIGO - E quando foi que aconteceu da última vez?
PAULO - Já faz uns cinco anos. De lá pra cá, mais ninguém.
RODRIGO - Por quê?
PAULO - Não senti a menor vontade. E isso não deixa de ser curioso, porque eu não tomei nenhuma decisão nesse sentido, entende? Não me esforcei para que não acontecesse. Simplesmente, não aconteceu.
RODRIGO - E como é que você explica isso?
PAULO - Não explico.
RODRIGO - E o que é que a mãe acha?
PAULO - Sua mãe está feliz.
RODRIGO - E você?
PAULO - Também.
RODRIGO - Se é assim, porque vocês não...
PAULO - Porque eu ainda não estou seguro de que não vai voltar a acontecer. (Tempo) Se bem que agora, com a doença e essa operação, isso passou a um plano secundário.
RODRIGO - É verdade. Mas...e se tudo der certo e você ficar bom?
PAULO - Se isso acontecer, aí sua mãe e eu...quem sabe? Mas mesmo assim eu não gostaria de arriscar. A Ana é uma mulher maravilhosa. E a última coisa que me passa pela cabeça é causar uma nova decepção.
RODRIGO - E se ela quisesse arriscar?
PAULO - Eu não aceitaria. Não agora.
RODRIGO - E existe alguma maneira de você saber se...
PAULO - Não. E esse é o principal problema. Sabe, filho? De certa forma, eu me sinto como um alcoólatra ou jogador compulsivo, que apenas está conseguindo ficar sem beber ou jogar. Mas não quer dizer que...
RODRIGO - Desculpe, pai, mas o teu caso é diferente. Pelo menos até onde eu sei, beber ou jogar compulsivamente é uma doença. Que pra ser vencida depende de um tratamento muito sério. Mas você acabou de dizer que não fez nenhum esforço pra evitar que tudo aquilo se repetisse. E você já está há cinco anos sem...
PAULO - Eu sei. Mas nesse caso o tempo não serve como aval de nada. Eu posso ter uma recaída, como acontece muitas vezes com pessoas que ficam um tempo sem beber ou jogar. E essa recaída costuma ser devastadora.
RODRIGO - Tudo bem. Mas, e aí? O que é que se faz? Você vai passar o resto da tua vida - que vai ser longa, eu tenho certeza - esperando pra ver se acontece essa tal recaída? Vai viver, ou melhor, deixar de viver em função de uma coisa que talvez nunca mais se repita?
PAULO - Eu ainda não estou me sentindo plenamente seguro, meu filho.
RODRIGO - E acha que vai se sentir um dia?
PAULO - Pode ser.
RODRIGO - E como é que você vai chegar a essa conclusão?
PAULO - Eu não sei, mas imagino que...
RODRIGO - Pai, escuta: você falou que o tempo, para um alcoólatra ou um jogador, não serve como parâmetro de cura. Tudo bem que não sirva. Mas o teu caso é diferente. Nesses últimos cinco anos, você certamente teve um monte de oportunidades de transar com homens e não transou. E por quê? Porque não quis. Porque não sentiu necessidade. Porque a mãe está te bastando.
PAULO - Rodrigo, presta atenção: eu...
RODRIGO - Presta atenção você, pai! O que você está fazendo não é tentar preservar a mãe de uma possível decepção: é privar a você mesmo de uma felicidade que no fundo você talvez não julgue merecer. Será que você não percebe que está se punindo? E que a única forma de acabar com isso é tentar novamente?
PAULO - Mas isso não depende só de mim, Rodrigo. Sua mãe também teria que se dispor a arriscar!?
RODRIGO - E você acha que ela não toparia? Será que você imagina que ela está encarando essa nova relação de vocês como algo que não tem a menor importância? Tudo bem que vocês não tenham firmado nenhum tipo de compromisso. Mas será que ela ficaria indiferente se você dissesse que na semana passada saiu com um cara? É claro que não. Ela poderia até não dizer nada, mas por dentro ela morreria. Porque queiram vocês ou não, o fato é que vocês estão juntos de novo. E essa história de morar cada um numa casa não passa de um artifício ridículo. Que vocês mantêm porque não têm coragem de admitir que não podem viver um sem o outro. Mas até quando vocês vão prolongar essa farsa?
PAULO - Fala mais baixo, meu filho. Sua mãe pode ouvir.
RODRIGO - Não se preocupa. Eu já falei tudo isso pra ela, não sei quantas vezes.
PAULO - É mesmo? E ela disse o quê?
RODRIGO - Nada. Só escutou. Mas fez a mesma cara que você.
PAULO - E que cara eu fiz?
RODRIGO - A de alguém que não está gostando nem um pouco de escutar uma verdade incômoda.
PAULO - Olha, meu filho...talvez você tenha razão. Mas você tem que admitir que uma decisão como essa não é fácil para nenhum de nós.
RODRIGO - Eu não disse que é fácil. Eu só acho que é a única.
PAULO - E se voltar a acontecer?
RODRIGO - Aí você sentam e conversam. Ou se estapeiam. Ou a mãe te dá um tiro. Sei lá, pai! O que não dá é pra prolongar indefinidamente esse teatrinho, que talvez vocês imaginem que está sendo muito satisfatório, quando na verdade não pode estar fazendo bem a nenhum dos dois!?
PAULO - Quer dizer então que...na tua opinião...se essa operação der certo e eu ficar bom, quando a gente voltar...
RODRIGO - Devem voltar CASADOS! E irem direto para a MESMA casa! Pai, será que estou falando aramaico?
PAULO - Claro que não, filho. Eu até acho que pode ser maravilhoso voltar a viver com a tua mãe. Mas eu tenho medo!?
RODRIGO - Pai! Você, falando de medo? Logo você, que sempre me disse que eu não devia ter medo de nada!? Que não há nada na vida que não possa ser enfrentado!?
PAULO - Eu sei, Rodrigo, mas é que...
RODRIGO - Escuta: você se lembra daquele lance no clube, quando eu tinha...sei lá, uns oito anos?
PAULO - Não. O que aconteceu?
RODRIGO - Eu resolvi contornar a piscina e dois garotos não quiseram deixar.
PAULO - Ah, claro. Estou me lembrando.
RODRIGO - Pois é. Eles me empurraram, eu caí no chão e fui correndo até onde você estava. Cheguei chorando, contei o que tinha acontecido e pedi pra ir embora. E o que você fez? Disse que a gente só iria pra casa depois que eu desse a volta completa na piscina. Eu chorei mais ainda, argumentei que eles poderiam me bater. Aí você retrucou: “Se isso acontecer, você enfia a mão na cara deles”. “Mas são dois garotos, pai!”, eu exclamei, imaginando que essa desvantagem numérica te faria mudar de idéia. Mas você se manteve impassível. Então, como não tinha outro jeito, eu obedeci. Quando cheguei de novo perto dos garotos, que eram mais ou menos da minha idade, eles riram e o mais fortinho partiu pra cima de mim. Mas eu enfiei uma porrada tão bem dada na cara dele que ele caiu sentado. Vendo isso, o outro saiu correndo. Então, eu comecei a contornar lentamente a piscina, todo orgulhoso, como se eu fosse um rei inspecionando seus domínios. Quando cheguei onde você estava, você me pegou no colo, me deu um abraço super apertado e disse: “É isso aí, filhote. Se a gente não enfrentar o medo, ele toma conta da gente”. Talvez você nem tenha idéia de como esse momento foi importante pra mim. E agora justamente você, que naquele dia me deu uma puta lição de vida, está paralisado de medo!? (Tempo) Mas tudo bem: sabe o que eu vou fazer? Vou me plantar na porta da tua casa e só vou sair de lá se você me garantir que ao menos vai tentar contornar a tua piscina. E nem adianta argumentar, que eu não vou te ouvir. Como você fez comigo...(Paulo vai até o filho e o abraça, emocionado. Surgem Ana e Cecília)
ANA - Mil desculpas, mas nós já nos cansamos de ficar de castigo. Portanto... (Elas vêem os dois ainda abraçados e se imobilizam)
RODRIGO - Vocês chegaram na hora certa. Especialmente você, mãe.
ANA - É mesmo? E por quê?
RODRIGO - Eu acho que o pai tem uma coisa muito importante pra te dizer.
PAULO - Mas já, meu filho?
RODRIGO - Por que não?
PAULO - Mas é que...
RODRIGO - Tudo bem. Você não precisa ter pressa. Eu não tenho nenhuma...
ANA - Mas o que é isso? Vocês agora conversam em código?
CECÍLIA - O que está acontecendo, amor?
RODRIGO - O pai está pensando se contorna ou não uma determinada piscina...
CECÍLIA - O quê?
ANA - Que piscina, meu filho?
RODRIGO - Pergunta a ele.
ANA - Olha aqui: talvez vocês estejam achando muito engraçada essa conversa cifrada. Mas se não for incômodo, eu e Cecília gostaríamos muito de participar.
RODRIGO - Depende dele.
ANA - E então, Paulo? É possível?
PAULO - Bem...na verdade...eu e o Rodrigo estamos muito felizes. Afinal, depois de todos esses anos, a gente volta a se falar e...
RODRIGO - Não enrola, pai.
PAULO - Eu não estou enrolando, meu filho. É que...sabe o que é, Ana?
ANA - Não, não sei.
PAULO - Eu e o Rodrigo começamos a imaginar que a operação pode dar certo...
ANA - Ela vai dar certo.
PAULO - Então...se isso acontecer, a chance de eu voltar curado é muito grande.
ANA - Você tem alguma dúvida de que vai voltar curado? (Rodrigo segreda algo para Cecília)
PAULO - Eu não sei nem se vou voltar!?
ANA - Deixa de palhaçada, Paulo!?
PAULO - Quer dizer, voltar eu vou...só não sei como.
ANA - Quer parar?
PAULO - Rodrigo, sua mãe não fica linda quando começa a se zangar?
RODRIGO - A mãe é linda sempre.
PAULO - Nisso você tem razão, meu filho.
ANA - Eu fico muito comovida com o elogio. Mas se você me vier com mais uma frase sem graça, Paulo, eu...
PAULO - Você faz o quê?
ANA - Te dou uma surra!
PAULO - De beijos?
ANA - Vai esperando! (Rodrigo e Cecília começam a se afastar)
PAULO - Ei! Onde é que vocês estão indo?
RODRIGO - Pra casa, ora. Amanhã a gente tem que acordar muito cedo. Nós vamos levar vocês no aeroporto.
ANA - Não é preciso, meu filho. A gente pega um táxi.
CECÍLIA - Nem pensar. Daqui a pouco a gente está de volta. Beijos! (Os dois somem. Ana e Paulo ficam um momento em silêncio)
ANA - Ah, Paulo, eu estou tão feliz! Eu esperei tanto por esse momento!?
PAULO - Eu também. Foi tão bom ele ter vindo. Eu realmente não esperava.
ANA - Coração de mãe não se engana. Eu não te disse?
PAULO - E coração de mulher...também não se engana?
ANA - Como assim?
PAULO - Ana, pouco antes de vocês voltarem, o Rodrigo estava me dizendo que eu deveria contornar a piscina. Então...
ANA - Voltamos à bendita e enigmática piscina...
PAULO - Depois eu te explico o significado dela. Mas o que importa é que ele acha que eu devo tomar uma determinada atitude. Só que eu não sei se devo fazer isso. Se posso fazer isso. Se tenho esse direito, entende?
ANA - Não, não entendo. Mas adoraria entender.
PAULO - Ana, presta atenção: digamos que...enfim...Deus aparece aqui e...
ANA - Que é isso, Paulo? Desde quando você acredita em Deus?
PAULO - Tudo bem, eu sou ateu. Mas você não. E a questão é contigo.
ANA - Comigo? Comigo e com Deus? Mas que momento extraordinário!?
PAULO - Não brinca, Ana. É sério!
ANA - Está bem, continua. Deus surge aqui, no meio da sala e...
PAULO - Exatamente. Ele entra e diz que quer te fazer uma pergunta, que só admite como resposta um sim ou um não.
ANA - E eu sou obrigada a responder?
PAULO - Só se quiser.
ANA - Vamos supor que eu queira. E aí?
PAULO - Não vale mentir, é claro.
ANA - Mentir pra Deus, Paulo? Seria inútil, não é, meu querido?
PAULO - Dizem que sim. Enfim...Ele aparece e te faz a seguinte pergunta: Ana, se por acaso eu permitir que um determinado milagre aconteça...você sabe, esse ateu aí ficar bom...você por acaso acha que seria possível...
ANA - Acho!
PAULO - Mas eu ainda não terminei! Quer dizer, Deus ainda está falando!?
ANA - Não só acho possível voltar a viver com você, como isso é tudo que eu mais quero! (Eles se abraçam, se beijam. Depois de um tempo...)
PAULO - E se voltar a acontecer?
ANA - Nunca mais vai acontecer.
PAULO - Como é que você sabe?
ANA - Coração de mulher não se engana.
PAULO - Ana, eu tenho medo.
ANA - Medo a gente enfrenta.
PAULO - Eu não quero te decepcionar. Talvez fosse melhor a gente...
ANA - Paulo, você é o homem da minha vida. E eu estou disposta a correr qualquer risco pra ter você de novo ao meu lado. Na mesma casa. Acordando juntos outra vez, partilhando tudo.
PAULO - E se por acaso der errado?
ANA - Isso não vai me destruir.
PAULO - É claro que vai.
ANA - Engano seu. Agora eu sei que o que pode me destruir é não tentar refazer a nossa vida. Isso sim pode acabar comigo.
PAULO - Então você acha mesmo que...
ANA - Acho, Paulo. E também acho que já chega de tanta pergunta. Está mais do que na hora da gente ir dormir. Vem.
PAULO - E as malas?
ANA - De manhã a gente faz.
PAULO - E aquela história da piscina? Quer que eu te explique agora?
ANA - É tudo que eu mais quero. (Música. Paulo e Ana vão saindo de cena de mãos dadas, sem que se escute o que Paulo diz. Estão felizes, emocionados, como se acreditassem que uma nova vida a dois possa estar efetivamente começando)
F I M
domingo, 8 de fevereiro de 2009
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